quarta-feira, 31 de março de 2021

Querido diário - "Lei travão": as tristes costas em que Costa se apoia

Fala-se muito da "regra-travão", mas já nos esquecemos quando isso foi discutido. 

Há pouco mais de nove anos, em Março de 2012, Passos Coelho queria fazer "revoluções tranquilas", numa segunda vaga do ideário neoliberal. 

A primeira fora desempenhada com duas maiorias absolutas de Cavaco Silva, mas com a ajuda dos socialistas, dada cirúrgicamente por Vítor Constâncio, secretário-geral do PS, ao fazer o PS aceitar rever a Constituição em 1989, no sentido de eliminar a irreversabilidades das nacionalizações. A partir daí, iniciou-se um vasto programa de privatizações, com o objectivo - falhado - de criar grupos económicos nacionais. Cavaco Silva acabaria mesmo a queixar-se nas suas memórias políticas dos empresários nacionais, que preferiram vender os activos a grupos estrangeiros. Um deles, foi o próprio Champalimaud a quem Cavaco Silva e Braga de Macedo deram secretamente - repito: deram! - 10 milhões de contos (qualquer coisa actualmente como 90 milhões de euros!) e a quem permitiram comprar sem ter gasto um tostão (dando como garantia as acções adquiridas). Passado o período de carência, Champalimaud vendeu as suas participações no sistema financeiro nacional que acabaram nas mãos dos donos do Banco Santander. As mais-valias serviram para criar a Fundação Champalimaud. 

Passada essa fase e vivendo-se já sob o manto institucional da moeda única, uma das reformas em vista visava garantir e institucionalizar a austeridade orçamental, esvaziando a função democrática dos parlamentos e governos nacionais. E mais uma vez é essa a função do PSD: seduzir os socialistas, imbuídos que estão de uma lógica cegamente europeísta.  

Escrevia Maria José Oliveira a 27/3/2012, no Público: 

Só há duas soluções para a chamada “regra de ouro” – a cláusula-travão ao défice que consta do tratado intergovernamental de reforço e convergência económica da zona euro – vir a ser aplicada em Portugal. Ou é inscrita na Constituição, exigindo a aprovação de uma maioria de dois terços no Parlamento. Ou é realizado um acordo de cavalheiros entre PSD, CDS e PS para que a norma seja incluída na Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) e para que não seja permitida qualquer alteração por uma maioria simples. A breve prazo são estas as suas opções que terão de ser tomadas pelos partidos que suportam o Governo e pelo PS. Isto porque o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, que consagra a adopção de uma regra de equilíbrio orçamental e a possibilidade de sanções pecuniárias em caso de défice excessivo, deu entrada no Parlamento na sexta-feira e hoje a conferência de líderes deverá agendar o debate para 12 de Abril. No dia seguinte, os deputados votam este tratado europeu e, caso seja aprovado, será remetido para o Presidente da República, a quem caberá ratificar ou não o documento. 

 


No passado domingo, no encerramento do 34.o Congresso do PSD, Passos Coelho defendeu que a consagração da regra de ouro deve ser feita “de forma o mais dourada possível”, tendo de seguida desafiado o PS a dar “força constitucional” à norma. 

“Espero que o PS seja sensível à ideia de que a regra que queremos adoptar, se não estiver na Constituição, mas na Lei de Enquadramento Orçamental [LEO], possa ter força constitucional”, disse o primeiro-ministro. A “força constitucional” sublinhada pelo primeiro- ministro pode implicar alterações na própria LEO, uma vez que esta lei exige apenas uma maioria simples (e não uma maioria qualificada) para realizar mudanças. 

Assim, se os três partidos acordarem que a regra fica inscrita na LEO e que só pode ser alterada com uma maioria de dois terços, terá necessariamente de ser feita uma revisão da Constituição, mesmo que pontual. Isso mesmo foi já destacado por Passos, quando, em Dezembro, no Parlamento, notou que será necessário “mexer” na Constituição para atribuir à LEO um valor reforçado. Tal como explicou ao PÚBLICO, o constitucionalista Tiago Duarte, “não há leis de valor paraconstitucional” em Portugal e o valor reforçado da LEO traduz-se apenas no seu conteúdo, que pode ser alterado ou revogado por uma maioria simples. Por isso mesmo, o PSD defende que a regra de ouro deve “ficar imune” a quaisquer alterações por um partido, afirma Tiago Duarte. O constitucionalista aponta ainda o “equívoco” da direcção do PS nesta matéria, sobretudo quando defende que a regra de ouro deve apenas ficar na LEO, porque esta é uma lei de valor reforçado. “A LEO é de valor reforçado apenas no seu conteúdo e somente porque as leis dos orçamentos têm de lhe obedecer”, esclarece Tiago Duarte. 

Ontem, questionado sobre o assunto, o líder do PS, António José Seguro, repetiu o erro. E acrescentou outro, ao dizer que a LEO exige “uma maioria absoluta de votos”: “Todos os orçamentos do Estado devem obediência à LEO e nesse sentido é uma lei que exige uma maioria absoluta de votos”, afirmou. Contudo, Seguro acabou por especificar que o PS não aceita que o limite ao défice venha a ser regulamentado “com uma maioria de dois terços”. Rejeitou pois a possibilidade de ser feita uma revisão constitucional para alterar a LEO. “Por que razão essa regra de ouro deveria exigir dois terços?”, questionou ontem. Em Dezembro, num debate quinzenal, Passos respondeu a essa pergunta: “[Para evitar] o arbítrio de qualquer executivo.”

Pois, como se vê, há gestos que ecoam pela eternidade e que acabam por se entranhar. 

Crónica de uma ferroada anunciada

 

 

O autor desta newsletter do Expresso é o autor de um extenso livro de biografia de Marcelo Rebelo de Sousa. E é a prova de que, afinal, todos - exceptuando os ingénuos - esperavam que a natureza do escorpião viesse ao de cima. Não seria no primeiro mandato - "quer-se dizer", ele bem tentou por diversas vezes, vidé no caso dos incêndios, da Lei de Bases da Saúde, etc... - mas que no segundo mandato seria de vez. Ele estava mesmo desejoso de começar o circo. E acabou por apalhaçar a sua função. 

Quem o diz são diversos constitucionalistas, desta vez curiosamente todos de acordo. Dizem eles: se o presidente da República tinha dúvidas - e concordam com as suas dúvidas face à regra-travão - então deveria tê-la colocado ao Tribunal Constitucional. Mas Marcelo não quis suscitar o julgamento da constitucionalidade da medida: quis criar um factor de crise política. E um factor ideal porque apareceu envolto numa medida necessária em tempo de crise profunda, o que lhe traria respaldo político da oposição, retirando apoio social ao Governo, deixando-o em maus lençóis. 

A prova dessa vontade está na crónica da jornalista do Público  que costuma doer-se com as dores de Marcelo. Diz ela na página 2 da edição de 30/3:

O primeiro-ministro não escondeu o incómodo com que recebeu a explicação do Presidente da República para promulgar três leis de alargamento de apoios sociais extraordinários em tempo de pandemia, aprovadas pela oposição em bloco (coligação negativa) no Parlamento. E se antes da decisão presidencial tinha armado a sua intenção de pedir ao Tribunal Constitucional (TC) que procedesse à fiscalização sucessiva da constitucionalidade, agora adia essa decisão para depois de “meditar” sobre o assunto.

Assim, o presidente - no seu ponto de vista - viabilizou uma norma que achava ser inconstitucional porque preferiu criar um conflito político. E conseguiu. António Costa anunciou esta tarde que vai pedir a fiscalização do Tribunal Constitucional. Costa alegou que não era justo que a verba disponível no OE fosse usada até ser esgotada, podendo deixar beneficiários sem apoio. 

Mas resta saber se o Governo vai gastá-la com a transferência para o Novo Banco, porque se for esse o caso, deixará todos os beneficiários descalços em benefício de um Fundo abutre.    

 

A estranha aliança entre os "progressistas desempoeirados da academia" e a direita troglodita


Luís Aguiar-Conraria (sem surpresa) e Susana Peralta (com maior surpresa) decidiram partilhar um artigo do Observador, da autoria da autoria de Jorge Fernandes, transcrito aqui, que dá eco à tese de que Francisco Louçã e, por extensão, toda a esquerda à esquerda do PS, é negacionista do estalinismo. A tese é logicamente ridícula, porquanto parte dessa esquerda se construiu na crítica a essas mesmas experiências. Mas é fácil perceber esta tentativa da direita de eliminar o socialismo como alternativa democrática. Abaixo reproduzo o comentário que deixei no mural de Susana Peralta:

Por partes, que este tema está tão impregnado de falácias que enjoa. Mesmo que tomemos como bons os relatos históricos do Holodomor que a direita reclama, na linha de uma historiografia longe de consensual, há uma diferença substantiva entre uma política da liderança soviética que quis vergar setores da sua população como instrumento político, levando a situações de escassez a pontos de se ter praticado canibalismo, e a ideia de que os “comunistas comem criancinhas” como consequência de serem comunistas. Esta última ideia foi propalada pelos setores conservadores da sociedade portuguesa durante o Estado Novo e depois, pelos altares deste país, para evitar discutir alternativas para uma sociedade e explicar às pessoas que os comunistas eram muito maus, não gostavam de Deus e faziam coisas horríveis. Ligar uma coisa à outra é demagogia barata, que é o que a deputada municipal do PPM fez.

Segundo ponto: em termos estritamente lógicos, há uma diferença entre os atos cometidos por figuras em nome de ideias, mas cujos atos não decorrem diretamente dessas ideias, e atos que decorrem diretamente dos conceitos que defendem. Conceitos e ideias com séculos ou milénios de história têm mais propensão, por mera probabilidade, de terem sido capturados por pessoas com más intenções e ambições de poder. Exemplo: ninguém diz que um católico é a favor de queimar mulheres por serem bruxas e, no entanto, a igreja católica queimou hereges durante séculos. Por que motivo ninguém diz isto? Bom, porque em nenhum lado nas escrituras diz: ”amai e queimai o próximo”. É por isso que equiparar o nazismo e o comunismo é ridículo. O nazismo tem, na sua génese, uma ideia de segregação racial e religiosa que envolve cometer atrocidades contra minorias. Não foram homens que manipularam as ideias: seguiram-na apenas. O socialismo (e o comunismo) partem da ideia de que a igualdade jurídica entre os homens, como na sociedade liberal, não é suficiente. E apenas a igualdade no acesso aos meios de produção porá fim ao antagonismo entre classes e à injustiça económica e social que a partir dela se reproduz a partir da sociedade. Há aqui alguma tentativa de chacinar alguém? Não.

Finalmente, toda esta discussão é tanto mais ridícula quanto se faz contra setores que fizeram o seu percurso na esquerda a denunciar a distorção soviética de socialismo, em particular o estalinismo. Para estes setores, onde Louçã como trotskista obviamente se insere, mas também um vasto conjunto da esquerda à esquerda do PS, não há socialismo sem liberdade. Como diziam uns autocolantes da Política XXI, aquando da sua criação, o nosso socialismo tem “democracia sem fim”. É ridículo achar que alguém com um passado trotskista vem a público tentar branquear o estalinismo. Logicamente ridículo. Estes setores da esquerda têm dedicado muitos anos da sua história a apontar os erros do socialismo do partido único e de que como ele leva ao triunfo de apparatchiks e à morte de verdadeiros revolucionários. Os primeiros membros do comité central bolchevique que o digam, pois poucos sobraram depois dos Processos de Moscovo.

O que a direita quer fazer não é justiça na história. O que a direita está a fazer é a instrumentalizar uma tragédia humana para a colar ao conceito de socialismo e comunismo e neutralizar estas opções como legítimas no espaço público.

É deturpação tosca. E é surpreendente como pessoas alegadamente progressistas contribuem para o pagode.

terça-feira, 30 de março de 2021

Não há inevitabilidades


A crónica de ontem de Rui Tavares executa uma tripla revisão ideológica da história, em nome do europeísmo, tomando como pretexto o canal do Suez. É obra.

Em primeiro lugar, na esteira do evolucionismo liberal, naturaliza a globalização: “a globalização é um fenómeno inerente à evolução da espécie e, portanto, não é opcional”. Lembro só que a chamada primeira globalização, que desembocou na Primeira Guerra Mundial, não pode ser explicada sem ter em conta os imperialismos europeus, por sua vez indissociáveis do capitalismo liberal desse período. A construção do canal foi um marco na era do imperialismo. Tavares fala de “escândalos financeiros” e de “guerras culturais”, mas tal não capta o padrão principal da economia política internacional deste período. 

Em segundo lugar, consegue a proeza de ligar a corajosa decisão de nacionalizar o canal, tomada por Nasser, a uma integração europeia que teria tido uma qualquer lógica anti-colonial. Esquece o nacionalismo anti-imperial e esquece que “a maioria dos fundadores da CEE – incluindo Paul-Henri Spaak, Jean Monnet, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Guy Mollet – apoiaram a ‘missão civilizadora’ em África e viram o renovado projecto imperial como sendo inseparável do projecto de integrar a Europa”. A “Euráfrica” era realmente todo um projecto. No Tratado de Roma lá está um dos propósitos da CEE: “a associação dos países e territórios ultramarinos com o objectivo de aumentar as trocas comerciais”. Afinal de contas, a maioria da área da CEE estava fora da Europa, originalmente. Felizmente, o grande levantamento anti-colonial trocou-lhes parte das voltas, mas nem por isso a CEE pode ser desligada de um esforço neo-colonial posterior, que se manteve de resto na UE, para as periferias de fora e de dentro. 

Em terceiro lugar, subestima outro facto inconveniente: os Estados sempre determinaram muitos dos contornos da globalização e ainda hoje podem determinar os fluxos a que se abrem e a forma como o fazem, ou seja, podemos falar de formas de globalização, mas também, e sobretudo, de formas de desglobalização. 

Como refere Dani Rodrik, “o facto desconfortável para muitos socialistas e liberais é que nenhum contrato social e nenhum sistema de distribuição pode funcionar num quadro político aberto – isto é, sem fronteiras e sem regras sobre quem está dentro e sobre quem está fora”. Quem e o que, já agora. Este economista metodologicamente convencional gosta de cultivar um certo espírito de Bretton Woods, hoje heterodoxo: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas de protecção industrial selectiva dos países bem-sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus standards laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. E isto para já não falar da necessidade de se evitar uma inserção económica internacional geradora de défices persistentes na balança corrente e de correspondente submissão aos credores externos. É claro que nada é mais contrário ao espírito da economia política da integração europeia.

Quem pesa mais?


Dúvida: se as medidas sociais aprovadas pela oposição no Parlamento estão, segundo o Governo, sujeitas à lei-travão e por isso são inconstitucionais, mais o serão então as centenas de milhões de euros a transferir para o Fundo de Resolução para transferir para o Novo Banco (NB) por conta daquele contrato assinado por Mário Centeno, já que o próprio Parlamento nem sequer previu qualquer rubrica no Orçamento de Estado para 2021.

Mas escreve Sérgio Aníbal hoje no Público:  

Apesar de, no Orçamento do Estado (OE) para 2021, não ter cado prevista qualquer injecção de verbas no Novo Banco por parte do Fundo de Resolução e a maioria dos deputados ter deixado claro que quer que a matéria seja outra vez sujeita a voto, as regras orçamentais em vigor dão a possibilidade ao Governo de avançar com essa operação sem ter de pedir nova autorização à Assembleia da República (AR). Alterações semelhantes ao OE já foram aliás realizadas em anos anteriores. (...) Agora, para concretizar esta despesa do Fundo de Resolução — que é uma entidade incluída no perímetro das Administrações Públicas e, portanto, conta para o défice — será sempre preciso proceder a uma alteração do OE. E a expectativa dos partidos à esquerda e à direita do Governo, reforçada com uma proposta de resolução posterior, era a de que qualquer injecção tivesse, depois de conhecidas as auditorias ao Novo Banco, de ser novamente votada na AR, numa espécie de orçamento rectificativo. No entanto, este tipo de alteração ao Orçamento é uma das que, segundo os critérios definidos na legislação nacional, pode ser realizada directamente pelo Governo, não exigindo uma aprovação do Parlamento. A Lei de Enquadramento Orçamental define que as alterações que não impliquem aumentos da despesa total da administração central ou de cada programa (geralmente correspondente a um ministério), que não aumentem os compromissos do Estado ou que não façam ultrapassar os limites de endividamento do Estado, podem ser feitas pelo Governo, através de decreto-lei. Na prática, cada ministério tem um limite global de despesa que tem de cumprir, mas dentro desse limite pode passar verbas de umas rubricas para outras. As despesas inscritas no OE são tectos, que geralmente não são alcançados. E existem ainda verbas específicas a cargo do Ministério das Finanças, como a dotação provisional, que podem ser encaminhadas para cada um dos ministérios reforçando os limites de despesa a que estão obrigados. Neste caso, aquilo que João Leão terá de fazer é reafectar verbas previstas para outros fins e reforçar a despesa que é permitida ao Fundo de Resolução para injectar dinheiro no Novo Banco.

Ora, deve ser por isso que António Costa se apegou rapidamente à formulação "criativa" de Marcelo Rebelo de Sousa para adiar qualquer decisão sobre o que fazer à promulgação  das medidas de apoio social. A intempestativa verve de que iria remeter o diploma para a fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional passou rapidamente a um sorriso contrafeito com o gesto de Marcelo Rebelo de Sousa que, por acaso, acaba por ir ao encontro do Governo de não fazer ondas no caso Novo Banco. 

E é assim que medidas sociais são trocadas por negócio que nunca deveria ter existido, porque até sairia bem mais barato ter nacionalizado o NB. Com essa transferência - pedida para fazer face à declaração de prejuízos recorde em 2020, o Estado terá já injectado no NB (sem garantias reais de o reaver) cerca de 3,6 mil milhões de euros da almofada de 3,89 mil milhões de euros, criada pelo contrato de venda ao Lone Star para fazer face a eventuais situações inesperadas de imparidades ou más avaliações de carteiras de crédito, mas que na verdade foram condições instituídas para ser usadas pelo comprador, como o denunciou  no Parlamento o ex-vice-governador do Banco de Portugal João Costa Pinto

Tendo o Estado injectado mais de 10 mil milhões de euros desde a criação do NB, consumida a almofada e delapidadas carteiras de crédito vendidas ao desbarato resta ao Lone Star passar o banco a patacas. E por isso se anuncia já que, a partir de agora, o NB passará a dar lucros. Veremos se não vai parar ao Banco Santander, eleito pelo BCE como herdeiro do sistema financeiro ibérico, no seu esforço de concentração bancária europeia, sob a alegada preocupação de facilitar a supervisão bancária. 

E entretanto, há milhares de pessoas que andam a passar mal com a pandemia... 


segunda-feira, 29 de março de 2021

Querido diário - não está a resultar, mas temos de continuar...

Vivia-se o final de Março de 2012 e tudo parecia ainda ser possível.

“Está-nos a sair do lombo, está-nos a sair da pele. O que tem custado a Portugal cumprir estes objectivos”, disse, notando que “é preciso lutar todos os dias para chegar onde é preciso”. E essa luta significará medidas além do que está inscrito no memorando de entendimento com a troika. “Temos de ser mais ambiciosos e essas mudanças são indispensáveis”, alertou, elencando de forma concisa as reformas estruturais que o Governo quer realizar. “Estamos a fazer uma revolução tranquila”, sustentou. Depois dos avisos e das palavras de apelo à “resistência” dos portugueses, Passos passou aos recados para os “adversários” do PSD. Começando por notar que “não está na inscrição genética do PSD adiar o que é difícil, falsear a história e fazer propaganda”, lembrou: “Aqueles que nos acusam de estarmos empenhados em cumprir o programa de austeridade esquecem-se por que é que esse programa é necessário”. E aproveitou para avisar o PS que o Governo, apesar de não atacar insistentemente o Executivo anterior, “tem memória e os portugueses também têm”.

Mas nada foi como o previsto. A austeridade agravou a recessão e muito. O Governo perdeu o pé. Em Setembro de 2012, Vítor Gaspar lembrara-se naquela maravilhosa medida de tirar 7% aos salários dos trabalhadores para dar, na quase totalidade, às empresas, lucrando a Segurança Social ainda com uns 0,25% desses salários. Era a crise da TSU. O país encheu as ruas em protesto. E o PSD nunca mais se endireitou nas sondagens. O TC questionou as medidas de corte no funcionalismo. E Vitor Gaspar armou-se em justiceiro e fez aprovar o enorme aumento de impostos. Até o CDS abanou dessa vez... E voltaria a abanar quando, logo no início de 2013, o Paulo Portas tinha aquela tarefa mínima de elaborar a reforma do Estado e só conseguiu escrever uma página A4 e mal. De tal forma mal, que o reforma estrutural essencial para todos os governos de direita, aquele com que se faz campanhas eleitorais, morreria mesmo ali. Já Durão Barroso borregara nela também em 2001. Mas ninguém aprende com a História, porque, de tempos em tempos, dá sempre ânimo a um povo de direita questionar a dimensão do Estado. E depois foi aquela  7ª avaliação que matou todo o ânimo

Os "números no ar" de António Costa sobre o investimento público

 

Na sexta-feira passada, António Costa disse que é "fundamental reforçar o investimento público" no país. O Primeiro-Ministro sublinhou que "nestes momentos de crise e dificuldade, é altura de apostar em fazer o que ainda está por fazer, o que ainda não foi feito". Embora tenha reconhecido que, nos últimos 5 anos, se fez um "esforço para pôr as contas públicas em ordem", Costa garantiu que o fez "sem sacrificar o aumento do investimento público", assegurando que o que o Governo tem apresentado neste campo "não são números no ar, é obra concreta".

No entanto, há pelo menos dois dados que o desmentem. O primeiro diz respeito ao nível de investimento público previsto para este ano (a formação bruta de capital fixo, isto é, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.). Se olharmos para estes números a nível europeu, no gráfico acima, rapidamente concluímos que Portugal continua na cauda da Europa. Embora o Governo se defenda com o argumento de que tem levado a cabo um aumento significativo do investimento do Estado desde o início da crise, a verdade é que o país continua a ser dos que menos investe no continente. Como é que isto é possível?

A explicação está no segundo dado: Portugal tinha níveis de investimento público historicamente baixos antes da crise. A tendência já vem de trás e a estratégia das "contas certas" seguida pelo Governo ao longo dos últimos anos acentuou-a. Costa refere o aumento percentual do investimento público neste ano, mas omite o facto de o valor de partida ser extremamente baixo. Na verdade, se descontarmos o consumo de capital fixo (que mede o que se vai depreciando anualmente com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), o investimento público líquido tem sido negativo há vários anos - ou seja, aquilo que o Estado investe anualmente nem sequer chega para compensar o que se perde por via da depreciação.

Para defender esta opção, o principal argumento do Governo é o de que o país não tem capacidade para investir mais devido à elevada dívida pública. O problema é que, mesmo desse ponto de vista, a estratégia é contraproducente: num contexto em que os recursos de uma economia não estão a ser plenamente utilizados, restringir o investimento necessário retrai a produção e o emprego, atrasa o crescimento económico e, com isso, dificulta a diminuição da dívida pública em % do PIB. E isso acontece com custos significativos para o desenvolvimento do país, uma vez que acentua a degradação de serviços públicos como os hospitais, escolas ou transportes. O próprio FMI reconhece, num relatório recente sobre a economia mundial, que um aumento do investimento público gera um crescimento do PIB bastante superior (2,7 vezes maior, no atual contexto), ajudando a reduzir a dívida. É pena que o Governo esteja mais preocupado em congratular-se com um défice que ficou abaixo das previsões num ano em que o país sofreu uma das maiores crises da sua história.

(Os dados utilizados são da base de dados AMECO, da Comissão Europeia, e podem ser consultados aqui).

Ligações


A moeda também é um símbolo da soberania do Estado, servindo para sublinhar uma cadeia do tempo, feita de renovadas memórias de um passado que é portador, também pela mudança, de futuro. A nova nota de cinquenta libras expressa valores, homenageando Alan Turing, um dos pais da computação, perseguido e punido pelo Estado britânico pela sua homossexualidade. E nunca se esqueçam da informação que consta de cada dólar: “confiança” e “esta nota tem curso legal para dívidas públicas e privadas”. A soberania monetária é uma condição necessária, mas não suficiente, claro, para a confiança no poder de Estado.

Não por acaso, a inscrição nas notas de heróis nacionais parece ser uma declinação simbólica da necessária ligação entre Tesouro e Banco Central, fazendo com que a política monetária esteja articulada com a política orçamental. Isto permite enfrentar as forças da incerteza, quebrando tabus neoliberais. Há um povo num território para cuidar. A fronteira política é aí mais relevante para o que se passa no processo processo de provisão a que se chama economia, ou seja, a democracia pode ser mais relevante. Isto está tudo ligado: olhem para a miséria simbólica das notas de euro...

sexta-feira, 26 de março de 2021

Os herdeiros da troika

Ficámos a saber que “PS, PSD, CDS-PP, Chega e IL negaram a possibilidade de se reverterem as regras gravosas, aprovadas no tempo da Troika, relativas aos valores e cálculos nas compensações por despedimento”, chumbando as propostas da esquerda. É um padrão nesta área.

As relações laborais são as mais cruciais e politicamente mais clarificadoras de todas as relações sociais, por muito que uma certa esquerda, colonizada pelo liberalismo, pense que as classes já não contam. Confirmou-se que a compulsão económica, acentuada pelo viés de classe da Troika, é uma conquista declarada irreversível do patronato mais medíocre, com um apoio que vai da extrema-direita ao extremo-centro. Pensem só no que diriam as instituições europeias por desafiar. Neste contexto ideológico, o Estado serviria apenas como multibanco de capitalistas, com escassas contrapartidas para quem cria tudo o que tem valor. 

Na comunicação social dominante, controlada por gente que se identifica social e ideologicamente com o patronato e que manda em redações cada vez mais proletarizadas, estas fracturas são deliberadamente ignoradas ou ideologicamente ofuscadas. Aí, quase já só há empreendedores e seus descartáveis colaboradores.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Quando tudo se compra e vende...


As irresponsabilidades do governo em relação à EDP não podem ser desligadas de um ciclo de privatizações cada vez mais danoso para a autoridade de um Estado democrático: as raízes da grande corrupção estão aqui. 

Este velho Estado criou e geriu com sucesso esta e outras empresas, dos CTT à ANA, até ter decidido, por pressão interna e externa, privatizá-las, transformando-as em governos privados controlados por estrangeiros ou por gente que se comporta como se não fosse deste país, desligados de qualquer projecto para o povo que aqui vive. Esta lógica contamina por sua vez o poder público dominante, apesar de haver quem resista.

Os neoliberais que andam por aí na comunicação social a suspirar por Passos Coelho não têm qualquer autoridade ético-política neste e noutros casos, até porque fingem que a propriedade não conta para a autoridade do Estado. Hoje, temos todos a obrigação de saber que a propriedade pública de sectores estratégicos é parte das fundações materiais de um Estado capaz, incluindo do ponto de vista fiscal, particularmente nesta periferia.


terça-feira, 23 de março de 2021

Querido diário - Não havia necessidade...


Há cerca de nove anos, os sindicatos filiados na CGTP decretaram a oitava greve geral.

O país estava a ir-se pelo cano. O emprego estava em queda e havia já um milhão de portugueses no desemprego oficial (19% da população activa), sendo que o número efectivo de desempregados atingiu nessa altura cerca de 1,5 milhões. As receitas fiscais caíam a pique degradando ainda mais os planos previstos para a consolidação das contas públicas. E o Governo planeava então um pacote laboral que viria a aprovar em Agosto de 2012 (e que se mantém ainda hoje na quase totalidade). 

Pois, perante essa realidade, a direita é capaz de produzir os mais estranhos julgamentos políticos, ainda por cima totalmente erróneos, como é o caso da afirmação feita por Jaime Nogueira Pinto, assinalada com um círculo. Na sua opinião, apesar do nível desmesuradamente explosivo de desemprego e aflição, não havia motivos para uma greve geral:

"Não me parece que num tempo em que de facto não há nada para ninguém faça muito sentido uma greve geral", disse ele

A direita tende sempre a amalgamar tudo para que se esqueça o carácter de classe das suas políticas de austeridade. Esquece-se que as políticas aprovadas não eram dirigidas "a todos", mas pesavam sobremaneira nas pessoas de mais baixos rendimentos (por isso a pobreza - e a pobreza laboral - se agravou nessa altura), e eram sobretudo direccionadas para os trabalhadores. Fosse do sector público - com cortes nos vencimentos e provocando uma depuração no sevriço público - quer no sector privado, em que se quis provocar uma transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas. Supostamente porque os empresários são pessoas que sabem melhor gerir os rendimentos... dos trabalhadores.

Foram os trabalhadores que perderam feriados e foram obrigados a trabalhar nesses dias. Forem eles que sendo obrigados a trabalhar nesse dias passaram a receber metade do que recebiam antes. Foram eles que trabalhando aos domingos passaram mesmo a receber menos do que num dia normal. Foram eles que viram cortadas a metade as remunerações por trabalho suplementar. Foram eles que viram eliminado o descanso após trabalho suplementar, vendo-se obrigados a trabalhar nesse período  de descanso. Foram eles que viram os seus horários e os limites impostos há um século à jornada de trabalho (8 horas) a serem desarticulados com os bancos de horas. Foram eles que viram cortadas em dois terços as compensações por despedimento. Foram eles que viram cortado a metade a duração do subsídio de desemprego e o seu montante. Foram eles que viram as portarias de extensão ser enfiadas na gaveta como forma impedir que contratos colectivos - em maré de ser caducados desde 2003 - ainda exercessem alguma cobertura em empresas. Foram eles que se viram a ser contratados com formas cada vez mais difusas de contrato de trabalho (mascarados de contratos de prestações de serviços, para que fossem chamados agora, não de trabalhadores, mas de colaboradores), firmados por sucessivas entidades e afastando-se cada vez mais o "dono da obra" da responsabilização pelo trabalhador contratado e criando-se unma cascata de subcomissões de intermediação que delapida a retribuição salarial. Foram eles que viram os governos dar cada vez mais relevo às agências de trabalho temporário, a ponto de a renovação dos contratos de trabalho dito temporário puderem ser feitas durante... 6 anos! Foram eles que viram os contratos a prazo - que por lei servem para cobrir picois de actividade - puderem ser renovados por três anos, alegando-se que era melhor isso do que estar no desemprego. Etc., etc. E para culminar o "enorme aumento de impostos" em IRS em 2013 - um IRS que, como se sabe, é sobretudo pago por salários e pensões - em vez dos cortes de despesa pública em funcionalismo não autorizados pelo Tribunal Constitutucional e por "vingança" da recusa popular em aceitar o aumento da TSU dos trabalhadores como forma directa de financiar as empresas. 

Em compensação, foram os mais endinheirados que o Governo Passos Coelho achou por bem, em 2012, dar meios para branquear dinheiros fraudulentamente saídos do país. Fê-lo pela mão do secretário de Estado do CDS Paulo Núncio, através do chamado regime excepcional de regularização tributária em que, tal como já tinha acontecido nos governos Sócrates (em 2005 e 2010) se regularizava os dinheiros fraudulentamente saídos do país, mediante uma pequena comissão, sem necessidade de repatriação dos capitais, protegendo-os de qualquer acusação pelo Ministério Público e sem que vissem o seu IRS corrigido pelo acréscimo de rendimento declarado! Em 2012, "branqueou-se" mais de 3,5 mil milhões de euros!

Não, não houve qualquer política de classe com Governo Passos Coelho.  

segunda-feira, 22 de março de 2021

"Estupidezes" vitalícias

A ideia pode ser tão idiota como esta: um dia, em Maastricht uns tantos senhores - entre eles Cavaco Silva, nem que fosse por interposta pessoa de Jorge Braga de Macedo ou Vítor Gaspar que negociaram a ideia - enfiaram uma banana no ouvido em nome de um projecto monetário europeu. Mas quando lhes perguntaram porque não a tiravam - afinal, não fazia sentido, a banana não cabia no ouvido e, mesmo se coubesse, iria fazer mal à saúde de quem tentasse - responderam que não a podiam tirar porque os mercados financeiros iriam reagir negativamente...  

A regra de Maastricht - de que os todos os Estados integrantes da zona euro devem ter um défice público de 3% do PIB e uma dívida de 60% - é estúpida. Já se sabia em 1992, mas foi mantida durante 30 anos por forma a manter a trela apertada por parte de certos desses Estados. 

Para os fanáticos da austeridade, que a cavalgam como forma de defender um Estado Social mínimo com entrega das suas funções à provisão privada, convém ler esta entrevista de Xavier Debrun, um dos membros do Conselho Orçamental Europeu (COE), organismo criado para gerir a política orçamental na zona euro.

Nomeadamente esta passagem: 

"- A regra de 3% para o défice deve desaparecer? 

-  Pessoalmente, penso que é uma regra que não faz sentido. Em Setembro de 1999, quando se escreveram os tratados em Maastricht, os 3% para o défice e os 60% para a dívida eram essencialmente a média existente na altura e pensava-se que era um bom nível para estar. Depois, alguns economistas na Comissão Europeia decidiram racionalizar estas metas e calcularam que um país que tivesse um défice de 3% para sempre e a economia crescesse 3% ao ano em termos reais, com 2% de inflação, acabaria por caminhar para uma dívida de 60%. Claro que hoje, se se fizesse o mesmo exercício, com um crescimento real anual dificilmente muito maior que 1%, o défice de 3% para sempre conduziria a uma dívida de 100%, não 60%. É por isso que é sempre melhor não pôr números específicos numa regra orçamental. É uma má ideia porque as circunstâncias mudam, as taxas de juro podem mudar, o crescimento potencial da economia também. Pessoalmente, eu não me fixaria nem nos 3% nem nos 60% para todos os países. Acredito que a referência aos 3% se mantenha no sistema, mas já não faz sentido estarmos presos a estes números. "

Não é que as soluções defendidas na entrevista sejam uma nova garantia de sanidade. Aliás, mantêm-se fortes constrangimentos à soberania nacional, nomeadamente ao defender-se a imposição de um tecto de despesa pública o qual condicionaria o nível da fiscalidade a aplicar. Mas é a prova de que, de 30 em 30 anos e depois de centenas de milhões de vidas estragadas, a União Europeia pensa... para evitar a degradação da vida social e, com ela, sempre o receio de revoluções na rua e a novos exits. Afinal, a Comuna de Paris não foi assim há tanto tempo. Não me referia aos Gillets Jaunes mas para os mais imediatistas até que pode ser um bom sinal dos tempos...  

Para lá das direitas dominantes

O Reino Unido não deu qualquer espaço de manobra à arbitrariedade da empresa e estabeleceu datas precisas e sanções para o incumprimento. O processo de vacinação europeu está ferido por este desastre jurídico, estratégico e político. Aliás, o desespero para camuflar o falhanço europeu não é alheio ao trauma recente do “Brexit”, porque o sucesso da vacinação no Reino Unido conta uma história diferente da história oficial dos europeus vencedores contra os britânicos derrotados (...) A União Europeia anda à procura de uma vacina contra o “Brexit”. Para já, esse processo também está demorado.

Excertos do artigo de Francisco Mendes da Silva no Público do passado sábado. Um intelectual anglófilo de disposição conservadora parece querer superar o europeísmo calmo, que levou o seu agora ameaçado CDS-PP a ser um dos veículos da política de agressão da troika. Dá conta que pode haver vida para lá da UE, para lá das lógicas do mercado único e da moeda única, ou seja, da política demasiado única. Afinal de contas, pode existir arbitrariedade empresarial e esta tem de ser contrariada pelo poder da soberania nacional para evitar a catástrofe. 

Na lógica do mal menor, o one-nation torysm é uma exportação ideológica superior à terceira via decadente de um totalmente desorientado Keir Starmer, o ideólogo do segundo referendo que liquidou Corbyn. O nacionalismo cívico, inscrito em instituições de serviço nacional, é indispensável para enfrentar o que aí vem, até porque só este assegura a tal cadeia do tempo, a que liga os antepassados às gerações vindouras, gerando compromissos colectivos duradouros numa escala relevante. E Estados nacionais seguros cooperam mais internacionalmente. A ideologia pós-nacional dos cidadãos de nenhures só alimenta a impotência e a fragmentação, emancipando as elites do escrutínio popular.

Esta posição desalinhada de Mendes da Silva permite sublinhar a total captura das direitas nacionais pelo euro-liberalismo na economia política desde os anos oitenta, do PSD às formações reacionárias mais recentes. Esta ideologia da mercadorização sem fim, telecomandada por instituições supranacionais, corroeu as instituições nacionais e as virtudes cívicas, vulnerabilizando um país desta forma fracturado e demasiado dominado pelo individualismo possessivo. O que vale é que não foi totalmente triunfante. Houve resistências sociais, em modo de contra-movimento político, mesmo que muitas vezes sem suficiente consciência partilhada das tão exigentes tarefas que se impõem na reconstrução de um velho Estado. 

As direitas não querem, não podem, ser consequentemente soberanistas em Portugal. Só uma parte da esquerda, e ainda claramente minoritária, tira as conclusões que se impõem, dos direitos aos deveres, passando pelas missões nacionais para lá do colete de forças europeu. Até quando? 

sábado, 20 de março de 2021

Americanismos, populismos


Como já argumentei numa recensão a um livro por traduzir, Robert Kuttner é um notável economista político social-democrata norte-americano. Agora, em artigo na sua The American Prospect, Kuttner mobiliza o conhecimento do lastro regulatório, fiscal e de pleno emprego deixado pelo New Deal, e pelo seu prolongamento aditivado na economia de guerra, para sublinhar que “Biden está a gastar dinheiro para combater a crise, mas não está [ainda] a desafiar o domínio do capital”. 

Por exemplo, em linha com a melhor história financeira, sublinha-se a forma como a repressão financeira da economia de guerra libertou recursos para vários esforços colectivos sem precedentes, enquadrando a finança e controlando os seus preços. Pena que Kuttner, conhecedor da história da economia política, esqueça uma das grandes lições de John Kenneth Galbraith: o grande poder empresarial não se contraria com a ficção regulatória concorrencial, mas sim com “poderes compensatórios” estatais e sociais, que controlem as suas decisões fundamentais. 

Seja como for, Kuttner nunca deixa de terminar os seus trabalhos com uma nota de optimismo: “temos de ter esperança que a pressão da esquerda, combinada com a lógica da situação e com a ousadia crescente de Biden, empurrem a sua administração na direcção do populismo progressista”. 

E sublinhe-se o uso apologético da palavra populismo, em linha com toda uma história de lutas pelo progresso nos EUA desde o final do século XIX, sublinhada num magnifico jogo de espelhos histórico por Thomas Frank

Esta tradição é ignorada por todos aqueles que passam a vida a importar ideias do outro lado do Atlântico e a apodar tudo e todos de “anti-americanismo”, fazendo uma confusão deliberada com um venerável anti-imperialismo. Americanismos, tal como de resto populismos, há muitos.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Paris, tempo

Obrigado, Joana Lopes.

Pedinchice e bonsai


Duas páginas do mesmo jornal de hoje. 

É claro que a pandemia criou um problema transversal à economia do país. E como tal, deveria ser tratado, caso o Governo não a decidisse tratar como um bonsai - às pinguinhas. Relembre-se que as árvores bonsai não são regadas - são torturadas com falta de água para não crescerem. 

Esta tortura infligida ao país tem uma razão de ser. Primeiro, a famosa ajuda comunitária não foi ainda nem ajuda e muito menos comunitária. Apenas chegará lá para as calendas, mais de um ano depois de tudo ter começado. Depois, porque o Governo teme que a UE imponha inaceitavelmente a cada Estado condições economicamente sem senso, para que as suas dívidas públicas se encaminhem para os limites de Maastricht previstas no Tratado Orçamental que todos - mesmo os mais crentes - consideram não ter nexo económico. Mesmo sem nexo económico, a dívida é o veículo do poder. A trajectória será traçada caso sejam cumpridas certas políticas. Onde foi que já vimos isto? 

Por isso, o Governo adiou ajudas, contou os tostões, disse que contrataria mais pessoas para o Estado, mas só o fez passados muitos meses e em dimensão insuficiente; tinha um tecto de despesa pública aprovado pelo Parlamento para 2020 e, mesmo assim, conseguiu poupar. "Portugal não é a Alemanha", disse ontem no parlamento o ministro da Economia Siza Vieira. E é verdade. Mas o problema é que o Governo do PS deixa-se enredar - sem nada ter aprendido com a intervenção da troica - na lógica seguida pelo Governo PSD/CDS de que os défices se combatem com menor despesa pública. 

É verdade que essa despesa pública deve ser criteriosamente orientada para ter um efeito multiplicador na economia. Pagar às empresas os seus custos salariais e cortar nos salários dos trabalhadores (como foi feito no lay-off simplificado 1) é melhor forma de o efeito se esvazir entre os dedos. Pagar às empresas os seus custos salariais e não cortar nos salários dos trabalhadores (como é feito no lay-off simplificado 2) é melhor, mas tem um menor efeito. Pagar a grandes empresas e não aos seus trabalhadores, fora do lay-off, e ainda sem se traduzir essa ajuda em capital do Estado, é a forma directa de o apoio ir parar a dividendos e, economicamente, se desperdiçar. 

Que na altura de passar o cheque, alguém no Governo se lembre que houve muita gente sem apoios, muitos serviços públicos carentes de recursos, muitos meses em que centenas de milhares de trabalhadores viveram com os seus rendimentos cortados a um terço, muitas pessoas a morrer à espera de cuidados intensivos rarefeitos. E depois olhe-se para as caras dos senhores CEO. E a opção parece clara.

 

Paris, espaço


No dia em que se assinalam 150 anos do início dessa brava tentativa de “assalto do céu”, como lhe chamou Marx, afogada em sangue menos de três meses depois, quero lembrar também a reverberação internacional de um dia inteiro, feriado na Rússia soviética logo a seguir a Outubro. 

Como lembra o historiador Andy Willimott na Jacobin, Lenine dançou na neve no dia em que o poder soviético ultrapassou os 72 dias da Comuna de Paris, aprendendo tudo sobre uma experiência derrotada, “um passado prenhe de presente”; um fragmento de uma bandeira da comuna, oferecida pelos franceses, seria enviada ao espaço, em 1964, e tudo. 

Perde-se e tenta-se de novo, noutras circunstâncias histórico-geográficas, tantas vezes com novos meios e novas bandeiras, com novos fins, claro. Aprende-se sempre, muda-se muito, mas nunca se desiste, até porque, como nos ensinaram, nem os mortos estão a salvo se os inimigos não cessarem de vencer.

As lutas de classes são legais e nacionais


A Uber foi obrigada pelos tribunais britânicos a reconhecer a realidade da sociedade e começou agora a fazê-lo: quem ali trabalha é funcionário da empresa e tem direito a um mínimo de protecção. Vale a pena lutar pela redistribuição dos direitos e dos deveres, pelas liberdades de quem trabalha. 

E lembrem-se deste precedente, desta inspiração, quando vos garantirem que os Estados nacionais são impotentes perante as empresas multinacionais e que, já agora, o Brexit, como momento soberanista, é o caminho para a redução dos direitos laborais.

quarta-feira, 17 de março de 2021

As vulnerabilidades macroeconómicas nacionais: uma abordagem monetária moderna

Num esforço para pensar o nosso país para lá do quadro político e conceptual da economia neoclássica, escrevi em coautoria com o João Rodrigues um texto que foi dado à estampa como o segundo longo capítulo do livro, aqui e aqui anunciado, Como reorganizar um país vulnerável


Como o título indica, trata-se de uma tentativa de identificação das principais vulnerabilidades macroeconómicas nacionais, que se articula com um conjunto de propostas para o país mudar de rumo, o que é feito, em larga medida, a partir das ideias económicas conhecidas sob a designação de Teoria Monetária Moderna. 

Deixo-vos aqui o texto, numa versão próxima da publicada. Deixo-vos, abaixo, os dois trechos que iniciam e concluem o referido trabalho, com as referências omitidas: 

O conceito de vulnerabilidade pode ser aplicado à realidade macroeconómica nacional a partir da constatação de que, sem instrumentos de política económica relevantes nessa escala, o país passou a estar mais dependente e exposto a crises. A crise de saúde pública recente, com óbvias e dramáticas declinações macroeconómicas, é só o mais recente e dramático exemplo. 

Já nas últimas duas décadas, a combinação de estagnação e crise, com escassos períodos de tépido crescimento, foi acompanhada de endividamento externo recorde e de níveis de desemprego sem precedentes. Este padrão nacional tem de ser compreendido e modificado. 

Entretanto, cabe desde logo perguntar: será que desta vez é mesmo diferente? 

Carmen Reinhart é uma das muitas economistas convencionais que afiançaram que sim, defendendo, no início da crise de saúde pública, o seguinte: “Este é claramente um momento de ‘tudo o que for preciso’ para políticas orçamentais e monetárias fora da caixa e em grande escala”, ou seja, um momento em que os tesouros nacionais e os bancos centrais têm de garantir, através de estímulos monetários e orçamentais articulados, a despesa necessária para manter e gerar rendimentos. 

Reinhart foi coautora de um dos estudos que serviram para dar colação pretensamente científica às políticas de austeridade, afiançando que níveis de dívida pública acima de um certo limiar seriam prejudiciais ao crescimento. Este estudo foi refutado, através da deteção de erros estatísticos grosseiros e de erros teóricos com implicações de política, já que ignorava as especificidades de Estados com soberania monetária, ou seja, de Estados endividados na sua moeda, controlando as condições de financiamento, incluindo as taxas de juro da dívida, através de uma articulação entre Tesouro e banco central. 

Neste contexto de crise, o impensável tornou-se momentaneamente inevitável entre os economistas convencionais, incluindo a defesa do financiamento monetário dos défices orçamentais, antes reduzido a experiências como a do Zimbabwé; é aceite por muitos economistas e banqueiros centrais a operação através da qual um défice orçamental, ao invés de ser financiando pela emissão de dívida geradora de juros, é financiado pela expansão da base monetária, isto é, pela expansão dos passivos fiduciários irredemíveis e não geradores de juros do banco central. O único limite a este tipo de operações, que prescinde dos mercados, é a inflação, o que, num contexto de pressões deflacionárias, não é definitivamente um problema. 

Tendo em atenção o estado de coisas vigente no campo económico, este capítulo parte da ideia de que não há nada mais prático do que uma teoria para analisar o processo de vulnerabilização macroeconómica e para o superar. Toda a história, incluindo a história económica recente, requer um quadro teórico capaz de ordenar o material empírico e de interpretar a sua evolução. Mais concretamente, este capítulo parte da teoria monetária moderna (Modern Monetary Theory – MMT, em inglês), procurando identificar os principais padrões e mecanismos explicativos numa economia monetária de produção como a portuguesa. 

Estão verdes?


Contam que certa raposa, 
 andando muito esfaimada, 
 viu roxos, maduros cachos 
 pendentes de alta latada. 

De bom grado os trincaria, 
 mas sem lhes poder chegar, 
 disse: 'Estão verdes, não prestam, 
 só cães os podem tragar!' 

Excerto da versão de Bocage da fábula de La Fontaine

É realmente estranha a reacção, dita de precaução, em relação à vacina de Oxford por parte de vários países da UE, incluindo Portugal; precaução talvez não seja uma boa designação para uma avaliação política que mais parece alimentada pelo desastre que está a ser o sistema de provisão de vacinas arquitectado pela UE. 

Até o eurófilo The Guardian mostra a sua incompreensão, em linha de resto com a reacção da cientista-chefe da OMS e não só. O Reino Unido, entretanto, continua a com sua eficaz campanha de vacinação com a tal vacina. Por aquelas bandas, não há tempo a perder com enredos continentais, nem desconfianças para fomentar.

terça-feira, 16 de março de 2021

Querido diário - a cara cabisbaixa do fracasso

16 de Março de 2013. O jornal Público faz uma síntese da sétima avaliação do programa de ajustamento da troica, que o  Governo PSD/CDS tanto quis e defendeu. 

Oito anos passaram sobre o auge do programa de austeridade. Recorde-se desta cara cabisbaixa, cinzenta, perdida, enfiada nos papéis, à procura de desculpas para um falhanço monumental. Ela é, na verdade, a melhor imagem do que poderá acontecer quando a União Europeia se lembrar de que é talvez conveniente impor alguma disciplina orçamental a quem anda gastou demais para suster a crise e que os Tratados Orçamentais - apesar de serem consensualmente estúpidos do ponto de vista económico - são planos que fazem sentido aplicar...


Carlos Moedas fala, mas não conclui o que o título do Público tão bem sintetiza num título. A austeridade - montada supostamente para equilibrar as contas públicas e libertar recursos para as empresas - acaba por as prejudicar, ao mesmo tempo que rebenta com a economia. 

O secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro está sentado ao lado do ministro das Finanças Vítor Gaspar na conferência de imprensa. Há já alguns exercícios que o Governo achou por bem que a troica não aparecesse e nada dissesse em conferência de imprensa própria, como aconteceu no início. Era demasiado desbocados...

Escreve Sérgio Aníbal, do Público: 

Questionado por um jornalista sobre se reconhecia algum erro na forma como o Governo e a troika definiram a estratégia de ajustamento para Portugal e a passaram à prática, Vítor Gaspar não foi capaz de identificar um. Preferiu falar antes de um “grande desapontamento”: a subida do desemprego. Mas se há coisa que é difícil ao olhar para os resultados da sétima avaliação da troika a Portugal, ontem apresentados, é deixar de ver erros, erros de previsão. (...) Vítor Gaspar voltou a justificar a deterioração da conjuntura exclusivamente com a redução verificada a partir do final do ano passado na procura externa. No entanto, olhando para as novas previsões, verifica-se que não serão apenas as exportações (crescimento de 0,8% em 2013, contra os 3,6% antes previstos) a apresentarem um desempenho pior. O consumo privado vai cair 3,5% este ano, deixando para trás a anterior previsão de 2,2%. E o investimento mantém uma queda acentuada de 7,6%, não confirmando a descida de 4,2% que era prevista.

A coisa não estava, de facto, a correr bem. Mas o Governo era incapaz de pensar sobre o que fizera. Continuava a pensar que a teoria estava correcta; os ponderadores da folha Excel é que estavam mal calculados... Nem os próprios empresários estavam muito satisfeitos com o rombo na procura interna.

O plano previra menos 316 mil desempregados do que aqueles que efectivamente deviam estar no mercado! A ideia da austeridade criadora não estava, afinal, a resultar. O desemprego explodira para uma taxa oficial de 18%. Na realidade, a taxa de desemprego em sentido lato - que abrange o desemprego oficial, mas igualmente o subemprego visível (aqueles que gostariam de trabalhar mais horas mas não encontram mais trabalho), bem como os desempregados estatiscamente considerados inactivos - andava ao redor dos 25% da população activa!

Passados uns meses, Vítor Gaspar sairia do Governo. Moedas continuou.

A realidade é contraditória e por isso também esperançosa


Na semana passada, ficámos a saber que os EUA e os seus aliados lançaram 46 bombas por dia durante as últimas duas décadas e ficámos também a saber que o plano económico de Biden foi aprovado.

Este plano vai representar um estímulo orçamental de 14% do PIB norte-americano, o que adiciona aos estímulos orçamentais de Trump de montante similar, mas muito menos focados nas necessidades sociais de tantos norte-americanos do que no bem-estar do grande capital. O plano Biden irá, segundo várias estimativas, reduzir a taxa de pobreza de 14% para 8%. Não é a social-democracia, por causa do que falta na provisão social e na protecção do trabalho organizado, por exemplo, mas é uma mudança positiva, reconheço. O presidente norte-americano começou a romper com os chamados novos democratas de Clinton-Obama, ou seja, com o seu próprio passado. Não por acaso, no seu primeiro discurso depois da aprovação do plano de salvação, Joe Biden agradeceu em primeiro lugar a Bernie Sanders.   

Na semana passada, ficámos ainda a saber que o plano de vacinação dos EUA vai de vento em popa, beneficiando dos maciços recursos públicos canalizados para esta missão, ao mesmo tempo que não nos podemos esquecer que tal ocorreu num país onde, nos últimos anos, a esperança média de vida baixou devido às “mortes por desespero”, começando na presidência de Obama-Biden, num contexto de desigualdades só com paralelo no mundo de antes da Grande Depressão. A ausência de um serviço de saúde decente viu-se também na péssima prestação pandémica.  

A realidade contraditória do império em declínio relativo não pode nunca ser ignorada. Tal como acontece com o Estado desenvolvimentista cada vez mais mal-escondido, também o Estado keynesiano, militar e para os ricos, mas agora também para a gente comum, é aí cada vez mais difícil de esconder. Os efeitos ideológicos internacionais serão ponderosos, creio. 

O Tesouro e a Reserva Federal puxam na mesma direcção, garantindo a despesa pública que se transmuta em rendimento popular, em linha com o que antecipa a teoria monetária moderna, a mais realista das abordagens macroeconómicas.  

Um estado monetariamente soberano, endividado na sua própria moeda, não tem constrangimentos financeiros. O único constrangimento que enfrenta está relacionado com os eventuais efeitos inflacionários do activismo orçamental, mas estes só se manifestam macroeconomicamente quando se puxa para lá da capacidade produtiva instalada. Um estado semiperiférico, com soberania monetária, tem de atentar também no constrangimento externo, não se deixando endividar em moeda estrangeira, através de uma sábia combinação de política cambial e de controlos de capitais.  

Do ponto de vista internacional, é cada vez mais claro que se depende do activismo dos herdeiros de Roosevelt e de Mao, sendo que estes últimos discutiram recentemente mais um plano quinquenal, no quadro do grande sucesso no controlo da pandemia e da aposta numa maior autonomia económica, incluindo tecnológica. Devemos estar preocupados com a obsessão dos falcões norte-americanos e seus aliados com uma nova guerra fria, com mais bombas a serem lançadas por aí.

Entretanto, das vacinas e da pandemia à política orçamental, a UE hayekiana-ordoliberal é cada vez mais vez mais uma anacrónica e desastrosa gaiola de ferro neste mundo irreversivelmente multipolar e talvez, talvez, pós-neoliberal. Quando se olha para oriente e para ocidente, há alguma esperança.


segunda-feira, 15 de março de 2021

Candidato feio do desemprego empobrecido

No post anterior do João Rodrigues, chama-se a atenção para o facto de os programas económicos dos  partidos herdeiros do PSD de Passos Coelho se assemelharem e servirem os mesmos interesses. E assim é. 

Poder-se-á até discorrer sobre  o interesse de quem os financia, ao apoiar dois partidos com um programa semelhante, em que um é mais caceteiro, popular, e o outro civilizado

Mas isso fica para outro dia. Hoje gostaria de chamar mais a atenção para os diversos pais destes novos herdeiros. Carlos Moedas foi entrevistado pela RTP e disse estar tranquilo com o trabalho feito pelo Governo em que foi um secretário de Estado adjunto de Passos Coelho, no centro da definição da política então seguida. Dado que hoje é 15 de Março, não quero deixar passar a efeméride sem uma referência. 

Há 8 anos, até a troica já reconhecia que a receita da austeridade - que o Governo PSD/CDS abraçara militante - fora excessiva. O desemprego explodira para níveis que mesmo um liberal (ex-neoliberal) considera um pouco exagerado. E por isso, os seus mentores internacionais começaram a aliviar a dose a aplicar. O Governo foi autorizado a realizar cortes permanentes na despesa púiblica até ao final de 2015 e flexibilizou-se as metas orçamentais para 2013.

Mas apesar disso, apesar do nível demasiado elevado de desemprego, houve uma coisa que se manteve no cardápio das receitas prescritas e que não foi alterada - a redução das compensações por despedimento. Antes do mandato do Governo Passos Coelho, as compensações eram de 30 dias de salário por cada ano de casa, no final ficaram... em 12 dias por cada ano de casa

Nesse mesmo dia em que a troika aceitou aliviar Portugal da ineficácia da austeridade, aprovou um corte substancial nas compensaçõres por despedimento. E Carlos Moedas lá estava na fotografia.



Será que esta foi também uma daquelas medidas de que discordou? Não parece. 

Isto porque a ideia de cortar nas compensações tem um racional simples, embora erróneo.

Clarividências


Naturalmente não subestimamos a importância de a Constituição as ter consagrado no plano legal – porque até aí era tudo provisório, o próprio regime era provisório –, mas não foi a Constituição que deu essas conquistas, que deu a Reforma Agrária, a independência das mulheres, os direitos das mulheres, o direito de reunião e de associação, de manifestação. Foi a própria luta (...) Por exemplo, o 1.º de Maio em 1974 é, pela primeira vez, feriado (...) O Spínola não queria que fosse feriado. Quando a Intersindical e a Comissão Democrática Eleitoral (CDE) vão falar com o Spínola, ele nega completamente. Só que alguém lhe assoprou ao ouvido que era melhor ceder nisso porque ia mesmo ser feriado. É por isso que o 1.º de Maio foi uma conquista de Abril: foi imposta. O feriado do 1.º de Maio é talvez a primeira conquista de Abril (...) A burguesia liberal não queria aprofundar o derrube da ditadura com a liquidação do fascismo. Tudo o que era popular cheirava a revolução. Não queriam acabar com as estruturas que sustentavam o fascismo. Não foi ela que marcou o ritmo da Revolução de Abril.

Aos 85 anos, Domingos Abrantes, o heróico Conselheiro de Estado, foi entrevistado pelo AbrilAbril. 

Aproveito para lembrar que os burgueses ditos “liberais”, agora herdeiros de Passos Coelho e da troika, os que não suportam as marcas que a nossa Constituição ainda transporta dos meses libertadores em que avançámos décadas, andam por aí a promover noções enviesadas de liberdade, à boleia de propaganda cool ou reacionária. Sim, Iniciativa Liberal e Chega são duas faces da mesma moeda única: olhem para os programas socioeconómicos e para os interesses que servem. 

domingo, 14 de março de 2021

Fôlegos


Já não sei quem disse que pode haver nas derrotas uma dignidade que escapa às vitórias, às grandes e às pequenas. Quem tem essa dignidade sabe que nada está garantido, mesmo quando se ganha politicamente alguma coisa ou quando não se perde tudo. Lembro-me disto ao reler o livro de Carlos Brito, Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente

Não tenho por hábito reler livros. Este é um livro de memórias políticas que já li e reli desde o seu lançamento, em 2010. Conheço, por exemplo, poucas clarificações tão cabais do posicionamento comunista durante o PREC, um dos sete fôlegos de Álvaro Cunhal. Um posicionamento que de resto parece indicar um padrão: a história escrita por supostos vencedores pode ser pura ideologia, enquanto ofuscação, incluindo quando se trabalha com palavras como “totalitarismo”. 

Esta palavra só serve para ofuscar o fascismo e apoucar o antifascismo, ao colocar os comunistas num caldo pouco recomendável em termos da verdade histórica. Aposto que futuros historiadores, com ainda maior distância, irão corroborar empiricamente mais aspectos da versão comunista da nossa história recente do que de outras versões políticas, dado o trabalho que já foi feito até ao 25 de Novembro e depois. 

A revelação da surpresa que Álvaro Cunhal teve pelos resultados do trabalho constituinte, fazendo de 1976 um marco unitário com novo fôlego estratégico, num momento de refluxo, é um dos vários momentos que nos dá a ver a acção política como um exercício de filosofia da conjuntura com impactos na estrutura, mesmo quando a correlação de forças já mudou dramaticamente. Tinha ficado uma cristalização institucional de outra correlação e de convergências político-ideológicas típicas dos anos setenta, a Constituição da República Portuguesa, e era necessário fazer dela uma trincheira para enfrentar o que aí vinha. Somos filhos dessa visão na esquerda, incluindo as várias propostas de convergências consequentes feitas ao PS, quer reconheçamos tal facto, quer não. Fez-se o que melhor que se pôde. 

O Álvaro Cunhal que emerge da pena clara de Carlos Brito, sem acinte, nem ajustes de contas, é engrandecido, incluindo pela revelação elevada da política como trabalho de e para humanos falíveis, com os quais se concorda e com os quais se discorda, por vezes dolorosamente, como na parte final do percurso. E pode chamar-se hegemonia também à capacidade de reintegrar os perdedores. 

Há no livro uma destreza analítica que também é a do intelectual tarimbado por décadas de política. Nunca conheci melhor combinação, independentemente das convergências e das divergências, com as quais de facto se aprende sempre. Nestas últimas, está a mais recente demonstração de preocupação da associação política Renovação Comunista com o PCP, que não é nada fácil de compatibilizar com o apoio dado anteriormente ao PS, bem como com a participação noutros projectos partidários. Diria que a preocupação consequente pressupõe um apoio que é muito diferente deste tipo de manifestações públicas. 

No fim deste texto, fica o que mais me importa: Cunhal e Brito são dois dos muitos que têm um lugar nas melhores páginas da nossa História Política comum, assim com h e p grandes. Devemos tanto a esse H e P que tantos escreveram nas mais difíceis circunstâncias. Haja combate pela memória, até porque História haverá certamente. Sabemos bem que não terminou.

Capital, desigualdade, crise e os meios de os esconjurar


Se tiverem paciência e não se importarem em receber um email de vez em quando, subscrevam aqui: https://nunoteles.substack.com/. Tudo será replicado, no entanto, no Ladrões. Fiquem então com o segundo artigo, que sintetiza a minha intervenção no participado debate Marx-Piketty desta semana: 

Novos e velhos Marx 

São raros os livros de economia, sobretudo quando têm mais de setecentas páginas, que conseguem o estatuto de campeão de vendas. “Capital no século XXI” de Thomas Piketty conseguiu essa proeza, denunciando o aumento global das desigualdades através de um trabalho de recolha de dados de 15 anos. Contudo, a ambição e recepção do trabalho de Piketty foram para lá da questão das desigualdades económicas e formas de as debelar. O autor foi-nos apresentado como um “novo Marx”, capaz de deslindar os mecanismos do capitalismo contemporâneo, condenado o velho das barbas a ser um importante pensador, mas para o século XIX. 

Não pretendendo negar a importância do trabalho de Piketty ou recensear todo o seu livro de um ponto de vista marxista (outros já o fizeram), importa revisitar o seu conceito de capital e confrontá-lo com a tradição marxista. Tentarei mostrar como concepções de capital, à la Piketty, revelam os limites de um certo entendimento do capitalismo e da actual crise pandémica e resultam em propostas políticas desadequadas, por contraponto às vantagens de adoptarmos uma perspectiva de economia política marxista. 

Capital é o que cada um quiser? 

A definição de capital de Piketty é bastante simples. Capital é a riqueza líquida individual, igual ao produto das poupanças no longo prazo. O capital é, por um lado, uma coisa homogénea, que se pode medir e comparar através do seu preço, sendo, por outro lado, coisas diferentes: terra, imobiliário, activos financeiros (títulos), activos industriais (máquinas). É assim assumido por Piketty que esta definição de capital é susceptível a “fugas”: a minha conta bancária é capital, mas se comprar um carro com essa conta, o meu capital desaparece. 

Esta forma de tratar o capital, mais do que procurar uma definição, assenta sobretudo na conveniência do seu tratamento estatístico, recorrendo a inquéritos e balanços de empresas, ultrapassando algumas das ficções sobre estimação do stock de capital. No entanto, se a abordagem de Piketty ao capital facilita a medição do seu pretenso stock – equivalendo entre 6 a 8 vezes o PIB de cada país – ela é, na verdade, próxima da noção de capital neoclássica, que reduz a categoria à de recurso durável (mais de um ano) utilizável na produção.[1] Ora, esta forma de o conceptualizar vai ter implicações para o entendimento de Piketty da desigualdade, resultado de acumulação de riqueza em poucas mãos, cuja rendibilidade, quando superior ao crescimento económico, resulta em maior desigualdade. 

A concepção de capital de Marx é radicalmente diferente. Os três livros de O Capital são dedicados a entender como o capital pode ser coisas diferentes: moeda, mercadoria, força de trabalho, meios de produção. As suas diferentes formas definem-se enquanto capital, não pelas características físicas de cada uma das suas formas, mas sim pela sua posição e relação num modo de produção particular, o capitalista. Assume-se então um modo de produção marcado pela circulação generalizada de mercadorias monetarizadas e pela separação do trabalhador em relação à propriedade dos meios de produção, condição para a sua exploração. Classe e poder aparecem como condições para a definição de capital. As diferentes formas que o capital pode tomar e sua necessária valorização ficam bastante claras nos esquemas dos circuitos do capital, apresentadas por Marx no segundo livro de O Capital: D-M-...P...- M’-D’, sendo D moeda, M mercadoria, e o apóstrofe sinalizando a expansão e valorização do capital conseguida no momento da produção (P), através da mais-valia. Simplificando, em relação à definição de Piketty, capital pode ser moeda, mas nem toda a moeda é capital - o dinheiro do meu salário que uso para comprar um carro não é, nem nunca foi, capital.

sábado, 13 de março de 2021

Um jornal que procura acertar nas fracturas

«À austeridade expansionista sucede-se a contenção orçamental», afirma nesta edição a economista Eugénia Pires, sintetizando o drama em que assenta a resposta neoliberal, nacional e europeia, às crises mais recentes (...) Mesmo com o alívio de algumas regras à escala europeia (eventualmente por dois anos, como no caso do limite de 3% do défice), estes países continuam a ser vigiados e pressionados com o objectivo de lhes impor disciplina orçamental, contenção das contas públicas e sustentabilidade da dívida pública (...) Portugal tem um dos planos mais frágeis da União Europeia para responder à crise pandémica. Chegando a esta crise como um dos países que já antes tinham maiores desigualdades socioeconómicas, não está obrigado a aceitar como inevitável que esta crise, muito assimétrica, fará explodir ainda mais as desigualdades. Mas é isso que acontecerá se não forem denunciados os condicionalismos orçamentais europeus que continuam a fazer-se sentir. E se não se decidir que, assim como há linhas vermelhas de alerta sanitário para confinamentos e desconfinamento, também tem de haver linhas vermelhas de alerta social que os impeçam ou possibilitem.

Sandra Monteiro, Acertar nas fracturas, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Março de 2021.

Para lá do empiricamente detalhado artigo de Eugénia Pires do Ladrões de Bicicletas sobre a irresponsável política orçamental do governo, destaco na componente portuguesa o artigo de António Rodrigues sobre os desafios dos cuidados primários de saúde no presente contexto. 

Este médico é um intelectual público do SNS naquilo que tem de mais próximo e eficaz. Médico de família durante décadas, cura e educa, numa visão que só pode ser abrangente porque é autónoma em relação ao nexo-dinheiro, estando focada nas necessidades. Lembrei-me neste contexto do início da segunda tese sobre Feuerbach de dois jovens com barbas: “A questão de saber se ao pensamento pertence a verdade objectiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática”.