quinta-feira, 29 de abril de 2021

Censos


Francisco Lima, presidente do INE, considera que «vai deixar de ser necessário fazer inquérito à população». Ou seja, os Censos de 2021 «serão os últimos a serem feitos nestes moldes» (com a inquirição de todos os residentes). Uma convicção assente na ideia de que, com o recurso a dados administrativos, passará a ser possível dispor de informação censitária com uma periodicidade anual, em vez de decenal.

Nos últimos censos, realizados em 2011, curiosamente, a então presidente do INE, Alda Carvalho, expressava já a vontade de que fossem os últimos realizados com recolha direta da informação junto da população. Nessa altura, ainda não havia certezas sobre a existência de «toda a informação necessária» nas bases de dados administrativos. Mas o trabalho de verificação da informação disponível estava já a ser feito.

É provável que o otimismo em relação a esta possibilidade de recensear sem inquirir se justifique. Mas importa lembrar que há vários indicadores importantes que não tiveram qualquer atualização (por via administrativa) desde os Censos de 2011. Dois exemplos, entre outros: a distribuição da população segundo a dimensão dos lugares e o número de fogos devolutos. Os últimos dados exaustivos que se conhecem, nestes dois casos, são de 2011.

Acresce que a última década compreende dois períodos muito distintos. O primeiro (2011-2015), profundamente marcado pelas convulsões causadas pelos «anos de chumbo» da troika e pelas políticas de «empobrecimento competitivo» da direita. O segundo (2015-2021), marcado pela relativa recuperação dos danos causados, já com a maioria de esquerda no poder, mas também, desde o ano passado, pelos impactos da crise pandémica. Ou seja, como sugerido aqui, não teria sido nada má ideia que o INE tivesse realizado, em 2015, uns censos intercalares. Aliás, por inquérito direto ou por recurso a bases administrativas, é impensável que diversos indicadores tenham que voltar a esperar dez anos pela sua atualização.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Vacinas: a urgência de levantar patentes


Três importantes e internacionalmente consideradas economistas apelam ao levantamento das patentes. O texto (aqui) é breve e aconselho a leitura. No essencial, argumentam que é falso que as patentes tenham sido essenciais para estimular uma descoberta mais rápida das vacinas, que a maioria do investimento foi público, que as companhias farmacêuticas estão a ter lucros sem paralelo e que (o mais importante) a queda das patentes permitiria aumentar significativamente o ritmo de produção global.

Um dia olharemos para trás e veremos como o fanatismo do mercado na gestão das vacinas à escala global causou uma escassez desnecessária e, mais importante, custou vidas.

O apelo de levantamento das vacinas não é um apelo de hoje. Desde o início da pandemia que os países em desenvolvimento, como a Índia, apelam a uma quebra de patentes como única forma de um combate atempado e robusto à pandemia nesses países. Fica a questão: quantas vidas dos que hoje morrem à porta dos hospitais indianos poderiam ter sido salvas se esses pedidos tivesses sido atendidos? Um dia, talvez alguém também se devesse dedicar à contabilidade dos mortos do mercado livre.

Hoje, o parlamento europeu vota uma iniciativa que pretende que a União Europeia se coloque ao lado desta posição de elementar justiça social e de direitos humanos, que conta com amplo apoio internacional, incluindo no seio da OMS.

Estejam atentos às votações. Temo que tenhamos surpresas desagradáveis daqueles que gostam de propalar o europeísmo, a cooperação internacional e os direitos humanos.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Assunção Cristas e o Processo FP-25


Na sua crónica de hoje no DN (aqui), Assunção Cristas compara a indemnização concedida pelo Estado à família de Ilhor, cidadão ucraniano assassinado por elemento do SEF no Aeroporto Humberto Delgado, com as indemnizações pagas pelo Estado às famílias dos alvos das FP25.

Alguém pode explicar a Assunção Cristas que a sua comparação é destituída de qualquer sentido? No caso de Ilhor, trata-se de o assassinato de um cidadão estrangeiro sob tutela do estado português, pelas mãos de agentes de uma polícia de um estado democrático, que em nenhuma circunstância podem assassinar de forma gratuita um cidadão desprotegido. É responsabilidade direta do Estado. No caso FP25, a situação é totalmente diferente. As ações das FP25 não decorreram da ação direta do Estado. A ideia de que o Estado é indiretamente responsável porque não foi capaz de proteger os alvos das FP é fraco: por essa lógica, o Estado teria de indemnizar os familiares das vítimas sempre que uma terceira parte cometa um crime que as forças de segurança e investigação não conseguiram evitar. Não faz sentido.

Esta crónica só pode ser entendida como um desejo claro de a direita fazer ressurgir o caso FP25 no espaço público, a propósito de um livro recentemente editado sobre o tema. O livro terá os seus méritos, mas nunca poderá ser reconhecido como uma análise distanciada do processo FP25, uma vez que foi redigido em estreita articulação com um dos filhos de um alvo das FP25 e militante do CDS.

Mas percebe-se a vontade de a direita recuperar o caso. É-lhe muito útil para dizer que a violência foi igualmente distribuída entre as franjas da esquerda e da direita. A isso temos de responder, uma e outra vez, que não há equivalência possível. A direita portuguesa tem o monopólio da violência institucional do Estado Novo durante 50 anos, que torturou e assassinou inúmeros antifascistas. Assim como um património de violência no pós-25 de Abril. São múltiplos os atentados à bomba e os incêndios de sedes de partidos políticos. A que se somam casos de homicídio, como o do Padre Max. Crimes que nunca se traduziram em penas de prisão efetiva. Em termos de violência política, a direita dá 100 a 0 à esquerda em Portugal.

As FP25 devem ser entendidas como o reflexo da ação de um pequeno grupo de militantes de esquerda, alguns com um respeitável passado anti-fascista, que não se conformou com o refluxo das conquistas populares do processo revolucionário. Em consequência dessa inconformação, seguiram um caminho censurável e difícil de explicar numa democracia, atingindo alvos ligados à repressão sobre o movimento dos trabalhadores e, mais tarde, à repressão sobre os prisioneiros da organização. Os alvos das FP25 não eram os santos que a direita gosta de afirmar que são, mas não há justificação política para a sua liquidação física. Os elementos do caso FP25 foram julgados num longo processo que envergonhou a democracia portuguesa, ao envolver inocentes que nada tinham que ver com as FP 25, mantendo os presos em prisão preventiva por longos períodos de tempo sem culpa formada e submetendo-os a tratamento prisional abaixo da dignidade de um estado democrático, muitas vezes com a conivências das autoridades prisionais.

Após cumprirem penas prisão, os envolvidos no caso FP25 acabaram por beneficiar de uma amnistia, largamente consensual na sociedade portuguesa, com a concordância da maioria do parlamento e do Presidente da República. As indemnizações a serem pagas foram pagas na altura.

O julgamento das FP-25, uma micro-organização dentro da extrema-esquerda, percorreu todos os passos da justiça e implicou penas de prisão efetiva. Fica a pergunta: quantos elementos da emaranhada teia da máquina de repressão fascista foram julgados e presos? Desses, quantos fugiram e foram libertados com a conivência das autoridades? Quantos anos de prisão efetiva cumpriram os militantes da extrema-direita responsáveis pelos atentados bombistas?

Não comparemos o incomparável. Nem a magnitude da violência da direita portuguesa é comparável com a da esquerda, nem a indemnização por um ato sobre direta responsabilidade do Estado deve ser comparável com o valor da indemnização a pagar por um ato em que o Estado tem questionável responsabilidade indireta.

O aproveitamento político de vítimas deveria ter limites.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Super Liga Europeia: como a economia “trickle down” chegou ao futebol


O anúncio de ontem à noite chegou às capas de jornais um pouco por todo o mundo: 12 dos clubes mais ricos do planeta oficializaram a criação da Super Liga Europeia, uma prova que pretende funcionar como alternativa à atual Liga dos Campeões. Embora ainda não se conheçam todos os contornos, os clubes fundadores – Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham, AC Milan, Inter, Juventus, Real Madrid, Atlético de Madrid e Barcelona – terão direito a um lugar permanente na competição, havendo a possibilidade de admitir anualmente alguns convidados. O projeto conta com um empréstimo de €3,25 mil milhões da JP Morgan, como adiantamento de receitas futuras provenientes dos direitos de transmissão televisiva.

No comunicado oficial, os fundadores da nova competição dizem que a decisão surge “num contexto em que a pandemia agravou a instabilidade do atual modelo económico do futebol europeu”, embora, na verdade, as discussões para a criação desta prova já tenham alguns anos. A ideia passa por criar “um formato para que clubes e jogadores de topo compitam uns contra os outros de forma regular”, que possibilite uma “abordagem comercial sustentável […] para o benefício de toda a pirâmide do futebol europeu”. É aqui que o caso se torna interessante: os clubes responsáveis por este projeto prometem que os benefícios não serão apenas para si próprios, mas que acabarão por ser distribuídos e beneficiar todos os outros. É a lógica “trickle down” aplicada ao desporto. Esta ideia, que tem origem nos debates sobre a política fiscal do final do século passado, diz-nos que a redução dos impostos sobre os mais ricos tenderia a beneficiar a sociedade como um todo, pelo efeito de promoção do investimento e da criação de emprego. Alivie-se a tributação da riqueza e esta distribui-se naturalmente, dizia-se.

Só há um problema: a experiência dos últimos 50 anos mostra que esta ideia não funciona. Os economistas Julian Limberg, do King’s College de Londres, e David Hope, da London School of Economics, estudaram os cortes de impostos sobre os mais ricos aprovados ao longo das últimas cinco décadas em 18 países diferentes. Sem grande surpresa, a conclusão a que chegaram foi a de que estes cortes beneficiaram bastante o 1% do topo, mas tiveram efeitos negligenciáveis para o resto da sociedade. “Em média, cada diminuição considerável de impostos resulta num aumento de 0,8 pontos da fatia do 1% do topo”, lê-se no estudo. Por outro lado, “a evolução do PIB per capita e da taxa de desemprego não é afetada por reduções significativas dos impostos sobre os mais ricos”. É por isso que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada ao 1% do topo foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por este grupo mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo, como mostrou um estudo de Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva. Conclusão: estes cortes só acentuaram as desigualdades.

É expectável que a criação da Super Liga tenha um efeito semelhante, favorecendo a concentração do dinheiro e acentuando o fosso entre os clubes mais ricos e os restantes. Basta notar que a promessa de que os ganhos vão ser redistribuídos é feita pelos mesmos proprietários que recusam há anos a criação de mecanismos legais para isso mesmo, como a introdução de limites à participação de capitais privados na gestão dos clubes, a partilha de receitas entre todos ou a definição de tetos salariais, que acontece em algumas modalidades nos EUA. A ausência de regulação explica, de resto, o crescimento da desigualdade nos principais campeonatos europeus ao longo das últimos vinte anos, embora com algumas diferenças entre os países.

Apesar disso, convém não esquecer que esta é uma disputa entre alguns clubes de elite e a UEFA, uma organização marcada por vários casos de corrupção e que já atuava de forma semelhante a um cartel. E isso deve-se ao facto de se ter entregue a gestão dos clubes a grandes grupos económicos, pouco preocupados com os interesses de adeptos e sócios. Mesmo que o conflito venha a ser resolvido nos próximos tempos, talvez sirva para recentrar a discussão nos modelos de propriedade dos clubes: retirar os clubes aos adeptos e entregá-los a acionistas milionários não só acaba com o associativismo de base local, como promove um modelo de gestão guiado exclusivamente pela rentabilidade. A tendência agrava-se quando se permite uma competição sem regras onde impera a lei dos mais ricos. Não surpreende que estes pretendam agora cimentar o poder que detêm e evitar o incómodo da concorrência. Afinal, uma Super Liga criada por clubes que se encontram a meio da tabela nos respetivos campeonatos nacionais é um bom exemplo de como o mercado hesita muito pouco na hora de decidir entre o mérito e o dinheiro.

Bancarrota ou golpe?

Também para memória futura, deixo aqui o gráfico abaixo: enquanto a dívida pública nas economias avançadas atingiu níveis historicamente sem precedentes, as taxas de juro associadas evoluíram em sentido inverso e, situando-se muito próximo do zero, estão hoje, igualmente, historicamente baixas. 

Dívida Pública e Taxas de Juros Obrigacionistas nas Economias Avançadas, 1880-2020

(Dívida Pública em % do PIB, escala da esquerda; juros em %, escala da direita) 

É um gráfico muito útil num contexto político em que a direita lusa tenta recuperar a tese estafada, falida e contra o interesse nacional, segundo a qual a intervenção externa que o país sofreu, em 2011, foi o resultado da incapacidade de o Estado se financiar - a mentira da bancarrota - em consequência de taxas de juro incomportáveis então exigidas pelos mercados, taxas de juros essas que pretensamente seriam função do alto nível de endividamento público do país. 

A dívida pública, no fim de 2011, rondava os 114% do PIB; em janeiro de 2012, os juros das obrigações do tesouro de Portugal a 10 anos atingiram os 16,4%. Foi no que deu a inação do BCE.

A dívida pública, no fim de 2020, cifrou-se em 135,1% do PIB; em janeiro do ano que corre o Jornal de Negócios noticiava que “Portugal coloca dívida a 10 anos com juros negativos pela primeira vez”. O banco central controla sempre as taxas de juro da dívida denominada na moeda por si emitida.


Desculpem se me repito, se nos repetimos, mas o mantra da bancarrota não pode ser reabilitado, o país não o comporta. É nosso futuro coletivo que está em causa.

domingo, 18 de abril de 2021

A economia política da NOVA Business School


O ECO noticia (aqui) que Miguel Pinto Luz foi indicado como o novo presidente da Fundação Alfredo de Sousa.

Para os mais incautos, a Fundação Alfredo de Sousa é a fundação privada que detém o património da Faculdade de Economia da NOVA e foi responsável pela angariação de fundos e atual gestão do campus de Carcavelos.

Claro que é muito mais do que isso. É todo um tratado de economia política. O capital odeia todas as formas institucionais onde o seu poder económico não se reflita na capacidade de determinar estratégias e resultados. E, por isso, odeia a universidade pública.

Com efeito, com a conivência dos académicos da referida faculdade e de uma Câmara Municipal colaboracionista, lá arranjaram esta fundação para mandar. A constituição do conselho de Administração fala por si. Como informa a notícia, "(...) agora vai ter um novo conselho de Administração: Vai entrar Henrique de Castro, antigo COO da Google, Rui Diniz, do grupo Mello, Vera Pinto Pereira, da EDP, Alexandra Brandão, do Santander, Clara C. Streit, da Jerónimo Martins, e António Casanova da Unilever". Em suma, ali pontifica todo o poder económico português.

A sede de mandar está longe de ser uma fantasia, embora a NOVA goste sempre de recordar que se trata de mecenato privado desinteressado. O puxão de orelhas a Susana Peralta por assinar os artigos como docente da faculdade, expressando uma narrativa não alinhada, foi um dos sintomas. Mas os conflitos de interesse são evidentes: ousará alguma vez um docente da NOVA criticar a relação do Estado com o grupo Mello na área da Saúde? Ou as rendas energéticas da EDP?

A cereja no topo do bolo é a nomeação de Miguel Pinto Luz, Vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais e ex-candidato a líder do PSD, para presidente da fundação Alfredo de Sousa. Tente ler esta passagem da notícia sem se rir: "O processo de escolha foi exigente e competitivo, com o envolvimento direto de José Soares dos Santos e um ‘search committee’, com entrevistas a vários candidatos."

O search committe (é a NOVA, jamais poderia ser um comité de seleção), muito independente, escolheu, veja-se lá, entre tantos candidatos, o Vice-Presidente da Câmara Municipal que alienou terrenos públicos a uma fundação privada, num processo que é tudo menos claro.

Há coisas que não se inventam.

Querido diário: a "austeridade" esquizofrénica

Já não é a notícia a esquizofrenia vivida naqueles anos de 2012 e 2013 que a direita portuguesa gosta tanto de empurrar para debaixo do tapete. Ou atirá-la à cara fácil de... José Sócrates, quando, na verdade, sempre defendeu os seus benefícios estruturais. 

A 18 de Abril de 2012, a correspondente do jornal Público em Bruxelas - actualmente a trabalhar com a comissária Elisa Ferreira, depois de uma passagem pela comunicação do Banco de Portugal, mas que ainda em 2014 entrevistou  Philippe Legrain, então ex-conselheiro de Durão Barroso que expôs a natureza da "austeridade" - noticiava que o primeiro-ministro Passos Coelho iria encontrar-se nesse dia com o seu homólogo britânico Cameron, "dois meses após ter recusado subscrever a estratégia neoliberal de conciliação dos esforços de austeridade com o crescimento lançada pelo Reino Unido". Obviamente, a agenda não se alterou. E Passos Coelho manteve o rumo traçado, defendendo que "as dívidas devem ser pagas", ou seja, assumindo o lema dos credores.

Nesse mesmo dia, noutra página, noticiava-se que o Senado norte-americano iria bloquear a "regra Buffet" - assim designada depois de o multimilionário Warren Buffet ter defendido um agravamento da tributação sobre os mais ricos. E ainda noutra página do mesmo jornal citavam-se os avisos daquela componente científica do FMI à navegação dos cabos de esquadra do próprio FMI - para usar a expressão feliz de João Cravinho num documentário -, ou seja, os executores em cada país da teoria oficial, cegos a qualquer desvio ao manual do ajustamento:

"O FMI parece ter decidido pôr à prova a tese que “a austeridade mata o crescimento” e analisou o comportamento dos multiplicadores orçamentais em períodos de fraca actividade económica. Estes multiplicadores (que definem o rácio entre a variação do PIB de um país e a variação dos gastos públicos que está na origem daquela variação do PIB) parecem estar neste momento acima dos níveis médios identificados em estudos anteriores. Ou seja, o impacto que as medidas de austeridade estão a ter sobre a economia é maior do que o habitual."

Mas na realidade, a teoria continuava a ser a mesma de sempre. 

Era-o a 18 de Abril de 2012 em Portugal, quando o ministro da Economia Álvaro Santos Pereira - que acabou por ser responsável na OCDE, em Paris, pelos estudos/país - defendia um estudo em que se provava, supostamente - e supostamente porque, como as centrais sindicais criticaram, não se entrava em conta com as regras previstas na contratação colectiva de cada país e com diversas categorias de rendimento -,  que a média das compensações legais por despedimento na União Europeia estava bem abaixo do praticado em Portugal e que, por isso, para Portugal se tornar competitivo, tinha de embaratecer os custos das empresas em... despedir! E fê-lo! A tal ponto que ainda hoje se aplicam esses valores alterados pelo Governo Passos Coelho e a competitividade de Portugal... não melhorou.

"Um estudo do Ministério da Economia conclui que o valor médio das compensações na União Europeia é de 6 a 10 dias por cada ano de antiguidade, enquanto em Portugal oscila entre os 20, para os trabalhadores admitidos após 1 de Novembro de 2011, e os 30 dias, para os trabalhadores que já estavam no mercado de trabalho antes dessa data (...) O regime de compensações praticado em Portugal teve uma primeira alteração no ano passado. Os traba- lhadores contratados após 1 de Novembro de 2011 já têm um sistema de compensações mais penalizador e, em caso de despedimento, passam a receber 20 dias por cada ano de antiguidade, com um tecto máximo de 12 salários-base ou 240 salários mínimos.

Era-o a 18 de Abril de 2013, quando Vítor Gaspar - que acabou no FMI depois de se ter demitido do Governo em Julho desse ano - defendia o reinado da austeridade, a ponto de querer cortar nos vencimentos do funcionalismo público. E quem diz funcionalismo público - diz antes a provisão pública de serviços básicos como o direito à educação, à saúde, à segurança, à justiça, à segurança social, etc., tornando a actividade pública cada vez menos competitiva face ao sector privado. 

A discussão em torno dos cortes na despesa pública para responder ao Tribunal Constitucional (TC) revelou-se difícil e ontem, à hora de fecho da edição, o Governo continuava reunido na Presidência do Conselho de Ministros. Em cima da mesa estavam a redução nas despesas de cada um dos ministérios e as medidas que estão a ser discutidas com a troika para compensar o buraco orçamental no valor de 1350 milhões de euros deixado em aberto pela decisão do TC. Os ministros analisaram também o diploma que obriga os dirigentes dos organismos públicos a reportarem ao Ministério das Finanças todas as componentes salariais pagas aos seus funcionários, além dos suplementos remuneratórios, e quanto gastam com cada uma dessas componentes.  (...) De acordo com uma versão preli- minar do documento, os dirigentes que não cumprirem esta obrigação no prazo de 30 dias após a entrada em vigor do diploma arriscam-se a ver cessado o seu mandato ou ficam impedidos de recrutar pessoal. O Ministério das Finanças irá reter os processos de autorização de recrutamento até que a informação seja prestada. (...) A reunião do Conselho de Ministros começou ontem perto das três e meia da tarde com uma agenda carregada. Sete horas depois foi interrompida para um intervalo e a conferência de imprensa, onde o ministro das Finanças deveria anunciar os novos tectos de despesa dos ministérios, acabou por ser adiada para esta manhã. A dificultar uma decisão estava a necessidade de estabelecer um equilíbrio nos cortes a efectuar. Na reunião, os ministros discutiram o corte nos orçamentos dos ministérios que, segundo já tinha dito o primeiro-ministro deverão totalizar 600 milhões de euros. Mas os membros do Governo também estiveram a analisar as medidas concretas nas áreas da função pública, saúde, educação e segurança social que estão a ser discutidas com a troika para res- ponder ao acórdão do TC. Muitas dessas medidas, tal como deixou claro Passos Coelho na passada sexta-feira, apenas estavam previstas para 2014, mas o actual contexto acabou por obrigar o Governo a antecipá-las para garantir a execução orçamental do corrente ano. (...) Os representantes do Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu estão em Portugal desde o início da semana para acertarem com o Governo o conjunto de reformas e cortes que permitam arrecadar os 1350 milhões de euros “perdidos” com o chumbo dos cortes no subsídio de férias dos pensionistas e trabalhadores do sector público e da contribuição exigida aos beneficiários de subsídio de desemprego e de doença.

E ainda dizem que é o confinamento que prejudica a saúde mental...  

sábado, 17 de abril de 2021

Em dia de aniversário


O Ladrões de Bicicletas faz hoje 14 anos. Por vezes assinalamos a data com dados sobre a evolução do número de visualizações da página e outros indicadores. Hoje fazemo-lo com uma notícia sobre bicicletas. Em 2019, Portugal destronou a Itália e tornou-se o principal produtor de bicicletas na União Europeia (com uma quota de 26% do total). E mesmo com a irrupção da pandemia, dizem as notícias mais recentes, «o setor das duas rodas português manteve a tendência de crescimento, com uma subida de 5% nas exportações, para mais de 424 milhões de euros». Segundo a Abimota (Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins), «a forte procura, mas também a produção de veículos de maior valor, sejam bicicletas, sejam bicicletas eléctricas (e-bikes)» explica este crescimento num ano adverso.

O setor mudou, evidentemente, muito. Como assinala José Reis no seu mais recente livro, Cuidar de Portugal: Hipóteses de Economia Política em tempos convulsos, a propósito de Águeda, passou-se do «fabrico de bicicletas» (num sistema produtivo local «aberto, mas autocentrado em culturas técnicas e na organização, no próprio território», em que se «articulavam vários setores e ramos de atividade»), para a «montagem de bicicletas», com componentes provenientes de outras paragens. Uma mudança cujo significado nos interpela de modo especial em tempos de pandemia, com potenciais ruturas das cadeias globais, mas que nos diz muito também da importância de ter sistemas produtivos dotados de maior autonomia (sobretudo em setores bem-sucedidos, como é o caso), numa lógica de substituição de importações e de promoção das exportações. Pedalemos pois!

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Incerteza e confiança

De acordo com os mais recentes dados do INSA, no primeiro trimestre de 2021 nasceram cerca de 18.200 bebés, valor inferior ao registado no trimestre homólogo de 2015 (cerca de 20 mil nascimentos), que era já o mais baixo desde 1995. Trata-se, portanto, de um novo passo na tendência de queda deste indicador, depois da ligeira recuperação ocorrida entre 2015 e 2020, no ciclo de descendente iniciado em 2000.


Tal como a taxa de mortalidade infantil nos diz muito mais sobre as condições de vida em geral do que o simples resultado da ponderação dos óbitos infantis pelo número de nados-vivos - refletindo desde logo o grau de acesso e cobertura de cuidados de saúde - também o número de nascimentos revela mais que a simples variação do seu valor. À semelhança de indicadores mais usuais sobre os «estados de alma da economia», que avaliam a perceção dos cidadãos e das empresas sobre níveis de «confiança e clima económico», regularmente publicados pelo INE, de natureza mais conjuntural, também a natalidade é em grande medida reveladora da confiança com que as famílias encaram o futuro.

Não por acaso, aliás, as duas quebras recentes mais significativas, em termos de número de nascimentos, se associam a contextos de crise (para lá da questão das opções de vida). No primeiro caso, a que resulta da crise financeira, com a adoção das políticas de austeridade no quadro do projeto de «empobrecimento competitivo» em que a maioria de direita se empenhou entre 2011 e 2015. Mais recentemente, refletindo as dificuldades e o ambiente de incerteza gerado com a crise pandémica. A juntar, evidentemente, a fatores mais estruturais, relacionados com a precariedade laboral, baixos rendimentos, dificuldades de conciliação entre o trabalho e a vida familiar, entre outros. Não por acaso também, à escala europeia é sobretudo na sua periferia a sul (Portugal, Grécia, Espanha e Itália, a par da Finlândia) que se têm registado as mais baixas taxas de natalidade. O que também diz muito sobre a própria UE e os efeitos das suas políticas de «convergência».

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Sobre corrupção e crescimento económico

No momento como o actual, em que muitas pessoas sentem uma revolta justificada sobre o funcionamento da justiça no caso da Operação Marquês, é quase inevitável que se associe a corrupção ao desempenho medíocre da economia portuguesa nas últimas décadas. “É por isso que isto está como está!”, ouve-se muito por aí.

Há três motivos pelos quais não devemos estabelecer uma relação directa entre corrupção e desempenho económico:

1º) Essa relação é tudo menos evidente.

Há países que são manifestamente mais corruptos do que Portugal e cujas economias crescem mais; e há países menos corruptos que crescem menos do que Portugal. Ao longo da história houve muitos países com elevados níveis de corrupção cujas economias cresceram de forma sustentada. Na verdade, isto não é assim tão relevante: a corrupção tem de ser combatida por uma questão de decência, sejam quais forem os seus impactos económicos.

2º) Focar todo o discurso na corrupção faz-nos esquecer outros factores tão ou mais relevantes para explicar o mau desempenho da economia portuguesa.

De facto, não precisamos de invocar a corrupção para compreender o processo de endividamento externo da economia portuguesa desde meados da década de 1990 – e foi esse processo que conduziu às dificuldades de financiamento nos mercados em plena crise da zona euro. Uma combinação de liberalização financeira, choques competitivos e indisponibilidade das autoridades europeias para combaterem a crise (ao contrário do que fizeram no último ano) são suficientes para explicar o que se passou em Portugal – e em vários outros países europeus – sem precisar de referir os problemas da corrupção. Como é óbvio isto não torna a corrupção mais aceitável – só torna inaceitáveis as teorias que confundem análise económica com juízo moral.

3º) A confusão dos temas alimenta a falsa ideia de que todos os nossos problemas se resolvem com o combate à corrupção.

Os problemas de decência e legitimidade democrática tenderão a diminuir se a justiça funcionar melhor neste domínio. Infelizmente, resolver os problemas económicos de Portugal é ainda mais difícil. Há vendedores da banha da cobra que tentam convencer-nos de que “o que é preciso é pôr isto na ordem”. Foi assim que começou a ditadura militar em 1926. O resultado foram 48 anos de pobreza, repressão e atraso de vida.

Em suma, combatamos a corrupção com todas as forças, em nome de uma sociedade decente. Lembremos-nos também que há muitas decisões que não têm nada de ilegal que podem ser bem mais desastrosas para o nosso bem-estar material.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

A liberdade a sério está para lá do liberalismo


Quem tenha recentemente circulado de carro por uma rotunda pode ter reparado, durante mais tempo do que é seguro, num outdoor: um martelo em relevo e um muro com a inscrição, exclusivamente em inglês, «we need education» (necessitamos de educação). A alusão irónica aos Pink Floyd era clara para uma certa geração, com um certo perfil socioeducativo e com os filhos em casa há demasiado tempo. Para que não houvesse dúvidas, a Iniciativa Liberal (IL) inscreveu ao lado do muro, com letras mais pequenas: «Cada escola fechada é um muro erguido. Abram as escolas». 

Confirmando a complacência de que este partido beneficia, por comparação com o Chega, foram vários os intelectuais de esquerda que, nas redes sociais, elogiaram a IL por este seu outdoor cool e ousado, em linha com uma profissional agitação e propaganda ideológicas. Dirigida a sectores da burguesia urbana e qualificada, das classes médias profissionais, jovens ou de meia-idade, esta propaganda é particularmente forte nas redes sociais, estruturalmente favoráveis a uma mensagem orientada para a promoção do individualismo possessivo, da atomização social pelo ideal da concorrência de egoísmos, sobretudo entre os que estão ou aspiram a estar no topo da pirâmide social. 

O resto do artigo pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Abril. Trata-se de defender, por um lado, que o programa socioeconómico da IL é uma versão aprimorada do programa do Chega, sendo ambos filhos da radicalização neoliberal do tempo de Passos Coelho e da Troika, e, por outro lado, que a liberdade a sério não passa definitivamente por estas iniciativas reacionárias.


Justiça e ambição


Na edição de Abril analisamos os projectos para uma Lei do Clima em Portugal, insistindo nos elementos de uma política climática capazes de estruturar o desenvolvimento sustentável e a protecção de populações e ecossistemas (Carla Prino e Luís Fazendeiro) (...) Giovanni Allegretti e Franco Tomassoni reflectem sobre o trabalho nas plataformas digitais durante a pandemia, sobretudo em Lisboa, e as reformas estruturais que se impõem. Edite Queiroz lembra que «saúde mental é saúde pública», pensando as alterações em curso nesta área e o está por fazer. João Vasco Gama questiona o papel de Portugal nas negociações do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.

No internacional, destaque para a situação em Itália, país que é hoje um laboratório político preocupante. No Chile, com uma Constituição herdada da ditadura, examinamos as potencialidades e limitações do processo de mudança constitucional em curso. Nos Estados Unidos, a nova administração mantém uma relação tensa com o Irão, com repercussões geopolíticas importantes. Em África, os caminhos da guerra envolvendo actores europeus e a situação das sublevações no Senegal merecem destaque. No Japão, acompanhamos os impactos do trabalho excessivo nos funcionários públicos durante a pandemia ameaçam a saúde e a vida. E muitos mais artigos, sobre a escola em tempo de pandemia, as costas voltadas entre a agricultura biológica e a convencional, e até uma história do sono que mostra como nem sempre dormimos toda a noite...

 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Todo um programa, em forma de notícia


No âmbito de um ciclo de debates sobre o Programa Nacional de Reformas, organizado pelo Expresso e a Deloitte, a jornalista Joana Nunes Mateus dava nota, a 30 de março, de que o próximo seria «dedicado à emergente fileira da saúde», acrescentando que «o mote para a discussão é se o PRR não terá público e passado a mais. E privado e futuro a menos». Ou seja, balizando à partida os termos do debate: o público é passado e o futuro da saúde está no privado. Assim, sem pestanejar, num vício de pensamento que não é novo, muito colado à ideia de «reformas estruturais» (que são sempre de direita, lembrem-se) e de «modernização = privado», mesmo depois de se ter tornado evidente o papel decisivo do SNS e o comportamento deplorável da saúde privada na gestão da pandemia.

Com um embrulho tão sugestivo, a prenda não fica atrás. Em peça do dia anterior, o Expresso referia-se aos oradores. Para além das presenças institucionais do Secretário de Estado da Saúde e do Bastonário da Ordem dos Médicos, participariam Joaquim Cunha (diretor executivo do Health Cluster Portugal, que lamenta que «o PRR tem por de mais a parte pública e por de menos a parte das empresas e da economia real»), Carlos Cruz (partner e Life Sciences & Health Care leader da Deloitte, que lamenta que as verbas do PRR «para a resiliência do Serviço Nacional de Saúde vão financiar iniciativas que estavam pensadas e adiadas há anos e anos», em vez de apontar para «reformas transformacionais») e Nelson Fontainhas (partner da Deloitte). Ou seja, sem um debatente que pudesse ser associado à defesa do SNS e do papel direto do Estado na saúde, entre os muitos nomes possíveis. Mas há quem não veja nisto todo um programa e prefira pensar que se trata apenas de uma debate...

Dez anos de resgate. Resgate de quem?

 

É caso para dizer como M. Thatcher: TINA (There Is No Alternative = não há alternativa). No canal de informação da nossa televisão pública, na RTP3, a mais desastrosa e cruel política económica a que Portugal foi sujeito desde o fim da ditadura salazarista, a intervenção do FMI-CE-BCE (a famosa troika) iniciada em 2011, foi recordada como uma inevitabilidade no quadro de uma gravíssima crise de finanças públicas. 

É deplorável, diria mesmo inconstitucional, que o serviço público de televisão continue a exibir tão despudorada falta de pluralismo, até porque não faltam economistas que apresentam uma leitura muitíssimo mais realista e fundamentada dessa crise. Infelizmente, enquanto economista e comentadora, Susana Peralta também partilha a leitura da ortodoxia e dá o seu contributo para a manutenção da hegemonia neoliberal na televisão pública. Pela minha parte, contesto.

A crise que tivemos em Portugal NÃO foi uma crise de dívida pública. Passo a explicar sucintamente:

1) A crise financeira dos EUA, após décadas de especulação desenfreada, atingiu os bancos europeus detentores de títulos cujo valor passou a ser nulo ou perto disso. Alguns vieram a falir, muitos outros só se aguentaram com dinheiro público.

2) Os bancos europeus deixaram de ceder liquidez uns aos outros dada a incerteza que pairava sobre os seus activos. O BCE não se comportava como um verdadeiro banco central e tardou imenso a intervir no sistema financeiro. Os banqueiros portugueses estavam aflitos. Porquê?

3) Após duas décadas de intenso endividamento externo da economia portuguesa (euro='moeda forte' => é mais barato importar do que produzir), os bancos do centro da Zona Euro deixaram de fazer a reciclagem das dívidas dos bancos portugueses. A liquidez do mercado interbancário estava 'congelada'. Por isso, foram pressionar Teixeira dos Santos para que obtivesse um empréstimo externo a fim de salvar os bancos portugueses de um colapso iminente.

4) O problema teria sido rapidamente resolvido com cedência de liquidez do BCE. Contudo, a ideologia ordoliberal inscrita nos Tratados e dominante na CE e no BCE, impedia uma intervenção que seria normal no resto do mundo. Só com Draghi à frente do BCE e, ainda assim com muita oposição, foi possível controlar a crise de liquidez do sistema financeiro e, após 2012, financiar indirectamente os Estados da periferia fazendo uma triangulação com os bancos que tinham acesso ao mercado primário (compra directa ao Tesouro).

5) Só restava uma saída: o governo teria de se endividar para acudir ao sistema financeiro português, por falta de liquidez nuns casos, por insolvência noutros, devido ao seu funcionamento em roda livre durante muitos anos. Hoje sabemos que tudo isso teve a cumplicidade do BdP, incluindo a situação a que chegou o BES e a sua dispensa do apoio financeiro via troika.

6) Os especuladores financeiros olharam para esta situação segundo o seu prisma. Se o Estado português vai ter de resgatar os bancos, vai ficar com uma dívida pública enorme que dificilmente pagará num contexto de estagnação global prolongada e, ainda por cima, metido no colete de forças dos 'critérios de Maastricht', o que impede uma política orçamental expansionista.

7) As crises financeiras da Grécia e da Irlanda (as de Espanha e Itália foram travadas por Draghi), com as respectivas especificidades, já tinham produzido um enorme clima de incerteza quanto ao futuro da Zona Euro, o que era reforçado pelas declarações políticas moralistas, vindas sobretudo da Alemanha, que lançavam uma cortina de fumo sobre a origem da crise: foi a dívida pública, foi o despesismo dos Estados da periferia, a causa da desconfiança dos mercados financeiros.

8) Num contexto de dúvidas quanto à viabilidade da Zona Euro, a taxa de juro implícita nas transacções da dívida portuguesa no mercado secundário subiu imenso, o que obrigava as novas emissões de dívida a oferecerem juros cada vez mais insustentáveis. Com aquelas taxas, a dívida portuguesa teria uma evolução com 'efeito bola de neve'.

9) Merkel, Trichet (causador de uma segunda recessão) e os ordoliberais, impedindo o funcionamento do BCE como um qualquer banco central, alcançaram o seu objectivo de converter uma crise financeira e de desequilíbrios externos numa "crise de dívida pública". José Sócrates, encurralado e resignado, pede o empréstimo que os banqueiros vinham exigindo a Teixeira dos Santos e submete o país à tutela da troika, acabando por "confirmar" a opinião da ortodoxia, amplamente divulgada nas televisões, de que o país tinha criado um gravíssimo problema de dívida pública e, agora, teria de expiar o seu desvario orçamental sujeitando o povo ao sofrimento da austeridade.

Conclusão: No início da crise financeira de 2008, Portugal NÃO tinha um problema de dívida pública. 



O insuspeito euro-federalista Paul De Grauwe, logo em 2010, denunciou (aqui) a narrativa da "crise da dívida pública" como uma manobra de encobrimento das responsabilidades da Alemanha na criação do verdadeiro problema de que não se queria falar, o dos excedentes externos alemães como contrapartida dos défices externos da periferia da Zona Euro. 

Na verdade, Portugal tinha um grave problema de endividamento externo, e ainda tem. Para saber mais, ler Ricardo Cabral (aqui).

Aliás, este problema não tem solução no actual contexto institucional. Como acontece com qualquer país da periferia, só há uma forma de travar o seu endividamento externo: usar a política cambial (além de outras políticas desenvolvimentistas) para eliminar os défices da balança de bens e da balança de rendimentos. E isso não é possível enquanto não recuperarmos a soberania monetária.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Surdez


Os deputados estão a atingir o limite da paciência no convívio com a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho. E isso vem de todos os quadrantes.

Na sessão desta manhã, os deputados do Bloco já não conseguiram esconder a sua dificuldades em lidar com a sua surdez. Basta acompanhar a sessão e ver o momento (1h22m) em que os deputados Isabel Pires e José Soeiro (BE) puseram as mãos na cabeça, ainda que não tenham arrancado cabelos. Já a intervenção inicial do José Soeiro foi feita de pedidos repetidos de informação que não veio e que voltou a não ser dado pela ministra, nem sequer referido na resposta.

A deputada Diana Ferreira (PCP), a quem a ministra chamou Diana Fernandes, insistiu - como o tinha feito o Bloco - no acesso a informação estatística que não é divulgada pela ministra. Criticou que o Governo se recuse a aceitar apoios que deveriam estar a ser dados a trabalhadores que são tidos como independentes, mas que na realidade,na maior dos casos, são falsos independentes. Bruno Dias (PCP) falou da diferença de acesso aos fundos entre as micro e as grandes empresas, da "banda estreita" que é dada às micro e pequenas empresas, concedidos pela ordem de chegada do pedido, ao invés da "banda larga" para as grandes empresas, para quem não houve limitação de apoios pelo momento de chegadado pedido. Mas convém ouvir a resposta do ministro da Economia aos deputados do PCP para perceber por que é que os apoios não chegam ao terreno... (1h42m). Apesar do PCP ser muito discreto neste tipo de apreciações, começam a ser compreensíveis a irritação  da deputada Diana Ferreira, que, sem expressar o que quer que seja - além de uma voz menos calma - diz algo do género: "Não vale a pena, não vale a pena..."

Disse o deputado João Almeida (CDS) (1h55m): "O Parlamento não alterou nenhuma forma de cálculo. O Parlamento não alterou nenhuma forma de cálculo. Posso dizer dez vezes, senhora ministra". E tal como outros deputados, voltaram a frisar que a medida não se aplica a beneficiários contributivos, que a medida não se aplica a beneficiários contributivos, ao contrário do que disse a ministra em conferência de imprensa.

E já nem falo do PSD que convocou a sessão.

Algo terá de ser feito. Os deputados passaram já a fase em que fingiam não ver que a ministra não respondia ao que perguntavam e desculpavam o seu disco riscado. Agora, começam a perder o filtro sobre o que pensam e sentem. A próxima fase pode ser estranha do ponto de vista da tradição parlamentar...

Repito: algo deve ser feito, algo deve ser feito, algo deve ser feito, algo deve ser feito, algo deve ser feito...

Dez anos de golpe


“Assinalam-se esta terça-feira dez anos do pedido de resgate português. Foi no dia 6 de abril de 2011 que José Sócrates, pressionado pelo seu ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, comunicou aos portugueses a decisão que há muito se temia”. 

Abre assim mais uma peça de jornalismo económico daquelas que vendem, mais ou menos, implicitamente a historieta moralista e contra os interesses da maioria dos que neste país vivem e trabalham e segundo a qual não havia alternativa, que a ‘culpa foi nossa’ e tal.

Segundo a historieta, Sócrates foi pressionado pelo seu ministro das Finanças. O país não estava a enfrentar uma crise de endividamento privado externo, nem confrontado com a disfuncionalidade da distopia neoliberal que designamos por Euro e nem a ser alvo, por ação e inação, de imposições de interesses estrangeiros. Não. Nada disso. O malandro do Sócrates estava encurralado pelos seus erros e foi o seu próprio ministro das Finanças a confrontá-lo. Não, não assistimos a um coro indigno de jornalistas, banqueiros e de grande parte das ‘elites’ nacionais, todos muito afinados no pedido de uma intervenção externa redentora, forma de ir rapidamente ao pote e disfarçar a sua incapacidade de dotar o país de um rumo digno e autónomo. 

E, no entanto

“Tudo o que o BCE tinha de fazer para parar o aumento desestabilizador das taxas de juro gregas era fazer o que os bancos centrais fazem em todo o mundo: comprar obrigações soberanas (...) Se o BCE não interviesse, não era uma questão de economia, mas de política e durante o Inverno de 2009-2010 parecia que os banqueiros centrais da Europa estavam determinados a adoptar uma linha dura (...) Trichet não estava apenas a satisfazer a sua própria agenda. Ele também estava a apaziguar o Bundesbank e o seu chefe falcão e monetarista, Professor Axel Weber. Usando a Grécia como seu exemplo, uma aliança de conveniência entre a direita apocalíptica, empreendedores políticos conservadores e falcões orçamentais centristas alterou o equilíbrio político. Embora o desemprego permanecesse elevado, embora a produção estivesse titubeante, o estímulo foi abandonado. Mais cedo e de forma mais acentuada do que em qualquer outra recessão na história recente, a política orçamental foi revertida.” 

Ou seja, um verdadeiro golpe de estado a coberto da tão apregoada, mas obviamente falaciosa, independência do BCE e de uma barragem de propaganda que convenceu o povo que os juros da dívida pública eram ditados pelos tais ‘mercados’. 

Há cerca de uma semana, a atual presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, veio dizer publicamente “que os decisores políticos não se furtarão a usar todos os seus poderes caso os investidores tentem fazer subir os juros das obrigações”. 

Hoje, num país não conformado com o seu estatuto de mera colónia de Frankfurt-Bruxelas, uma década depois do golpe onde o BCE foi um dos atores principais, estas declarações de Lagarde oferecem uma boa ocasião para lhe perguntar quem paga o estrago então provocado no nosso país pela inação politicamente dirigida desta instituição.

Carlos Moedas era um buraco


Declarações do ex-secretário adjunto do primeiro-ministro dos XIX e XX Governo coordenado por Passos Coelho, à comissão parlamentar de inquérito sobre o BES, transmitidas pela televisão pública. Carlos Moedas foi chamado pelo PS para explicar uma conversa com Ricardo Salgado, responsável pelo BES/GES. 

- Eu recebi estas pessoas? Recebi. Elas transmiram-me preocupação [para que interviesse junto da Caixa Geral de Depósitos para que fosse dado ao BES algum tipo de crédito]? Transmitiram. Era minha função ouvi-los? Era. Era a minha função no Governo fazer alguma coisa sobre isso? Não era.  

Mas se não era sua função "fazer alguma coisa" sobre as preocupações de Ricardo Salgado, por que razão era sua função ouvi-lo? 

Talvez Carlos Moedas tivesse desempenhado aquela função que teve o buraco na terra da velha lenda do príncipe de orelhas de burro. O certo é que, no final e à custa de uma tardia, atrapalhada e custosa intervenção pública para viabilizar uma célere saída limpa, tudo correu de feição para a instituição financeira apadrinhada pelo BCE como o principal banco ibérico - o Banco Santander - que se tornou o principal banco privado em Portugal. E veremos o que irá acontecer ao Novo Banco.

     

Taxa mínima de imposto: uma pedra na engrenagem dos paraísos fiscais?

Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, confirmou ontem o que já se antecipava há alguns dias: o país vai voltar à mesa de negociações da OCDE para defender uma taxa mínima de imposto sobre as empresas a nível global. Depois de Trump ter cortado o diálogo no final do seu mandato, a administração de Biden parece querer avançar com mudanças no sistema de tributação internacional. Além da definição de um limite mínimo, a ideia passa por adotar um método de cálculo uniformizado país-a-país para travar o desvio de fundos para regimes mais favoráveis.

Yellen explicou que pretende "chegar a um acordo sobre uma taxa mínima de imposto sobre as empresas, o que poderá acabar com a corrida para o fundo" na tributação empresarial, área em que, nas últimas décadas, se tem assistido a uma progressiva redução das taxas de imposto efetivas. Já Jake Sullivan, conselheiro para a Segurança Nacional dos EUA, disse que "uma parte central da nossa estratégia de segurança nacional é a competitividade nacional: criar empregos e aumentar os salários a nível interno, e não incentivar os paraísos fiscais". Na verdade, a corrida para o fundo tem sido alimentada por uma visão enganadora da competitividade nacional que assenta na ideia da "concorrência fiscal" entre os países. Na prática, esta ideia favorece a criação de regimes especializados em captar receita fiscal devida noutras paragens e coloca pressão sobre os restantes. O resultado é o que se pode ver no gráfico ao lado: ao longo das últimas décadas, as grandes empresas têm pago taxas de imposto cada vez mais baixas.

Em 2017, dois investigadores do Fundo Monetário Internacional (FMI), Philip Lane e Gian Milesi-Ferretti, olharam para os fluxos internacionais de capital e procuraram perceber quais eram as principais tendências dos últimos anos. O foco do estudo era o Investimento Direto Estrangeiro (IDE), o tipo de fluxo normalmente considerado preferível pelos países que o recebem, por estar associado a investimentos de longo prazo e transferência de tecnologia e conhecimento do exterior, o que o torna mais estável do que os investimentos de carteira. Mas o cenário encontrado pelos autores foi bastante diferente: grande parte dos fluxos de IDE constitui investimento “fantasma” movido por engenharia financeira, sem relação com atividades produtivas nos locais onde o dinheiro é colocado. Como explicação para esta tendência, apontaram a "complexidade da estrutura organizacional de empresas multinacionais", que lhes permite desviar fundos para offshores onde pagam menos (ou nenhuns) impostos.

Um estudo mais recente do FMI e da Universidade de Copenhaga confirma-o: mais de 1/3 dos fluxos de investimento estrangeiro “passa por empresas fantasma vazias” sem “atividade empresarial real”. O objetivo deste tipo de movimentos é pagar o mínimo possível em impostos. E isso tem sido possível devido a um sistema de tributação obsoleto, que permite às multinacionais alterar a sua sede para países onde as taxas efetivas de imposto são mais baixas. Gabriel Zucman, Thomas Torslov e Ludwig Wier estimaram que os EUA e as principais economias da Europa perdem entre 14% e 28% da receita fiscal das empresas devido às práticas de transferência de lucros para outras jurisdições. Conclusão: menos financiamento dos serviços públicos ou mais impostos para o resto da sociedade.

Apesar de ainda não ser conhecido o desenho final da proposta, a criação de uma taxa mínima global pode ser um passo importante. A menos que o valor definido seja demasiado pequeno, a definição de um mínimo de tributação contribui para pôr um travão na corrida para o fundo, evitar a drenagem de recursos públicos e forçar as multinacionais a pagar os impostos que devem. Uma coisa é certa: a pandemia pode ser o contexto ideal para um debate sério sobre o papel da política fiscal no combate às desigualdades que se têm acentuado. Diz-se que não se deve desperdiçar uma boa crise.

A liberdade é um luxo?


Paula Amorim é a pessoa mais rica de Portugal e um rosto de um certo capitalismo: de herdeiros, fóssil, rentista fundiário, desigual e promotor do consumo conspícuo para uma elite global, idealmente sempre em movimento, contando com cumplicidades políticas em múltiplas escalas, dada a cada vez mais fácil transmutação do dinheiro concentrado em poder mediático e político. 

A tentar legitimá-lo está um neoliberalismo dito progressista, pretensamente tolerante e aberto, cooptando e diluindo também o feminismo e outros ismos, sobretudo quando estes se separam das questões de classe. Agora, temos direito ao “empreendedorismo”, protagonizado por mulheres poderosas e cheias de mérito, como se vê. Não por acaso, políticos com ambições ideológicas liberais, como Adolfo Mesquita Nunes, trabalham para capitalistas como Amorim na Galp. Insistem que querem “mais liberdade”, quando o que querem é mais liberdade para os de cima à custa de mais vulnerabilidade para os de baixo, a velha história do liberalismo na periferia e não só.

Neste contexto, a comunicação social dominante parece um prolongamento de empresas de relações públicas, corroendo os valores do jornalismo. Em mais um número triste, mas revelador, o Expresso da semana passada dedicou duas páginas de pura propaganda à Amorim Luxury, símbolo do porno-riquismo, com destaque na primeira página do suplemento de economia e tudo. 

Não caindo no erro crasso do marido e sócio – “não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados” –, Paula Amorim tenta ser socialmente correcta sobre a Avenida da Liberdade, mas quanto ao resto é o mesmo de sempre, com a pandemia pelo meio: o comércio de luxo, sempre com distanciamento social, o hotel de luxo em construção nessa avenida lisboeta e o tal projeto imobiliário na nova fronteira do rentismo fundiário, onde já não se brinca aos pobres, a Comporta. 

A acompanhar a construção de enclaves virtuais e reais para super-ricos está sempre um discurso, misturando português e inglês, cheio de desafios, oportunidades e colaboradores, mas também de key partners, hospitality e franchising. Os jornalistas devem funcionar como um eco deslumbrado e obediente, sem questões incómodas. 

Enfim, a diferença que uma geração faz nos negócios ou no jornalismo, quando o 25 de Abril estava bem presente e havia um outro dinamismo produtivo, num quadro mais igualitário. Os centros do capital monopolista tinham sido nacionalizados, afinal de contas. Parece que as revoluções democráticas e nacionais fazem bem a toda a gente.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Diálogos esperançosos de economia política


O ciclo de conferências-debate "Economistas políticos(as) – diálogos esperançosos em tempos sombrios" é uma organização da secção temática de Filosofia e História da Economia Política e do Núcleo da Região Centro, da Associação Portuguesa de Economia Política, em parceria com o Centro de Estudos Sociais. O evento pretende colocar em debate, ao longo de seis meses, temas centrais da contemporaneidade, na área da Economia Política, a partir da obra de autores/as de referência. 

Vivemos tempos sombrios, ainda marcados por um afunilamento do debate público, que em muito impede a abordagem crítica de grandes questões: as desigualdades sociais e demográficas, a crise ecológica, a cidadania e a conflitualidade social, os modelos de Estado a adotar. No entanto, urge dar uma nota de esperança, a partir daquilo que tem sido o trabalho realizado a partir dos debates que têm sacudido o espaço público, com o contributo de cientistas sociais. Este ciclo de webinars, a realizar numa 5ª feira de cada mês, entre março e setembro de 2021, integra um modelo onde, em cada uma das sessões, dois participantes partem do trabalho de duas referências internacionais, do passado e da atualidade, em Economia Política, confrontando ideias e possibilitando um debate aberto a todos os presentes. 

Na segunda sessão, "Ninguém cuida do que é de todos? – A Tragédia dos Incomuns revelada por um vírus", confrontam-se as obras de Garrett Hardin (apresentado por José Maria Castro Caldas) e de Elinor Ostrom (apresentada por Gustavo García-López).

Deixo a ligação zoom para o debate da próxima quinta-feira.

sábado, 3 de abril de 2021

Boa caminhada

Em plena crise pandémica, o governo tem vindo a promover de forma vergonhosa o vício do jogo: da publicidade imparável na televisão à raspadinha do património, parte de um problema mais geral de adição institucionalizada com tantos custos sociais. 

A propósito da raspadinha do património, João Miguel Tavares pergunta: “é isto um governo socialista?” Não, claro que não, é um governo liberal, apostado em aumentar a chamada liberdade de escolha pela compra e venda, deslegitimando ao mesmo tempo a ideia de imposto. 

O liberal Tavares critica, convocando padrões de injustiça social com marcas de classe, ainda que relativamente obscurecidos pelas classes de A a E. Implicitamente, convoca a ideia de liberdade positiva, assente na autonomia determinada coletivamente, contra a compulsão de tantos mercados. Este é o caminho, já percorrido por muitos ao longo da história, para a superação do liberalismo. Boa caminhada.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

A paz, o pão, educação, saúde… habitação

Com níveis de promoção pública de apenas 125 fogos em média, por ano, ao longo da última década - e ainda sem o impulso esperado de medidas da Nova Geração das Políticas de Habitação -, Portugal continua na cauda da Europa em termos de parque de habitação social. Esta é uma das conclusões que se podem retirar do recente relatório da rede Housing Europe, The State of Housing in Europe 2021. Na UE15, apenas a Espanha, o Luxemburgo e a Grécia registam um peso relativo do parque habitacional público, face ao total, abaixo dos 2% de Portugal, com a média europeia a rondar os 9%.


De facto, sobretudo em países do sul europeu, como Portugal, a habitação constitui, há muito, o parente pobre, ou o pilar ausente, de um Estado Social tardio. Ao contrário do que sucedeu no pós-25 de Abril nas áreas da saúde, educação, e mesmo segurança social (Serviço Nacional de Saúde, Escola Pública e sistema público de pensões), a promoção direta de habitação nunca permitiu constituir um verdadeiro setor público de alojamento, capaz de assegurar a resposta às carências mais prementes (segundo o IHRU, cerca de 26 mil famílias vivem em condições de habitação indignas) e contribuir para a regulação do mercado, propenso a lógicas especulativas que, entre outras dinâmicas, se agravaram com o processo de financeirização da habitação.

Curiosamente, observa-se ainda a tendência para que os países que registam menores níveis de promoção habitacional pública direta, nos últimos anos, sejam também os que detém um parque habitacional público de menor dimensão, como demonstra o caso português, mas também o de Espanha, Grécia, Luxemburgo e mesmo Itália, entre outros. Ao contrário, portanto, de países da UE15 como a Holanda, Áustria, Dinamarca, ou a Finlândia, com um setor público de oferta habitacional e níveis de promoção direta de alojamentos acima da média europeia. O que sugere que sistemas de provisão pública menos recentes e mais consolidados, que instituíram de facto a habitação como responsabilidade social do Estado, detém uma capacidade de resposta mais constante e, por isso, melhor preparada para enfrentar crises de acesso ao alojamento.


É também por isso que a Nova Geração de Políticas de Habitação, e em particular as medidas orientadas para um claro reforço do parque habitacional público português, como o Primeiro Direito ou o programa de Arrendamento Público Acessível, ambos apoiados pelo PRR, poderão materializar nos próximos anos uma importante rutura com as políticas de habitação seguida nas últimas décadas, marcadas pela intervenção através do mercado e, nomeadamente, pelos incentivos no acesso ao crédito para aquisição de casa própria, vertente incontornável do processo de endividamento da economia portuguesa.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

A história da "lei-travão" e a desconfiança dos deputados


Comentários feitos ao meu post anterior e a troca de argumentos levaram-me a procurar mais elementos, o que eu devia ter feito logo à partida. 

Quis perceber o que estava na cabeça dos deputados que aprovaram a "lei-travão" na Constituição de 1976. O texto que se segue é a transcrição das actas da sessão realizada no dia 10 de Março de 1976, quando se discutiu esse artigo. Como se verá, talvez se deva recuar ainda mais no tempo, porque a norma já existia na Constituição de 1933 e mesmo ao tempo da 1ª República. Na sua carne - como se verá - está presente uma desconfiança clara dos deputados sobre... os deputados - mas não de todos os políticos... -  e da sua demagogia, a qual os levaria a aprovar despesas públicas ou decidir sobre impostos sem olhar às consequências. Algo que atravessa toda a teoria neoliberal e que impregna as regras orçamentais vigentes. 

O deputado então independente Mota Pinto levanta precisamente essa questão: 

«Com isto pode-se travar a demagogia.» Eu aceito que isso seja efectivamente uma consequência possível deste preceito, mas eu pergunto: estamos a fazer a democracia e a instituir uma Assembleia dos Deputados já à partida com tanto medo da demagogia? O problema que se põe e o que pode, na verdade, ser prejudicial à correcta ordenação da administração é a aprovação das disposições. Mas o que está aqui em causa é uma privação de iniciativa. Sem dúvida, assim se impedem as pessoas de tomar iniciativas demagógicas. Eu pergunto se a melhor maneira de combater a demagogia será pôr uma mordaça aos demagogos. 
Risos. 
A demagogia situar-se-á apenas na Assembleia dos Deputados? Também o Governo não poderá fazer demagogia? E os partidos, fora dos parlamentos, não poderão prometer mundos e fundos?

Dado a extensão da transcrição, permitam-me sublinhar algumas passagens apenas para chamar a atenção  da leitura, não para evitar a leituras das restantes passagens. Estava em discussão o seguinte artigo:  

ARTIGO 56.º (Iniciativa legislativa) 

1 - A iniciativa da lei compete aos Deputados e ao Governo. 

2 - Os Deputados não podem apresentar projectos de lei ou propostas de alteração que envolvam directamente aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado criadas por leis anteriores. 

3 - Os projectos e as propostas de lei definitivamente rejeitados não poderão ser renovados na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia dos Deputados. 

4 - Os projectos e as propostas de lei não votados na sessão legislativa em que foram apresentados não carecem de ser renovados nas sessões legislativas seguintes, salvo termo de legislatura, dissolução da Assembleia e, quanto às propostas de lei, demissão do Governo. 

O Sr. Presidente: - Está em debate. Mais ninguém pede a palavra? 

Pausa. 

O Sr. Deputado Jorge Miranda. 

E que futuro?


Os países com uma estrutura económica baseada nos serviços, com um peso elevado do sector do turismo e com uma reduzida margem de manobra orçamental são aqueles que mais se arriscam, no rescaldo da pandemia, a sofrer danos mais permanentes nas suas economias, que prejudicam o seu ritmo de crescimento no médio prazo. O alerta é do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Esta notícia no Público, da autoria de Sérgio Anibal, merece dois ou três comentários breves. 

Em primeiro lugar, confirma-se que o FMI tem um descaramento infinito, já que foi parte da troika e teve pesadas responsabilidades na institucionalização do chamado modelo Flórida da Europa, assente em serviços extrovertidos, estruturalmente pouco produtivos e com uma força de trabalho barata e descartável, o que aumentou a vulnerabilidade do país. 

Em segundo lugar, a reduzida margem de manobra orçamental é o nome de código para uma periferia inserida num colete-de-forças monetário e orçamental com duas décadas e com os resultados que devem estar cada vez mais à vista de todos: da estagnação ao endividamento externo, passando pelo controlo estrangeiro crescente dos centros político-económicos de decisão.

Em terceiro lugar, as fracturas dentro da UE aprofundam-se e as politicamente tóxicas vitaminas europeias não bloquearão estas dinâmicas, produzidas pelas forças de mercado, no quadro de uma integração assimétrica. Temos de pensar e agir para lá da moeda única, do mercado único e da política quase única.