quinta-feira, 20 de julho de 2017

A questão da habitação


A habitação é sem margem para dúvidas uma questão de economia política. Expõe com particular clareza a centralidade da produção e da redistribuição, bem como a ordem social e a ideologia vigentes em cada contexto histórico, geográfico e político. A habitação é hoje uma questão premente. A recente criação da Secretaria de Estado da Habitação confirma isso mesmo.

A habitação é uma questão de produção. A construção (e reabilitação) de alojamentos familiares constitui um importante sector de atividade económica, e com importantes efeitos de arrastamento sobre as indústrias adjacentes. Este sector tende a ser promovido em períodos de estagnação económica, sendo atualmente um dos principais responsáveis pela recuperação da economia portuguesa. Mas a produção de habitação não se deve apenas ao seu relevante “valor de uso’”, isto é, à sua capacidade de satisfazer uma necessidade humana básica. Deve-se também ao seu “valor de troca”. Com efeito, a habitação é cada vez mais procurada tendo em vista a realização de um ganho com a sua venda futura, assente na expectativa de que esta se valorizará. Nesta medida, a habitação adquire características típicas dos ativos financeiros, e atrai sectores de intermediação, como o imobiliário e o financeiro.

A habitação convoca relevantes questões de redistribuição. Basta lembrar que é um bem essencial; no nosso país, até é um direito constitucionalmente reconhecido. Ainda que nunca tenha sido uma área de intervenção prioritária, políticas públicas mais ou menos avulsas tentaram dar resposta às necessidades habitacionais mais urgentes. Hoje os bairros de lata são raros e não há propriamente uma carência de alojamentos familiares. Mas há uma enorme desigualdade no acesso, do ponto de vista das condições de habitabilidade, das infraestruturas e do espaço público envolvente, reproduzindo desigualdades de classe, raça, género e, cada vez mais, geracionais devido a retrocessos recentes na legislação laboral que afetam sobretudo as camadas mais jovens da população.

A habitação é ainda profundamente ideológica. Num país em que a provisão de habitação foi maioritariamente relegada para o sector privado, esta sempre se apoiou e sustentou o valor absoluto da propriedade privada, com impacto não despiciendo na paisagem urbana. Mas daqui não se pode inferir um Estado ausente. Este desde sempre concedeu importantes apoios públicos à construção e aquisição de casa própria, e hoje cerca de dois terços dos alojamentos familiares são ocupados por proprietários, embora uma parte relevante com crédito bancário. Os proprietários atuais, ou mesmo potenciais, detêm assim um relevante poder político face a uma minoria de inquilinos, bem como todos os agentes direta ou indiretamente envolvidos na atividade imobiliária.

Em plena crise financeira e económica, o nexo construção-imobiliário-finança saiu reforçado, continuando a beneficiar de relevantes apoios públicos. Os chamados vistos gold ilustram bem o poder económico e político destes sectores. Perante uma economia deprimida, a promoção do investimento estrangeiro no imobiliário foi uma forma expedita de revitalizar estes mercados, em troca de relevantes vantagens económicas e políticas, ao mesmo tempo que os direitos dos não proprietários foram crescentemente diminuídos, vendo-se obrigados a abandonar os principais centros urbanos do país. Fica claro que a capacidade da nova Secretaria de Estado da Habitação de mitigar estes efeitos, como parece ser o seu propósito, dependerá de mudanças nessa entranhada economia política.

6 comentários:

Geringonço disse...

Berlim legisla contra Airbnb

Autoridades da capital alemã temem que a tendência de as pessoas arrendarem apartamentos para turistas através de sites como Airbnb, Windu e 9Flats esteja a limitar o seu acesso e a aumentar os preços.

A nova lei – Zweckentfremdungsverbot – foi descrevida por Andreas Geisel, responsável pelo desenvolvimento urbano, como "um necessário e sensível instrumento contra escassez de habitação em Berlim... Estou absolutamente determinado em recuperar estes apartamentos para as pessoas de Berlim e para recém-chegados habitantes".

https://www.theguardian.com/technology/2016/may/01/berlin-authorities-taking-stand-against-airbnb-rental-boom

Jose disse...

«...os direitos dos não proprietários foram crescentemente diminuídos, vendo-se obrigados a abandonar os principais centros urbanos do país»

Ridícula chamada ao presente de uma migração massiva que ocorreu desde há dezenas de anos em resultado de uma Lei das Rendas obscena que destruiu os centros das cidades.

Agora os migrantes ou os descendentes querem voltar, agora por conta de quem recuperou as casas? Não duvido, o mantra está já em processo de promoção!

Habitação social foi obra do 'fascismo' não de um Estado abrilesco refém de clientelas.

Al disse...

Bem vinda! Mais um tema central com uma analise pertinente. Estara na altura deste grupo lançar um mestrado em ciencias sociais que proponha um curriculo alternativo nas areas da economia politica e ecologia politica?

Alice disse...

Por aqui, é o contrário. Cultiva-se a total subserviência ao dinheiro e, se as pessoas tiverem que ir morar para Marte, problema delas, que paguem os transportes raquíticos ou o combustível para trazerem o carro (o tal carro que se quer banir das cidades).

Sou totalmente contra a construção de habitação como "investimento". Se querem guardar dinheiro, façam-no em barras de ouro, não utilizando as casas onde precisamos de morar, dado que o espaço é limitado...

Anónimo disse...

Herr jose está mesmo perturbado.

Esquecido está quando por aqui chorava baba e ranho pelo congelamento das rendas no tempo da outra senhora.

Esquecido também está pelos bairros de lata que proliferavam como cogumelos nas areas suburbanas.

Nao era estupido Salazar. Herr jose é apenas " isto"..

Repugnante, convenhamos

Joaquim Adalberto disse...

Há um problema de habitação crónico em Portugal. Há também uma ausência de políticas públicas. No que toca à reabilitação e manutenção urbana há uma enorme escassez de regras. E ainda que alguma legislação exista, esta não se cumpre. Por exemplo, na Amadora (também conhecida como “a cidade da infiltração”), há muitos prédios degradados com infiltrações. E sabemos que as pessoas que vivem em casas com más coberturas morrem mais novos…