segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A economia política das sanções à Rússia

 

Não tinham passado muitas horas desde o início da invasão da Ucrânia pelo exército russo quando os países ocidentais aplicaram as primeiras sanções económicas à Rússia. As sanções têm sido uma das armas mais utilizadas para responder a conflitos nos últimos anos e os países têm-nas usado como forma de tomar uma posição de força. É essa que parece ser, para já, a estratégia dos países do Ocidente na disputa com a Rússia. No entanto, há alguns motivos para termos dúvidas acerca da eficácia das atuais sanções.

O primeiro motivo prende-se com a possível resistência da economia russa. Nos últimos anos, as autoridades russas parecem ter levado a cabo uma estratégia de diversificação das suas reservas financeiras. Além de terem reduzido a dependência de reservas em dólares norte-americanos, acumularam reservas consideráveis de ouro durante este período e parecem ter-se preparado para aguentar a pressão, pelo menos de forma temporária. Teremos de aguardar para ver a eficácia das últimas medidas anunciadas, como a exclusão de alguns bancos russos do sistema SWIFT, que permite efetuar transações rápidas e eficientes entre instituições financeiras de todo o mundo. As medidas deste tipo arriscam-se a afetar mais a generalidade da população russa do que a sua elite.

O segundo motivo está relacionado com as dificuldades que os países ocidentais – e a União Europeia em particular – têm sentido para cortar relações económicas com a Rússia. A economia russa é fornecedora de 47% das importações de carvão da UE, 41% das de gás natural e 27% das de petróleo. A dependência energética dos países da UE face à Rússia, em parte resultante das limitações à política industrial impostas pela própria União aos Estados-Membros, torna difícil aplicar sanções que afetem os mercados da energia, que correspondem a uma parte importante das exportações russas. Há uma certa ironia nesta situação: as regras de concorrência europeias que retiram (ou restringem fortemente) a maioria dos instrumentos de política industrial, como a definição de tarifas aduaneiras, o controlo público de empresas estratégicas ou as compras públicas, impedem a promoção das indústrias domésticas e acabam por deixar os países dependentes de cadeias de distribuição globais, com as consequências que se conhecem.

O último motivo é também o mais revelador. A aplicação de sanções às elites de um determinado país passa, entre outras medidas, pelo congelamento dos ativos que estes detêm no estrangeiro. Os países do Ocidente anunciaram rapidamente que aplicariam este tipo de sanções a Vladimir Putin e ao ministro dos assuntos estrangeiros, Sergei Lavrov. Só que a implementação desta medida pode ser mais difícil do que parece, sobretudo se tivermos em conta a distribuição geográfica dos ativos detidos pela elite russa. Um estudo de Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da UE, e de dois co-autores conclui que a Rússia é o 4º país do mundo com maior percentagem da sua riqueza em offshores. Sem grande surpresa, estes movimentos ocorrem sobretudo entre os mais ricos do país: mais de metade do rendimento dos 0,01% mais ricos do país está em paraísos fiscais.

A identificação do paradeiro da riqueza implicaria a implementação de um sistema de registo financeiro internacional que permitisse saber quem detém que ativos em cada território, como defende o economista Thomas Piketty. De acordo com esta proposta, as autoridades públicas passariam a controlar as centrais de depósitos que registam os ativos e os seus proprietários e que hoje são privadas. Seria uma forma de garantir a eficácia de sanções direcionadas para as oligarquias e, acima de tudo, de permitir um combate sério à lavagem de dinheiro e à evasão e elisão fiscais.

O problema é que esta medida choca com os interesses dos mais ricos nos países ocidentais. Porquê? Porque as elites russas não são as únicas a desviar boa parte da sua riqueza para offshores para escapar aos impostos e ao escrutínio das autoridades. Piketty explica-o de forma sucinta: “As elites ocidentais temem que a transparência acabe por prejudicá-las. É uma das principais contradições dos nossos tempos.” O economista diz que tanto a Rússia como a União Europeia ou os EUA “têm um sistema legal, fiscal e político cada vez mais favorável às grandes fortunas” e que a origem da riqueza do 1% do topo nestes países não é assim tão diferente. Zucman é ainda mais claro: "O problema dos mega-iates e das contas na Suíça dos bilionários russos é que são incrivelmente parecidos com os mega-iates e as contas na Suíça dos nossos bilionários". E é isso que explica a relutância em tomar medidas que, no fim do dia, colocariam em causa esse sistema.

Os sucessivos escândalos mediáticos em torno dos paraísos fiscais não foram suficientes para que os governos questionassem o regime de livre circulação de capitais. Desta vez, é uma guerra que o traz de volta ao debate. Será suficiente?

P.S.: A defesa da paz e da autodeterminação faz-se sem transigências. Solidariedade com o povo ucraniano. Não à guerra e aos complexos militares que a promovem.

3 comentários:

Jose disse...

Sempre fica por dizer se o controlo de capitais e o fim da sua liberdade de circulação traria consequências económicas e políticas substantivas.

Salvo o dinheiro que aí chega em notas e as transferências que aí tenham lugar, ocultando acções criminosas, os capitais em paraísos fiscais supostamente chegam lá após tributação dos rendimentos que os geraram nas economias reguladas.
Os rendimentos gerados a partir de capitais com origem em paraísos fiscais são obtidos em economias onde serão normalmente tributados.
Neste modelo, o que os paraísos fiscais acautelam é que os titulares desses rendimentos não os vejam agregados e sujeitos a taxas predadoras.
Não raro, como na lei portuguesa, há tributação agravada para rendimentos de capitais sediados em paraísos fiscais.

Considerados estes parâmetros, se corretos, seguramente haverá meios de abordar as questões de fiscalidade e criminalidade, sem exigência de pôr fim à liberdade de circulação de capitais.

Anónimo disse...

Concordo inteiramente, nomeadamente com a frase final: "A defesa da paz e da autodeterminação faz-se sem transigências. Solidariedade com o povo ucraniano. Não à guerra e aos complexos militares que a promovem".

No que diz respeito ao "povo ucraniano", atenção à distribuição geográfica dos eleitorados dos principais partidos nas últimas eleições legislativas ucranianas, em 2019:

- Em 3º lugar ficou o partido de Poroshenko, recém-derrotado em eleições presidenciais

https://en.wikipedia.org/wiki/European_Solidarity#/media

- Em 2º lugar ficou o principal partido pró-russo

https://en.wikipedia.org/wiki/Opposition_Platform_%E2%80%94_For_Life#/media

- Em 1º lugar, com enorme vantagem sobre todos os outros, ficou o partido rapidamente formado em torno do recém-eleito Zelensky, o qual fez campanha a favor da paz no leste do país, em conformidade com os acordos de Minsk (1)

https://en.wikipedia.org/wiki/Servant_of_the_People_(political_party)#/media


A. Correia

---

(1) https://www.un.org/press/en/2015/sc11785.doc.htm

[Como se pode constatar, o partido de Zelensky não cumpriu a prometida "paz no leste do país, em conformidade com os acordos de Minsk"]

Tavisto disse...

A opinião pública é importante no desfecho de uma guerra, mas não é determinante. Veja-se o caso da guerra civil de Espanha, apesar do apoio aos republicanos foram os franquistas, apoiados por fascistas e nazis, os vencedores.
Ao invadir a Ucrânia, Putin virou contra si a opinião pública ocidental. O que pensa o cidadão comum oriental não sabemos.
Tudo está a ser avaliado na reunião conjunta de hoje. Em nome da paz e da estabilidade mundial, esperemos que haja acordo. É que já não há pachorra para mais guerras frias.