quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Quando é o nosso país


Desiludo-me mais quando é o meu país. A negligência, a desorganização, o abandono, os contrastes entre belo e feio, triste e alegre, pobre e menos pobre, que observo quando ando na estrada, ferem-me como não acontece se viajo em países distantes em que as falhas me podem suscitar curiosidade ou até mesmo emoção, mas não me interpelam directamente. Pergunto-me, inevitavelmente, o que posso fazer. Pergunto-me o que diz sobre mim o facto de amar esta paisagem. 

Palavras corajosas retiradas do último livro de não-ficção literária da autoria de Susana Moreira Marques, mais no espírito de Maria Lamas do que no espírito do tempo. Prolonga o argumento que escreveu e protagonizou para o maravilhoso documentário – Um nome para o que sou –, realizado por Marta Pessoa. 

É sobre a descoberta, por esse país afora, do que ficou de As Mulheres do meu País, mas também do muito que mudou desde aí: “Mas são talvez as tuas mãos vazias – os largos períodos de mãos vazias – a maior prova do progresso”. 

Um livro depurado, entre o melancólico e o esperançoso, que nos ajuda a pensar sobre as mãos visíveis e invisíveis das mulheres deste país.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Lembrete histórico-político



Já se nota o estilo inconfundível de Álvaro Cunhal no informe político ao primeiro congresso clandestino do PCP há oitenta anos, em 1943. Cunhal fez trinta trinta anos durante os dias que durou o congresso, como informa Pacheco Pereira na sua monumental biografia, cada vez mais empática, digamos, de volume para volume. 

Nas mais duras condições nacionais e internacionais, Cunhal fazia as distinções que se impunham. A política com p grande passa sempre por um esforço para fazer distinções moralmente justas e politicamente produtivas em conjunturas históricas bem concretas. 

Há método neste exercício necessário. E o método é o mais importante. Comunistas ou não, antifascistas certamente, permanece a obrigação de fidelidade a um método válido: Deus, Pátria, Família, Trabalho, nada, nem ninguém, do povo pode ser deixado aos velhos ou aos novos fascistas e muito menos apoucado, era o que mais faltava. A tarefa era, e é, precisamente a de agigantar, estimulando o que há de melhor num país irremediavelmente contraditório, como tudo o que está vivo e evolui. 

O trabalho intelectual e político unitário, uma frente nacional e popular, exige sempre humildade, incluindo disponibilidade para o “aprender, aprender, aprender sempre”, e um núcleo fundamental de convicções fortes, incluindo soberanistas, sem as quais não há estratégia e, logo, a tática não passa de pura perda de tempo.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Querido diário - Universidades de jovens calados

Público, 2023/8/28

Público, 2013/8/28

Várias leituras sobressaem destes dois cartoons separados por dez anos. A primeira, é que pouco mudou na cabeça do cartoonista quanto à forma como vê as "universidades de verão". Na verdade, trata-se de eventos sem relevo, uma forma de marcar a agenda mediática quando há pouco na agenda para marcar. E por isso os jovens que lá vão, também pouco têm a aprender. E pouco querem discutir.

Mas até parece que não há problemas juvenis bem reais, a discutir, nomeadamente com os convidados destas "universidades de verão", porque foram precisamente aqueles que estiveram na base das políticas que resultaram nos valores abaixo desenhados: 

Fonte: Dados estimados com base em Quadros de Pessoal (MTSSS); INE, IPC

Resumindo:

Vindima num “poema geológico”

O último livro que li sobre o Douro foi um raro romance de Miguel Torga, comprado no museu perto da sua aconchegante casa, agora aberta ao público, em São Martinho de Anta. Dali desce-se para o Douro e sobe-se depois para Penedono. 


Penedono fica a sul desta região e já é quase totalmente dominado pelo granito, pelo carvalho e pelo castanheiro, ao invés do xisto, da oliveira e da vinha, subitamente visíveis apenas na fronteira norte do mais pequeno concelho do distrito de Viseu, já quase no concelho vizinho de São João da Pesqueira, esse sim plenamente duriense. É o mais glorioso dos contrastes que conheço. 


Vou cada vez mais frequentemente ao Douro, olho para as paisagens de cortar a respiração, que passam a correr de comboio ou de carro, paro, ganho fôlego, caminho e vou tentando ver e saber o que se passa numa região com desigualdades tão cavadas como os seus vales, inscritas nos corpos dos que a fizeram e fazem, dos que lá vivem, trabalham e criam tudo o que ali tem valor, dos que escreveram o tal “poema geológico” de que falou Torga. 


Infelizmente, há jornalistas que por lá andam, mas que só olham para a classe dominante, como aqui já se denunciou. Isso é também visível em títulos recentes de dois jornais, que parecem refletir persistentes linhas editoriais de classe (como faz falta um jornalismo laboral): “Falta de trabalhadores perturba arranque da vindima no Douro” (Público) e “Falta de trabalhadores para a vindima é problema que se agrava no Douro” (DN). Proponho títulos mais rigorosos: falta de aumentos salariais perturba arranque da vindima no Douro e falta de salários decentes é problema que se agrava no Douro, por exemplo. 


A vindima tem lugar cada vez mais cedo: “o atípico está a tornar-se normal” por obra e desgraça das alterações climáticas, do capitaloceno. “Fim do mundo, fim do mês”, isto anda mesmo tudo ligado na economia tão moral quanto política.

domingo, 27 de agosto de 2023

A seguir


Conheceis o 7Margens, um jornal digital que tem “consciência de que a informação sobre o fenómeno religioso assim entendido constitui um importante instrumento a favor da paz, da justiça social, do conhecimento mútuo, da tolerância e da cooperação entre os mais diversos atores das nossas sociedades”? 

E, já agora, conheceis a terra da fraternidade, “um espaço independente e inclusivo de encontro e intervenção no âmbito religioso, alimentado por vozes de diferentes tradições e espiritualidades que lutam pelo progresso social”? 

 Creio que vale a pena conhecer e seguir.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Escutai e lutai


Através do jornal digital 7Margens, soube de uma boa notícia do Papa Francisco: “Estou a escrever uma segunda parte da [encíclica] ‘Laudato Si‘ para atualizar os problemas atuais”. Precisamos mesmo de escutar “o grito dos pobres e o grito da terra”, de cruzar “o fim do mundo e o fim do mês”, a mesma luta. Aguarda-se então com expetativa este desenvolvimento da economia moral de Francisco, com recorte anti-sistémico

Aproveito para deixar por aqui a minha ultima crónica no setenta e quatro:

“Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se.”

O conjunto das intervenções públicas do Papa Francisco nos dias que esteve em Portugal perfaz quase meia centena de páginas. Para lá do desatento mediatismo da entusiasmada Jornada Mundial da Juventude, vale a pena lê-las.

Escolhi este excerto porque reflete na perfeição o que julgo ser a economia moral de Francisco, vertida em várias Encíclicas: a provisão dos bens necessários à vida tem de ser a terra onde pode florescer um igualitarismo que se reflete primeira e ultimamente nas relações fraternas entre pessoas. A economia substantiva nunca é neutra: existe uma economia política neoliberal, “a economia que mata”, mas também existem alternativas que permitem o florescimento humano. A posição de Francisco é clara.

E destas páginas ficam a faltar as palavras que dirigiu no crucial encontro que teve com treze pessoas, vítimas de abusos por parte de membros do clero, onde terá escutado os testemunhos e pedido, uma vez mais, perdão, como foi relatado em pormenor pelo jornalista António Marujo no jornal digital Sete Margens. É abissal a diferença em relação ao “clericalismo” por si fustigado e que ainda domina a Igreja portuguesa, que nunca se dignou a semelhante encontro.

Sim, na economia moral de Francisco tudo está ligado e a verdade está mesmo na totalidade. As ligações ficaram patentes para quem quis verdadeiramente escutar o seu primeiro testemunho no Centro Cultural de Belém. Aí criticou uma Europa que aposta na corrida armamentista e na guerra, ao invés de defender o Estado social e a paz. Chamou também a atenção, uma vez mais, para o fenómeno da desigualdade económica – “o ambiente natural e o ambiente humano degradam-se em conjunto”, já tinha demonstrado na Carta Encíclica Laudato si’, de 2105, refletindo a melhor tradição da economia ecológica, a que sabe que os mecanismos de mercado por si só nos trancam em círculos viciosos.

Na sua intervenção na Universidade Católica Portuguesa (UCP), Francisco deu uma lição necessária: “À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos.”

Estas palavras foram ditas numa instituição de ensino rica, tão elitista quanto marcada pela influência da “economia que mata” e do pensamento neoconservador sempre belicista, patentes na sua Escola de Negócios e de Economia ou no seu Instituto de Estudos Políticos. Há, de resto, toda uma história de formação de Chicago Boys em Universidades ditas Católicas, que Francisco, sendo argentino, conhece bem. A página mais negra foi escrita, creio, em Santiago do Chile. A UCP teve a sorte de ter sido criada poucos anos antes de Abril, mas não deixou de contribuir para a hegemonia neoliberal em democracia.

A sua Reitora anunciou a boa notícia da criação de uma cátedra dedicada à “Economia de Francisco e de Clara”. No entanto, sabemos que não há nada menos fiel a este espírito do que uma instituição que tem, por exemplo, um “programa executivo de gestão do luxo”, portanto, um programa de promoção do consumo conspícuo, um dos justos alvos da economia moral de Francisco.

Na Carta Encíclica Fratelli Tutti, de 2020, entre tantos temas cruciais, Francisco fala de uma economia do cuidado, de “nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”, para logo a seguir identificar um obstáculo político de monta: “um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam de um ganho rápido”.  Aliás, estes poderes vivem do “descarte”, traduzido, por exemplo, na “obsessão por reduzir os custos laborais”: “sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alagar as fronteiras da pobreza”, afiança.

Este é um homem simples e direto, que se dirige a crentes e não-crentes, a todos, sem deixar de fazer distinções cruciais. Como já disse, é melhor ser-se ateu do que ir à missa e depois semear o ódio. Esta encarnação do cristianismo autêntico estava a pensar em políticos como André Ventura, certamente, nos vendilhões de todos os templos e de todos os tempos. Afinal de contas, Francisco já tinha defendido, em 2016, o seguinte:

“São os comunistas que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade em que os pobres, os débeis e os excluídos é que decidem. Não os demagogos, os Barrabás, mas o povo, os pobres, tenham fé em Deus ou não”.

Prudentemente, um dos Barrabás nacionais decidiu evitar Francisco, indo para a Madeira. A verdade assusta-o. Os testemunhos de Francisco, a sua economia moral, são sempre um excelente antídoto contra os novos rostos do fascismo gerados pelo neoliberalismo.

Até à próxima, Francisco.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Vespas e filmes


“Acabar com vespa-asiática em Portugal ‘vai ser impossível’: foram destruídos 17 mil ninhos em 2022”, noticia o Público, que tem acompanhado esta importante questão de segurança e de saúde públicas, incluindo para todos os que produzem e gostam de mel. 

Como assinalou Miguel Gomes no primeiro filme da triologia As Mil e Uma Noites, de 2014, a vespa-asiática surgiu em Portugal no mesmo ano da troika. Acabar com a herança da troika tem sido impossível por falta de instrumentos de política, anulados ou furtados pela integração. Há metáforas mesmo poderosas num filme poderoso cheio delas, um filme nacional-popular como poucos. 

Há uma tendência reacionária no cinema português, em que o homem é sempre o lobo do homem ou da mulher, visível em filmes como Restos do Vento, do mesmo realizador da tenebrosa série Glória. Pelo contrário, os filmes de Miguel Gomes revelam uma esperançosa simpatia pelo povo deste país.

E o PCP, continua a não entrar por quê?


Dei hoje com esta imagem do programa «Linhas Vermelhas», da SIC Notícias, que cumprirá em setembro dois anos de existência. Sendo a estética do programa já familiar, chamou-me à atenção a expectável substituição de Mariana Mortágua por Catarina Martins, em representação do BE. Mas também a estranheza de ver representado um partido que já não tem assento no parlamento (CDS-PP), quando outro, tendo assento parlamentar (e não sendo igualmente um partido recente), continua a não ter ninguém no programa (PCP).

Poder-se-á argumentar, é certo, que Cecília Meireles está em dupla representação. Isto é, não só a figurar em nome do moribundo CDS-PP mas também da Iniciativa Liberal (IL), uma vez que até integra a direção do seu stink tank, o +Liberdade. Seja como for, nada justifica a persistente subrepresentação do PCP nos espaços noticiosos (que contrasta com a sobrerepresentação do Chega), nem a sua sistemática exclusão dos espaços de comentário político, que enfraquece o pluralismo do debate. A menos que se trate, claro, de uma questão de intencionais «linhas vermelhas».

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Nada é socialista


Carmo Afonso tem toda a razão: o pacote Mais Habitação não é nada socialista, mas arrisca-se a ser considerado socialista, devido à mediatizada radicalização das direitas. 

O que explica esta radicalização, esta viragem para a direita na vida nacional? 

Em primeiro lugar, temos os efeitos materiais e ideológicos ainda por superar da troika e do seu governo. IL e Chega são filhos de Passos Coelho, afinal de contas.

Em segundo lugar, temos o efeito estrutural continuado da moeda única e do mercado único, bloqueando políticas de esquerda e favorecendo a deriva para a direita. 

Em terceiro lugar, temos o extremo-centrismo social-liberal do PS, que cria a necessidade de diferenciação por parte das direitas, sobretudo do PSD, cujas elites estão de resto contaminadas pelos liberais até dizer chega.

Em quarto lugar, temos os investimentos ideológicos crescentes de milionários, das televisões aos stink-tanks, criando um espaço público cada vez mais favorável a esta radicalização, até pela censura mediática das propostas da esquerda.

Em quinto lugar, temos os intelectuais de esquerda que se deixam condicionar por este contexto, fazendo propostas cada vez mais temerosas, até porque conformes ao constrangedor quadro europeu.

Em sexto lugar, e a meia dúzia de razões é sempre mais elegante, temos uma economia cada vez mais medíocre, assente no nexo estufas-turismo-construção, que produz uma burguesia que vive de salários baixos e que não quer ouvir falar de desmercadorização, seja do trabalho, seja da habitação.

Querido diário - As doses da austeridade

Público, 21/8/2013


Há dez anos, continuava-se a cortar, cortar, em nome dos efeitos positivos que se julgava nascerem desse esforço de austeridade

A intenção anunciada era reduzir o défice orçamental, porque desses esforço se atingiriam alguns fins, ainda que todos eles discutíveis: 1) reduzir o défice para reduzir a prazo a dívida pública (discutível porque se consegue reduzir mais a dívida pública, nomeadamente o seu peso no PIB, se houver um esforço articulado do Estado para a expansão da capacidade produtiva. Para isso, basta que a economia cresça mais do que a taxa de juro implícita no pagamento da dívida. Nota curiosa: este princípio torna ainda mais evidente os efeitos perversos das decisões do BCE em elevar as suas taxas de juro de referência (as economias tornam-se mais dependentes); 2) reduzir o défice orçamental para que o Estado liberte mais recursos para a esfera privada da sociedade (discutível porque, para reduzir o défice, é necessário - na verdade - retirar mais recursos da esfera privada, via impostos, ou reduzir a intervenção pública, o que corresponde a reduzir o rendimento implícito dos cidadãos, já que sem a despesa pública, os cidadãos terão de desembolsar mais do seu bolso.  

Na verdade, e como já o dissemos de outras vezes, as intenções não correspondem aos verdadeiros objetivos da teoria neoliberal subjacente a estas ideias. Na realidade, o objectivo é reduzir, desarticular, desfazer a provisão colectiva do Estado (mesmo que funcione bem) para que, interesseiramente, se tranforme num nicho de mercado, do qual alguém - poucos, muitos poucos, os donos das empresas fornecedoras desse novo produto privado - possam beneficiar do valor acrescentado que essa actividade propicia. E se essa provisão colectivo não for rentável, então o sector privado tudo fará para o que seja, mesmo que se se aumente os preços, contenham ou baixem os salários dos trabalhadores, se retraia a provisão - em amplitude ou em dimensão - antes fornecida colectivamente. 

O curioso é que, a meio dessa “aventura” interesseira, a realidade começou a fustigar os pressupostos da teoria. 

Mesmo a direcção do Público que, como se nota até esteve de acordo com a redução do défice orçamental, percebia há dez anos que, aliviando a austeridade e a política do “Choque e Pavor” que Passos Coelho e Paulo Portas empreenderam desde 2011, a economia começava a respirar. Porque “austeridade a mais” implicava uma @espiral recessiva”... que, segundo a direcção do Público - se manifestava na Grécia em todo o seu horror. O caso grego era visto então como uma antecipação do que poderia ainda vir a acontecer a Portugal.

Recorde-se que nesta altura, a "espiral recessiva" já se manifestava igualmente em Portugal e de forma bem expressiva. O INE iria contabilizar em 2013 quase 1,5 milhões de desempregados (em sentido lato), numa taxa de desemprego (em sentido lato) que rondaria os 25%! Mas o Público não os via. Apenas via a Grécia. E apenas a via as repercussões que a austeridade poderia ter na actividade dos nossos “empresários” e no nível de consumo dos nossos "consumidores". Como se a sociedade se dividisse nesses dois grupos: os que produzem (os donos das empresas) e os que consomem (todos).

É interessante verificar como a comunicação social absorve - tão facilmente - o ponto de vista dominante, precisamente aquele que se coloca nos sapatos dos empresários e que oblitera sempre da equação do pensamento a forma como o rendimento se reparte numa sociedade. E como se reparte, na maior parte das vezes, de forma desigual. 


terça-feira, 22 de agosto de 2023

A questão


Em Fevereiro, o governo anunciou um pacote de medidas para enfrentar uma crise habitacional que, não sendo nova, assumiu proporções verdadeiramente catastróficas. Os partidos da direita neoliberal, que não podem limitar-se a saudar, por estratégia de oposição, os incentivos fiscais e estímulos à iniciativa privada que o pacote contém, inventaram um suposto «ataque ao direito de propriedade» para desviar as atenções do essencial: o investimento especulativo no imobiliário é a causa do problema e impede o direito à função social da habitação.

Marcelo tem razão: este programa não resolve a nova questão da habitação. Mas as suas razões são sonsas ou mesmo equivocadas, dado que têm por alvo uma medida útil, a do arrendamento dito coercivo. No meio da ofuscação deliberada, sabemos quais são as suas preferências. Querem conhecer as razões para as insuficiências deste programa? Sugiro que leiam a economia mesmo política da habitação.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

O porno-riquismo tem mandamentos

A promoção do consumo conspícuo na era das desigualdades pornográficas nestas duas revistas semanais é sazonal como os incêndios. O porno-riquismo também tem custos sociais de monta. Os benefícios são privados e incluem umas experiências gratuitas para um ou outro jornalista. 

O porno-riquismo tem “mandamentos” e tudo, informa pecaminosamente a Sábado: “Mandamento número 1: nunca dizer não” aos pedidos dos ricos. Diz que é “difícil surpreendê-los e a hotelaria de luxo não se poupa a esforços para consegui-lo ‘dentro da legalidade’, frisam”. Este frisam é todo um programa num contexto em que o dinheiro é a lei. 

Não é por acaso que há cada vez mais investigação sobre os abusos e patologias associados à riqueza extrema.

domingo, 20 de agosto de 2023

Nacionalismo de esquerda


Através de Pedro Pinheiro, fiquei a saber que ontem se assinalaram os setenta anos do golpe, orquestrado pelos serviços secretos britânicos e norte-americanos, que derrubou o governo democrático de um nacionalista de esquerda chamado Mohammed Mossadegh no Irão. A nacionalização da companhia petrolífera anglo-iraniana foi o pecado mortal. 

Do Irão de Mossadegh à Bolívia de Morales, passando pelo Chile de Allende, o nacionalismo de esquerda foi sempre o inimigo principal do imperialismo. Afinal de contas, é portador das formas mais consequentes de autodeterminação coletiva. 

E o nacionalismo de esquerda, note grande parte da esquerda europeia desmemoriada pelo europeísmo, permitiu também as formas mais consequentes de internacionalismo. O projeto político do Terceiro Mundo foi a sua melhor expressão, como assinalou o historiador Vijay Prashad: de Bandung ao projeto da Nova Ordem Económica Internacional, aprovado pela Assembleia-Geral da ONU em 1974. Esta última previa precisamente o direito ao controlo nacional dos recursos e sectores estratégicos. Por um momento, como assinalou o historiador Mark Mazower, “os EUA estiveram na oposição”.    

Enfim, não gosto da moda dos testes políticos, mas não lhes consigo resistir. O último que fiz foi o dos valores de esquerda. E, sim, corresponde - “Correspondência mais próxima: Nacionalismo de esquerda. O nacionalismo de esquerda é uma ideologia que mistura economia de esquerda com patriotismo e nacionalismo não-xenofóbico. Muitos nacionalistas de esquerda apoiam simultaneamente a solidariedade internacional e podem apoiar a luta armada.”

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Querido diário - Lições do Pontal

Público, 17/8/2013

Há dez anos, Pedro Passos Coelho foi à festa do Pontal para, aliviando-se “de um emaranhado de frases sem ordem, sem clareza e sem gramática” (Vasco Pulido Valente dixit, Público, 18/8/2013), pressionar o Tribunal Constitucional. 

“Qualquer decisão constitucional não afectará simplesmente o Governo. Afectará o país. Esses riscos existem, eu tenho que ser transparente. Se esse risco se concretizar [o TC declarar a requalificação inconstitucional] alguns dos objectivos terão que andar para trás.” 

Em causa, estavam diplomas para a requalificação/despedimento dos funcionários públicos e a perspectiva seria - como se imagina - não uma expansão do funcionalismo, com vista à prestação de melhores serviços públicos, mas a sua contracção - mesmo sem qualquer reforma do Estado (que Paulo Portas não conseguira mostrar) - visando apenas a estrita redução do défice orçamental. 

Interessante verificar que, dez anos passados, o PSD - desta vez chefiados pelo então líder da bancada parlamentar de Passos Coelho - tenha gritado, na mesma festa do Pontal, contra os maus serviços públicos prestados apesar da dita elevada carga fiscal. Só faltou Montenegro defender - e imagina-se por que não o fez - que essa melhoria seria conseguida com uma redução do número de funcionários públicos. Não, o discurso agora é outro. Visa reduzir a carga fiscal, para se obter uma menor arrecadação de impostos que, por sua vez, levará a prazo... a uma redução da Função Pública. 

Há dez anos e apesar dos abraços da praxe no local, Passos Coelho não convenceu. Eis o editorial do Público de há dez anos que reflecte essa descrença em Passos Coelho.

Público, 18/8/2013

E não convenceu, primeiro, porque trazia consigo um historial de incongruências e de previsões falhadas. Não por qualquer erro técnico, mas fruto de um grave erro teórico-político: o de pensar que a austeridade teria um efeito positivo e rendentor na actividade económica. 

Público, 17/8/2013

Depois, porque o discurso de Passos Coelho reflecte a cabeça perdida de alguém que, apesar de ter cometido esse grave erro, cegamente, nem se apercebe que o cometeu. No fundo, não se apercebeu do hiato que vai entre uma teoria económica neoliberal montada com um fim - o da concentração da riqueza em alguns - e o discurso político subjacente - o de conseguir-se a prosperidade para todos (como se a riqueza de alguns transbordasse, a prazo, para a prosperidade de todos). 

Aliás, tal como hoje: não bate certo o programa político da coligação PSD/CDS que sempre visou uma desvalorização salarial - aliás, conseguida! - com o atual discurso da direita e da extrema-direita que, face à realidade de baixos salários, chora e defende uma valorização salarial (embora apenas à custa do Estado). Tal como não bate certo o discurso político do PS que, contraditoriamente, mantém o edifício institucional criado pela direita para conseguir uma desvalorização salarial e, simultanemaente, defende como exaltante uma leve subida do peso dos salários no PIB, num contexto de elevada inflação não compensada por uma subida salarial, a qual redundou numa  transferência do Trabalho para o Capital superior à aplicada por Passos Coelho e Paulo Portas no tempo da troica (imprescindível ler aqui o caderno nº18, de Diogo Martins e Vicente Ferreira). 

É essa incongruência que talvez explique a atravessia no deserto da direita portuguesa, durante quase dez anos. Talvez seja um aviso para o actual PS. E para o seu eleitorado. E para todos nós. 


A economia moral de Francisco


“Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se.” 

O conjunto das intervenções públicas do Papa Francisco nos dias que esteve em Portugal perfaz quase meia centena de páginas. Para lá do desatento mediatismo da entusiasmada Jornada Mundial da Juventude, vale a pena lê-las. 

Escolhi este excerto porque reflete na perfeição o que julgo ser a economia moral de Francisco, vertida em várias Encíclicas: a provisão dos bens necessários à vida tem de ser a terra onde pode florescer um igualitarismo que se reflete primeira e ultimamente nas relações fraternas entre pessoas. A economia substantiva nunca é neutra: existe uma economia política neoliberal, “a economia que mata”, mas também existem alternativas que permitem o florescimento humano. A posição de Francisco é clara.

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Nunca se esqueçam


A excelente Jacobin Brasil lembrava ontem os 204 anos do massacre de Peterloo na Manchester da primeira revolução industrial, quando a cavalaria carregou sobre dezenas de milhares de trabalhadores reunidos para exigir o sufrágio universal, que só começou a chegar um século depois e à sombra da Revolução de Outubro. Em 1819, só 2% da população podia votar.

Nunca se esqueçam: a conquista da democracia foi obra da classe trabalhadora, contra o que o grande Domenico Losurdo designou por “cláusulas de exclusão macroscópicas” do liberalismo realmente existente, as de classe, género e raciais/coloniais. 

Nunca se esqueçam: as pesadas derrotas sofridas pela classe trabalhadora desde os anos 1980, impostas pela reação neoliberal, são indissociáveis dos regimes tão pós-democráticos quanto oligárquicos em construção. 

Nunca se esqueçam: contra os desmemoriados da “democracia liberal”, que se dizem de esquerda e tudo, a democracia pressupôs a superação do liberalismo histórico e pressupõe hoje a superação do seu sucessor neoliberal. 

Nunca se esqueçam: só a classe trabalhadora organizada poderá garantir a “conquista da democracia pela luta”, na certeira fórmula de 1848, forjada por dois jovens democratas chamados Karl Marx e Friedrich Engels.

Haja memória e história.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

A contra-reforma fiscal e social


O PSD apresentou, na sua festa do Pontal, um conjunto de propostas fiscais que fazem parte - avisa o partido - de "uma reforma fiscal profunda" que "melhore a sua equidade" no sistema. Mas a versão anunciada não faz muito pela equidade (muito pelo contrário) e, nalguns aspectos, representa um pé-na-porta para uma contra-reforma inconstitucional. 

O PS respondeu bem à proposta do PSD: 1) é incoerente (o PSD quis primeiro baixar o IRC e só depois o IRS, agora quer o contrário); 2) é regressiva (dá mais dinheiro a quem mais recebe); 3) é “profundamente enganadora” para os jovens (ao propor uma taxa de 15%, dá mais dinheiro a quem mais recebe); 4) Não responde estruturalmente aos desafios da produtividade: desvia salários para prémios e a produtividade não se resolve com prémios salariais; 5) prejudica a carreira contributiva dos trabalhadores e reduz, a prazo, apoios sociais (ao isentar os prémios de TSU); 6) agrava a desigualdade (dá mais dinheiro aos CEO de empresas do que aos jovens que recebem um salários médio); 7) limita a acção do Estado ao reduzir a receita fiscal. 

Mas o PS acaba por omitir - tanto quando o PSD - os problemas de base. E tal como o PSD, esquiva-se a um diagnóstico e a uma verdadeira terapia.

Falso Diagnóstico

Há muito que o PSD confunde observação com diagnóstico. Apenas apresenta indicadores do empobrecimento dos trabalhadores e do país, da subida da emigração dos jovens, da baixa produtividade nacional. Mas não dá alguma explicação, não defende uma tese ou ideia sobre a causa. Apenas conclui que há uma elevada carga fiscal (misturando impostos com contribuições sociais, ou seja, alinhando visivelmente com o ponto de vista dos grandes empresários...) e zás! Conclui que essa é a raiz dos males no país. Por acaso político, esse é o mesmo falso “diagnóstico” que a extrema-direita faz. 

É enganador: mostra gráficos da subida abrupta lá em 2011/2013... e omite que essa subida foi aprovada pelo PSD/CDS, quando as suas ideias de corte nos vencimentos da Função Pública foi chumbada pelo Tribunal Constitucinal; e a de corte de 7% nos salários - pelo aumento da TSU dos trabalhadores (de 11% para 18%) e redução da patroal (de 23,75 para 18%) - foi chumbada nas ruas. Ou seja, escamoteia - tanto como o PS - as políticas que conduziram a uma pronunciada desvalorização salarial.

É duplamente enganador, porque é ineficaz: é um pobre diagnóstico que deixa de lado o que é estrutural, o que tem efectivamente gerado o empobrecimento nacional. Ou seja, a aposta nacional em sectores de actividade de baixo valor acrescentado (em que assenta a "indústria" do turismo), de baixos salários, que explicam a crescente emigração de jovens qualificados e o progressivo recurso a imigrantes, à medida que já não é possível baixar mais os salários médios nacionais. E enquanto isso não mudar, o afunilamento económico de Portugal não se alterará, por muito que dêem dinheiros aos empresários.

Ou seja, o PSD - e o PS caminha no mesmo sentido - insiste numa tese, que revela o que há de pior na Política: aposta em medidas fáceis e ineficázes - reduzir impostos - mantendo os défices estruturais e, ao mesmo tempo, retirando meios ao Estado, para que possa intervir na sociedade, incapacitando-o ainda mais de se dotar de melhores serviços públicos e de ter um papel na verdadeira mudança do país. 

 Terapêutica em contra-reforma

Para não parar neste querido mês de Agosto


Camarada eu ‘tou na estrada!
(Morreram muitos)
Pra’ escapar às tuas garras
(Mineiros vê lá)
Que me prendem e amarram
(Companheiro vê lá)
Ai eu nem te digo nada
(Como venho eu)


‘Tou a partir-me todo pa virar um bom partido
Tou a subir salários nem me juntei ao partido
Sinto os algoritmos a soprar a favor de mim
Se eu fizer o pedido eu acho que vai ser um sim

É impressão minha ou as canções de Pedro Mafama contêm dentro delas um povo, uma potência plebeia, amorosa e contagiante, que anda por aí e de que precisamos como de pão para a boca, até para contrariar o pessimismo militante e paralisante que grassa? 

Já não tinha uma sensação destas desde que ouvi pela primeira vez A garota não, um outro registo bem sei, mas a mesma vontade de cantar e de assim dar a ver. Tal como fez, numa outra arte, a sétima, Miguel Gomes, o realizador do meu filme português favorito, que vejo todos os anos no mês mais português, o da reunião assim eternizada, mas também o da separação saudosa. 

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Livros de ladrões - não são um slogan


Este livro teve uma gestação longa, iniciada com quatro palestras que proferi na Culturgest (Lisboa) em 2014, com o mesmo título. Na realidade, fui escrevendo, sozinho e com outros, ao longo destes anos sobre a teoria prática neoliberal. O meu contributo, de 2022, para a série livros de ladrões na última década.

A economia de férias

 

Na última semana, a chegada de mais de 1 milhão de pessoas para as Jornadas Mundiais da Juventude captou a atenção do país. No entanto, apesar da dimensão do evento, este não é o único número notável sobre o afluxo de visitantes a Lisboa e a Portugal. Numa entrevista recente, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Carlos Moedas, disse que a cidade deveria registar um número recorde de 19 milhões de estadias até ao final do ano, bem acima dos valores pré-pandemia.

Apesar disso, Moedas garantiu que “ainda estamos muito longe do sobre-turismo”, ou turismo a mais, e defendeu que “devemos continuar a apostar” neste setor. O presidente da CML preferiu focar-se na “recuperação absolutamente extraordinária” das atividades turísticas após a pandemia e na sua importância para a economia nacional: “O turismo representa 20% da economia de Lisboa. O turismo é emprego.”

O que Moedas não abordou foi o tipo de emprego de que estamos a falar. Embora o turismo e os serviços associados sejam as atividades que mais têm crescido em Portugal e as receitas atinjam recordes sucessivos, as empresas continuam a pagar dos salários mais baixos do país. De acordo com os dados do INE, o setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo entre os vinte setores considerados no país. O turismo representa emprego essencialmente precário e mal pago.

Além disso, o enorme crescimento deste setor tem outros efeitos consideráveis no país. Curiosamente, as declarações de Moedas surgem na mesma semana em que o The Guardian publicou um texto sobre a crise da habitação em Portugal. O jornal britânico dá conta de que “a recuperação económica de Portugal, alimentada pela desregulamentação e por uma série de esquemas destinados a atrair o investimento estrangeiro, distorceu o mercado imobiliário de forma irreconhecível”, listando entre os motivos a liberalização do mercado de arrendamento, os esquemas de vistos gold e os benefícios fiscais para residentes não-habituais e nómadas digitais endinheirados, que lhes permitem pagar bem menos impostos que cidadãos nacionais em iguais circunstâncias.

O turismo desempenhou um papel importante na bolha imobiliária, através da recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa. Como notou Nuno Serra, nos últimos anos, cerca de uma em cada cinco casas em Lisboa foi adquirida ou arrendada por estrangeiros e esse número é bastante superior no centro da cidade, sendo que se trata de “uma procura que se diferencia pela sua maior capacidade financeira e que é potencialmente inesgotável”. Não é difícil adivinhar as dificuldades sociais associadas a este fenómeno num país de salários estagnados: entre 2012 e 2022, o preço das casas em Portugal subiu 120%, enquanto o rendimento médio das famílias subiu apenas 27% (dados do INE, aqui e aqui).

O excessivo peso do turismo e dos serviços associados tem ainda impactos negativos sobre o conjunto da economia portuguesa. Tratam-se de atividades de baixo valor acrescentado, caracterizadas por fraca incorporação de conhecimento e tecnologia e, por isso, têm baixo potencial produtivo, contribuindo para a estagnação da economia portuguesa nos últimos vinte anos. Aparentemente, nem o governo nem os que se queixam de estarmos a ser “ultrapassados” pelas economias do Leste europeu veem problemas neste processo e no que resulta dele: um modelo de crescimento frágil e manifestamente desigual.

Portugal tornou-se numa economia de férias enquanto boa parte das pessoas que vivem no país se vê forçada a gastar menos nas suas próprias férias (ou a abdicar destas). Inverter a dependência do turismo requer medidas abrangentes por parte do Estado, tanto do ponto de vista da contenção dos fluxos turísticos atuais como do investimento e da promoção de outros setores de atividade no país. Por outras palavras, requer um projeto de desenvolvimento que não se resigne à ideia de que o Estado deve deixar as decisões de investimento entregues ao mercado.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Livros de ladrões - força de e do trabalho

José Castro Caldas já não escreve há alguns anos no blogue, mas este blogue não existiria sem ele, até pelo papel na formação de muitos dos que continuamos a escrever. E não se esquecem séries como Mercado e Estado (I, II, III, IV, V e VI). Depois do quarteto de Ana Cordeiro Santos, mais um quarteto, então. 


Em 2017, este livro coloca uma série de boas questões, por exemplo: “Como são geridos os conflitos entre valores (incomensuráveis) nos processos de tomada de decisão pública? Como tornar mais inteligentes e democráticos os processos de tomada de decisão pública a respeito de grandes projetos?”. E fornece pistas importantes de resposta para lá da míope análise custo-benefício, que também foi escrutinada por dois discípulos seus. 


Ainda em 2017, este livro sistematiza o melhor conhecimento crítico sobre o “retrocesso evitável” nas relações sociais onde tudo se decide: a nossa economia política é mesmo o trabalho. 


Em 2020, em plena pandemia, este ebook, disponível gratuitamente, faz uma primeira avaliação das suas consequências socioeconómicas desiguais, confirmando de resto que a colaboração entre economistas e sociólogos é absolutamente indispensável. 


Finalmente, em 2023, este livro, mais um encontro entre a sociologia e a economia, confirma que à desvalorização interna da troika se seguiu a desvalorização real da força de trabalho. Neste quadro institucional, quem cria tudo o que tem valor funciona como variável de ajustamento. Não tem de ser assim. O desafio, como sempre, está na alteração do quadro institucional. Propostas não faltam. Falta é força do trabalho.

É tão simples


“Portugal perde em apenas dois anos quase todo o alívio de juros do pós-troika”, informa Luís Reis Ribeiro no DN. O que BCE dá, o BCE tira: é tão simples que a mente pode bloquear e deixar-se enredar em fraudes austeritárias, da “credibilidade” à “confiança dos mercados”. De resto, estar dependente de um banco central supranacional, controlado pelo capital financeiro do centro, é o problema da nossa democracia.

Revista Manifesto nº 7 - Apresentação em Tavira


Publicado recentemente, o nº 7 da Revista Manifesto, com um dossier dedicado à questão da Guerra, será apresentado no próximo dia 18 de agosto, sexta-feira, a partir das 22h00, na Casa das Artes de Tavira (Rua João Vaz Corte Real, nº 96). As intervenções iniciais estão a cargo de Diogo Martins e Nuno Serra, seguindo-se um período de debate.

Esta edição da revista, disponível em várias papelarias e livrarias, pode ser adquirida aqui. Excertos do editorial deste número e a lista de artigos estão também acessíveis na página da Fórum Manifesto.

domingo, 13 de agosto de 2023

Cada vez mais ricos, cada vez mais à vontade...

Já nem há vergonha. 

As imobiliárias vendem cada vez mais a ideia de que “nós, os ricos, os cada vez mais ricos, estamos para ficar”, pressupondo-se o esquecimento social do que se passa com os "outros": “os pobres, os trabalhadores pobres, que morram atirados para a sarjeta”. O site idealista divulgou, nos seus mails promocionais, uma entrevista ao venezuelano Federico Rosales, sócio do italiano Filippo Buffa. As declarações são tão cruas que se tornam interessantes da sua visão do que se passa. Começa assim a introdução:

Se há segmento no imobiliário que já mostrou ser resiliente a crises é o residencial de luxo. E nem a pandemia ou os efeitos da guerra na Ucrânia - um aumento brutal dos custos da energia e da taxa de inflação que forçou [!] o Banco Central Europeu (BCE) a subir as taxas de juro diretoras -, parecem estar a deixar marcas neste nicho de mercado em Portugal. Pelo contrário. [tudo como se fosse uma coisa boa... Que descaramento, mas real].

E vem a voz do investidor...

“Teremos um projeto de ultra-ultraluxo, não apenas de ultraluxo (…). É um mercado que tem procura em Portugal”. "Não costumamos falar disso, mas a verdade é que vendemos a penthouse (...) por um valor superior ao pago por Ronaldo: por 16.800 euros/m2. E vendemo-lo por videochamada. (...) Há portugueses que compram para arrendar, norte-americanos que compram por uma questão de investimento e trazem depois outros norte-americanos. Gostamos muito dos clientes norte-americanos, porque são muito honestos com os preços. Mas também temos famílias de portugueses que compram para viver. Os franceses também compram muito por uma questão de investimento. 

Os cidadãos dos EUA são os principais clientes? 

São os melhores pagadores e são dos principais players. Como os brasileiros. A qualidade dos clientes brasileiros melhorou, agora são mais justos com os preços. Diria que os nossos principais clientes são brasileiros, norte-americanos, portugueses e depois investidores nórdicos. (...) O nosso ADN é residencial de luxo e ultra-ultraluxo. Em Portugal há mercado para todos os segmentos, creio que não é o facto de haver escassa oferta, mas sim alta procura. [Claro porque o mercado foi deixado à solta desde a lei Cristas (PSD/CDS), não devidamente alterada pelos governos PS] (...) Já não investimos [em Espanha]; a aposta agora é Portugal e é uma aposta mais a longo prazo. Os fundamentals de Portugal estão mais de acordo com a nossa filosofia. [Temos notado!] (...) Já não é como em 2017 (...), que se pensava: “E se”. Já não é assim, já chegaram os investidores, já regressaram os portugueses que estavam no estrangeiro [ah pois! Quem serão eles? Porque estavam no estrangeiro e voltaram? Serão aqueles que beneficiaram da amnistia fiscal dada pelo PSD/CDS em 2012?]. Ou seja, já não é pensar que Portugal pode ser uma aposta, mas sim que Portugal é uma aposta. (...) Gostamos muito do Porto. É uma cidade que tem um potencial brutal, [Cuidado, Porto...] mas estamos muito focados em Lisboa. [Por que será?] Ainda há muito para fazer [Imagine-se o que ainda virá!]. Acreditamos que acrescentamos mais valor aqui, não estando tão dispersos. E, na verdade, o interior do país está já aqui ao lado [O interior que se cuide... e os trabalhadres que se ponham a pau porque não vai sobrar nada para eles]. A mensagem que quero deixar é que o desenvolvimento imobiliário em Portugal não é uma dúvida, mas sim uma realidade. O país está a crescer e assim vai continuar.

Assim! 

Portugal que - segundo os jornalistas das televisões - esteve no centro do mundo com as Jornadas Mundiais da Juventude - está no centro do investimento imobiliário de luxo - do ultra-ultra luxo - na mesma altura em que se sabe que a juventude não pode sair de casa dos pais antes dos ... 34 anos.

Mais interessante: isto já dura há bastante tempo. Em 2011, escrevia-se no Público: Mais de metade da geração 18-28 adia a saída da casa dos pais por não ter condições para o fazer. 

E vai continuar a fazê-lo porque para quem manda neste país - e como disse Augusto Santos Silva, em democracia, “os bancos não obedecem ao Governo” - há duas certezas: o mercado deve ser estimulado, para gerar procura de investidores, e a retribuição salarial deve ser mantida baixa para que a oferta possa ser competitiva. No caminho, os trabalhadores, os jovens trabalhadores, terão de amochar diante da subida dos preços de luxo, de ultra-luxo, do ultra-ultra-luxo das casas e dos lucros seus promotores. E ainda por cima, tributados com taxas fiscais bem abaixo das praticadas aos trabalhadores. 

Englobe-se os rendimentos, aplique-se as mesmas taxas fiscais a todos os tipos de rendimento, resista-se aos gritos dos ultra-neoliberais no Parlamento que apenas ecoam os do BCE, da Comissão Europeia, no fundo em defesa do sector financeiro e dos mais poderosos; e veremos se o mercado não estabiliza.  

 

Livros de ladrões - com todos


Os economistas no sentido em que eu os trato são uma espécie de núncios e arautos dos mercados. Escrevi uma crónica contra esses economistas, os que em geral têm acesso às televisões. Não são todos. Eu frequento um blogue de economistas que se chama Ladrões de Bicicletas, em que se fala de outra forma. Curiosamente, o título não remete para a economia, mas para a arte e o cinema. Não sou tão insano que não saiba que as realidades económicas existem, o que me parece é que lá por serem realidade não são necessariamente verdadeiras. 

O mais importante reconhecimento que este blogue teve foi da responsabilidade de um poeta e cronista e tudo chamado Manuel António Pina, infelizmente já falecido. A Poesia Vai Acabar: 

A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não 
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum 
poeta por este senhor?» E a pergunta 
afligiu-me tanto por dentro e por 
fora da cabeça que tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
 — Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? — 

E a economia? Foi com Manuel António Pina que começámos a introdução deste livro, com um título que hoje soa franciscano, publicado em 2017 para assinalar os dez anos do blogue. 

Este livro não podia deixar de fazer parte da série os livros dos ladrões na última década. De resto, cada um teve aí a liberdade de escrever um capítulo sobre um tema de economia política que lhe interessasse, procurando ser fiel ao primeiro texto no blogue, publicado em 2007: 

 “Pleno emprego, serviços públicos, redistribuição da riqueza e do rendimento, controlo democrático da economia fazem parte do caminho que queremos percorrer.”

sábado, 12 de agosto de 2023

Livros de ladrões - do endividamento à habitação

Depois do trio de livros de Ricardo Paes Mamede, a série continua, agora com um quarteto de livros de Ana Cordeiro Santos.


Em 2015, este livro deu conta das razões para o brutal aumento do endividamento das famílias portuguesas nas últimas décadas, na esmagadora maioria dos casos para aquisição de habitação própria, inscrevendo este processo institucional num fenómeno mais geral: no sentido de internacional, comum aos países capitalistas desenvolvidos, e no sentido da crescente imbricação de vários actores da economia com a finança, sendo que esta tem peculiaridades nacionais. Está tudo nos balanços insuflados. 


Em 2016, este livro identificou algumas das especificidades nacionais do fenómeno da financeirização do capitalismo em Portugal, considerando que este é indissociável da europeização da economia política, culminando no euro. Daí à desfinanceirização, implicando uma ruptura de fundo, é só um passo que demos na proposta.


Em 2019, este livro, com um título inspirado no clássico de Friedrich Engels, fixou coletivamente os principais contornos de um sistema de provisão crucial e que muitos julgavam politicamente resolvido por via de políticas neoliberais. Estavam errados.


Finalmente, em 2021, Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles coordenam esta obra em inglês, que conta com a participação de outros bicycle thieves, assinalando a capacidade de dar a ver criticamente esta periferia, contribuindo para uma literatura de economia política internacional em franco crescimento. 

Para quem queira ler artigos, e para lá dos publicados em revistas académicas internacionais ou no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, assinalo dois em português, publicados na Análise Social, sobre a lógica neoliberal subjacente à promoção da literacia financeira e sobre as dinâmicas financeirizadas da habitação em Lisboa e no Porto. 

Ana Cordeiro Santos, independentemente das audiências, tem sempre a mesma escrita clara e depurada, traço que, de resto, os escritos de Paes Mamede também têm.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Querido diário - Em democracia, “os bancos não obedecem ao Governo”?

Página do 1º Governo Costa
Há dias, foi notícia que a Venezuela anunciou ter recuperado mil milhões de euros retidos no Novo Banco. O take da Lusa, citado na notícia, fazia o background: 

O Governo venezuelano anunciou esta quarta-feira o desbloqueio de 1.5 mil milhões de dólares (1.3 mil milhões de euros) que estavam retidos em Portugal em contas de instituições e empresas venezuelanas no Novo Banco. (...) Os fundos que a Venezuela afirma que vão ser desbloqueados foram retidos depois de, em Janeiro de 2019, o líder opositor Juan Guaidó declarar publicamente que assumiria as funções de Presidente interino da Venezuela, até afastar Nicolás Maduro do poder. Guaidó foi apoiado por mais de 50 países, entre os quais Portugal. (...) A 4 de Fevereiro de 2019, a Comissão de Finanças do Parlamento da Venezuela, maioritariamente da oposição, pediu a Guaidó que protegesse os activos da Venezuela em Portugal. “Fizemos chegar (…) a informação sobre as contas nas quais se encontram os activos do Estado venezuelano em Portugal, para pedir perante o Novo Banco e o Governo [português] a protecção dos activos da Venezuela nesse país”, anunciou então a comissão. Um dia depois, Carlos Paparoni anunciou que o Novo Banco suspendeu uma transferência de fundos do Estado venezuelano, de 1.200 milhões de dólares (1.050 mil milhões de euros), que tinham como destino o banco Bandes do Paraguai. Em Abril de 2019, o Presidente Nicolás Maduro exortou o Governo português a desbloquear os activos do Estado venezuelano retidos no Novo Banco, alegando que os fundos seriam usados para comprar "medicamentos e alimentos". (...) A 3 de Maio de 2019, 19 organizações de defesa dos direitos humanos e movimentos sociais venezuelanos foram até à sede da Embaixada de Portugal em Caracas para pedir o desbloqueio dos fundos. Num comunicado enviado à Agência Lusa, o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela explicou que foi entregue “uma carta onde solicitam os bons ofícios do Governo português para que sejam desbloqueados 1.543 milhões de euros que foram ilegalmente retidos”. Segundo o comunicado, a representação diplomática portuguesa mostrou-se “aberta à solicitação e manifestou a disposição de tramitar o requerimento”.

Agora vem, a parte interessante: 

A 14 de Maio de 2019, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, afirmou à imprensa em Bruxelas que Portugal é “um Estado de Direito, uma democracia política e uma economia de mercado” e, portanto, “os bancos não obedecem ao Governo. Santos Silva disse ter conhecimento do “diferendo entre um banco português e os seus depositantes” e que esse diferendo, como é “natural num Estado de Direito”, está já colocado em sede legal e judicial.

É assim que pensa a direita do PS. E já há muito tempo. Pelo menos, desde 1989, quando aceitou rever a Constituição com Cavaco Silva. 

Em Fevereiro de 2021, a ONU pediu aos Governos e bancos, incluindo de Portugal, que descongelem os activos venezuelanos que se encontram retidos, para permitir que a Venezuela atenda as necessidades humanitárias da sua população. 

Debalde. O caso, pelos vistos, ainda corre nos tribunais. 

A verdade pode não tardar. A vergonha alheia é que é eterna.