sexta-feira, 8 de julho de 2022

Teme-se o pior


Começou hoje a discussão parlamentar da proposta de lei denominada pelo Governo de Agenda para o Trabalho Digno.

Hoje, foi um debate curto, de pouco mais de uma hora e que vai prosseguir em comissão parlamentar, onde se discutirá a proposta do Governo e os projectos dos deputados. Mas deu para perceber ao que se vem.

A ministra do Trabalho apresentou-se da mesma forma de sempre: com um discurso cheio de palavras redondas como se o PS - juntamente com a direita - não tivesse fortes responsabilidades na actual realidade laboral descrita pela ministra como "inadmissível" (!), como se Ana Mendes Godinho não estivesse no Governo desde 2015 e como ministra do Trabalho desde 2019, como se não tivesse aprovado em 2019 um pacote de medidas contra a precariedade (aliás com forte apoio patronal). Disse:
Esta é "uma das mais importantes e ambiciosas reformas em matéria de legislação laboral para chegar a milhões de trabalhadores"; é o resultado de "um processo longo que se iniciou com o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho", que incide sobre o "futuro colectivo", expressa em 70 medidas com quatro objectivos "muitíssimo caros": "o combate sem tréguas à precariedade e a valorização da promoção do trabalho digno", a "valorização dos jovens no mercado de trabalho", a "promoção da conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar" e a "real dinamização efectiva da negociação colectiva, promovendo a participação dos trabalhadores". "Esta é uma agenda forte, uma agenda corajosa, uma agenda ambiciosa de que o país precisa e de que os jovens precisam".
Apesar de o PS estar há 7 anos no Governo, Ana Mendes Godinho disse que a proposta "responde a graves problemas que, de forma absolutamente inaceitável, persistem no mercado e trabalho e na sociedade poertuguesa". Cerca de 62% dos jovens têm contratos precários e os seus salários são 40% abaixo dos contratos permanentes. "É isto que não podemos aceitar" (palmas do PS)... Medidas que passam por "combater o recurso abusivo ao trabalho temporário e à eterna precariedade como meio normal de contratação que é inadmissível!", (palmas do PS), "medidas para impedir esquemas de substituição por outsourcing após despedimento colectivo ou extinção do posto de trabalho"; "Medidas para impedir a eternização de uma vida permanentemente temporária com contratos temporários que impede qualquer estabilidade ou autonomização", etc., etc. tudo o que "socialmente não podemos aceitar!".
Mas depois, foi incapaz de discutir os assuntos apresentados, incapaz de responder a questões políticas postas de diversas bancadas, respondendo de uma só vez (ou seja, esquivando-se) aos pedidos de esclarecimento que lhe foram postos e recorrendo a tiradas e chavões de marketing político.

1) José Soeiro (BE): Entre a proposta inicial publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, em Outubro de 2021, que fora levada para a campanha eleitoral, e a proposta entregue em Junho no Parlamento, há várias diferenças. A "mais estrondosa" foi a de que a ministra - ao arrepio da directiva e do próprio Livro Verde - "cedeu à última da hora e sem aviso público ao lobby das multinacionais", com um acrescento cirúrgico que introduz uma figura intermédia - a do trabalhador transformado em empresário em nome individual - para libertar as plataformas das responsabilidades patronais; e ainda desfigurou os indícios de laboralidade que estavam na proposta inicial e que vinham do Livro Verde. A tal ponto que a coordenadora do Livro Verde veio dizer à comunicação social que aquilo que foi apresentado "vai dificultar a possibilidade de contratos de trabalho para os trabalhadores das plataformas". Foram feitas dez limpezas": a moratória à caducidade das Convenções Colectivas caiu; a exigência de transparência dos custos para evitar o dumping caiu; desapareceram as exigências de contratos estáveis. Porquê estas alterações? Quem as exigiu? A que lobbies cedeu? E o PS está disposto a repor o que caiu? O BE vai presentar projectos que repõem as normas que caíram.

2) Diana Ferreira (PCP): "Trabalho digno" é apenas no nome porque a Agenda não garante condições de dignidade no dia-a-dia. Não se compromete com a valorização de todos os salários. "E não vale a pena vir falar do acordo" a ser negociado na Concertação Social, porque não é possivel dar dignidade sem uma valorização de todos os salários, nomeadamente repondo o poder de compra perdido. "Esta proposta mantém todos os cortes nas remunerações e nos direitos que foram impostos aos trabalhadores em anteriores alterações legislativas, nomeadamente no tempos da troika". Seja nos feriados, na caducidade das convenções colectivas, no trabalho suplementar, nos despedimentos, nas compensações por despedimento. O Governo não apresenta nem se compromete com medidas para a erradicação da precariedade: mantém o período experimental e legitima outras formas. Não assume a redução do horário de trabalho, mantém os abusos no trabalho nocturno e por turnos. "A proposta introduz elementos limitam a liberdade e acção sindical, o que é profundamente inaceitável e grave".

Esta última questão merece um comentário. O Governo preferiu dividir os dois assuntos: a valorização dos salários num Acordo sobre Rendimentos e Competitividade e a dignificação do Trabalho, com a Agenda para o Trabalho Digno. Mas ao fazê-lo, escamoteia o facto de que, sem alterar as traves mestras da legislação laboral aprovada no tempo da troica - com a direita - nem o Acordo de Rendimentos é eficaz, nem no final a Agenda de Trabalho Digno fica completa.

E o que disse a direita? Aliás, pouco se interessou pelos trabalhadores e pela legislação.

André Ventura (extrema-direita), sem nunca pôr em causa a legislação lesiva dos trabalhadores, preferiu colocar-se do lado do patronato. Frisou não ter havido consenso na Concertação Social (onde o patronato está sobre representado) e que o novo pacote se trata de propaganda já que o anterior, o de 2019, ainda está por aplicar. Clara Marques Mendes e Pedro Roque (PSD) disseram que a proposta estava cheia de vícios: 1) tal como a extrema-direita e negando a sua qualidade de deputada, frisou-se que a Agenda, em vez de vir ao Parlamento, deveria passar primeiro pelo consenso da Concertação Social e que, assim, o Governo - negando a sua prorrogativa de governar - estava antes "a impor" uma lei (!). Depois, se havia precariedade, o Estado - e não o sector privado! - que desse exemplo. Terceiro e cavalgando a perda de poder de compra, que falta uma política de rendimentos. Mas nenhuma palavra foi dita sobre o facto de ser a legislação laboral em vigor - aprovada com o entusiasmo da direita - promover e visar, precisamente, desvalorizar salários, como forma de aumentar a competitividade das empresas num contexto de moeda única.

No mesmo sentido falou o Iniciativa Liberal, pela voz de Rui Rocha e Carlos Guimarães Pinto. Que a Concertação Social não foi ouvida, que a legislação de 2019 não foi aplicada, que é uma "proposta parcelar" porque também é necessário "justiça digna", "fiscalidade digna", "burocracia digna". "Sim, é uma questão ideológica", disse Guimarães Pinto. Não é necessário mexer na legislação laboral, mas deixar a sociedade desenvolver-se como acontece na Holanda.
A culpa não é dos trabalhadores, mas das condições diferentes que os dois países lhes dão para produzir. O liberalismo selvagem [devia ser uma figura de ironia!] permitiu que um país se desenvolvesse. O que o socialismo vende como ilusões, o liberalismo da Holanda vende como realidades
Um discurso que foi secundado pelo deputado Rui Afonso (extrema-direita), esquecendo-se já do que dissera o seu chefe no debate com o Governo na passada quarta-feira, quando gritava contra os baixos salários da juventude ao mesmo tempo que criticava o facto de os empresários não encontrarem mão-de-obra disponível para trabalhar...

E o que disse o Governo sobre tudo?

A ministra, sobre as cedências às multinacionais, respondeu de forma redonda (tinha de ser!):
"este foi um processo longo, discutido, cuidado e participado. Tivemos capacidade de evoluir face à proposta inicial. Foi um compromisso para o país e trabalhadores" (...) Eu percebo que o BE gostasse de ter sido o proponente destas propostas corajosas, mas esta é uma agenda em que procurámos o maior consenso com todos, mas não é possivel ter todas as pessoas a subscrever. Naturalmente em sede de assembleia poderemos melhor".
Disse o secretário de Estado Miguel Fontes:
com esta proposta, o Governo "procura uma reforma profunda do Mercado de Trabalho, valorizando sobretudo os trabalhadores mais jovens. (E para a direita) Não pensamos que a economia está em primeiro. Também aqui se joga a convergência com a UE, competitividade, mas (...) não com ganhos de produtividade à custa do trabalho... (E para a esquerda) Esta é uma reforma que "devia encher de orgulho as forças de esquerda" porque é "reforma em que mais longe se foi". "Esta agenda é aquela que traz para o debate os verdadeiros problemas, com pragmatismo, sem clichés ideológicos". E para o BE: "Chega de repetir a questão das plataformas porque esta proposta não vem fazer retrocesso"; é "um combate firme a todos as formas ilegitimas, independentemente de quem as preconiza e promove. (...) É a reforma que o país precisa".
E foi assim. Se este é o tom e o nível de resposta, teme-se o pior. Mas cá estaremos.

1 comentário:

Paulo Marques disse...

Não consegui confirmar, por isso não há link, mas não deveria surpreender ninguém que as empresas ajudadas com o complemento ao salário mínimo sejam as empresas de trabalho temporário. Mas também não surpreende que haja mais de 11000 trabalhadores em layoff a querer trabalhar e não poderem.
"devia encher de orgulho as forças de esquerda", ou de vergonha quem se intitula de socialista?