segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O estado da doença


É sabido que, certa retórica liberal à parte, os capitalismos realmente existentes nunca prescindiram dos Estados. Nem doses cavalares de ideologia obscurecem hoje a crescente dependência. A questão então nunca é intervir ou não intervir, mas sim que interesses e que valores são protegidos pela inevitável intervenção pública. 

Isto é particularmente visível na área da saúde, uma das que mais está fadada a crescer: sem Estado não existe o igualitário SNS, mas também não existe o desigual capitalismo da doença que o corrói. Como assinalou Isabel Vaz, quando estava no BES-Saúde, melhor negócio por sinal só a indústria de armamento. 

Os interesses capitalistas da doença têm estado bem sentados à mesa do orçamento, em modo bloco central: lembrem-se, por exemplo, que o actual líder da associação dos hospitais ditos privados é Óscar Gaspar, antigo dirigente do PS. 

Como sublinhou recentemente Manuel Esteves no Negócios: “Dos 12.444,4 milhões de euros transferidos pelas administrações públicas para a prestação de cuidados de saúde em 2018, 41% dizem respeito a entidades privadas (...) num setor especial como a saúde, a faturação dos prestadores de cuidados de saúde privados depende muito do financiamento público. Estes 41% do ‘orçamento’ público da saúde asseguram 47% da faturação dos prestadores privados.”

domingo, 30 de agosto de 2020

Cicuta moderada

"Entretanto, indignemo-nos com moderação", pede a Teresa de Sousa (T de S, como faz questão de ser siglada), jornalista do Público, num artigo publicado no seu jornal.

O texto é um apelo a que a sociedade não se radicalize. Um apelo a que a comunicação social - que grita sempre mais alto que o seu "adversário" do jornal ao lado - não contribua para essa radicalização. Um apelo a que os cidadãos não se deixem contaminar pelo ambiente de vistas curtas e curtos debates em que qualquer gajo é comentador, em que se vê fascismo onde existe extrema-direita... 

Mas a Teresa de Sousa esquece várias coisas. O seu texto devia ter começado assim: eu, jornalista do Público, assalariada da empresa proprietária do jornal, ganho mensalmente a quantia "x". 

É que se a T de S não fosse assalariada da sociedade proprietária do jornal, com um contrato permanente (aliás, quase perpétuo a julgar pela quantidade de gente que, entretanto, por lá passou sem que ela tivesse saído), mas sim uma contratada a prazo de uma das centenas de empresas de trabalho temporário; se a T de S tivesse um contrato temporário a prazo e fosse cedida para trabalhar numa outra empresa criada para instalar um call-center para outra empresa e em que, portanto, o seu ordenado não fosse um ordenado, mas uma percentagem do ordenado que ganharia se fosse assalariada da empresa beneficiária do trabalho temporário; e se a T de S ganhasse em função do ritmo de mata-cavalos, em que atende clientes e faz relatórios ao mesmo tempo, em que tem pouco tempo para ir à casa de banho e comer, sempre com um chefe em cima, e em que fosse avaliada - e paga - pelos seus clientes que a tratam miseravelmente porque a T de S seria a cara do mau funcionamento da empresa que quer um call-center assim, e cuja avaliação aparecesse escarrapachada na parede em frente de todos...  Se fosse assim, talvez a T de S não se indignasse moderadamente. Ou nem se indignasse de todo, porque a frustração e prostração é total. Porque se sabe que, caso desista de um trabalho assim, o que surgirá será ainda pior...   

A T de S que pede "nuances" no pensamento e a essencial compreensão da "cor dos olhos dos inimigos" que evite a radicalização, não entende o seu próprio contributo para esta realidade. Porque a T de S sempre foi aquela fundamentalista acrítica deste sistema instalado na UE em que os países pobres - tidos como cigarras - são sugados em recursos económicos, impostos e mão-de-obra qualificada para as "frugais" "formigas" do centro da Europa que exportam para o sul os seus custos de saúde com os seus "velhos" e nos remetem em compensação os seus "turistas" - porque Portugal é visto apenas como uma praia - que, num ápice, como se viu, podem desaparecer e nos deixam descalços e mais pobres. 

A T de S foi aquela fundamentalista acrítica de tudo o que fosse mais Europa e menos país soberano. Elegíamos políticos portugueses, mas quem mandava eram outros (algo que contribui para a ideia de inutilidade dos políticos). A T de S alinhou na "Europa connosco" de 1976-1986, no Relatório Delors de 1989 - que iniciará o processo de edificação institucional da moeda única europeia - no Tratado de Maastricht de 1992 e na “fixação irrevogável das taxas de câmbio” de 1999, na abertura política a leste e no desmantelar das barreiras alfandegárias no século XXI, culminando no Semestre Europeu em que até as "ajudas" à pandemia vão ser escrutinadas com condições férreas, como uma trela paternalista e colonialista, querendo obrigar a mais mexidas... nas leis laborais.   

Se a T de S fosse essa assalariada de call-center, ou uma empregada de limpeza que viva na linha Amadora/Sintra (sim, nessa linha altamente contaminada), ou um imigrante das estufas, ou uma empregada de segurança, ou até uma operária industrial nortenha a ganhar um salário mínimo mensal, talvez sentisse - com os seus conhecimentos sobre a Europa - o pesadelo em que a sua vida se tornara. E saberia que, vestida com essa camisa de 11 varas, sentada ao final do dia ou na madrugada do dia seguinte ao fim de uma noite de trabalho, poderia beber moderadamente a sua cicuta. 

Ou indignar-se.

I still have a dream


«Há cem anos, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos, assinava a Proclamação da Emancipação. (...) Mas, cem anos mais tarde, devemos enfrentar a realidade trágica de que o Negro ainda não é livre. Cem anos mais tarde, a vida do Negro é ainda tristemente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. (...) Apesar das dificuldades e frustrações do momento, eu continuo a ter um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Tenho o sonho de que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado daquilo em que acredita: "consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são iguais". (...) Sonho que os meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas sim pela qualidade do seu caractér»

Martin Luther King (28 de Agosto de 1963).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Coisas que não chegam a muitos eleitores do Chega


«O próximo jantar-comício do Chega é em Loulé (Almancil, na realidade). Será no Medusis Club, um dos lugares mais "in" e luxuosos da Quinta do Lago. Devem ter ouvido falar dele a propósito da festa não autorizada em plena pandemia. Vejam as fotos. A malta trata-se bem. Sempre, sempre ao lado do povo. Ou os apoiantes do Chega são ricos ou cobra-se, à cabeça, preço de amigo. Se a informação do pagamento de 15 euros por cabeça é rigorosa, de onde vem o resto? Não pode ser desconto do restaurante, que é considerado financiamento ilegal de partido. O Chega parece ter muito para gastar e pergunta-se de onde vem. Mas compreendo o esforço financeiro para um partido estar ao lado do povo, onde ele luta todos os dias.»

Daniel Oliveira (facebook)

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Sem programa, e embalados por sondagens (I)

Para lá das margens de sintonia programática, e do contributo irresponsável para a normalização da extrema-direita (a que o João Rodrigues e o João Ramos de Almeida já fizeram referência neste blogue), há no perigoso caminho que Rui Rio parece disposto a trilhar - ao abrir a possibilidade de «conversar» com o Chega (reiterada por David Justino, para quem no PSD «não há cordões sanitários») - uma indisfarçável dose de despudorado calculismo eleitoral.

Face à dificuldade de afirmação, em termos de intenções de voto, PSD e CDS-PP deparam-se ainda com o crescimento gradual dos novos partidos de direita com representação parlamentar. Desde outubro de 2019, de facto, as intenções de voto no Chega e na Inicativa Liberal passaram de 3% para 11%, ao inverso do que sucedeu com o PAN e o Livre, que caem de 8% para 3%. Isto é, se a esquerda convencional consolidou o seu peso relativo, PSD e CDS-PP encontram-se cada vez mais acantonados perante o crescimento da IL e do Chega. Sem estes partidos, a direita representa 29% das intenções de voto. Cooptando-os, pode aspirar a uma representação na ordem dos 40%.


O problema de fundo, sobretudo no caso de Rui Rio, é porém outro. A rutura com a austeridade desvairada de Passos, aliada à incapacidade de fixar um programa alternativo consistente (e que não se preste a confusões com o PS), colocaram o atual líder do PSD num beco sem saída. Se por um lado conteve a queda do PSD, por outro não dispõe de condições que lhe permitam afirmar-se como alternativa. Rio sabe disso, vendo na aproximação ao Chega a derradeira hipótese de romper com o limbo em que se encontra. Já não se trata propriamente de «testar Trump», como fez Passos em Loures. Agora é sobretudo o desespero, irresponsável e imprudente, de quem acha que pode cruzar uma linha vermelha, saindo ileso e sem ter nada a perder.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Para que serve a extrema-direita?

O vice-presidente do PSD tentou explicar ao jornal Público as estapafúrdias declarações de Rui Rio sobre estar disponível para um acordo com a extrema-direita. Estafúrdias porque à la Groucho Marx:
Recuso-me ser membro de um clube que me aceite ter como membro [Versão Rui Rio: Só aceito um acordo com a extrema-direita se ela deixar de ser extrema-direita.
David Justino tentou dizer que não foi isso que Rui Rio disse, mas depois deu uma cambalhota e voltou a dizer o que Rui Rio dissera:
"Para o PSD, em democracia, em especial em Portugal [!!], não há cordões sanitários, é importante que se perceba isto. (...) "Não sabemos como é que" o partido da extrema-direita "vai evoluir, se vai ou não evoluir. Se houver rejeição do extremismo e uma posição mais moderada, é possível conversar". O partido da extrema-direita, "para todos os efeitos, está representado na Assembleia da República (AR). É um partido reconhecido e legalizado. Não podemos ignorar isso."
Passaram uns 83 anos e apesar disso há quem queira fazer reviver as igualmente tristes declarações de Lord Hallifax, responsável pelos Negócios Estrangeiros no Governo de Chamberlain e um dos arquitectos do apaziguamento com Hitler. Dizia ele:
O Fuhrer levou a cabo muitas coisas e não apenas na Alemanha, já que, destruindo no seu país o comunismo, barrou-lhe o caminho para a Europa ocidental e, por causa disso, a Alemanha talvez possa ser considerada, com razão, como um bastião do Ocidente contra o bolchevismo (entrevista a 19/11/1937, documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, tomo I, pag.19)
Se as declarações de Rui Rio poderão ser óbvias a quem faça apenas contas aritméticas sobre a distribuição de deputados, elas geram dúvidas sobre o que poderá unir os dois partidos. Isto é, de que forma é que a actual extrema-direita pode servir o "Ocidente" a combater o "bolchevismo".

E se nenhum dos dois partidos é muito claro sobre essa possível sintonia política - e os jornalistas tão-pouco os questionam -, talvez seja mais claro ouvir aquele dirigente do partido de extrema-direita que é apontado como tendo feito ameaças a activistas e deputados. Num discurso de homenagem a Salazar em 2019 fez a seguinte declaração, ao arrepio da História:
Salazar resgatou o país do caos financeiro herdado pela primeira República deixou e pôs fim à ditadura militar, para formar uma Nação organizada e livre. Dignificou a sociedade portuguesa, investindo na criatividade humana, incentivando a competição racional, garantindo desta forma a liberdade individual.
É interessante como se faz a ponte entre Salazar e os pilares de um ideário neoliberal.

Contas certas e austeras promovem organização e liberdade, as quais gerarão criatividade e concorrência, as quais protegerão a liberdade individual. Talvez conviesse acrescentar que esses resultados - que estão longe de se ter verificado realmente - apenas teriam sido conseguidos com arcaicos e burros serviços de censura prévia, um conservadorismo a raiar a Inquisição, uma feroz polícia política e cargas da GNR ao lado do patronato, para impedir as subversivas reivindicações dos trabalhadores, em estrita obediência ao Kominform soviético; e prisões medievais, cheias de quem ousasse ter um gesto contra essa "segurança do Estado"; e, mais que tudo, pobreza extrema, sub-desenvolvimento e desigualdade social.

Aliás, tal como aconteceu no Chile de Pinochet e os economistas da Escola de Chicago.

Se é essa ponte que Rui Rio pensa atravessar, era bom que fosse mais explícito. E já agora que David Justino o explicasse mais uma vez. Mas quanto antes.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Holanda: combater os offshores, mas só lá fora?

Na Holanda, propôs-se recentemente a criação de uma taxa sobre empresas que decidam mudar-se para regimes fiscais mais favoráveis para travar a "corrida para o fundo na tributação empresarial". A ideia é acertada, mas não deixa de ser curioso que venha de um dos principais promotores desta tendência.

Um estudo do FMI e da Universidade de Copenhaga estimou que a Holanda e o Luxemburgo são os principais recetores de "investimento fantasma", captando quase metade do total de fluxos movidos por engenharia financeira das empresas. Os investigadores concluíram que, ao todo, mais de 1/3 dos fluxos de Investimento Direto Estrangeiro a nível global (cerca de 15 biliões de dólares) “passam por empresas fantasma vazias” sem “atividade empresarial real”.

As multinacionais responsáveis por estes movimentos têm um objetivo claro: pagar o mínimo possível em impostos. E fazem-no de forma legal, aproveitando os regimes fiscais de países como a Holanda: de acordo com a Oxfam, só em 2016, empresas como a Google, Uber, Pfizer e Nike utilizaram o regime holandês para escapar ao pagamento de mais de 100 mil milhões de dólares em impostos sobre lucros obtidos noutras paragens. É por isso que é indispensável alterar as regras de tributação e garantir que as empresas pagam impostos onde exercem atividade. É mesmo uma questão de justiça social.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Não sejas parvo


O filme tem ...73 anos! É um filme de propaganda que mostra uma América idealizada, longe da realidade de 1947. Mas com uma preocupação que, apesar de terem passado 73 anos, está a tornar-se, de novo, actual.

O verdadeiro debate começa a partir do minuto 2m15. Com um americano médio a pregar contra os empregos roubados pelos negros. E esse discurso não se distingue muito de outros praticados uns anos antes.

"Chegou a altura de a Alemanha pertencer-vos, pertencer-vos apenas a vocês. (...) O Partido nazi dará terra aos agricultores, trabalho aos trabalhadores e lucros aos pequenos empresários. Quem é que está agora a ficar com estas coisas? Os judeus! Os judeus que roubaram a nossa nação. Quem fica com o nosso dinheiro e os nossos empregos?"
"Eles devem ser eliminados"

[versão actual: vão para a vossa terra e deixem-nos a nossa terra]

"Uma por uma, atacaram cada minoria e separaram-nas umas das outras. No início, eram alemães. Mas agora separaram-na em grupos diferentes. Suspeitosos entre si. Rivais uns dos outros. (...) Havia muito trabalho para fazer. Havia sindicatos para serem esmagados, porque os sindicatos eram organizados e poderiam oferecer resistência. Havia muitos partidos políticos na Alemanha. Os nazis destruíram-nos. Estavam determinados a destruir todo o tipo de organização em que as pessoas poderiam resistir. Havia judeus para bater e matar. [versão actual: ciganos]. Os judeus não eram poderosos, mas eram a desculpa conveniente para todas as doenças da Nação. (...) Centenas de católicos foram postos na prisão. Porque os católicos tinham treino e poderiam resistir ao Partido Nazi [versão actual: por que não aliar-se às igrejas evangélicas?] Dividiram a nação em uma centena de pedaços. E então, um a um, foram destruindo cada um dos pedaços. Depois de quebrar esses pedaços, os nazis tomaram o poder."

E onde foi que isto começou? Foi no minuto 12. "Juntos poderiam ser fortes. Mas a partir do momento em que foram divididos, perderam-se. Quando uma minoria perdeu, todos perdemos. (...) Esqueçamos os "nós" e "eles".

Mas não nos esqueçamos da História. Porque a defesa destas ideias - inconstitucionais e, por isso, ilegais - tem por trás um projecto político - que, na versão actual, não se distingue muito da agenda neoliberal (contra o que a Constituição prevê quanto ao papel do Estado, contra o Estado Social, contra a escola e saúde públicas e, por isso, pugnando por menos impostos). E esse projecto está a ser financiado para que se concretize, já que esta agenda foi derrotada nas urnas.

E se o CDS e o PSD já não servem, venha o próximo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Sinais de pânico

Corre um espectro pelo país. 

Será sobre a necessária reforma fiscal que ponha cobro à desigualdade na distribuição do rendimento, em que uns pagam tanto mais quanto mais ganharem e outros pagam sempre o mesmo, se não conseguirem exportar rendimento para o offshore fiscal? É sobre os baixíssimos salários de quem trabalha? É sobre como deve o país organizar-se para se desenvolver? É sobre como reequilibrar a balança de transações correntes sem as receitas do turismo? É sobre os perigos de um condicionalismo orçamental em tempo de gastar os recursos comunitários? É sobre o volume de recursos necessários para pôr o Serviço Nacional de Saúde (SNS) a dar saúde a todos os portugueses ? É sobre os assaltos aos recursos públicos de cada vez que se abre uma gaveta do Novo Banco? É sobre...  

Não. A direita - que até agora não tem qualquer ideia sobre o que fazer ao país - encontrou a sua bandeira aglutinadora. Marques Mendes - no espaço que o grupo Balsemão lhe dá na SIC - clama contra "a decisão inacreditável" de se autorizar a festa do Avante. A juventude popular, que nem é muito juventude nem é popular e nem realiza festas que se vejam, quer proibir a festa do Avante. Chovem as petições públicas - já há dezenas de petições, umas com centenas, outras com dezenas de assinaturas...! Ao todo, vão numas 30 mil assinaturas. Uma pede que "a Carvalhesa seja substituída por essa mesma música dos dançarinos do caixão a cada tempo morto entre espetáculos". Outra em que se diz que "fazerem a festa desta dimensão é assinar a nossa sentençao de morte". Outra que clama pela "saúde pública, mas também pelo respeito por todos nós, pela igualdade". Outra, ao jeito da escola primária: "Quem é contra a festa do Avante que assine a petição". Outra sustenta que "mesmo que não seja considerado festival, a festa do Avante junta demasiadas pessoas". 

Claro que a saúde pública é um assunto sério e terá de ser tomado em conta. Mas na verdade, esse não é um assunto de interesse à direita. Provam-no décadas de subfinanciamento do SNS, desarticulação dos seus serviços, ausência de uma estratégia para o sector que não passe pelo fomento do sector privado. Por outro lado, dado o que se passou no 1º de Maio ou nos comícios do PCP, ninguém pode acusar os comunistas de leviandade. Aliás, para quem viveu o 1º de Maio de 1974, até é uma dor de alma!  

Portanto, a questão só pode ser outra.

Torna-se evidente que as diversas matizes da direita portuguesa acharam por bem cravar esta cunha porque é uma forma de desarticular um entendimento entre uma certa direita e o PS; porque é uma forma de encostar o PS às cordas e forçá-lo a tomar uma decisão contra um dos partidos à esquerda; porque é uma forma de obrigar Marcelo Rebelo de Sousa a clarificar-se; porque é uma forma de as diversas direitas tentarem ganhar terreno agora que se sentem ameaçadas pela ascensão de um partido que diz não ser de extrema-direita mas que imita muito bem - de forma actualizada - os discursos de Adolf Hitler feitos nos anos 30 contra as ditas minorias, sem que o Tribunal Constitucional ou algum dos partidos tome a iniciativa de iniciar um processo de ilegalização por causa dessas declarações não programáticas.

As diversas direitas têm, na verdade, um pequeno problema: fraca visão e poucas ideias que se vejam sobre o futuro. E no meio desta gritaria, talvez houvesse que perdoar-lhes: estiveram dezenas de anos caladas, a fingir serem civilizadas, e agora, que condescendem com a extrema-direita inconstitucional, desopilam... e não sabem o que dizer, senão - repetindo os vícios do passado - concorrer entre si a ver quem é mais anticomunista.


Gestão privada: dois mitos desfeitos


Reagindo à notícia do Público sobre mais um negócio duvidoso com prejuízos cobertos pelo Estado, o Novo Banco fala numa "campanha continuada" do jornal e ameaça processá-lo. Já se percebera que a gestão privada está longe de ser mais eficiente que a pública. Fica claro que também não é mais transparente. De uma assentada, dois mitos desfeitos.


Um jornal para ajudar a libertar

A história das últimas décadas é a de um recuo global, não da dimensão do Estado, mas da provisão pública de bens e serviços, com enorme dano para a igualdade socioeconómica, para o acesso a bens e serviços essenciais (energia, saúde, educação), para o pleno emprego e a protecção social. Esta captura por interesses de mercado ocorre a nível nacional mas também por via da integração em quadros institucionais e regulatórios europeus e internacionais (...) Ao contrário do que afirmou António Costa Silva na apresentação do seu plano, a 21 de Julho, as teorias neoliberais não defendem um «Estado mínimo» nem «que devíamos desmantelar o Estado». O neoliberalismo não quer um Estado grande nem pequeno: quer o Estado que for necessário, em cada momento, para garantir os seus lucros privados.
 

Sandra Monteiro, Prisioneiros do paradigma, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Agosto de 2020.

Para lá de um excerto do editorial, que podem ler na íntegra no site do jornal, deixo-vos um resumo da componente portuguesa: 

“Na edição de Agosto destacamos um dossiê sobre ‘A recuperação económica: ilusões nacionais e obstinações euroliberais’, centrado na análise do recente acordo europeu (Nuno Teles), do plano encomendado para Portugal (José Castro Caldas) e do Orçamento Suplementar (João Pedro Ferreira). Acompanhamos as mais recentes políticas para a habitação, salientando a contradição entre usos sociais e financeirização (Ana Cordeiro Santos). A situação em Portugal do trabalho na cultura, precário e desprotegido (Sara Barros Leitão), é acompanhada por análises e propostas para o sector também noutros países (Evelyne Pieiller e Aurélien Catin) (...) A terminar, reflectimos sobre as narrativas sobre o 25 de Novembro de 1975 e os usos da memória a elas associados (Pierre Marie) e propomos três microcontos de Rita Travassos, desejando-vos boas férias e boas leituras!”

sábado, 8 de agosto de 2020

Houston, we have a problem

De acordo com os mais recentes dados do emprego, publicados pelo INE e relativos ao segundo trimestre de 2020, a população empregada registou uma quebra, em termos homólogos (2019), na ordem dos -186 mil, essencialmente devida ao impacto da pandemia na economia e no emprego. Estranhamente, porém, o desemprego não aumenta no mesmo período, antes se registando uma redução em cerca de -50 mil desempregados, permitindo que a respetiva taxa passe de 6,3% para 5,6% entre o segundo trimestre de 2019 e o de 2020.

Uma primeira pista para explicar esta incongruência encontra-se na variação da população ativa e inativa neste período, verifcando-se uma diminuição de -236 mil ativos e um aumento de 270 mil inativos, num contexto em que a população residente regista um acréscimo de 35 mil. Ou seja, a perda de emprego não se refletiu apenas no desemprego, mas sobretudo na deslocação dos novos desempregados para o universo estatístico dos inativos, que não é considerado no cálculo da taxa de desemprego. O que quer dizer, portanto, que se somarmos os inativos desencorajados ao número oficial de desempregados, passamos a dispor de uma aproximação mais fidedigna à taxa real de desemprego, permitindo falar num aumento de 9,5% para 11,5% entre 2019 e 2020.

A noção de que os critérios oficiais são incapazes de captar o desemprego realmente existente não é de hoje. Em exercícios anteriores, mais robustos, de estimativa do desemprego real (que consideravam, para além dos inativos desencorajados, o subemprego e os ocupados), essa limitação era já evidente, permitindo inclusive detetar, quando o anterior Governo de direita estava no poder, alguns expedientes para camuflar parte do desemprego então registado.

Hoje, porém, o que está em causa são sobretudo os critérios estatísticos associados à definição de desemprego, que remetem para o universo de inativos muitos dos que perderam o emprego nos últimos meses, como demostra o facto de ser a categoria «reformados» e, sobretudo, «outros» (e não «estudantes» e «domésticos») a explicar o seu aumento entre 2019 e 2020. Com a agravante de, segundo os critérios oficiais, os trabalhadores em lay-off serem em regra contabilizados na população empregada, não podendo por isso justificar a redução de ativos e aumento de inativos.

Não sendo de agora esta discrepância entre os valores do desemprego oficial e os valores que resultam de um exercício simples de aproximação ao desemprego real, há contudo um dado novo: pela primeira vez, entre 2011 e 2020 (e para os dados relativos ao segundo semestre de cada ano), regista-se, entre 2019 e 2020, uma descida da taxa de desemprego oficial, que é contrariada pelo aumento do desemprego real. Uma incongruência que talvez devesse levar o INE a repensar os critérios estatísticos a que recorre para aferir o emprego, a inatividade e o desemprego.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Não existirá cordão sanitário

Alguns liberais, como João Miguel Tavares, anteciparam criticamente a abertura entretanto revelada por Rui Rio para alinhamentos com o Chega, o que é de resto coerente com o autoritarismo anti-parlamentar de que Rio tem dado mostras. Tratar-se-á de transpor para Portugal uma solução política que tem feito o seu caminho em vários países da União Europeia. Está em curso a normalização da extrema-direita, com a ajuda de apologias que passam em alguns círculos por trabalhos isentos e sobretudo com o apoio que certas fracções do capital já lhe estão a dar, como indicou Miguel Carvalho na Visão. Não existirá cordão sanitário.

Os liberais esquecem que este tipo de convergência entronca numa economia política retintamente liberal, partilhada, por exemplo, pelo Chega, pelos economistas de Rio ou pela Iniciativa Liberal: da diminuição da progressividade fiscal ao reforço da entrada do capital em áreas do Estado social, passando pelo reforço da discricionariedade patronal. 

E é preciso não esquecer, como ainda recentemente sublinhava Pacheco Pereira, que o esvaziamento dos poderes do parlamento em áreas relevantes da soberania é um dos subprodutos da integração europeia. Esta integração euro-liberal é apoiada de forma consequente por todas as direitas nos seus eixos fundamentais, do mercado único à moeda única. A origem estrutural do enviesamento para a direita passa de resto por aqui. 

A fraqueza e colonização ideológicas do PS e a erosão do seu poder pela crise farão o resto, isto se deixarmos que as coisas sigam o seu curso. O PS é um partido cuja visão estratégica parece resumir-se a um “pacto Estado/empresas”, ou seja, a uma forma de Estado de bem-estar empresarial, onde é dada cada vez menos relevância ao mundo do trabalho, aos sindicatos, e onde a presidência da concertação social é entregue a um admirador confesso de Passos Coelho chamado Francisco Assis.

Felizmente, existem alternativas políticas tão democráticas quanto anti-liberais na economia política.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Destinos


Um encontro precoce que marcará os anos 90, quando Cavaco Silva reprivatizou o sistema financeiro (nem que fosse pagando a reprivatização com dinheiros públicos ou aceitando que os títulos dos bancos "comprados" fossem dados como "garantia"); e que perdurará até àquela declaração recente do PR Cavaco Silva a dizer "comprem, comprem do BES que é seguro".

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Retrato da brutalidade

É um pouco preguiçoso os jornalistas dizerem da explosão em Beiture que parece um filme de terror. Como se o terror no filme fosse bem mais brutalmente realista do que a própria realidade. Mas talvez seja um pouco revelador da cápsula protegida em que se tende a viver no mundo da informação.

Para ilustrar o argumento, fica esta famosa cena do filme Cyrano de Berjerac.


Verdades e consequências


Esta crise pôs em evidência as fraturas profundas da nossa sociedade e o preço que pagamos pela excessiva desregulação de tudo aquilo a que nos habituamos a chamar de mercado de trabalho.


O António Costa que fez há umas semanas atrás esta declaração é o mesmo Primeiro-Ministro que aceitou a herança da troika em matéria de relações laborais, com o seu acervo de direitos patronais e de obrigações laborais, recusando em modo bloco central todas as propostas das esquerdas para reequilibrar a estrutura de direitos e de obrigações nesta área crucial. E quem usa habitualmente a expressão mercado de trabalho, já se esqueceu há muito do princípio da insuspeita OIT no pós-guerra: o trabalho não é uma mercadoria.

Na realidade, se atentarmos na visão estratégica que António Costa encomendou a António Costa Silva, até a moderada ideia de diálogo social tripartido oriunda da OIT é na prática esquecida, já que o centro da proposta é um pacto entre o Estado e as empresas. Se é verdade que se fala de precariedade e de desigualdades, também é verdade que os sindicatos primam pela ausência e que não há qualquer proposta concreta e progressista nesta área. Imaginem o que diria Bruxelas se houvesse.

Vulnerabilidades, crise pandémica e superação

«A crise pandémica com que fomos surpreendidos está a atuar como um poderoso revelador [das] vulnerabilidades preexistentes e, ao mesmo tempo, num contexto marcado pela incerteza, a dar indicações quanto a direções de reconfiguração institucional e estrutural capazes de reparar as linhas de fissura de um modelo de desenvolvimento que se tem vindo a revelar insustentável. Caracterizar essas vulnerabilidades na forma que assumem em Portugal, e retirar desse exercício indicações tendentes a robustecer as respostas imediatas (de emergência) e mediatas, estruturais e institucionais é o propósito deste livro. No imediato é indispensável um foco abrangente e direcionado nas respostas de emergência ao impacto socioeconómico da pandemia, mas tal imperativo não pode secundarizar abordagens que, partindo de um enquadramento retrospetivo, fundamentem opções políticas (e de políticas) orientadas para o robustecimento das instituições e das estruturas.»

Manuel Carvalho da Silva

«As consequências socioeconómicas da pandemia COVID-19 não configuram uma simples tradução de um perigo natural que a todos afeta, mas sim o resultado de um conjunto de riscos socialmente construídos e potenciados. Mesmo quando têm origens naturais, os riscos manifestam-se na esfera social, económica e política assimetricamente. (...) Para além do diagnóstico das vulnerabilidades estruturais que afetam a sociedade portuguesa e a colocam numa situação particularmente frágil no atual contexto, promove-se neste livro uma reflexão crítica em torno das políticas emergenciais adoptadas e apontam-se caminhos de política pública que possam contribuir para o robustecimento do tecido económico, a melhoria da qualidade do emprego e a redução das desigualdades.»

José Castro Caldas, Ana Alves da Silva e Frederico Cantante

Leitura essencial para os tempos de pandemia que estamos a atravessar, o mais recente estudo do CoLABOR analisa «As consequências socioeconómicas da Covid-19 e a sua desigual distribuição», numa versão ebook de acesso gratuito. Se a avaliação dos impactos do surto pandémico propriamente dito - sobretudo nas atividades, no emprego e nos rendimentos - não descura o reconhecimento da importância e do peso das fragilidades pré-existentes, também as respostas - de emergência e as mais estruturantes - são objeto de um olhar crítico e exigente, que analisa os riscos de um keynesianismo de exceção e discute a capacidade de estabelecer, a partir das interpelações profundas que a crise coloca, as mudanças que conduzam a uma economia e uma sociedade mais decentes e menos desiguais.

sábado, 1 de agosto de 2020

A fase descendente?

Em regra focadas no comentário aos valores diários, que vão oscilando, muitas das notícias sobre a evolução da pandemia em Portugal não ajudam a perceber as tendências de fundo que se estão a registar e que apontam, de forma clara, para uma descida nos principais indicadores. De facto, se recorrermos à média móvel dos últimos sete dias, já não é só o número de internados e de óbitos que está em queda (como sucedia em meados de julho), mas também o número de infetados e de novos casos.


Se é verdade que o desconfinamento conduziu, como seria de esperar, a um aumento de valores nos vários indicadores (ainda que a um ritmo incomparável com o registado na fase inicial da pandemia), essa situação alterou-se entretanto de forma significativa, verificando-se nas últimas semanas uma aproximação gradual aos mínimos conseguidos depois do confinamento. O número médio de infetados, que agora está já em queda, encontra-se mais próximo do mínimo de 12 mil; a média de novos casos diários desceu para cerca de 200 (rondava os 300 a 15 de julho); o número de óbitos passou de 5 para uma média diária de 3; e, por último, o contingente de internados atinge agora o valor mais baixo desde que se atingiu o pico da pandemia, em meados de abril.


Não se sabe, evidentemente, que evolução terá a pandemia nos próximos tempos e, sobretudo, qual o impacto do regresso às aulas e da reabertura cada vez mais ampla dos diferentes setores da economia. O que se sabe é que, ao arrepio dos que defendiam a opção pela «imunidade de grupo» (que teria elevado significativamente o número de óbitos), criticando o confinamento, e dos que, de forma precipitada, consideraram que o desconfinamento estava a conduzir ao descalabro, nos encontramos numa fase de claro declínio, que esperemos se mantenha.