sexta-feira, 22 de julho de 2022

Manifestamente exagerada


Se o Banco Central Europeu (BCE) está disponível, com a primeira subida da taxa de juro de referência da última década, para sacrificar o investimento e o emprego, em nome do combate a uma inflação sobretudo puxada pelos custos da energia e pelo oportunismo das grandes empresas, a verdade é que não parece estar disponível, no contexto de “policrises”, para repetir a crise evitável das dívidas que não são soberanas.

De facto, a instituição pós-democrática mais poderosa da zona euro decidiu continuar o caminho da sua americanização, começado pela encarnação do neoliberalismo chamada Mario Draghi (este processo foi analisado pelo historiador económico Adam Tooze em Crashed). Sim, também a sustentação do neoliberalismo requer comando político da moeda, ainda que disfarçado de técnica.

Quero com isto dizer que o novo instrumento de intervenção nos mercados secundários de dívida pública ontem anunciado é aparentemente ilimitado, embora esta hipótese vá ser provavelmente testada pelos próprios mercados, e sem condições novas, para lá da tralha neoliberal que já constrange a acção orçamental dos governos, sobretudo periféricos.

Fala-se de uma intervenção de controlo das reações dos mercados, para lá do que seria justificado pelos “fundamentos económicos”, orientada pela “sustentabilidade da dívida”. Obviamente, estes dois termos são incertos e parcialmente determinados pela própria acção do BCE.

Como diria Keynes, em contexto de incerteza, vale-nos a discricionariedade do soberano monetário e logo orçamental. O problema é que a ligação tesouro-moeda é aqui indireta, para lá do facto relevante que o soberano não é popular. Da ficção da independência dos bancos centrais, propagada pela teoria neoliberal, passámos há muito para a realidade neoliberal europeia da dependência dos governos em relação aos bancos centrais. No regime keynesiano, como lembrou um dia o saudoso Silva Lopes, num aparte inesquecível numa confererência, o Ministro das Finanças telefonava para o Banco Central a dar ordens. Melhor regime.

Sim, a morte do neoliberalismo é manifestamente exagerada.

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