O PS está em festa, mas não há razões para isso.
Olhe-se para os grandes números, o que é sempre simplista, dada a complexidade de comportamentos e programas em eleições. Mas integre-se nos partidos de esquerda, o PS - mesmo com o seu lastro de cedência e até adesão às políticas de direita neoliberal; o BE e seus partidos fundadores, as coligações eleitorais do PCP e o PAN - pelas suas posições de defesa do Estado Social, apesar do seu discurso pugnar por não ser nem direita nem esquerda...
Desde o cavaquismo com o seu programa neoliberal, este eleitorado de esquerda manteve-se vitorioso nos quase últimos 30 anos, apenas com um sobressalto em 2011, no rescaldo da crise do euro em que o PSD e CDS venceram com uma proposta fortemente neoliberal, mas de cujo falhanço económico e social ainda não recuperaram. Contudo, o consenso entre o PS e o PSD em torno da forma de integração europeia têm permitido a manutenção dessas linhas de força, independentemente do partido no poder. Só que os efeitos dessa agenda parecem estar a impedir a progressão do eleitorado de esquerda. Pelo contrário: desde 2005 - após a recessão de 2003 em que a direita neoliberal esteve no poder (Durão Barroso/Santana Lopes) - a tendência parece ser a de descer progressivamente.
Nestas últimas eleições, a perda do eleitorado do PCP e do BE insuflou a votação no PS. Mas mesmo assim a esquerda perdeu 56 mil votos face a 2019, quando já tinham só ganho 110 mil votos face aos resultados eleitorais de 2015, eleições no final da intervenção da troica, quando era expectável que a esquerda - nomeadamente o PS - esmagasse a direita e o não o conseguiu.
Já os partidos de direita - que têm apenas lambido as feridas dos seus desaires - ganharam nestas eleições quase 550 mil votos em 2022, recuperando os 224 mil que tinham perdido em 2019 face a 2015. E isto já contando com a queda estrondosa do CDS, com menos 130 mil votos que redundou na perda de todos os deputados. Nestas eleições e apesar de ter perdido, o PSD ainda ganhou 77,9 mil votos. Os votos nos Outros Partidos afundaram, tal como os votos Brancos e Nulos (menos 100 mil votos).
Assim, a diferença entre os partidos de esquerda e de direita que, em 2019, ultrapassara os 1,16 milhões de votos, reduziu-se nestas eleições para 556 mil votos. Acresce que a subida da direita coincidiu com a subida do número de novos votantes (mais 296 mil novos votantes face a 2019), invertendo a tendência de queda verificada desde 2005. Curiosidade é o facto desse acréscimo de votantes coincidir, grosso modo, em todos os distritos (e mesmo em todos os concelhos, por exemplo de Lisboa), com o acréscimo de votantes no partido da extrema-direita.
O que os números parecem, pois, demonstrar é que colou muito bem - com ajuda de uma deslumbrada comunicação social - o discurso da extrema-direita e da extrema-direita económica neoliberal de que o pântano está associado ao socialismo e que socialismo é igual a uma presença do Estado na sociedade.
Ora, há uma razão para que este discurso vingue assim. É que, em parte, esse discurso tem a sua razão de ser.
Não, não é o socialismo que está a provocar a quase estagnação económica, a precariedade dos empregos, os maus salários, a vida desgraçada dos assalariados, as marmitas, os tempos de transporte e de trabalho, a perda de poder de compra das pensões, a expulsão dos pobres das cidades - e sobretudo a estagnação da vida dos jovens que não conseguem viver, ter família, ter habitação condigna, ser autónomos e terem perspectivas de uma vida equilibrada.
São, sim, as consequências prolongadas das políticas neoliberais europeias que se fazem sentir, de forma cumulativa, na sociedade e na economia que impedem uma política laboral que equilibre as relações laborais, que fortaleça o papel sindical e consiga uma mais justa política de distribuição do rendimento; ou uma política orçamental que faça do investimento público uma mola motriz para o desenvolvimento nacional. E aí os pequenos apoios sociais mal disfarçam essa realidade. E as pessoas sentem isso mesmo.
O eleitorado em 2022 ficou entre duas tenazes de uma torquez: um eleitorado mais velho desgastado, desiludido pela falta de soluções sociais e económicas sentidas na sua vida, que - em vez de ser ganho pelo contestação a uma matriz neoliberal que nos reina - está a ser conquistado pelo falso discurso anti-sistema da extrema-direita; e, do outro, o discurso liberal que cola como grude nos jovens sem referências nem memória, que nasceram no neoliberalismo e apenas vêem partidos diferentes a fazer a mesma política, fortemente imbuídos de uma lógica individualista criada por décadas de neoliberalismo aplicado em Portugal, importado nos meios de comunicação social, que pugna por empreendedores e vencedores sobre os falhados, jovens que não sabem que as "soluções" da extrema-direita liberal já foram aplicadas em força no estrangeiro e cá e que... não funcionaram! Ora, essas duas tenazes vão continuar a beneficiar e a capitalizar o descontentamento criado pela aplicação durante décadas de uma política de integração europeia que está a prejudicar o desempenho do país.
O PS pode, pois, alegrar-se com esta maioria absoluta. Mas o PS vai estar sozinho neste mandato. Repita o governo PS as políticas seguidas até aqui e verá que a diferença de votos com a direita se estreitará. E então a queda do PS será abrupta porque já nem contará com os votos amigos. Será a desilusão, tal como o foi a campanha eleitoral do PS.
A sociedade portuguesa vai mimetizar o que se passa noutros países, como em França, em que já temos dois partidos poderosos da... extrema-direita.
Ou partidos de esquerda conseguem aproveitar estes quatro anos - se não forem menos, caso se inverta a política financeira europeia - para encontrar (é possível?!) uma forma de atenuar os efeitos desastrosos dos instrumentos e do quadro institucional europeu que estão a produzir estes efeitos políticos e assim combater em força as posições ideológicas das diversas extremas-direitas; ou, daqui a quatro anos, esses efeitos continuam a fazer-se sentir e veremos a direita mais radical a entrar em força por S.Bento, aliada ao velho PSD, como já se viu nesta campanha eleitoral (nas posições de Paulo Rangel e nas cedências de Rui Rio), impondo-se assim uma agenda que implodirá com o Estado Social, com a banca pública, com a Segurança Social.
E nessa altura, apenas restará à esquerda - se não quiser repetir os erros passados - uma estratégia que pugne por arredar as causas profundas da ascensão da extrema-direita, e que sustente a prazo a saída de uma camisa de onze varas que nos arrasta para o fundo. Mas pode ser um combate que vai erguer-se das cinzas do Estado Social.
São, pois, apenas quatro anos intensos que temos pela frente. Se tanto.
8 comentários:
Não, João, não são quatro, são cinco. Ou, mais rigorosamente, cerca de quatro anos e oito meses, isto é, perto de cinco anos.
Consulta, por favor, a Lei Eleitoral da Assembleia da República, Lei nº 14/79, de 16 de maio, Art. 19º, nº 2: «No caso de eleições para nova legislatura, essas realizam-se entre o dia 14 de setembro e o dia 14 de outubro do ano correspondente ao termo da legislatura». E faz as contas.
Isto, claro, se o PS, contudo ajudado pela sua maioria absoluta, cumprir o mandato até ao fim. Muita água ainda vai correr.
Caro anónimo,
Obrigado por esta precisão. Há mesmo que contar o tempo quando é curto.
Sugeria a realização de um Forum onde as várias forças politicas de esquerda,movimentos sociais,associações culturais e outras,para discutir a necessidade de criar uma verdadeira Alternativa de Esquerda mobilizadora face a politicas Neo-liberais que nos têm levado ao empobrecimento e ao agravamento das desigualdades.
O Costa se quiser concorrer à presidência vai ter que sair antes...
Mesmo reconhecendo a influência que os fatores externos têm na nossa economia muito dependente do exterior, parece-me que o artigo desculpabiliza por completo os 6 anos de governação de esquerda PS-CDU-BE. Parece-me muito forçado culpar a UE pela inexistência de investimento público, do reforço dos instrumentos de contratação coletiva, da falta de uma política laboral que equilibre as relações laborais. O país precisa claramente de uma alternativa que promova o crescimento económico e proteja os mais fracos e vulneráveis, se for de direita (seja lá o que isso for), qual é o problema?. De qualquer forma gostei do artigo na generalidade.
João Ramos de Almeida, em face de uma brutal derrota, em vez de analisar as causas da fuga de votos da Esquerda para o PS (a Direita como bem diz cresceu, só o PSD não aproveitou muito por causa da fraqueza de Rio como candidato, logo o voto útil no PS parece ter feito sentido), você começa logo a enumerar o que pode correr mal aos socialistas.
Isto tem um nome, wishful thinking e ainda por cima, trata-se de um wishful thinking que deseja a crise. Cuidado com o que deseja.
Admitamos por um momento a vossa tese de que AC provocou esta crise com o intuito de obter aquilo que de facto obteve, a maioria absoluta, e deixando de lado que não apenas isso faria dele um cínico antipatriota que brincaria com a situação pandémica em proveito próprio, como um néscio que tudo arriscaria numa altura em que uma nova variante poderia surgir, como efetivamente surgiu, e estragar-lhe o arranjinho (no final a ómicron não teve os efeitos da alfa há um ano, graças à vacinação e à sua própria natureza).
Se isso foi assim, então vocês foram uns ingénuos que caíram como patinhos na armadilha. Não vale a pena queixarem-se, como o Daniel Oliveira, que foi António Costa que não jogou limpo, porque a política não é para amadores...
Pelo menos Lenine não era ingénuo...
Acha realmente que isto abona em relação à capacidade da Esquerda em construir uma estratégia eficaz para o futuro? Eu acho que não abona nada.
O que observaremos é o que temos observado, queixumes porque o terreno está desnivelado em favor do PS, do Centro e da Direita, por causa da comunicação social, da UE, etc, etc.
Resumindo, um discurso que justifica tão só e apenas a vossa impotência e a vossa total falta de flexibilidade tática, a tal que Cunhal dizia que deveria ser máxima...
Ou será que a rigidez estratégica se enleou com ela e perderam as duas?
É verdade, mas a diminuição da abstenção provavelmente resultou nesses votos extra dos partidos da direita, não necessáriamente uma penalização da esquerda
«O PS pode, pois, alegrar-se com esta maioria absoluta. Mas o PS vai estar sozinho neste mandato. Repita o governo PS as políticas seguidas até aqui e verá que a diferença de votos com a direita se estreitará. E então a queda do PS será abrupta porque já nem contará com os votos amigos. Será a desilusão, tal como o foi a campanha eleitoral do PS. A sociedade portuguesa vai mimetizar o que se passa noutros países, como em França, em que já temos dois partidos poderosos da... extrema-direita.»
João Ramos de Almeida, aquilo que escreveu nesta sua excelente análise é muito importante. Ou seja, não há motivos de alegria para os votantes do PS fazerem a festa, como eu vi fazerem nos dias que se seguiram à votação. Um deles até me chegou a dizer que o PS iria ajudar para que o PCP não desaparecesse do mapa político do país. Total engano, pensei eu, dado que um dos objetivos do PS foi sempre a de esmagar, senão mesmo destruir o PCP e tudo aquilo que representa no país.
Veremos até que ponto é que o Chega será, ou não, uma ameaça ao PSD e a toda aquela gente de mentalidade velha, caduca, toda ela ligada ao que é desprezível na sociedade (desde o consumo ao desperdício). Na cabeça daquela gente, há que ser cruel, mesquinho e até antidemocrático para se mostrar forte na política (até a própria palavra «sociedade» desprezam).
Serão 4 anos de luta e muito trabalho para o seu lado.
Uma saudação fraterna
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