quarta-feira, 27 de julho de 2022

Casas a menos ou financeirização a mais?

Uma profunda crise habitacional atravessa hoje a Europa, com as famílias a ter crescentes dificuldades em conseguir uma casa a preços acessíveis. Há quem considere que o problema resulta de uma mera escassez de oferta, mas a questão parece ser bem mais complexa. De facto, e em linha com o que acontece no caso de Portugal, não se registam à escala europeia variações no número de famílias (procura) e de alojamentos (oferta) que justifiquem a escalada de preços, iniciada em 2013.


Vale a pena reparar bem nos números: entre 2015 e 2020, o total de famílias na U27 (excluindo a Grécia) aumentou cerca de 2,5% (ou seja, mais 4,7 milhões de famílias, passando-se de um total de 187 para 191 milhões). No mesmo período, o total de alojamentos registou um aumento de 4,2% (passando-se de 217 para 226 milhões, o que traduz um acréscimo acima do registado no caso das famílias, com mais 9,1 milhões de fogos). Em termos de rácio, observa-se portanto a passagem de 1,16 fogos por família, em 2015, para um valor de 1,18 em 2021.

Assumindo 2015 como base de referência (2015=100), o que se verifica é que enquanto o número de famílias e de alojamentos registam variações ténues e idênticas (102,5 e 104,1, respetivamente), o aumento dos preços da habitação dispara para 126,9 em 2020, face ao valor 100 de 2015. Ou seja, evidenciando um claro desfasamento entre o preço da habitação e a relação «convencional» entre oferta e procura, obrigando a considerar que outros fatores explicam a vertigem dos preços, que afeta praticamente todos os países da União Europeia (com a exceção da Finlândia, Chipre e Itália, que denotam equilíbrio na evolução das três variáveis).


Ou seja, como já referido aqui, estamos muito provavelmente perante o efeito de novas dinâmicas de procura de habitação, alheias à simples relação entre «casas» e «famílias». Importando conhecê-las com detalhe, essas dinâmicas encontram-se muito provavelmente associadas a novas lógicas de financeirização, que encaram «a habitação como um ativo de investimento financeiro». O que, traduzindo na prática um défice de oferta, implica perguntar: «há falta de casas por quê, para quê e para quem?»

1 comentário:

Daniel Carrapa disse...

Tomo a liberdade de partilhar um texto que publiquei há dois anos sobre A cidade como produto financeiro.

Não creio que restem muitas dúvidas sobre o motor dos aumentos do preço da habitação e do imobiliário em geral. A "escassez da oferta" é a reposta lógica daqueles que são incapazes de compreender que o imobiliário é um mercado imperfeito - que é o mesmo que dizer que é um sistema que não se rege pelas regras normais de mercado.

O enorme volume de capital criado pelos processos de QE e disponibilizado ao setor financeiro e a sua canalização para aquisição de "produto imobiliário" explicou as bolhas da década passada, criadas em cidades de primeira linha como Londres e, num momento posterior, em Lisboa.

A segunda fase é a compra intensiva de imobiliário por fundos financeiros. Começou nos EUA mas, como sabemos, as lógicas de gestão acabam por servir de modelo e disseminar-se pelo mundo fora.

Num "mercado" tão distorcido como este, explicar os fenómenos de aumento de preço com a lógica da batata da oferta e da procura só pode satisfazer os "liberais" crentes na "economia de telejornal".