segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Declínio editorial violento


Na esteira das mentiras sobre a Festa do Avante, que incluíram uma capa falsa do New York Times em pleno jornal da noite, o grupo Impresa prossegue com a cada vez mais violenta campanha anti-comunista, legitimando o vandalismo. 

As mentiras novas não resistem, uma vez mais, a uma breve passagem pelo site do PCP. 

Neste mundo do avesso, estes produtores de lixo editorial são subsidiados pelo Estado. Deviam mas é ser taxados.


Chegou a hora de negociar


A Rússia até pode conquistar Kiev e outras cidades à custa de um banho de sangue, mas não vai conseguir instalar na Ucrânia um governo fantoche. Talvez para surpresa de Putin, a feroz resistência que a Rússia está a enfrentar mostra que a Ucrânia não será uma nova Bielorrússia. 

 Chegou a hora de negociar. Se a Ucrânia admitir o estatuto da Finlândia, o da neutralidade militar fora da NATO, a Rússia terá conseguido o que sempre quis. 

Numa negociação que pare esta tragédia, as partes terão de ceder em alguma coisa importante para que o acordo seja duradouro. O ressentimento anti-Rússia, esse ficará para sempre, será transmitido de geração em geração e será o cimento do patriotismo dos ucranianos democratas, qualquer que seja a sua língua. 

Oxalá não demorem muito a entender-se porque uma guerra atómica é um risco que não podemos admitir.

A habitação como ativo estratégico nacional


aqui e aqui abordamos a crescente centralidade do património imobiliário na reprodução de desigualdades. Esta semana saiu um estudo, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que defende a mobilização do Património das famílias como activo estratégico nacional

A proposta consiste em “[o]lhar para a economia com o foco no património”, o que implica, por um lado, “valorizar a poupança das famílias portuguesas a médio e longo prazo”, e por outro, “rentabilizar e utilizar de forma eficaz a poupança interna como alavanca do crescimento”.

Com três quartos das famílias proprietárias da residência familiar, que é o principal e mais valioso ativo que detêm, não é de estranhar que o património das famílias portuguesas esteja no centro das atenções. Em 2019, em termos líquidos (isto é, deduzida a dívida), a riqueza das famílias ascendia a 686 000 milhões de euros, dos quais 413 000 milhões em ativos imobiliários. Este montante corresponde a 60% do seu património total, a 283% do rendimento disponível e 205% do PIB. Um montante muito significativo. 

Num contexto de austeridade orçamental permanente, o património imobiliário das famílias adquire enorme relevância do ponto de vista económico e social. Como o estudo reconhece, “quando os preços das casas desvalorizam, 3⁄4 dos portugueses empobrecem, ao invés, quando se valorizam, toda a economia nacional beneficia”. 

Resultado de uma política de habitação centrada no apoio à compra de casa própria a crédito, o relevante peso da riqueza patrimonial das famílias adquire importância estratégica, quer pelo seu efeito amortecedor em contexto de crise, quer pelo seu papel de estímulo económico. Como o estudo esclarece: 

“Em situações de crise, a poupança imobiliária pode funcionar como ‘amortecedor de último recurso’, como ‘almofada de reserva’, que se pode hipotecar ou transacionar, mitigando as consequências económicas, sociais e políticas das crises. Ao invés, em períodos de expansão, atua como ‘alavanca’ do crescimento, financiando directamente o investimento das famílias ou, indirectamente, como colateral para potenciar a expansão do crédito.” 

Se a propriedade imobiliária sempre desempenhou estas funções, há agora uma mudança estrutural que importa sublinhar. Se, até à crise financeira, o crédito à habitação sustentou um modelo de keynesianismo privatizado, estimulando a economia por via dos efeitos sobre os setores da construção e imobiliário, o crescimento da propriedade residencial ao longo de décadas permite agora instituir um brutalmente desigual regime de bem-estar patrimonial privado, segundo o qual as famílias recorrem ao seu património para lidarem com o desemprego, a quebra de rendimentos e outras contingências pessoais e sociais perante a retração do Estado Providência. 

Mas não haja ilusões. Tal não significa a demissão do Estado. Este é convocado para garantir a rentabilização e valorização do património imobiliário, como a sua ‘monetarização’, isto é, a possibilidade de este gerar “um aumento efetivo e sustentado de rendimento das famílias proprietárias sem implicar a venda do ativo”. Como tudo isto se poderá operacionalizar não é explicitado no estudo, mas certamente passará por novos e mais engenhosos produtos financeiros. Aposto que não tardará que outro estudo nos venha esclarecer a este respeito. 

Já não será tão expectável que venhamos saber o que fazer quando, de crise em crise, a ‘almofada patrimonial’ das famílias mais vulneráveis for encolhendo. Tão pouco se poderá esperar que venhamos saber que ‘almofada’ caberá ao quarto das famílias que não dispõe de património imobiliário para se proteger neste regime de bem-estar patrimonial em construção ao mesmo tempo que enfrenta custos habitacionais acrescidos.

A economia política das sanções à Rússia

 

Não tinham passado muitas horas desde o início da invasão da Ucrânia pelo exército russo quando os países ocidentais aplicaram as primeiras sanções económicas à Rússia. As sanções têm sido uma das armas mais utilizadas para responder a conflitos nos últimos anos e os países têm-nas usado como forma de tomar uma posição de força. É essa que parece ser, para já, a estratégia dos países do Ocidente na disputa com a Rússia. No entanto, há alguns motivos para termos dúvidas acerca da eficácia das atuais sanções.

O primeiro motivo prende-se com a possível resistência da economia russa. Nos últimos anos, as autoridades russas parecem ter levado a cabo uma estratégia de diversificação das suas reservas financeiras. Além de terem reduzido a dependência de reservas em dólares norte-americanos, acumularam reservas consideráveis de ouro durante este período e parecem ter-se preparado para aguentar a pressão, pelo menos de forma temporária. Teremos de aguardar para ver a eficácia das últimas medidas anunciadas, como a exclusão de alguns bancos russos do sistema SWIFT, que permite efetuar transações rápidas e eficientes entre instituições financeiras de todo o mundo. As medidas deste tipo arriscam-se a afetar mais a generalidade da população russa do que a sua elite.

O segundo motivo está relacionado com as dificuldades que os países ocidentais – e a União Europeia em particular – têm sentido para cortar relações económicas com a Rússia. A economia russa é fornecedora de 47% das importações de carvão da UE, 41% das de gás natural e 27% das de petróleo. A dependência energética dos países da UE face à Rússia, em parte resultante das limitações à política industrial impostas pela própria União aos Estados-Membros, torna difícil aplicar sanções que afetem os mercados da energia, que correspondem a uma parte importante das exportações russas. Há uma certa ironia nesta situação: as regras de concorrência europeias que retiram (ou restringem fortemente) a maioria dos instrumentos de política industrial, como a definição de tarifas aduaneiras, o controlo público de empresas estratégicas ou as compras públicas, impedem a promoção das indústrias domésticas e acabam por deixar os países dependentes de cadeias de distribuição globais, com as consequências que se conhecem.

O último motivo é também o mais revelador. A aplicação de sanções às elites de um determinado país passa, entre outras medidas, pelo congelamento dos ativos que estes detêm no estrangeiro. Os países do Ocidente anunciaram rapidamente que aplicariam este tipo de sanções a Vladimir Putin e ao ministro dos assuntos estrangeiros, Sergei Lavrov. Só que a implementação desta medida pode ser mais difícil do que parece, sobretudo se tivermos em conta a distribuição geográfica dos ativos detidos pela elite russa. Um estudo de Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da UE, e de dois co-autores conclui que a Rússia é o 4º país do mundo com maior percentagem da sua riqueza em offshores. Sem grande surpresa, estes movimentos ocorrem sobretudo entre os mais ricos do país: mais de metade do rendimento dos 0,01% mais ricos do país está em paraísos fiscais.

A identificação do paradeiro da riqueza implicaria a implementação de um sistema de registo financeiro internacional que permitisse saber quem detém que ativos em cada território, como defende o economista Thomas Piketty. De acordo com esta proposta, as autoridades públicas passariam a controlar as centrais de depósitos que registam os ativos e os seus proprietários e que hoje são privadas. Seria uma forma de garantir a eficácia de sanções direcionadas para as oligarquias e, acima de tudo, de permitir um combate sério à lavagem de dinheiro e à evasão e elisão fiscais.

O problema é que esta medida choca com os interesses dos mais ricos nos países ocidentais. Porquê? Porque as elites russas não são as únicas a desviar boa parte da sua riqueza para offshores para escapar aos impostos e ao escrutínio das autoridades. Piketty explica-o de forma sucinta: “As elites ocidentais temem que a transparência acabe por prejudicá-las. É uma das principais contradições dos nossos tempos.” O economista diz que tanto a Rússia como a União Europeia ou os EUA “têm um sistema legal, fiscal e político cada vez mais favorável às grandes fortunas” e que a origem da riqueza do 1% do topo nestes países não é assim tão diferente. Zucman é ainda mais claro: "O problema dos mega-iates e das contas na Suíça dos bilionários russos é que são incrivelmente parecidos com os mega-iates e as contas na Suíça dos nossos bilionários". E é isso que explica a relutância em tomar medidas que, no fim do dia, colocariam em causa esse sistema.

Os sucessivos escândalos mediáticos em torno dos paraísos fiscais não foram suficientes para que os governos questionassem o regime de livre circulação de capitais. Desta vez, é uma guerra que o traz de volta ao debate. Será suficiente?

P.S.: A defesa da paz e da autodeterminação faz-se sem transigências. Solidariedade com o povo ucraniano. Não à guerra e aos complexos militares que a promovem.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Bem-vindas ao Capitaloceno



Em 2011, a revista The Economist afirmava, em título de capa: «Welcome to the Anthropocene» (“Bem-vindos ao Antropoceno”). O termo “Antropoceno”, já aqui oportunamente introduzido e problematizado, foi cunhado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer, em 2000, e procurava traduzir o papel central da espécie humana na geologia e na ecologia, particularmente desde o final do século XVIII – momento a partir do qual, segundo os autores, os efeitos das atividades humanas no sistema terrestre se tornaram por demais evidentes, o que justificaria a inauguração de uma nova época geológica. 

O conceito popularizou-se nas décadas seguintes – acompanhando o aceleramento e a intensificação das alterações climáticas – e extravasou, por completo, o foro restrito da Geologia. Embora seja muitas vezes apresentado como tal, o Antropoceno não delimita, oficialmente, a presente época geológica. Porém, mais importante do que a escala de tempo geológico, são as escalas do tempo (e do espaço) políticos. E, no que à política diz respeito, o Antropoceno é uma ideologia de pleno direito, particularmente no atual contexto de crise climática. 

A declaração do início do Antropoceno, entusiasticamente reproduzida pela The Economist, fixa um determinado curso da história, impulsionando e legitimando certas trajetórias políticas e económicas. Senão, vejamos: a humanidade é colocada no centro do problema e da solução, sendo entendida e, sobretudo, socialmente construída (qual profecia autorrealizável) enquanto ator coletivo, uno e indivisível. Fabrica-se, assim, uma narrativa simplista, mas linear e de fácil adesão: “A humanidade é responsável pelas alterações climáticas, logo, cada pessoa tem de fazer a sua parte para as combater”. 

Esta diluição das responsabilidades pelo conjunto da humanidade funde-se com uma culpabilização individual que se deve traduzir em ação, também ela individual, com uma especial predileção pela escala local. Este vaivém de escalas, contido no slogan desgastado “pensar global, agir local”, serve, com grande eficácia, um capitalismo que começa a maquilhar-se em tons de verde. A atomização dos indivíduos – distraídos pelo logro do consumo “verde” –, o consequente desencorajamento da ação coletiva, ou ainda a (conveniente) ocultação do papel do Estado, retiram as alterações climáticas da esfera política. E as alterações climáticas são, acima de tudo, uma questão política. 

A “humanidade”, interpretada como um todo monolítico e a-histórico, constitui uma noção perigosamente difusa e abstrata, que naturaliza as desigualdades inscritas nas relações de poder e de produção em que assenta o sistema capitalista. Com efeito, o intervalo geológico correspondente ao Antropoceno, principalmente desde o final da 2ª Guerra Mundial, coincide com o período de maior expansão do capitalismo. Para lá da relação da espécie humana com o sistema terrestre, o Antropoceno oculta a relação insustentável (e, sublinhe-se, imoral) que algumas classes sociais (em diferentes geografias) estabeleceram com o sistema terrestre através do capitalismo. Revela-se imprescindível, por isso, recuperar a interpelação de Jason Moore: estaremos mesmo a viver no Antropoceno – a “idade do Homem” –, ou no Capitaloceno – a “idade do capital”? 

A utilização da expressão “Antropoceno” para designar a atual época geológica gera uma dinâmica perversa: os impactos provocados por (e em benefício de) uma minoria são atribuídos a uma entidade homogénea e sem rosto – a humanidade –, negligenciando contextos históricos, políticos, socioeconómicos e ambientais. Este entendimento hegemónico do Antropoceno torna-se apelativo porque remove o capitalismo (mas também o imperialismo e o patriarcado) da equação, mantendo as causas estruturais da crise climática e ambiental completamente inquestionadas. O sistema capitalista adquire, portanto, um novo fôlego, desta feita sob a forma de “capitalismo verde”.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Todos têm as mãos sujas de sangue


Condenar esta guerra não é incompatível com a simultânea condenação do comportamento dos EUA e da UE desde a queda do muro de Berlim. Nenhuma guerra é inevitável; na realidade social (como de resto em qualquer outra) não há determinismo.

O melhor comentário político que tem passado nas televisões é, quase sempre, os dos militares na reserva, com grande experiência no teatro de operações de guerra e um grande conhecimento da história dos conflitos na Europa, sempre com enquadramento na geo-estratégia das grandes potências.

Pelo que tenho visto, são de uma enorme sensatez e isenção. Põem em causa a actuação das lideranças políticas, incluindo a da UE, e contrastam com a maior parte dos especialistas de relações internacionais (excepção para José Pedro Teixeira Fernandes) que têm associado o conflito à preservação da democracia na Ucrânia e na Europa, omitindo que as acções dos EUA por interpostas ONG, e as milícias nazis, discretamente apoiadas por países da UE, foram decisivas para a queda do regime que dava tranquilidade à Rússia. Chegam a garantir (sem qualquer indício credível) que Putin quer anexar tudo o que foi da URSS.

Adoptando um discurso belicista, não falta na televisão quem defenda a necessidade de uma escalada militar, um braço-de-ferro entre a NATO e a Rússia, ignorando com a maior leviandade o que significaria uma 3ª Guerra Mundial (ver declarações incendiárias após a participação da Finlândia e da Suécia numa reunião da NATO, o que aliás foi uma verdadeira provocação à Rússia). A este propósito, concordo com a posição de Helena Ferro Gouveia na CNN: "Eu acho que neste momento é prudente não estar a alimentar ainda mais estas questões. É determinante manter a condenação firme mas alimentar ainda mais os pretextos de Moscovo é algo que deve ser evitado."

Vejam, por exemplo, o que diz o Major General Raul Cunha (RTP 3 - RTP Play, a partir do minuto 34:00 - 25 Fev 2022):
“Os líderes ocidentais sobretudo, aqueles que incentivaram este governo ucraniano, que lhes venderam 600 milhões de dólares de armamento … demos armas, demos treino, agora vocês aguentem-se contra a Rússia, por amor de Deus! A NATO, o presidente dos EUA, Boris Johnson e a UE tiveram um comportamento nas bordas do criminoso, tão mau como o do Putin. Estão todos muito bem uns para os outros.” (...) “Eu não acredito que seja intenção da Rússia reconstituir o império soviético. O plano final é impor na Ucrânia um governo que lhe seja simpático.”

Está na hora de reconhecermos que a posição geográfica de alguns países exige um compromisso entre dois valores igualmente importantes, a preservação da paz internacional e a autodeterminação de um país soberano. O compromisso passa pela valorização do estatuto de neutralidade da Finlândia e da Suécia, e era isso que devia ter sido aconselhado explicitamente à Ucrânia, pelo menos desde 2007, em vez do caloroso acolhimento à ideia de adesão à NATO e à UE, uma expectativa que foi sendo alimentada e empurrada para um horizonte incerto, tendo plena consciência de que a Rússia entendia isso como uma ameaça à sua segurança. A verdade é que hoje todos têm as mãos sujas de sangue.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Partir da comparação


Quem dera aos críticos esquerdistas dos comunistas portugueses, que andam por aí nas redes sociais, ter o mesmo conhecimento factual, sofisticação intelectual e sensatez política que este comunicado exibe em matéria de relações internacionais nas sombrias circunstâncias históricas em que vivemos: “O PCP apela à promoção de iniciativas de diálogo e à paz na Europa”.

Por favor, leiam sem preconceitos o comunicado e depois leiam o que se escreve por aí à esquerda, incluindo pelos que surpreendentemente defendem que existe um “défice da liderança do próprio Estado alemão” na UE e outros disparates europeístas muito difíceis de compreender à luz de um mínimo de memória da nossa história recente.

Sim, toda a política parte da comparação, num mundo onde as mãos, mais ou menos sujas, tudo fazem e desfazem. Os assuntos sobre os quais nada podemos fazer são aliás um bom teste aos hábitos políticos prevalecentes.

Condeno esta guerra


Uma coisa é condenar os crimes do imperialismo dos EUA e defender um mundo multipolar.

Outra, é admitir que a Rússia tem o direito de dispor da Ucrânia, ou de qualquer outro país, através de uma invasão militar.

Não, os fins não justificam os meios. Para mim, a geopolítica não está excluída deste juízo moral.

Condeno esta guerra.

A superioridade moral com sangue nas mãos


Putin é um crápula e a sua guerra é infame. O conflito que agora começa é um miserável espetáculo de perdas humanas por conveniência do imperialismo russo.

Dito isto, as virgens morais das sanções económicas também querem isolar Israel do comércio e das transações financeiras internacionais? Ou o bombardeamento diário de casas na faixa de Gaza merece o vosso relativismo? O quilo moral da criança despedaçada de Gaza está mais baratinho do que o das crianças de Kiev, não é?

Geopolítica não são índios contra cowboys. São impérios a disputar áreas de influência e nenhum deles é puro. Todos se aliam à pior escumalha se isso significar a conservação da sua influência. Às vezes entram com tanques, outras matam líderes eleitos, outras ainda apoiam Estados que fazem o trabalho sujo em seu nome.

O único caminho sem sangue nas mãos é o não-alinhamento. Os apoiantes de Putin são abjetos. Mas tanto como aqueles que se sentam nas cimeiras da NATO e se dizem democratas e pelos direitos humanos. Falta a paciência para o desequilíbrio mediático no tratamento destes assuntos.

O sentimento de impotência para acudir ao povo ucraniano faz com que alguns se deixem encantar pela fábula das guerras que pretendem a paz e a democracia. Sempre que foram tentadas, falharam. A transformação necessária não vem de nenhum tipo de contra-invasão externa. Isso é só adicionar guerra à guerra. A transformação emancipatória só pode provir dos próprios povos.

Não ao expansionismo russo, não à NATO. Não à guerra, sim à paz.

Hirschman ensina-nos sempre qualquer coisa


O progresso cívico não é feito tão só de lutas materiais. Hirschman ensina-nos que os avanços também tiveram de confrontar a oposição dos argumentos, que uma parte da disputa com o conservadorismo desenrolou-se e continua a desenrolar-se no campo da retórica. Em suma, que é necessário convencer para vencer.

Excerto de um artigo de Fernando Ampudia de Haro no setenta e quatro, baseando-se num dos melhores livros de ciências sociais e humanas que eu já li, traduzido para português com o diluído título de O Pensamento Conservador nos regressivos anos noventa. 

Como já aqui argumentei, a conversa com Hirschman, Doutor Honoris Causa pela minha faculdade, a que tem uma sala Keynes, devendo ser fiel a esses nomes, tem mesmo de continuar, da economia política do desenvolvimento à história das ideias.

PS. E, por favor, alguém traduza Exit, Voice and Loyalty. Se medirmos os livros pelo número de vezes que nos lembramos deles para interpretar situações, então pouco mais de uma centena de páginas valem por tantas, mas mesmo por tantas, milhares... 
 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Internacional


Não sou militante do PCP, mas é dos comunistas que estou mais próximo em matéria internacional nas presentes circunstâncias históricas, num blogue plural das esquerdas. 

É um partido que assume consequentemente as virtudes do sistema felizmente mais multipolar, depois do momento unipolar a seguir à catástrofe geopolítica do fim do mundo soviético. Neste contexto, reconhece plenamente o papel do imperialismo, política externa do capital financeiro, em particular da superpotência norte-americana, e dos freios e contrapesos externos, sublinho externos, que a Federação Russa ou a China colocam cada vez mais a tal processo, descontrolado desde 1989-1991:

“A actual situação e seus desenvolvimentos recentes são inseparáveis de décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa, nos planos militar, económico e político, em que avulta o contínuo alargamento da NATO e o sistemático avanço da instalação de meios e contingentes militares deste bloco político-militar cada vez mais próximo das fronteiras da Federação Russa.”

Ao contrário do que pensam alguns profetas desarmados por uma conversa vaga sobre direitos humanos, ainda para mais numa concepção individualista-liberal espontânea, a paz só se obtém se as grandes potências se refrearem mutua e concertadamente. Isto implica não dar carta branca a organizações militaristas made in USA, tentando enfraquecê-las ao máximo. As palavras não bastam. 

Nas relações internacionais, a política interna dos Estados não é a base informacional única, longe disso, para avaliar os efeitos da sua política externa à esquerda. Isto aplica-se à Federação Russa e com maioria de razão à República Popular da China: aí, teremos mesmo de continuar a atirar barro à muralha. Os comunistas sabem disso: multipolaridade e anti-imperialismo. Há melhor?


Lembrar


«Estou sozinho no mar largo, sem medo à noite cerrada. Vamos, senhor pensativo, olhe o cachimbo a apagar. Fui andarilho das bruxas, moço de São Cipriano. Já fui morto e ainda vivo. Águas passadas do rio, meu sono vazio não vão acordar. Dorme, meu menino, a estrela d’alva já a procurei e não a vi. Assim tu souberas, irmã cotovia, dizer-me se esperas o nascer do dia. A lua, que é viajante, é que nos pode informar. Oh ribeiras, chorai, que eu não volto a cantar. Oh meu bem, se tu te fores, como dizem que te vais, deixa-me o teu nome escrito numa pedrinha do cais. Ali está o rio, dois homens na margem estão. Companheiros de aventura, vinde comigo viajar. A noite é negra, a vida é dura, não faço gosto em voltar. Muito à flor das águas, noite marinheira, vem devagarinho para a minha beira. Batem à porta da hospedaria. Se for o vento, manda-o entrar. Em terras, em todas as fronteiras, seja bem-vindo quem vier por bem. Venham aves do céu pousar de mansinho, por sobre os ombros do meu menino. Já fui vento do levante, já fui andarilho, cantor. Chamaram-me um dia cigano e maltês. Minha mãe, quando eu morrer, ai chore por quem muito amargou.»

Fernando Alves, Canção

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A área política do BE é pró-russa? Desconhecimento ou má-fé


Não sou membro do BE, mas é do seu posicionamento geopolítico que me sinto mais próximo no espectro partidário português. É possível ser crítico de Putin sem comprar a narrativa da NATO. A NATO não é a Internacional Democrata. Muito pelo contrário. Faz alianças com os regimes que atentam contra os direitos humanos e promove guerras com fins de hegemonia geopolítica. 

Há uma tentativa pública de tentar colar essa área política a Putin. É conveniente ao extremo-centro que precisa disso para amnistiar o seu posicionamento. "Nós ou a barbárie" é um instrumento panfletário que alimenta o medo de onde extrai dividendos políticos. Essa atitude revela o mais básico oportunismo, sustentado no desconhecimento ou na má-fé.

As partes constitutivas do BE sempre estiveram, mesmo na sua raiz organizacional, fora do espaço de influência soviético. O anti-reviosinismo da UDP declarava a  URSS como social-imperialista desde o XX congresso do PCUS , o  PSR repudiava a experiência soviética além da morte de Lenine, os reformistas do PCP que vieram a integrar a Política XXI tinham como principal ponto comum a crítica ao socialismo real . 

Quando o BE foi constituído, todos os seus fundadores concordaram repudiar experiências de socialismo real assentes no partido único. 

De caminho, essa área política tem denunciado Putin como um plutocrata, um déspota e um apoiante da extrema-direita. Nada de esquerda existe vagamente na Rússia do século XXI. 

Insinuar que essa área política está subordinada a Moscovo é, pois, do ponto de vista factual, estritamente errado. 

Só o não-alinhamento respeita os valores da paz e da solidariedade internacionais. Claro que a área polítca do Partido Socialista não gosta de ouvir isto. Afinal, o PS sempre foi o cão do dono da NATO e dos EUA em Portugal desde o 25 de Abril. Kissinger, esse democrata, sempre foi "muito lá de casa". 

 O PS, que adora lançar a cartada da social-democracia nórdica para seduzir eleitorado de esquerda, poderia aprender com a social-democracia sueca da década de 70 as virtudes do não-alinhamento. Mas não pode ser. Afinal, historicamente são eles que estão bem enfeudados. 

Podem ficar com sangue nas mãos. Mas não em nosso nome. 


Para trocar umas ideias


Desde 16 de Fevereiro de 2022 que a última página do Público melhorou substancialmente, graças a Carmo Afonso: “Os grandes derrotados daquela noite [eleitoral] são trabalhadores portugueses, os que vivem do seu trabalho, os que dependem do salário mínimo nacional (SMN), os que não são classe média e que provavelmente não chegarão lá.”

Concordando que o PS não é socialista, seria bom que trocássemos umas ideias sobre a hipótese de que é social-democrata. Nem é bem isso, na realidade. Por social-democracia entendo a tentativa de maximizar a justiça social no quadro de um capitalismo tão impuro quanto possivelmente democratizado. Uma rematada ilusão, em última instância, fora de um contexto muito peculiar, marcado pelo medo de uma alternativa sistémica. 

O Estado social foi sua máxima tradução institucional à escala nacional, com quatro pilares articulados: para lá do objetivo de pleno emprego, obtido graças a políticas económicas com objetivos sociais, temos a regulação do trabalho, que reconheceu, através do direito e da ação sindical, que este não deve ser tratado como uma mercadoria, a provisão subsidiada, tendencialmente gratuita, de bens e serviços públicos e um conjunto de prestações sociais de proteção face a diversas contingências.

O drama é que a social-democracia lusa, em linha com parte da europeia, desistiu do primeiro pilar e aceitou a erosão dos restantes, ao abdicar de instrumentos de política na escala onde está a democracia desde Maastricht, não por acaso no início dos anos noventa: impotência democrática e demasiada injustiça social são alguns dos resultados. Na prática, e em muita da teoria, o PS só é social-democrata de forma bastante incompleta. A UE realmente existente é um dos principais bloqueios institucionais a essa possibilidade, ainda mais nas periferias.   

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Porque é que Portugal não consegue sair da armadilha do crescimento lento?


A propósito da publicação do 8º relatório da Comissão Europeia sobre a coesão económica (acessível aqui), Elisa Ferreira notou que os países do Sul da Europa, nos quais se insere Portugal, “estão a estagnar e a ficar para trás”. A comissária portuguesa apontou uma razão para esta tendência: depois de “serem supridas as primeiras deficiências estruturais de investimento, nomeadamente através de investimentos em infraestruturas, os países acabam por estagnar numa espécie de alçapão de crescimento”. Embora os fundos europeus forneçam um impulso inicial, as economias tendem a abrandar e estagnar após atingirem níveis de rendimento per capita de 75% da média europeia – algo a que a Comissão se refere como a “armadilha de crescimento”.

Elisa Ferreira concluiu que, para alcançar crescimento de longo prazo, os países precisam de “acelerar a adoção e implementação dos programas da política de coesão para 2021-2027”. No entanto, por muito que o papel dos fundos comunitários não seja negligenciável, há bons motivos para pensar que não são estes que vão tirar Portugal da armadilha do crescimento lento.

1. Os fundos não evitam o declínio do investimento público

Há muito que Portugal tem aproveitado os fundos comunitários para substituir o financiamento nacional do investimento. No quadro financeiro de 2007-2013, estes fundos corresponderam a 34% do investimento público total no país, tendo passado para 52% no quadro de 2014-2020, o que fez de Portugal o país em que estes mais pesam no investimento público total. E a tendência tem-se acentuado: se olharmos para o período de 2015-2017, sobre o qual a Comissão disponibilizou dados específicos, os fundos de coesão representaram 84,2% do investimento total em Portugal. Ou seja, o Estado recorreu ao estes envelopes financeiros para financiar a esmagadora maioria do investimento executado. 

À direita, houve quem se apressasse a garantir que Portugal “anda de mão estendida” para a Europa. Mas não é isso que estes números nos mostram, já que os fundos de coesão são destinados sobretudo aos países menos desenvolvidos, que recebem proporcionalmente mais do que os restantes. A situação portuguesa reflete, acima de tudo, a enorme quebra do investimento público nos últimos anos. A estratégia de contenção orçamental levada a cabo em nome do cumprimento e superação das metas europeias teve como principal vítima o investimento do Estado, que nos últimos anos esteve em mínimos históricos. A fixação com o défice zero é um entrave a uma verdadeira estratégia de desenvolvimento para o país.

2. Os fundos não nos tiram da armadilha do crescimento

Não é possível encontrar soluções para a estagnação sem um diagnóstico sério sobre os fatores estruturais que prendem a economia portuguesa e, de um modo geral, a periferia do sul da Europa (como o que tem sido feito por outros autores deste blog, aqui, aqui ou aqui). A adesão ao Euro trouxe uma moeda sobrevalorizada, que favoreceu as importações e encareceu as exportações para o resto do mundo. Outros fenómenos, como a entrada China na OMC e dos países de Leste na União Europeia, contribuíram para o declínio da indústria portuguesa face à concorrência internacional. Com a liberalização financeira e a equalização das taxas de juro à escala europeia, houve um enorme aumento do endividamento das empresas e das famílias. Ao mesmo tempo, a pertença ao mercado único retirou (ou restringiu fortemente) os principais instrumentos de política industrial, como a definição de tarifas aduaneiras, o controlo público de empresas estratégicas ou as compras públicas, além de restringir a política orçamental através da definição de limites para o défice e para a dívida.

O desenvolvimento da estrutura produtiva foi deixado nas mãos do mercado. Isso levou a que o investimento privado se tenha canalizado para setores como a construção, o imobiliário e, mais recentemente, o turismo e a restauração. O que estes setores têm em comum é o facto de serem considerados não-transacionáveis, isto é, produzirem bens e serviços que não se compram e vendem nos mercados internacionais. O mercado favoreceu estes setores por estarem menos expostos à concorrência internacional e, por isso, permitirem maiores lucros no curto prazo. Mas há outros aspetos que estes setores têm em comum: baixo potencial produtivo, baixa incorporação de conhecimento e tecnologia, baixos salários e precariedade laboral.

A excessiva dependência deste tipo de setores é o principal fator de fragilidade da economia portuguesa. Além de promover um modelo de crescimento assente em baixos salários, esteve associada a fenómenos como a especulação imobiliária e a gentrificação das principais cidades. A pandemia acabou por torná-lo mais visível, uma vez que afetou especialmente o turismo e a restauração e teve, por isso, um impacto mais acentuado nos países onde estes setores têm maior peso. Foi isso que levou a agência alemã Scope Ratings a classificar as quatro economias periféricas do Sul da Europa – Portugal, Grécia, Espanha e Itália – como as mais vulneráveis à crise pandémica, pelo elevado peso do turismo no PIB, pela prevalência do trabalho temporário e pelo peso relativamente reduzido da produção industrial. 

Enquanto o papel do Estado continuar restringido pelas regras da concorrência e pelas metas orçamentais da UE, dificilmente conseguiremos sair da armadilha do crescimento lento em que nos encontramos. Nesse contexto, os próximos fundos comunitários têm tudo para desiludir os seus entusiastas.
 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

"Estes compromissos dos bancos centrais são “eternos” enquanto duram..."


No dia 15 deste mês um professor de Economia da Universidade Nova deu uma entrevista ao Público que nos diz muito sobre a natureza da teoria convencional hoje dominante. Começa por dizer que todas as teorias apontavam para a inevitabilidade da inflação ocorrer agora. Os elevados défices e os pacotes de ajuda desproporcionados (leia-se, em demasia) terão dado origem a um excesso de procura, segundo o professor. Acontece que não é verdade que todos os economistas tenham subscrito esta fábula. (ver Bill Mitchell).


Os economistas da Teoria Monetária Moderna desmentiram este raciocínio porque, olhando para a realidade, viram que os estrangulamentos nas cadeias produtivas, as perturbações na agricultura causadas pelo mau tempo, e a subida dos preços da energia, são problemas do lado da oferta. É na oferta que há pressão para a subida dos custos e sua repercussão nos preços (alguns aproveitam para subir proporcionalmente mais, quando têm poder de mercado), e não num excesso de procura como insinuam os economistas "sérios". Para estes economistas a realidade conta pouco e, quando não valida a sua teoria, passam adiante como se a realidade estivesse errada.


Depois, admite que os salários vão acompanhar a subida dos preços a que estamos a assistir, dando origem a uma espiral inflacionista (custos->preços->salários->preços). Onde está essa força negocial do trabalho para que se possa afirmar que "começamos a ter reivindicações salariais mais elevadas"? Onde está hoje a força dos sindicatos para que isso pudesse acontecer de forma generalizada a ponto de transformar uma subida de preços devido a causas temporárias (sobretudo energia, vamos ver o que acontece na Ucrânia) numa espiral que exigiria a intervenção do BCE? O mais certo é haver alguma subida de salários em profissões mais procuradas mas, no geral, perda de poder de compra dos trabalhadores acompanhada de lucros ainda maiores em empresas que aproveitam para subir os preços invocando a "inflação". Noutros tempos, para estas situações, havia uma autoridade que observava de perto e controlava os preços; hoje, estamos no (neo)liberalismo a que alguns se atrevem a chamar "socialismo".


Finalmente, o professor aponta para a medida de política que todos os especuladores do mercado financeiro exigem, a subida das taxas de juro. Notem como ele reconhece, implicitamente, que o juro é um preço político. Afinal, não são os mercados que fixam a taxa de juro, é o banco central. E agora pergunto eu: como é que a subida da taxa de juro resolve os estrangulamentos nas cadeias de produção? como é que a taxa de juro faz descer o preço da energia na actual conjuntura? Até há poucos dias o BCE também fazia esta análise mas ficou sob pressão político-ideológica para mudar de atitude quando se viu sozinho com este discurso. Vamos ver até onde vai porque em Frankfurt também se sabe que, deixando subir os juros da dívida pública, o que está em causa é a sobrevivência da Zona Euro num quadro de instabilidade geo-política na Europa. Notem que uma subida dos juros torna a vida das famílias e empresas endividadas ainda mais difícil neste tempo de pandemia.


De facto, a pandemia não acabou. Apenas estamos à espera de uma nova variante do vírus (não forçosamente mais benigna) já que ninguém quer ajudar a Índia, Brasil e África do Sul a produzir vacinas (só ganância). Assim sendo, subir os juros vai aumentar o crédito malparado nos bancos, vai adiar investimentos, vai produzir desemprego e ... vai aumentar os custos financeiros das empresas e, por essa via, alimentar a inflação que era suposto combater. Subir os juros só agravará a situação problemática em que nos encontramos.


Como brinde: a redução das compras de títulos de dívida por parte do BCE vai torná-los mais baratos, o que aumenta o juro implícito nas transacções (juro nominal fixado no título a dividir por um valor do título mais baixo dá um quociente - o rendimento % - mais elevado). Dado que é este rendimento que serve de referência para as novas emissões de dívida pública, sem a intervenção do BCE, a prazo teremos de pagar juros cada vez mais altos. Das duas uma: dentro de algum tempo os juros da periferia da Zona Euro voltam aos valores da crise 2010-2012 e então estaremos à beira do colapso da UE; ou, o mais provável, o BCE dá o dito por não dito e volta a comprar dívida pública e, portanto, faz baixar os juros. Que o mesmo é dizer, o BCE terá de manter uma medida que viola os tratados já que, na prática, está a financiar subrepticiamente os Estados-membros, em particular os da periferia Sul. Na Alemanha há quem não goste nada da eternização deste travão da crise.


E é isto, até que um dia os italianos se cansem de ser financiadores líquidos desta geringonça europeísta que afundou a sua indústria, ou a Alemanha entenda que já não ganha com este esquema. Ainda por cima, já não aguenta a mania federalista de Macron (a França a liderar a "potência Europa" porque tem poder militar atómico) e está farta de ser humilhada pelos EUA por se querer entender com Putin já que depende do gás da Rússia e é ali que está um bom mercado para as suas exportações. Na verdade, há muito que o eixo Paris-Berlim se tornou uma farsa, mas agora isso vê-se melhor. 


Tempos interessantes, estes.
  

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Inflação de mestres

Helena Lopes escreve um texto no Público de hoje que chama a atenção para a elevada percentagem de alunos portugueses inscritos em cursos de mestrado (33% contra 16% na média da OCDE). Os números saltam à vista e suscitam duas perguntas: o que explica o fenómeno e quais as suas consequências?
 
Duas explicações benignas seriam a sede de conhecimento da juventude nacional ou a grande procura por competências pós-graduadas pelas empresas portuguesas. Mas é provável que a explicação seja outra. Ou melhor um conjunto de factores combinados.
 
Primeiro, a oferta de cursos. Em muitas universidades públicas as verbas do Orçamento do Estado não chegam para cobrir os custos com as licenciaturas. As instituições precisam de procurar outras verbas. Os mestrados, que são pagos pelos alunos e não pelo OE, são uma importante fonte potencial de receitas. Só é preciso que haja procura. E a procura existe, por diferentes motivos.
 
O sistema de ensino superior expandiu-se de modo acelerado a partir da década de noventa, sem que existissem ainda professores qualificados em número suficiente e mecanismos eficazes de controlo da qualidade das formações. O resultado foi a emergência de várias divisões no campeonato das instituições de ensino – umas consideradas de excelência, outras de fraca qualidade, outras assim-assim. 
 
Uma das formas através dos quais os licenciados procuram melhorar o seu currículo é fazendo um mestrado numa instituição mais reputada do que aquela em que se licenciaram. Com a necessidade que têm de verbas, as primeiras abrem as suas portas a alunos que muitas vezes rejeitaram no acesso ao ensino superior.
 
A expansão do peso dos mestrados auto-alimenta-se. Por um lado, quanto mais mestres existem, mais esse grau se torna a referência no mercado de trabalho, levando jovens e adultos que apenas têm a licenciatura a sentirem a necessidade de adquirir o grau seguinte para competirem por empregos adequados. Por outro lado, as universidades criam uma dependência crescente das verbas de mestrados, habituando-se a colmatar as insuficiências financeiras abrindo novos cursos de mestrado e alargando as vagas nos cursos existentes.
 
Isto é bom ou é mau?
 
O aspecto mais positivo deste fenómeno é que um número significativo de pessoas que tiveram uma formação de base de menor qualidade têm assim a oportunidade de colmatar essa desvantagem. Isto pode ser um factor de igualdade de oportunidades, na medida em que os jovens que terminam o ensino secundário com menores médias vêm de estratos socioeconómicos mais desfavorecidos. A maior facilidade de acesso a cursos pós-graduados em instituições de maior qualidade é para muitos a oportunidade de ultrapassarem as desvantagens substantivas e simbólicas de partida.
 
Mas também há custos. Desde logo, os mestrados são caros (alguns muito caros) e na maioria dos casos são pagos pelos alunos ou pelas suas famílias, criando desigualdades no acesso. Não é certo que as pessoas com mestrado vão desempenhar tarefas mais sofisticadas: alguns estudos sugerem que fazem o mesmo que os licenciados. No entanto, como todos sentem a necessidade de ter um mestrado, não tanto por curiosidade intelectual, mas para não ficarem para trás, o mestrado vai-se tornando a referência, mesmo que acrescente pouco aos indivíduos e à sociedade. Neste sentido, é um desperdício colectivo de recursos.
 
Do lado das instituições de ensino, os docentes são cada vez mais pressionados para criarem novos cursos e leccionarem uma grande variedade de disciplinas a um número crescente de alunos, consumindo o tempo que deveriam em parte dedicar à produção de conhecimento.
 
Quando estas dinâmicas institucionais se estabelecem é muito difícil invertê-las. Mas há algumas coisas que podem ser feitas para conter o fenómeno, para reduzir os seus custos e para aumentar os seus benefícios potenciais. Uma é diminuir a dependência das universidades face às receitas próprias, reforçando as verbas do Orçamento do Estado para as instituições onde essa dependência é maior (assegurando, como é óbvio, o cumprimento de objectivos contratualizados com o Estado). Outro, é definir limites para as propinas de mestrado e reforçar as verbas da acção social para os estudantes deste nível de ensino. Por fim, reforçar os mecanismos de controlo de qualidade, tanto dos mestrados como das licenciaturas, evitando discrepâncias excessivas entre instituições. Se algumas destas coisas vai acontecer, é outra história.

 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Querido diário - "As más leis laborais"

Jornal Publico, 18/2/2012

Já havia mais de um milhão de desempregados. Mas caso se contasse todos aqueles que, estatisticamente, não eram considerados desempregados, mas que queriam trabalho e não tinham procurado ou não estavam disponíveis na semana do inquérito, o desemprego atingia já 1,3 milhões de trabalhadores. Em 2013, no ano seguinte, seriam 1,49 milhões de pessoas. 

No Parlamento, o então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho foi questionado sobre essa explosão histórica do desemprego. (Procurar aqui o debate integral, na data 18/2/012). Mas antes disso, fizera uma intervenção inicial sobre as reformas na administração pública que tinha em marcha e abordara o ponto da situação, traçando a reforma das contas públicas como essencial para o equilíbrio do país.

"Não só é necessário corrigir os desequilíbrios financeiros na ordem interna, desde logo corrigindo o défice público, mas também na ordem externa, corrigindo a balança de pagamentos, o nosso défice externo, e é importante também que se vão executando as reformas de fundo, as transformações relevantes na sociedade portuguesa que nos devem preparar para o «day after», para o dia seguinte ao da correção destes desequilíbrios, que não é um fim em si mesmo, mas um meio para nos permitir implementar em Portugal uma economia mais vigorosa e menos dependente dos subsídios públicos" 
Aplausos do PSD e do CDS-PP. 
(...) Ora, são as reformas estruturais que permitirão a Portugal exibir um novo padrão de crescimento e que permitirão que, à medida que elas forem sendo executadas, os mercados, os agentes económicos, os investidores, portanto, mas também a sociedade, percecionem a nossa capacidade para regressar ao mercado e, numa base de confiança, garantam o financiamento da economia, e também da economia pública, de forma sustentável. Essa é a razão pela qual, muitas vezes ainda, na imprensa internacional, se observa esta questão: «os senhores estão a cumprir as metas que estão acordadas e, desse ponto de vista, são um caso de sucesso».
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — De sucesso?!...

Isto foi há dez anos! Até parece que estamos a ouvir a campanha eleitoral deste ano!

Foi a seguir à intervenção de Passos Coelho que o PS, pela voz de António José Seguro, falou de "falhanço de uma receita". "Quero perguntar-lhe, Sr. Primeiro-Ministro: o que é que falhou? (...) Segundo os dados, ontem conhecidos, há, em Portugal, à procura de emprego 1,2 milhões de portugueses — repito, 1,2 milhões de portugueses!"

As respostas do então primeiro ministro são por demais bizarras, embora imbuídas de um ideário liberal. Atente-se à falta de profundidade do diagnóstico da situação da economia portuguesa e, depois, sinta-se a semelhança com as promessas ligeiras dos actuais liberais:

Linha editorial


Há um conjunto de treinadores de bancada, que se acham muito à esquerda, homens já sem grande ligação à vida política, descontando a simpatia pelo PS, com acesso à opinião nos jornais convencionais em declínio editorial, com muita tática para supostos ignaros e sem nenhuma estratégia para mudar o país. 

E depois há intelectuais radicais e competentes, como Sandra Monteiro, a olhar para todos os lados menos para o umbigo: o voto anti-austeridade, disponível na íntegra no sítio do Le Monde diplomatique - edição portuguesa. Infelizmente, raramente aparecem nos meios de comunicação social convencionais. É a vida. Não se desiste, claro.

 

Os cortes de impostos da direita não funcionam nem fazem falta

Os impostos voltaram ao centro do debate em Portugal. Muitos, à direita, veem no nível de fiscalidade um dos principais obstáculos ao desenvolvimento económico do país. Apesar de ter sido responsável pelo maior aumento de impostos sobre as famílias desde o início do século, a direita tem feito campanha pela redução de impostos para todos. No seu programa eleitoral, o PSD propunha começar por baixar o IRC para as empresas e depois avançar para eventuais reduções do IRS para as pessoas. A IL defende simultaneamente uma enorme redução do IRC (que quer mesmo eliminar a médio prazo) e do IRS (que quer alterar para passar a ter apenas uma taxa, de 15%). O CH já chegou a defender a abolição do IRS, seguindo o exemplo de países como o Vanuatu ou as Ilhas Caimão, mas a proposta não consta do último programa que apresentou. Em todo o caso, todos querem reduzir os impostos em geral. Vale a pena tentar perceber os impactos que estas medidas teriam.


1. Cortes de impostos para as empresas: não funcionam como dizem

A direita tem repetido à exaustão que os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico. A ideia é relativamente intuitiva: menos impostos sobre as empresas permitem-lhes aumentar os montantes que reinvestem, contribuindo para melhorar a produção e os salários. Nos debates para as eleições legislativas, o candidato da IL disse várias vezes que acreditava que a redução dos impostos se pagaria a si mesma através do crescimento gerado, pelo que o Estado não teria uma redução abrupta das receitas. O problema desta crença é que os factos teimam em desmenti-la, como mostra a recente revisão de literatura feita pelos economistas Philipp Heimberger e Sebastien Gechert.

Há estudos que usam diferentes indicadores: alterações nas taxas nominais, nas taxas efetivas ou nas receitas fiscais do Estado. Os efeitos avaliados podem ser de curto ou de longo prazo. A metodologia varia consideravelmente. E embora alguns apontem para um impacto positivo no crescimento, outros dizem que é nulo ou até negativo. Heimberger e Gechert analisaram dezenas de estudos empíricos sobre os impactos de cortes de impostos para as empresas e procuraram perceber se havia algum consenso. A conclusão é que, ao contrário do que os partidos de direita têm dito, não há evidência empírica que nos permita afirmar que esses cortes promovem o crescimento económico.

Temos até exemplos bem recentes do contrário, como o dos EUA: embora o governo de Donald Trump tenha cortado a taxa de imposto sobre as empresas de 35% para 21% (o valor mais baixo desde 1939), o investimento privado não acelerou e os salários não beneficiaram da medida. Quem ganhou verdadeiramente foram os acionistas e gestores de topo, cujos rendimentos beneficiaram do reforço da capitalização bolsista das empresas. Para os trabalhadores com salários médios ou baixos, o resultado acaba por ser negativo, dado que o Estado perde receita fiscal com que se financiam os serviços públicos de que todos beneficiam.


2. Cortes de impostos para os mais ricos: funcionam, mas só para eles

A ideia de que as medidas que beneficiam os mais ricos seriam boas para o conjunto da economia já é antiga. A economia “trickle down”, como ficou conhecida desde os tempos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, funcionaria da seguinte forma: enche-se o copo dos mais ricos e este acaba por transbordar para os que estão abaixo por via do consumo e do investimento privado, distribuindo os benefícios pela sociedade.

É isso que está na base de propostas como a da taxa plana de 15% para o IRS. A medida representaria um alívio fiscal de enormes proporções para os escalões mais elevados, ao passo que deixaria na mesma os 44% de agregados familiares que não pagam IRS (por terem rendimentos baixos) e deixaria quase na mesma quem recebe salários médios, já que os eventuais pequenos ganhos seriam mais do que compensados pela redução das receitas com que se financiam os serviços públicos. No essencial, a lógica da medida é a mesma: se se baixarem os impostos para os que recebem mais, os restantes acabarão por beneficiar do aumento do investimento dos primeiros.

O problema é que a realidade tem sido bastante diferente: Julian Limberg (King’s College) e David Hope (London School of Economics) publicaram este ano um estudo em que analisam os impactos de cortes de impostos para os mais ricos ao longo dos últimos 50 anos e concluem que não promoveram o crescimento prometido. “Focando-nos no desempenho económico, não encontramos efeitos significativos de grandes cortes de impostos. Mais especificamente, a trajetória do PIB per capita e da taxa de desemprego não são afetadas por reduções significativas dos impostos sobre os ricos, tanto no curto como no médio prazo”, escrevem os autores do estudo, que já tinha sido referido neste blog.

O único efeito visível que estes cortes de impostos têm é na desigualdade. Nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada aos 1% mais ricos foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por estes mais aumentou. Ou seja, nesses países, o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo, como mostrou um estudo de Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva (fonte do gráfico acima). Portugal é identificado pelos autores como um dos países que mais reduziu os impostos sobre os mais ricos, e a tendência foi a mesma: a fatia do bolo captada pelo 1% do topo aumentou, ao mesmo tempo que se reduzia a dos 50% da base da distribuição.


Entre os partidos de direita, a IL é o que tem sido mais vocal na defesa deste tipo de medidas. Os liberais costumam dizer que o seu programa económico já foi testado em vários países, e têm toda a razão. Mas era bom olharmos mais para os resultados que teve: mais concentração de riqueza no topo e mais desigualdades.
 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um chocolatinho...


... para o jornalista ou a jornalista, entrevistador ou entrevistadora que, quando alguém fala na necessidade de o país fazer «reformas» («estruturais» ou, nova moda, «transformacionais»), não deixe de perguntar o que é que, na prática, se pretende. E insistindo, se necessário, para que se afirme de forma clara que medidas concretas se estão a defender.

É que enunciar simplesmente a palavra, como se tudo ficasse subentendido, não chega. Porque «reformas estruturais» há de facto muitas (como estas ou esta) e com objetivos muito distintos. Concretizando, percebemos o que se quer, evitando-se o risco de ficarmos a pensar que só não se diz ao que se vem por receio de se perceber o que pode estar em causa: privatizar, reduzir o papel do Estado, desregular o mercado de trabalho e demais tralha programática da «economia do pingo» (que depois nunca pinga).

Adenda: Apenas a título de exemplo, passem os olhos por alguns artigos de opinião (este, este, este, este, este ou este), publicados já depois das últimas legislativas, e tentem lá descortinar de que medidas e políticas concretas estarão os seus autores a querer (não) falar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A tirania do mérito


«Quem alcançou o topo, passou a acreditar que o sucesso foi um feito seu, uma medida do seu mérito. E que quem saiu a perder só tem que se culpar a si próprio. Esta forma de pensar no sucesso emerge de um princípio aparentemente atraente. Se todos tiverem as mesmas oportunidades, os vencedores merecem as suas vitórias. É esta a essência do ideal meritocrático. Na prática, claro, as coisas são muito diferentes. Nem todos têm as mesmas oportunidades para subir. Os filhos de famílias pobres tendem a manter-se pobres, e os pais abastados a conseguir passar as suas vantagens aos filhos. Nas universidades de Ivy League - as de maior prestígio nos EUA - por exemplo, há mais estudantes do topo de 1% do que de toda a metade inferior do país.
(...) A meritocracia corrói o bem comum. Leva à arrogância entre os vencedores e à humilhação entre os que saem a perder. Enche de vaidade quem tem sucesso, fazendo esquecer a sorte e os ventos favoráveis que ajudaram no caminho. E leva a desprezar os menos afortunados e menos bem-sucedidos. E isto é politicamente importante, pois uma das causas mais fortes da revolta popular é a sensação, entre muitos trabalhadores, de que a elite os despreza.
(...) Devíamos focar-nos menos em preparar pessoas para o combate meritocrático e focarmo-nos mais em melhorar a vida de quem não tem um diploma, mas que tem um contributo essencial na nossa sociedade. É preciso renovar a dignidade do trabalho e colocá-la no centro da política.
(...) A atual pandemia torna tudo isto muito claro. Revela o quão profundamente dependemos de trabalhadores que, muitas vezes, ignoramos. Distribuidores, técnicos de manutenção, empregados de mercearia, empregados de armazém, camionistas, auxiliares de enfermagem, educadores de infância, prestadores de cuidados ao domicílio. Não são os mais bem-pagos nem os mais reverenciados, mas hoje reconhecemos que são trabalhadores essenciais. E por isso este é o momento para um debate público sobre como alinhar o seu salário com esse reconhecimento e a importância do seu trabalho. E é também o momento para uma mudança moral e até espiritual, que nos leve a questionar a nossa arrogância meritocrática. (...) Insistir na ideia de que o meu sucesso só a mim se deve dificulta o exercício de me colocar no lugar dos outros
».

Michael Sandel, A tirania do mérito (legendas em português)

Querido diário - São só rosas, meus senhores

Jornal Publico, 15/2/2012

Não era só um programa de austeridade. Não era apenas um programa para ensinar os portugueses a poupar, já que, no seu pensamento, apenas se pode investir quando há poupança prévia.

Há dez anos, esta era a revisão de um programa que, hoje, os liberais - se não usassem na altura bibe e chapéu, à excepção de João Cotrim de Figueiredo que já era dirigente do Turismo na dependência do então secretário de Estado e centrista Adolfo Mesquita Nunes (hoje da IL) - achariam necessário voltar a aplicar, se tivessem a honestidade de confirmar o falhanço em que redundou face aos objectivos anunciados. A tal ponto foi falhanço que os seus resultados ainda hoje perduram e são usados pelos liberais para acusar o Governo do PS, que lhes sucedeu, de ter falhado.



Os liberais quando confrontados com estas medidas, farão como a rainha D.Isabel que - reza a lenda - foi confrontada pelo rei D.Dinis que estava contra a política de banco alimentar da rainha. E quando questionada sobre o que levava no regaço (e deviam ser pães, pelo menos foi o que ela lá pusera), respondeu candidamente, deixando cair no chão o que levava:

- São só rosas, meu senhor.

E não é que o chão se encheu de rosas? Se alguma coisa esta lenda prova, é que é sempre possível no futuro mentirmos sobre o essencial do passado, porque alguém transformará essas mentira em algo aventuroso e abençoado. Neste caso, a bênção dos liberais é que já ninguém queira lembrar-se do que fizeram então ao país... e até achem que eles nunca estiveram na política, que são jovens virgens (de pecado), acabados de aterrar... como então a troika.

E o que os liberais de então não elogiaram a troika! Sobretudo quando, poucos dias depois de aterrar em Lisboa, apresentou o seu completo programa calendarizado para o empobrecimento de Portugal e que levaria um quarto dos portugueses activos ao desemprego e à emigração!

- São só rosas, meus senhores.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Das miseráveis campanhas da direita contra o RSI

«Saí do Algarve sem trabalho e duas filhas, uma delas com síndrome de Down, e voltei para a casa da minha mãe. Tinha teto, água, luz, internet não, comida na mesa. Tinha os abonos das miúdas, uma bonificação por deficiência, da Clara, e a vida ia-se fazendo. Até que deixou de haver mãe em casa, deixou de haver comida na mesa, água e luz ia havendo, internet não, mas os abonos e a bonificação davam para a comida, e nós lá íamos continuando a viver. E fomos vivendo até a Francisca ir para a universidade. (...) Sim, eu já recebi RSI, e sim, nunca na vida fiz nada tão difícil, tão doloroso, tão humilhante. Nunca me senti tão frágil na frente de quem tinha a minha vida, e a das minhas filhas, nas mãos. O que se recebe não é uma esmola, é vida, é dinheiro que não tínhamos se não fosse isso, é o oxigénio de que se precisa, é um direito que quase temos vergonha de exercer, mas é um direito, e que continue a sê-lo, porque esse direito, tão malfalado, tão degradado, tão vilipendiado, permite coisas tão simples como ir ao supermercado comprar pão e leite, e permitiu, também, à Francisca, apesar de ter sido riscada do agregado familiar, terminar a licenciatura, mesmo que eu tenha tido de passar por gabinetes com portas estragadas e rogar por ele desvirando as tripas» (testemunho de Teresa São Miguel na Visão, a ler na íntegra).

Talvez assim, com testemunhos pungentes como o de Teresa São Miguel, se perceba melhor que a mais escrutinada de todas as prestações sociais (em média 3 ações de fiscalização por dia, entre 2015 e 2021) tem pouco ou nada que ver com a imagem que a direita, nomeadamente o Chega, mas também CDS e PSD, lhe tenta colar. O RSI abrange de facto situações sociais muito distintas, que não se esgotam nos casos - muito mais complexos e difíceis - de famílias desestruturadas e em que a pobreza se reproduz geracionalmente, com tudo o que isso implica.

Repetiremos, as vezes que for necessário, que o RSI responde às situações de maior pobreza. E que os seus beneficiários representam apenas 2% da população de um país com cerca de 2 milhões de pessoas em risco de pobreza (18%). Aliás, o RSI só abrange 11% deste universo de risco e apenas 1/3 do total de pessoas em privação material severa. Entre os beneficiários, 32% têm menos de 18 anos e 3,4% são idosos. Cerca de 11% trabalham e, ao contrário do retrato-robô traçado pela extrema-direita, apenas 3,8% pertencem à comunidade cigana. As verbas afetas ao RSI (cerca de 360M€ em 2018) representam 1,1% no total de despesa da Segurança Social (e 1,6% da despesa com prestações sociais). O valor médio mensal da prestação por família beneficiária rondava os 260€ no final de 2021.

O RSI é, na sua essência, um instrumento de inclusão que não se limita (nem se deve limitar) a «passar o cheque», antes requerendo um trabalho muito próximo de acompanhamento, orientado para a superação de obstáculos, problemas e dificuldades com as famílias (ao arrepio, portanto, de abordagens muitas vezes marcadas pelo paternalismo, caritativismo ou mesmo falta de empatia dos profissionais com as situações sociais em causa). E por isso do que menos precisa, quando as dificuldades de partida já são tantas, é da demagogia, da distorção e do oportunismo eleitoralista sem escrúpulos que a direita lhe dedica.

Meias verdades do Instituto +Liberdade: o retrato dos jovens em Portugal


O Instituto +Liberdade dedicou duas publicações recentes à situação laboral dos jovens em Portugal. Numa das publicações (aqui), pode ler-se que “num mercado de baixos salários e de insatisfação profissional, o desejo de emigrar aumenta, um sentimento manifestado por quase um terço dos jovens trabalhadores.” Na outra (aqui), baseada num estudo de Pedro Martins, ex-secretário de Estado do Emprego do governo PSD-CDS e atual membro da comissão de honra da Iniciativa Liberal, nota-se que “a recompensa salarial por cada ano adicional de escolaridade nesta geração [1990-99] mais nova é metade do que se verificava na geração de 1940-49.”

Comum a ambas as publicações é a ausência de referência às origens do atual cenário. Embora apontem problemas sérios que nos devem preocupar, como os baixos salários e a falta de realização profissional entre os jovens, estas publicações não discutem os motivos que nos trouxeram aqui. A verdade é que os liberais têm atribuído frequentemente os problemas do trabalho em Portugal à progressividade fiscal, por muito que os factos o desmintam.

No entanto, vale a pena olhar para outros fatores, como a flexibilização laboral, que costumava ser um tema popular à direita. Em 2012, Álvaro Santos Pereira, então ministro da Economia do governo PSD-CDS, garantia que as reformas da Troika tornariam a economia mais competitiva. O Governo tinha duas justificações: a flexibilização laboral tornaria mais fáceis as contratações, contribuindo para reduzir o desemprego, e retiraria a proteção “excessiva” dos trabalhadores, aumentando os incentivos para se tornarem mais produtivos. Como sabemos, a realidade foi bem distinta: em 2013, o país registou a taxa de desemprego mais elevada da sua história recente (16,2%).

A ideia de que a precariedade incentiva os trabalhadores e promove a produtividade também tem sido desmentida pela evidência empírica. Um estudo publicado pelo economista Alfred Kleinknecht em 2020 relaciona a flexibilização laboral e a precariedade com a estagnação da produtividade que as economias desenvolvidas têm registado nos últimos anos. Há bons motivos para o explicar: os trabalhadores com vínculos estáveis têm maior capacidade para adquirir e aplicar conhecimentos específicos no processo produtivo. Além disso, a proteção laboral favorece o compromisso e a cooperação no contexto laboral e leva as empresas a investir na formação dos trabalhadores, promovendo as qualificações.

A precariedade tem tido, isso sim, um efeito inequívoco de compressão dos salários. Um relatório da própria Comissão Europeia reconhece que existe um diferencial salarial entre contratos precários e permanentes nos países da União Europeia, notando também que este é maior nos países que têm maior percentagem de precários. Portugal, onde o trabalho temporário entre os jovens tem vindo a crescer substancialmente, é o segundo país da UE com maior peso deste tipo de contratos, bem acima da média europeia. E a diferença agrava-se quando se olha para a proporção de pessoas que apontam como principal motivo para terem contratos temporários o facto de não terem encontrado emprego permanente: são 37,1%, quando a média europeia é pouco mais de 13%. Em relação ao prémio salarial da educação, embora seja verdade que possa estar relacionado com o aumento da população com ensino superior, o estudo da CE também diz que “o prémio salarial da educação é superior para trabalhadores com contratos permanentes”.

A evidência empírica tem confirmado a existência de uma relação entre a desregulação laboral e a redução da wage-share, isto é, a fração do rendimento produzido num país que é recebida pelo fator trabalho (por outras palavras, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores), algo que foi reconhecido num estudo de três investigadores do FMI.

A precariedade também deixa os jovens mais desprotegidos no mundo do trabalho. Os dados mais recentes do INE mostram isso mesmo: a tendência de recuperação do emprego no ano passado não se tem feito sentir entre as gerações mais novas, cuja taxa de desemprego subiu para 23,4%. A taxa de desemprego jovem já representa 3,5 vezes a da população total (em 2014, após a última crise, representava 2,5 vezes). Paulo Marques, do Observatório do Emprego Jovem, sublinha que “houve muita destruição de emprego jovem porque esses jovens tinham contratos a termo certo” que não foram renovados.

Renato Miguel do Carmo, do Observatório da Desigualdade, aponta no mesmo sentido: “Um dos problemas fundamentais da geração de trabalhadores mais jovens é a precarização do trabalho. Estavam na antecâmara do desemprego quando aconteceu a pandemia”. O desemprego de longa duração, que tem aumentado, pode fomentar a desvalorização de competências e a exclusão social. E nem é apenas entre os mais jovens. Os números do INE mostram que o desemprego está a atingir particularmente a faixa etária dos 35 aos 44 anos, pelo facto de ser uma geração que “foi muito atingida [pela última crise] e entrou para o mercado de trabalho com contratos muito precários”, como refere Paulo Marques.

É difícil ignorar os impactos da precariedade nos salários e na vulnerabilidade das gerações mais jovens. Na prática, os liberais queixam-se hoje do resultado das políticas que implementaram e que continuam a defender: nos últimos programas da IL, encontram-se propostas para facilitar os despedimentos, reintroduzir o banco de horas individual ou aumentar o período experimental. Quando o diagnóstico é errado, dificilmente se propõem boas soluções.