quinta-feira, 18 de março de 2021

Pedinchice e bonsai


Duas páginas do mesmo jornal de hoje. 

É claro que a pandemia criou um problema transversal à economia do país. E como tal, deveria ser tratado, caso o Governo não a decidisse tratar como um bonsai - às pinguinhas. Relembre-se que as árvores bonsai não são regadas - são torturadas com falta de água para não crescerem. 

Esta tortura infligida ao país tem uma razão de ser. Primeiro, a famosa ajuda comunitária não foi ainda nem ajuda e muito menos comunitária. Apenas chegará lá para as calendas, mais de um ano depois de tudo ter começado. Depois, porque o Governo teme que a UE imponha inaceitavelmente a cada Estado condições economicamente sem senso, para que as suas dívidas públicas se encaminhem para os limites de Maastricht previstas no Tratado Orçamental que todos - mesmo os mais crentes - consideram não ter nexo económico. Mesmo sem nexo económico, a dívida é o veículo do poder. A trajectória será traçada caso sejam cumpridas certas políticas. Onde foi que já vimos isto? 

Por isso, o Governo adiou ajudas, contou os tostões, disse que contrataria mais pessoas para o Estado, mas só o fez passados muitos meses e em dimensão insuficiente; tinha um tecto de despesa pública aprovado pelo Parlamento para 2020 e, mesmo assim, conseguiu poupar. "Portugal não é a Alemanha", disse ontem no parlamento o ministro da Economia Siza Vieira. E é verdade. Mas o problema é que o Governo do PS deixa-se enredar - sem nada ter aprendido com a intervenção da troica - na lógica seguida pelo Governo PSD/CDS de que os défices se combatem com menor despesa pública. 

É verdade que essa despesa pública deve ser criteriosamente orientada para ter um efeito multiplicador na economia. Pagar às empresas os seus custos salariais e cortar nos salários dos trabalhadores (como foi feito no lay-off simplificado 1) é melhor forma de o efeito se esvazir entre os dedos. Pagar às empresas os seus custos salariais e não cortar nos salários dos trabalhadores (como é feito no lay-off simplificado 2) é melhor, mas tem um menor efeito. Pagar a grandes empresas e não aos seus trabalhadores, fora do lay-off, e ainda sem se traduzir essa ajuda em capital do Estado, é a forma directa de o apoio ir parar a dividendos e, economicamente, se desperdiçar. 

Que na altura de passar o cheque, alguém no Governo se lembre que houve muita gente sem apoios, muitos serviços públicos carentes de recursos, muitos meses em que centenas de milhares de trabalhadores viveram com os seus rendimentos cortados a um terço, muitas pessoas a morrer à espera de cuidados intensivos rarefeitos. E depois olhe-se para as caras dos senhores CEO. E a opção parece clara.

 

4 comentários:

Jose disse...

Será que são empresas nacionais que empregam 'população trabalhadora portuguesa'?

Anónimo disse...

"...a dívida é o veículo do poder."

É lapidar esta constatação, a dívida dos ricos foi transformada em dívida dos pobres isto é inultrapassável, não é possível qualquer construção colectiva justa que tenha por base esta imoralidade, as pessoas têm vergonha de si próprias mas infelizmente não é pelas melhores razões, muitos ainda vão a tempo de perceber a sua verdadeira indignidade.

Anónimo disse...

"Relembre-se que as árvores bonsai não são regadas - são torturadas com falta de água para não crescerem." Esta informação está errada. Acho que é sempre boa ideia ser cuidadoso com os exemplos usados, especialmente se sustentam, mesmo que de modo retórico, todo o texto.

Melhores cumprimentos

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,

Tem razão. De facto, não sou especialista em Bonsai e, por isso, a comparação pode não ser totalmente adaptada. A ideia que expressei ficou-me de uma exposição que vi há muitos anos sobre esse tipo de árvores onde havia explicações ilustradas como se fazia escoar a água para que não ficasse na terra ... em excesso. Também me recordo da forma como as raízes eram atadas para ter o efeito pretendido, o que - acho - teria a ver com a necessidade de contenção do espaço ocupado dado que Bonsai - penso - quer dizer "árvore em tabuleiro".

Se consultarmos rapidamente sites que aparecem numa busca despretenciosa, poderíamos encontrar formulações que, quando comparadas com as políticas economicas actuais, nos farão sorrir, embora seja um sorriso negro.

Por exemplo:

"Regue suas árvores quando o solo ficar um pouco seco"...

"Mantenha a observação das suas árvores individualmente, ao invés de regá-las numa rotina diária, até que saiba exatamente o que está fazendo."

"A água é um elemento essencial para cada planta. Se este elemento faltar, a planta é obrigada a ir buscar reservas a ela própria, e isso vai tirar-lhe as forças. Por outro lado, se este elemento estiver em excesso, o substrato acama-se, as raízes ficam abafadas e acabam por apodrecer, levando, irremediavelmente, a planta à morte"

"Para melhor compreender o processo, poderá, inicialmente, pesar o bonsai quando o substrato começa a secar. Este será o seu peso de referência. Regue abundantemente ( a água em excesso escorrerá pelo buracos de escoamento), e pese de novo. A diferença de peso corresponde ao volume de água que adicionou. De seguida, pese-o de dois em dois dias, observe a folhagem, apalpe a humidade do substrato com a ponta dos dedos."

etc., etc.

Não haverá comparações ideiais. Por isso, peço a sua compreensão para esta liberdade de linguagem. Afinal, ninguém compara um bonsai a um carvalho que cresce em floresta, livre