sábado, 31 de maio de 2014

Ajuda


Um, dois, três, muitos chumbos. O Tribunal Constitucional faz bem em repetir-se. E eu repito-me também. Estruturalmente, o Tribunal Constitucional volta a colocar, independentemente da intenção, a questão de saber quem manda aqui, sendo que a mais importante resposta neste campo, como sempre, cabe ao povo português: a soberania é popular nos termos das regras que por aqui devem vigorar. Conjunturalmente, o Tribunal Constitucional dá mais uma importante ajuda para a recuperação económica por via da dinamização da procura interna.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

As legislativas do domingo passado

1. O clamoroso vazio em que redundou a campanha eleitoral, pela ausência de verdadeira discussão das questões europeias (e apesar do esforço, por parte de algumas candidaturas, de colocar esses temas em debate), acentuou de modo muito significativo o enquadramento «nacional» das últimas eleições. De facto, mais do que escolher candidatos com os olhos postos no futuro da Europa, o eleitorado encarou-as essencialmente como um momento de avaliação da situação do país e, nesse contexto, como uma avaliação da maioria de direita em funções e das alternativas à governação. O sufrágio foi, nestes termos, mais legislativo do que europeu.

2. Ora, comparando os resultados destas eleições com os registados nas legislativas de 2011, constata-se que a coligação governamental sofre uma pesada derrota, sem que o PS dela propriamente beneficie (dado que o aumento da expressão eleitoral no Partido Socialista é de apenas 4%). Na verdade, é o voto nos «outros partidos» (que quadriplicam, no seu conjunto, o peso eleitoral obtido em 2011), no PCP/PEV (com um aumento de 5 pontos percentuais) e os votos brancos e nulos (que duplicam percentualmente o seu significado), que recolhe os despojos do desaire da direita nas eleições do passado domingo (registando o BE uma ligeira descida face a 2011, que o mantém no exíguo score de 5%).


3. Não fora a percepção da «inevitabilidade» e do «caminho único», que se colam aos três últimos anos, de vigência formal do Memorando da troika, bem como o facto de ainda subsistir, na opinião pública, a falsa narrativa da «culpa de José Sócrates» e do «viver acima das possibilidades», e a derrota do governo de direita seria, muito provavelmente, bastante mais estrondosa. À esquerda, no que toca ao PS, a suavização das expectativas de clara vitória parece decorrer, sobretudo, da percepção de que António José Seguro nada tem de substantivamente diferente para oferecer ao país, o que explica, em larga medida, o facto de os socialistas não surgirem neste contexto como verdadeira alternativa de governo.

4. E depois há, obviamente, a abstenção, que sendo em regra mais elevada em eleições europeias, não deixa de espelhar também a descrença face aos partidos do «arco da governação», reforçada pela percepção da inexistência de alternativas eleitoralmente viáveis ao PS e PSD/PP. De facto, a abstenção do passado domingo é de tal modo expressiva (66%, que comparam com os 42% registados nas legislativas de 2011), que mesmo os partidos que sobem percentualmente o seu score eleitoral o fazem perdendo votos. Aliás, apenas os «outros partidos» no seu conjunto, e os «brancos e nulos», conseguem somar de facto mais votos entre 2011 e 2014.

5. Façamos pois um exercício e imaginemos que estas europeias registaram um nível de participação eleitoral igual ao das legislativas de 2011 (ou seja, cerca de 5,6 milhões votos expressos e não os 3,3 que de facto se verificaram). Isto é, consideremos por momentos, ponderando os resultados de domingo passado, que a abstenção não tinha aumentado entre 2011 e 2014. Nesse cenário, como demonstra o gráfico seguinte, conclui-se uma vez mais que seria a votação nos «outros partidos» que aumentava de modo ainda mais significativo (650 mil votos), registando acréscimos comparativamente menores a votação no PCP/PEV e no PS (e entrando já no negativo o BE e, de modo abissal, a coligação de direita, com menos 1,2 milhões de votos entre os dois sufrágios).


6. A assinalável deslocação de votos para os pequenos partidos, sem representação parlamentar (e que se concentra, em especial, no MPT, Livre e PAN), torna-se portanto num dos dados mais relevantes do acto eleitoral do passado domingo. Não por acaso, aliás (e decerto igualmente preocupado com a possibilidade de António Costa vir a liderar o Partido Socialista), Miguel Relvas já veio a terreno sugerir que este é o momento em que «o PSD deve liderar uma profunda reforma do sistema político», tendo em vista - vejam bem - voltar a «motivar uma cidadania activa e participativa».

Sábado, na Feira do Livro de Lisboa


Índice do Livro
«Introdução: o Estado Social não é gordura, é músculo» (André Barata e Renato Miguel do Carmo) ■ «Conceber o Estado Social» (André Barata) ■ «Educação: os avanços num caminho a percorrer» (Frederico Cantante, Nuno Serra, Pedro Abrantes e Renato Miguel do Carmo) ■ «A saúde pública como investimento social» (Luís Bernardo, Manuela Silva e Tiago Correia) ■ «Segurança Social: As pensões como retribuição do trabalho e como responsabilidade solidária» (Hugo Mendes e José Luís Albuquerque) ■ «Geografias do Estado Social: Reorganização Territorial, habitação e urbanismo» (André Carmo, João Ferrão e Jorge Malheiros) ■ «O Estado Social como projecto de sociedade» (Renato Miguel do Carmo) ■ Anexo: «Resolução da Conferência Vencer a Crise com o Estado Social e com a Democracia».

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Um tiro no coração do federalismo


A votação para o Parlamento Europeu foi um tiro no coração do federalismo. Matou o projecto de conversão, passo a passo, de uma união de Estados soberanos num Estado federal, os Estados Unidos da Europa, sendo a moeda única um passo decisivo nesse projecto. A estratégia federalista sabia que o caminho era difícil mas, com habilidade, tinha conseguido até agora contornar a rejeição da França, Holanda e Irlanda, as objecções da Dinamarca e Suécia, e a persistente recusa do Reino Unido. Partindo da rejeitada Constituição Europeia, organizou-se um processo de corta-e-cola que deu no Tratado de Lisboa, nele incorporando derrogações excepcionais. O método de Jean Monet sempre tinha resultado: aproveitar cada crise do "projecto europeu" para, sob pretexto de encontrar uma solução para o problema, dar mais um passo na direcção federal, mesmo que insuficiente. Hoje, muitos lamentam o afastamento das instituições da UE relativamente aos povos europeus, mas esses lamentos são apenas lágrimas de crocodilo, porque sempre apoiaram uma federalização feita à sorrelfa. Desde domingo passado, os federalistas ficaram sem saber o que fazer.

O projecto federal está ferido de morte, mas os líderes políticos e as instituições europeias não o reconhecem e enfiam a cabeça debaixo da areia. Durão Barroso resume bem o espírito das elites que defendem uma federalização orçamental germânica (sem transferências): "Crescimento e empregos, essa é a mensagem que temos de passar (...) existe o risco de complacência em relação à necessidade de reformas estruturais." Nós bem sabemos o que são estas "reformas estruturais" e como elas são importantes para o desemprego, em vez do emprego. Enquanto não concretiza o sonho da eleição directa do presidente da Comissão, o social-liberalismo virá apelar à suspensão da austeridade e, provavelmente, dará apoio ao BCE para que inunde o sistema financeiro de liquidez, para evitar a deflação. Como sabemos, desde os anos 80 que os economistas da social-democracia assimilaram a doutrina dos Novos Clássicos e, por isso, entregam a tarefa de nos tirar da crise apenas à política monetária, supondo que o Tribunal Constitucional alemão permite. Vendo enormes riscos e limitações na política orçamental, naturalmente aprovaram o Tratado Orçamental, até para cuidar da sua boa reputação junto da finança. Agora pedem uma "leitura inteligente" das regras do tratado. Recusando ver que este "projecto europeu" não tem condições políticas para prosseguir, as várias famílias federalistas tratarão de mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Nos próximos meses, a política-Leopardo entra em cena.

Porém, o dado mais importante destas eleições não é a relação de forças dentro do novo Parlamento Europeu. O essencial está, como sempre, nos Estados-membros. O crescimento do UKIP vai obrigar Cameron a concretizar a sua promessa de um referendo sobre a UE e o resultado é incerto. Em França, com um sistema eleitoral a duas voltas, Marine Le Pen terá dificuldades em vencer coligações negativas, mas a sua candidatura às próximas presidenciais é certamente uma forte ameaça aos partidos da alternância. Os socialistas franceses estão entalados entre a germanização da UE, que desejariam reverter mas não conseguem, e a dissolução da UE que Marine Le Pen representa. O eixo franco-alemão do projecto federalista está irremediavelmente fragilizado. Em suma, pela enorme abstenção em muitos países, e pela ostensiva votação em partidos que se opõem à actual configuração institucional da UE, milhões de europeus mostraram o seu repúdio pelas várias políticas inscritas nos tratados. Questão importante: Mario Draghi continuará a ter o mesmo apoio político para aguentar o euro?

Em Portugal, o projecto político patrocinado pela UE, sob a capa de "ajuda financeira", foi claramente derrotado. Infelizmente, como revela a votação do PS e dos partidos à sua esquerda, o povo português continua à espera de uma proposta política convincente para lhe conferir o estatuto de alternativa. O caminho para lá chegar será necessariamente turbulento, como é típico das grandes encruzilhadas da História.

(O meu artigo no jornal i)

O mercado laboral em Portugal sempre foi muito rígido...

2009 - Citroen de Mangualde despede 400 e apanha Pinho de surpresa

2011 - PSA Citroën de Mangualde contrata mais 60 trabalhadores

2012 - Peugeot/Citroën de Mangualde vai dispensar 450 trabalhadores

2013 - Peugeot Mangualde contrata mais 300 trabalhadores

2014 - Peugeot Citröen dispensa 280 trabalhadores em Mangualde

E, claro, entretanto:

Ex-trabalhadores da Peugeot/Citroën de Mangualde contratados por metade do salário

Mercedes Sosa: Todo cambia



quarta-feira, 28 de maio de 2014

As palavras são importantes

1. Serviços do Estado numa lógica de “centros comerciais” e “mercearias de bairro”, anuncia Poiares Maduro. Isto pode parecer um detalhe, mas há palavras que anunciam todo um programa de desigualdade e de corrosão de práticas e de bens públicos. De facto, a aplicação da metáfora comercial aos serviços públicos, onde se inclui a transformação do utente em cliente, precede e acompanha a perversão real da sua lógica. É a passagem da desmercadorização de amplas áreas da provisão, associada à promoção da igualização de capacidades, para a iníqua mercadorização, traduzida na criação de barreiras pecuniárias no acesso e na abertura de novas áreas de negócio para grupos capitalistas predadores.

2. O governador do Banco que não é de Portugal veio pela enésima vez repetir uma conversa que oscila entre a banalidade do gerir melhor os recursos, a tradução para português do que se diz no BCE sobre o cumprimento do programa de salvação da banca europeia na periferia e o esforço para parecer profundo, usando muitas vezes a palavra estrutural, sendo que esta serve apenas para inventar avanços, para ofuscar regressões, para naturalizar o desemprego de massas e a inexistência de uma política económica orientada para o pleno emprego: “no âmbito da transformação estrutural em curso, é difícil estimar o impacto da reafectação de recursos no desemprego estrutural”. Mais palavras para quê?

Leituras

«No seu artigo "The Economic Conditions of Interstate Federalism", publicado em 1939, Friedrich Hayek defende que uma ordem internacional pacífica e estável tem de ser uma união entre Estados que limite ao máximo a capacidade de intervenção de cada Estado no funcionamento do mercado, anulando a maioria dos instrumentos nacionais de política económica, sem no entanto criar a nível supra-estadual quaisquer mecanismos de intervenção substitutivos. (...) Para Hayek, o consenso keynesiano e social-democrata que marcou a política europeia do pós-guerra, e que esteve na base da construção e aprofundamento do chamado modelo social europeu, tinha de ser desmantelado e substituído por um outro, de cariz essencialmente liberal. Olhando para os desenvolvimentos da União Europeia desde finais dos anos 80, sobretudo desde Maastricht, é difícil não concluir que Hayek ganhou em toda a linha e que o projecto europeu é hoje, na sua essência, uma máquina de liberalização das economias e das sociedades europeias.»

João Galamba, A abstenção como sucesso

«Terá a Europa sabedoria para parar e refletir sobre o que aconteceu nas eleições europeias? Terão as suas instituições suficiente elasticidade estratégica para poderem acomodar mudanças à altura dos desafios limite com que está confrontada? Terão as suas lideranças capacidade para pilotarem um processo de reorientação que ainda salve o projeto europeu? (...) A Europa é confrontada com tensões nos seus variados equilíbrios nacionais que revelam que se instalou, numa maioria dos seus cidadãos, uma desconfiança muito profunda sobre se o projeto de integração responde aos seus anseios ou se não é, ele próprio, fautor do problema. E o facto dessa atitude assumir formas e modelos muito diversos, numa cumulação perversa de agendas nacionais de preocupação, agrava a minha interrogação sobre se a Europa, enquanto estrutura funcional, terá hoje mecanismos para poder responder, de forma eficaz, a este imenso desafio.»

Francisco Seixas da Costa, Realismo

terça-feira, 27 de maio de 2014

Em estado de negação

 

«Sentado numa sala, a ouvir as reacções aos resultados das eleições para o Parlamento Europeu, parece-me que os altos funcionários da UE estão em profunda negação. Barroso limitou-se a declarar que o euro nada tinha nada que ver com a crise, que tudo não passou do falhanço das políticas a nível nacional. E, há poucos minutos, acrescentou que o problema da Europa é a falta de vontade política.
Isto é absolutamente extraordinário, no pior dos sentidos.
Eu peço desculpa, mas estes níveis de escalada da recessão nunca ocorreram na Europa antes do euro. Nós sabemos muito bem o que aconteceu: desde logo, a criação do euro estimulou fluxos massivos de capitais para o Sul da Europa. E entretanto a torneira secou – pelo que a supressão das moedas nacionais significou que os países devedores tiveram que passar por um processo extremamente doloroso de deflação. Como é que alguém pode dizer que a moeda não teve nenhum papel na crise...
E se há coisa que a Europa teve foi vontade política. Em toda a periferia europeia do Sul, os governos têm aceite obedientemente a austeridade duríssima que lhes foi imposta, em nome de serem bons europeus. O que é que eles deveriam ter feito que não fizeram?
Parece-me que a ideia é a de que se os gregos, os portugueses, ou os espanhóis, se tivessem verdadeiramente comprometido com os desejos dos todo-poderosos, de implementação de reformas e adaptações, então as suas economias iriam crescer, apesar da deflação e da austeridade. Isto é, não parece estar a ser colocada a hipótese de que as coisas estão a correr mal – com estes radicais investidos no poder – por causa de políticas erradas.»

Paul Krugman, European Green Lanterns

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Arriscar ser populista e eurocéptico...

Como manter a sabedoria convencional, parecendo que se está a desafiá-la, ao analisar o enfraquecimento do centro euro-liberal? Leiam, por exemplo, Teresa de Sousa: “o pior de tudo será desvalorizar os resultados”. E, no entanto, são mantidas as mesmas amálgamas desvalorizadoras dos emancipatórios resultados que palavras como soberania democrática, proteccionismo ou desglobalização podem e devem ter quando se inscrevem em instituições. O resto é a tendência associada para distribuir epítetos a torto e a direito, que escondem mais do que revelam: de populista a eurocéptico, passando por desglobalizador. Infelizmente, esta tendência chega a uma esquerda que ainda hesita em mobilizar as tais palavras e todas as suas consequências.

A preocupação com a ascensão da extrema-direita esbarra na incapacidade de ver que esta desgraçada tendência está inscrita nas políticas euro-liberais, produtoras de crise, de desigualdade e de desemprego, inseparáveis da integração europeia realmente existente, especialmente intensas na sua pós-democrática declinação monetária e financeira. Os que sempre saudaram a social-democracia, quando esta contribuiu para o que nunca passou da expressão continental da construção política, essa sim arriscada sob todos os pontos de vista, a que se chama globalização, continuam a insistir que Hollande tem de persuadir os franceses a regredir para adaptar supostamente a França à tal globalização. Le Pen agradece a ajuda. Ela tem nas políticas de austeridade e de neoliberalização os seus melhores aliados e na esquerda que se recusa a recuperar instrumentos de política, rompendo com uma moeda forte, um fraco adversário. O euro teve e tem por efeito, e intenção, forçar esta recusa, habituar a esquerda a esta recusa.

De resto, invoca-se um sociólogo alemão chamado Wolfgang Merkel, que desconhecia, e a sua distinção entre os “passageiros frequentes”,  adaptados à globalização, e os outros, os “comunitários”. Um outro sociólogo alemão, Wolfgang Streeck, com o qual estou familiarizado, distingue, por sua vez, o “povo dos mercados”, cujos representantes políticos estão reunidos, por exemplo, em Sintra, e o “povo dos Estados”. Este último depende das democracias de base nacional, onde conquistou o essencial do que ainda se tem para defender. Streeck, como já assinalei em recensão ao seu último livro Tempo Comprado, defende a dissolução da utopia monetária chamada euro, como primeiro passo para salvar a democracia e o progresso social de que uma integração europeia, enquanto projecto de cooperação entre Estados soberanos, ainda pode ser feita. As acusações de populismo, a palavra preferida de certas elites, e de eurocepticismo valem bem a tarefa para uma esquerda que não anda a dormir e que sabe que não há mais tempo a comprar.

domingo, 25 de maio de 2014

Mais reflexão e memória

O projecto do mercado comum, tal como nos foi apresentado, é baseado no liberalismo clássico do século XIX, segundo o qual a concorrência pura e simples resolve todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode assumir duas formas: o recurso a uma ditadura interna, transferindo todos os poderes para um homem providencial, ou a delegação de poderes para uma autoridade externa, que, em nome da técnica, exercerá na realidade o poder político, uma vez que, sob pretexto de uma economia sã, acabará por ditar a política monetária, orçamental, social e, em última instância, a política no sentido mais alargado do termo, nacional e internacional. 

Pierre Mendès-France, 1957, citado por Aurélien Bernier, Désobéissons à l’Union Européene, 2011, p. 25.

sábado, 24 de maio de 2014

Saídas


Com a excepção do trabalho de alguns jornalistas, de que o melhor e mais recente exemplo é o livro de Paulo Pena, a comunicação social, como até Camilo Lourenço reconhece no seu pedido de desculpas, tem sido demasiado timorata na cobertura dos mandos e desmandos do poder financeiro em Portugal. Pudera. É que o dinheiro comanda muito respeitinho e tem propriedades estranhas de inversão para as quais a referência clássica continua a ser Marx. Basta pensar no que também acontece em alguma academia por aí: a que tem cátedras BCP, salas BES e atribui Doutoramentos Honoris Causa e outras honras a banqueiros muito respeitáveis e a quem a próspera economia portuguesa tanto deve; a que propagou a ideia de que os mercados financeiros liberalizados são o máximo da eficiência. Basta pensar na eficiência com que o capital financeiro se transmuta em poder politico, a tal “bancocracia”.

Surge esta conversa a propósito da extraordinária entrevista ao Doutor Honoris Causa Ricardo Salgado feita pelo Negócios e do pouco que se vai sabendo sobre a transformação do Espírito Santo em zumbi, para a qual já chamámos a atenção: na melhor das hipóteses, o próprio Ricardo Salgado atribui os “erros” de gestão à opacidade da estrutura do grupo, às “n” holdings, tudo feito certamente para maximizar a transparência fiscal e regulatória, tudo certamente tolerado pela regulação ligeira, pela trela solta da finança. Aliás, a Espírito Santo Internacional estava sediada no refúgio fiscal do Luxemburgo porque o Espírito Santo está sempre onde estão os portugueses. A naturalidade com que fala do Luxemburgo, sem que haja qualquer pergunta, é impressionante.

O resto é a impunidade de sempre até à hipotética queda final do que era considerado até há pouco tempo o homem mais poderoso da economia política portuguesa: devemos estar muito agradecidos, segundo Ricardo Salgado, por este nos ter “poupado” dinheiro ao evitar a capitalização estatal. Também devemos estar agradecidos pelos créditos fiscais concedidos, na ordem das centenas de milhões de euros, referidos de raspão. Enfim, vejamos se as propriedades autodestrutivas de um sistema, que também apostou na austeridade, não deitam tudo a perder.

Reflexão e memória



«Quando a Europa salva os bancos, quem paga?», o excelente documentário do canal Arte (Junho de 2013), conduzido por Harald Schumann, jornalista de investigação do Tagesspiegel (Berlin), a que o Nuno Teles já tinha feito referência e que o blogue Aventar, em mais um gesto de serviço público, legendou. O documentário inclui entrevistas a vários ministros das finanças europeus, a ex-administradores de bancos, activistas, etc., mostrando quem realmente beneficiou dos resgates e os impactos económicos e sociais que os mesmos causaram.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

A encruzilhada da social-democracia


A combinação de elementos que caracterizou a social-democracia europeia nas últimas décadas deixou de ser possível. Só que os próprios sociais-democratas ainda não o perceberam.



A social-democracia europeia transformou-se profundamente nas últimas décadas. Durante a maior parte do século XX, os partidos denominados socialistas ou trabalhistas desempenharam um papel central na consolidação do Estado social e na adopção de um amplo conjunto de medidas que melhoraram a condição dos trabalhadores e classes populares. Da década de 1980 em diante, porém, a social-democracia europeia aderiu rapidamente aos princípios da liberalização, privatização e salvaguarda dos interesses do capital. Em suma, ao neoliberalismo.
Sociais-democratas... e neoliberais
A origem do sucesso político do projecto neoliberal residiu na sua capacidade de resolver a crise estrutural que, na década de 1970, resultara dos desincentivos ao investimento originados pelo crescimento dos salários no pós-guerra. O sucesso político de figuras como Thatcher ou Reagan deveu-se à promessa, em grande medida cumprida, de reestabelecer o dinamismo económico através do ataque sistemático aos salários directos e indirectos, restaurando os lucros e o incentivo ao investimento. E esse sucesso político foi tão estrondoso que conseguiu cooptar a social-democracia. De então em diante, os sociais-democratas passaram a distinguir-se dos conservadores pela robustez das políticas sociais defendidas, pelas posições em matéria de costumes e direitos das minorias... mas não pelas medidas de política económica defendidas, virtualmente idênticas na sua adesão ao neoliberalismo. 
O fim de uma era
Só que o neoliberalismo, além de iníquo do ponto de vista da justiça social, revelar-se-ia também disfuncional do ponto de vista do crescimento económico: a prazo, era inevitável que a desigualdade crescente na distribuição do rendimento acabasse por comprometer a procura agregada e provocar, ela própria, estagnação. Durante algum tempo, o crescimento do endividamento permitiu ter sol na eira e chuva no nabal - elevada rendibilidade do capital a par de procura agregada dinâmica -, mas mais cedo ou mais tarde este teria de atingir os seus limites, o que sucedeu em meados da década de 2000. O neoliberalismo tornou-se então incompatível com o dinamismo económico.
A actual estagnação das economias avançadas é, por isso, a crise estrutural do neoliberalismo e sinaliza o fim da era em que foi possível conciliar políticas económicas neoliberais com políticas sociais relativamente robustas. Doravante, a restauração do dinamismo económico e a sustentabilidade do Estado social exigirão, necessariamente, uma ruptura profunda com o modelo neoliberal. O problema é que este encontra-se inscrito no ADN de inúmeras políticas e instituições nacionais e europeias, que os próprios sociais-democratas dedicaram as últimas três décadas a construir. De Hollande a Seguro, é precisamente essa a contradição com que se confrontam e confrontarão os sociais-democratas europeus.
Infelizmente, ainda nem sequer o perceberam.

(a minha crónica de ontem no Expresso online)

CDA: «Reestruturar ou empobrecer - Não há saídas limpas» (III)



«Eu creio que não é exagero (...) dizer que estamos hoje a viver em Portugal, nos últimos dois anos, uma mudança de paradigma, uma ruptura com aquilo que nós entendíamos ser o regime político e social. (...) O debate político em Portugal, nos últimos quarenta anos, fez-se em referência à Europa. Quando Portugal perde as suas colónias e regressa ao espaço pequeno das suas fronteiras, encontra no espaço europeu, naquilo que eram os padrões de desenvolvimento, direitos sociais, direitos laborais, padrões de serviço público, padrões de consumo, de crescimento económico e também, obviamente, direitos e liberdades cívicas, (...) um dos pólos mais importantes. (...) A entrada dos fundos de coesão, dos programas europeus e, ao mesmo tempo, os patamares das democracias ocidentais europeias, de alguma forma estruturaram o imaginário de toda uma geração que viveu a democracia, mas também a identidade dos partidos e das forças políticas e a forma como nós pensámos que era o futuro da modernização da sociedade portuguesa.
Nos últimos três anos a Europa deixou de ser tudo isto. A austeridade trazida pelo memorando da troika, pelas imposições da troika - e depois o que a troika colocou em cima das imposições iniciais do memorando - vêm perverter, vêm estilhaçar esta imagem de uma pertença europeia, que possa servir como motor de desenvolvimento e de modernização progressista do país. (...)
(...) Mantendo o garrote da dívida nos termos em que ele existe hoje, nós caminhamos para uma eternização do presente (...), um país perpetuamente em crise e perpetuamente em ajustamento. (...) Aquilo que nos dizem é uma espécie de paradoxo: é que para ficar na Europa temos que deixar de ser europeus ou deixar de ter como referencial essa ideia das democracias ocidentais europeias como espaços de bem-estar, de democracia e liberdade. E portanto eu creio que hoje a centralidade da dívida é de alguma forma o caminho possível para criar uma proposta política que seja suficientemente abrangente, mobilizadora e capaz de desequilibrar este colete de forças da chantagem que nos foi colocada por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. (...) Ou seja, talvez mais facilmente que no passado, entre os diferentes partidos políticos, associações, movimentos, diferentes protagonistas, a centralidade, a urgência, a transparência do garrote da dívida sobre a sociedade portuguesa é de tal maneira óbvia (...), que tem quase uma nova dimensão constituinte: é necessário tratar da reestruturação da dívida para poder colocar em prática, de novo, o jogo democrático de ter alternativas e escolhas políticas sobre o caminho da sociedade portuguesa. (...) A questão da dívida pode ser a questão determinante para rearticular uma força política que permita defender o país.»

Da intervenção de Ana Drago (a ver na íntegra) na conferência promovida pelo Congresso Democrático das Alternativas, no passado dia 2 de Abril.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O Mcmodelo

Faz todo o sentido que o governo assine protocolos com a McDonald’s enquanto noutros países, como sublinha Nuno Aguiar em mais uma excelente análise, se protesta contra a política de baixos salários da empresa. Afinal de contas, a promoção dos “McSalários” e dos “Mctrabalhos” está inscrita no modelo deste governo: pequenas ilhas de salários demasiado elevados rodeadas de um oceano de desemprego e de trabalhos precários e mal remunerados concentrados em sectores, sobretudo dos serviços, que exigem poucas qualificações, ou seja, uma sociedade cada vez mais fracturada.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Antecipar os Censos de 2021


Em declarações recentes, no contexto da apresentação dos resultados da 12ª avaliação da troika, a ministra das Finanças, considerou que «se fizeram mais reformas nos últimos quatro anos do que nos 36 anteriores», tomando assim, como quadro temporal de referência, o regime democrático que emergiu do 25 de Abril.

Maria Luís Albuquerque tem um entendimento muito particular e delimitado da ideia de «reforma». De outro modo, não desvalorizaria as transformações civilizacionais iniciadas em 1974 e que se consolidaram ao longo dos tais «36 anos» subsequentes, de suposta inércia. Não é preciso desenvolver o argumento: bastaria reconhecer os avanços em matéria de acesso à saúde e à educação, na modernização do país e na democratização da sua vida económica e social. Em suma, bastaria reconhecer, enquanto «reformas», os impulsos que transformaram, através do Estado e das políticas públicas, o Portugal miserável, retrógrado e bafiento do Estado Novo.

Mas a ministra das Finanças tem razão: as aclamadas «reformas», realizadas nos últimos quatro anos, já causaram um nível de transformação do país que supera, em muito, as mudanças ocorridas ao longo da última década, mais precisamente no período censitário entre 2001 e 2011. Aliás, as alterações são de tal magnitude que o próprio INE bem poderia equacionar a hipótese de antecipar os Censos de 2021, encurtando assim para metade o intervalo de dez anos, que está convencionado.

Como mostra o gráfico lá em cima, que expressa alguns indicadores relativos à demografia e ao emprego, não há forma de tentar fazer crer que os últimos anos são apenas a continuação regular de dinâmicas pré-existentes. De facto, calculando a variação média anual nos dois períodos (2001/10 e 2010/13), constata-se de modo evidente o contraste entre crescimento e declínio demográfico, a degradação acelerada dos saldos natural e migratório, a inversão abrupta da tendência de aumento da população activa e o acentuar profundo da contracção do emprego e da aceleração vertiginosa do desemprego. Tudo isto num quadro da construção deliberada de Portugal como um «país em vias de subdesenvolvimento», para recuperar aqui a acertada expressão do Alexandre Abreu.

Hoje

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O que não fazer

Confesso que foi com surpresa e desilusão políticas que tomei conhecimento da decisão que a associação política Renovação Comunista tomou de apoiar o PS nas eleições europeias. Para uma força que diz querer renovar uma tradição política indispensável, trata-se de uma decisão difícil de compreender e que vai ao arrepio da posição de forças e alianças da mesma área política por essa Europa fora, sejam estas mais ou menos soberanistas e/ou mais ou menos europeístas: da Frente de Esquerda em França ao Partido de Esquerda na Alemanha ou na Suécia, passando pelo Syriza na Grécia ou pela Esquerda Unida em Espanha.

Nas presentes circunstâncias, sendo de eleições europeias, ou seja, de eleições nacionais, que estamos a falar, qualquer apoio à linha política dominante de partidos que deram um contributo decisivo para a construção europeia realmente existente, do Euro ao Tratado Orçamental, não pode deixar de ser recusado. As alternativas passam pela desobediência e pela recusa deste colete-de-forças, o que também implica a derrota democrática das correntes federalistas, como sublinhou o Jorge Bateira.

A invocação vaga de convergências vagas em matéria europeia, todas dependentes de mudanças que não ocorrerão nessa escala, é então manifestamente insuficiente para justificar um apoio ao que quer que seja. Quem se diz marxista tem a obrigação de conhecer o material de que é feita esta integração europeia, com a austeridade e a neoliberalização que nela estão inscritas. Acham realmente que Seguro vai pugnar por qualquer rebeldia desta periferia quando lhe disserem, como lhe dirão, que a austeridade e a neoliberalização são para continuar? Ele já disse o que fará nesta correlação de forças gerada por estas estruturas: Hollande na periferia, ou seja, para pior.

É claro que para lá das questões programáticas, sempre desvalorizadas, há o invocado tabu, que se declara querer quebrar, da unidade da esquerda para um governo. Vejamos: se o apoio ao PS tiver algum impacto político, enfraquecendo as forças à esquerda, gerando uma correlação de forças ainda mais desfavorável, o que é que se espera obter? Mas há mais e pior: a pedagogia da unidade teve no sábado o seu pior exemplo, com um apoio sem contrapartidas, nem agenda programática séria, apenas uma declaração que beneficia Seguro e, repito, a sua linha de praticar austeridade, mas com relutância, enquanto se sonha com mudanças numa Europa feita para as recusar e que mesmo nos seus termos não só não bastam, como, em muitos casos, são contraproducentes.

Tendo em conta o que aconteceu, por exemplo, à refundação comunista em Itália ou o destino do Dimar na Grécia, muito terão ainda mais razões para dizer: se a união das esquerdas é isto, então viva a desunião. O risco do fechamento e do sectarismo dos que acham que a política de alianças entre sectores sociais heterógeneos não passa de uma barganha para uma qualquer secretária de estado pode assim aumentar na previsível lógica do efeito perverso.

A unidade não se constrói multiplicando partidos cheios de ilusões perversas sobre supostas direcções partidárias maléficas e também não se constrói com apoios ao social-liberalismo, ambos de recorte federalista. Creio que a unidade só pode começar, nas presentes circunstâncias, pelo reforço dos, e futura convergência entre os, que estão apostados em desobedecer soberanamente ao consenso de Bruxelas-Frankfurt e em defender o povo português de forma consequente do, deixem-me voltar a assinalá-lo a todos os globalistas, euro-imperialismo.

Leituras

 

«A saída limpa é uma divertida mistificação propagandística resultante do egoísmo da Europa, da montanha de dinheiro emprestado para almofadar 2015 e do excesso de liquidez nos mercados que prosseguem alegremente as suas guinadas. Tenho estado à espera que Montenegro explique que Portugal teve uma saída limpa, os portugueses é que não. Para esses a austeridade suja prossegue exactamente igual. Estamos muito mais pobres, super-endividados e igualmente submetidos aos humores dos mercados financeiros e aos rigores do ordoliberalismo europeu. A troika avisa que não volta, parece que tem um chicote muito comprido, não precisa de sair do sítio para nos chibatar. No entanto até Cavaco festeja a coisa, como se tivesse sido descoberto o caminho marítimo para o Redondo.»

Sérgio Sousa Pinto (facebook)

«Ninguém sabe da desgraça melhor do que os chefes, que vêm as arruadas vazias, os feirantes irritados e o povo aborrecido. Recorreram então, com a precisão de um relógio, ao último truque: acirrar a claque e, para isso, só se lembraram de uma ideia, fogo sobre Sócrates. (...) O cálculo é este: se já só resta pedir o voto da sua própria família, a raiva PSD e CDS a Sócrates deveria arrastar os apoiantes do governo para votarem no domingo. Se a reformada se esquecer da sua pensão e detestar Sócrates, está feito o milagre. Se o desempregado esquecer a sua vida e achar que deve ajustar contas com as derrotas do aparelho PSD de 2005 e 2009, então o partido está salvo. Portas faz de chefe de orquestra porque um guião é para seguir à letra.»

Francisco Louçã (facebook)

«Mistificação consiste em fazer alguém acreditar numa mentira. A mentira é que o processo da troika terminou com êxito, que Portugal tem hoje melhores condições para se desenvolver como país europeu e que a reforma do Estado proposta garante a criação de uma sociedade mais equitativa. (...) Portugal sai da Europa seguro pela trela curta do euro e do tratado orçamental. Não pode ir muito longe. Arranjará um lugarzito na soleira da porta da Europa, um país sem-abrigo por onde passarão regularmente as carrinhas da sopa humanitária. É digno de nós, como portugueses e como europeus, que não haja alternativas a este estado de coisas?»

Boaventura de Sousa Santos, A saída limpa... da Europa 

domingo, 18 de maio de 2014

Um jornal que abre portas

Estamos perante uma farsa limpa, uma realidade suja e uma saída que, nestes moldes, simplesmente não existe. A farsa, eficazmente montada por responsáveis políticos preocupados com as eleições de 25 de Maio para o Parlamento Europeu e reproduzida sem qualquer exigência crítica pela generalidade dos meios de comunicação, está a tornar-se intoxicação. E isso fará dela uma tragédia.

Sandra Monteiro, Tragédia Limpa, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Maio de 2014.

sábado, 17 de maio de 2014

Votar pela democracia


As sondagens da UE têm registado um crescente cepticismo dos cidadãos relativamente ao que se convencionou chamar o "projecto europeu". As políticas adoptadas desde 2010 apenas estenderam à periferia o descontentamento que em 2005 já tinha levado à rejeição do Tratado Constitucional no centro da zona euro. A verdade é que o modelo de crescimento pelas exportações no centro, com salários estagnados, dependeu em boa parte do financiamento que concedeu à periferia, onde alimentou um crescimento pelo crédito que estava condenado a terminar mal. Hoje, os dirigentes políticos do centro culpam a periferia pela sua sorte como se não tivessem responsabilidades nesta crise. Mais, através do "apoio financeiro" da troika, resgataram a dívida da periferia aos seus bancos e, invocando o seu estatuto de credores, preparam-se para impor às periferias um modelo de sociedade neoliberal sem qualquer legitimidade democrática. Afinal, o "projecto europeu" conduziu à divergência económica, ao contrário do que prometia.

É também preciso dizer que o "projecto europeu" não promoveu a fraternidade europeia. Hoje, o ressentimento entre europeus cresce porque o desastre social imposto à periferia, como punição pelo seu "despesismo", foi concebido nos corredores do poder do centro da zona euro. Nesta, o desemprego é o mais elevado de sempre, tem um nível de Grande Depressão nas periferias, e empurra boa parte das economias para a deflação. É caso para dizer que o "projecto europeu" se virou contra os europeus, lançou-os uns contra os outros e estimulou a xenofobia. Dado que uma parte importante das classes baixas deixou de se identificar com as esquerdas, a grave crise que vivemos também é uma crise política. É uma crise das democracias europeias.

Por outro lado, é preciso lembrar que a paz na Europa se ficou a dever muito mais ao poder de dissuasão nuclear que a Grã-Bretanha e a França adquiriram, ao lado dos EUA, contra a URSS, do que aos méritos da CEE, depois UE, como força de paz. Aliás, como bem recorda Jacques Sapir ("Sortir de l'Euro"), "a UE foi causadora de conflito quando precipitou a desintegração da ex-Jugoslávia e a guerra civil daí decorrente. [...] A oferta de um plano de estabilização [à Eslovénia e à Croácia], cujos efeitos seriam desigualmente distribuídos pelas Repúblicas da Jugoslávia, atiçou a oposição entre a Croácia e a Sérvia. E foi a perspectiva de uma rápida adesão à UE que convenceu os dirigentes eslovenos e croatas a provocarem a secessão. O mesmo fenómeno está hoje em curso na Ucrânia."

Finalmente, se ainda há quem fale da UE, e do euro em particular, como protecção contra as crises financeiras é porque tem memória muito curta. A globalização financeira, de que a UE se tornou um bastião, permitiu o rápido contagio da crise de 2007-8 iniciada nos EUA e, dada a aberração institucional da zona euro, gerou uma crise de dívida pública que mascarou uma gravíssima crise de dívida privada, já existente. Ambas estão longe de terem sido resolvidas.

Com um Banco Central sem tutela política, e com um governo económico que invoca uma legitimidade tecnocrática para ocultar o domínio dos países do centro, o projecto ordoliberal consolidou-se: submeteu as escolhas dos eleitorados à ideologia ordoliberal dos Tratados e das directivas que o Tribunal de Justiça fará cumprir. Ignorar o erro da criação da moeda única e a natureza antidemocrática do actual "governo económico", fingindo que estamos a eleger o presidente da Comissão Europeia, só prolonga uma farsa insustentável.

Como alternativa, propor um Estado europeu, pós-Estados democráticos, quando evidentemente não há um povo europeu, revela uma trágica preferência pela engenharia social e, sobretudo, deixa à vista uma grande insensibilidade à urgência em pôr fim ao desastre que estamos a viver. Os democratas não podem ignorar que os Estados do centro rejeitam uma União de transferências e que os da periferia querem continuar a fazer escolhas genuínas. Também por isso, no dia 25 de Maio é preciso votar contra a utopia federalista das elites europeias.

(O meu artigo no jornal i)

Joy Division: Atrocity exhibition



«All the dead wood from jungles and cities on fire
Can't replace or relate, can't release or repair
Take my hand and I'll show you what was and will be»

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Nó górdio



A crise da economia portuguesa não é uma só; são várias. E é necessário compreendê-lo para que possamos começar a sair da situação em que nos encontramos.

Em meados dos anos '90, a economia portuguesa encontrava-se em processo de convergência real face à média europeia, ainda que a sua estrutura produtiva fosse bastante mais frágil do que as das economias do centro europeu. Optou-se então por um processo de exposição internacional súbito e insensato, que incluiu a perda de autonomia monetária e cambial. O resultado foram défices externos crónicos, endividamento privado externo galopante e uma estrutura produtiva adicionalmente fragilizada pelos incentivos perversos criados ao investimento nos sectores de bens não-transaccionáveis.

Então, na sequência da eclosão da crise financeira internacional de 2007-2008, esta crise latente de inserção internacional e endividamento externo transmutou-se em crise de dívida pública, em parte devido à adopção de uma resposta contra-cíclica activa, mas sobretudo por via da acção dos estabilizadores automáticos (menos receitas e mais despesas em resultado da própria crise). E esta crise de dívida pública, ao abrir a porta à adopção de um programa de austeridade pro-cíclica, somou a camada final à nossa crise actual: uma recessão económica de grandes dimensões, com fortíssimas contracções do investimento e do emprego.

A crise portuguesa é, por isso, pelo menos quatro crises sobrepostas: uma recessão de dimensões históricas em cima de uma crise de dívida pública, que por sua vez é uma transmutação de uma crise de endividamento privado externo, provocada por uma contradição insanável entre a estrutura produtiva e o regime de inserção económica internacional. Com a agravante de cada dimensão adicional não atenuar, antes reforçar, as dimensões subjacentes.

Se compreendermos isto, percebemos que insistir na austeridade é o grau zero da inteligência económica; que advogar simplesmente uma alternativa contra-cíclica, sem mais, esbarra imediatamente nos limites do endividamento acumulado no passado; e que mesmo o repúdio da dívida acumulada, sem mais, ignora os constrangimentos colocados pelo contradição fundamental entre a nossa estrutura produtiva e o nosso regime de inserção internacional.

Decididamente, trata-se de um nó górdio de que não nos veremos livres tão depressa. Já não será nada mau se pelo menos começarmos aos poucos a perceber o que está verdadeiramente em causa.
(Publicado originalmente no blogue "&conomia à 4ª" do Expresso online)

Do pânico, da euforia e da farsa


Não deixem de ler o recente estudo de Paul De Grauwe e Yuemei Ji, «Disappearing government bond spreads in the eurozone – Back to normal?», que vem uma vez mais demonstrar que o comportamento dos juros das dívidas soberanas, no decurso da crise da zona euro, resulta fundamentalmente das garantias dadas por Mario Draghi (de que o BCE tudo faria para salvar o euro, posicionando-se como prestador de último recurso) e não das variações observadas nos principais indicadores económicos (como a sustentabilidade da dívida pública, a balança comercial, o défice ou a competitividade).

Para De Grauwe e Yuemei Ji, o anúncio, em 2012, de uma eventual intervenção do BCE no mercado da dívida - através de um programa de OMT (Outright Monetary Transactions) - separa dois momentos fundamentais da crise da zona euro, permitindo distinguir a fase de «pânico» (iniciada em 2010, com a percepção distópica dos impactos da crise financeira de 2008 nas economias e nas finanças públicas), da fase de «euforia», desencadeada pelas declarações de Mario Draghi e que se prolonga até à actualidade (beneficiando, mais recentemente, da confluência de outros factores, que reforçam a descida continuada das taxas de juro).

De facto, como sublinham os autores do estudo publicado pelo CEPS, «as taxas de juro começam a aumentar espectacularmente a partir de 2010», depois de um período, que antecede a crise, em que se encontravam «próximas do zero» nos diferentes países, sendo por isso «muito limitada» a relação entre esse aumento e a «deterioração dos principais indicadores económicos». Considerando, da mesma forma, que «as taxas de juro começam a descer espetacularmente a partir do terceiro trimestre de 2012 (...), não podendo esse declínio ser associado a alterações», que se tivessem entretanto verificado, «nos principais indicadores económicos» (o que revela, paralelamente, os riscos e o irrealismo que essa mesma descida comporta).

É por isso, aliás, que Paul De Grauwe e Yuemei Ji preferem falar de oscilações nos «sentimentos dos mercados» (a transitar entre o «pânico» despropositado e a «euforia» exacerbada), desligando-os assim da suposta «clarividência», «racionalidade» e «eficiência» que se lhes pretende associar. E sublinhar, em contrapartida, o papel primordial do BCE na gestão desses «sentimentos», assinalando o facto de «instituições burocráticas terem adquirido responsabilidades muito relevantes, sem que esteja assegurado o seu escrutínio político», o que obriga a denunciar os mecanismos insustentáveis de «transferência de soberania» para essas instituições ditas «independentes» que, não sendo eleitas, carecem de manifesto controlo e «legitimidade democrática».

NOTA: À luz deste debate, torna-se ainda mais evidente o descaramento despudorado do governo, de Cavaco Silva e do presidente da Comissão Europeia, entre outros, sobre os pretensos méritos caseiros na proclamada «saída limpa» e na «dispensa» de um «segundo resgate». Tal como se torna irresistível citar, nesta linha, o oportunismo chico-esperto subjacente às declarações de Eduardo Catroga, na entrevista do passado domingo ao DN e TSF: «O país está melhor porque conseguiu recuperar a credibilidade externa. Conseguiu criar condições para a diminuição da percepção de risco por parte dos mercados financeiros, o que é uma condição de base, necessária mas não suficiente, para o financiamento da economia portuguesa. (...) É fundamental os nossos parceiros e os mercados sentirem que temos condições de estabilização financeira, por forma a que a taxa de risco da economia portuguesa não suba outra vez.»

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Primavera Europeia


Philippe Lagrain, ex-conselheiro económico do Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, entre 2011 e 2014, deu uma entrevista imperdível, ao jornal "Público", no passado dia 11, a propósito do seu mais recente livro "European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess". A entrevista tem uma relevância acrescida por ser dada por alguém de dentro da Comissão Europeia, ex-conselheiro do presidente Barroso, e por ser tão clara, honesta e fundamentada. Nela, Philippe Lagrain, expõe a tese do seu livro e explica a crise das dívidas soberanas, as razões para que se tenha optado pelos resgates aos Estados em vez de outras soluções, a quem interessaram e porque é que falharam.

Ele acusa os governos e as instituições europeias de terem posto os interesses dos bancos à frente dos cidadãos. Afirma e explica que os resgates aos Estados foram resultado do lobby dos bancos alemães e franceses que estavam demasiado expostos à dívida pública daqueles países e queriam evitar qualquer tipo de reestruturação que lhes imputasse perdas. Na realidade, os resgates aos países periféricos não tendo servido para os salvar - todos estão pior que na véspera dos pedidos de resgate respectivos - serviram para limpar a dívida pública, desses países, dos balanços dos bancos alemães e franceses. Os resgates garantiram a essas instituições financeiras - que tinham ganho muito com os empréstimos ao Sul da Europa - uma saída limpa e rápida, transferindo o problema para os contribuintes alemães e franceses. Se os cidadãos portugueses, irlandeses, gregos e espanhóis foram maltratados, os cidadãos alemães e franceses foram enganados pelos seus governantes e pelos bancos dos seus países. Em 2011, a reestruturação da nossa dívida pública e privada teria sido feita sobre dívida detida pela banca alemã e francesa, hoje terá de ser feita sobre dívida detida pelas instituições oficiais. O sistema financeiro tem hoje um poder sobre as democracias que tem de ser urgentemente resgatado pelos cidadãos, com prejuízo de perderem definitivamente o controlo sobre as suas próprias vidas.

(Cronica publicada às quartas no jornal i)

O primado da repetição

Graças a Vítor Dias, tomei conhecimento de um muito interessante Eurobarómetro especial. Fiquei a saber que 85% dos portugueses inquiridos não confia no governo, que 70% não confia na União Europeia, que mais de 70% acha que a sua voz não conta na UE ou que metade está em desacordo com o euro. Mais intensamente em desacordo com uma moeda que não nos serve só os que tomaram a decisão correcta de a ela não aderir, como a Dinamarca ou o Reino Unido. O cepticismo em relação ao euro é cada vez mais popular entre os que vivem por aqui.

A realidade tem muita força num prazo mais ou menos longo, dependendo da resiliência da sabedoria convencional: estagnação e desemprego com défices externos antes da crise do euro, uma combinação única na nossa história; mais desemprego e austeridade depois; humilhações e submissões para sempre. No seguimento do primado da economia política, sublinho o primado da repetição política:

É por estas e por outras que atirar para a escala europeia, para a mirífica reforma da arquitectura institucional do euro, as possibilidades do progresso tem como um dos principais efeitos perversos acentuar a sabedoria popular de que isto no fundo não depende de nós. Dado que as pessoas não são parvas, se isto não depender de nós, para quê incorrer nos custos da mobilização na única escala que está com realismo disponível e que é a nacional? As elites políticas dominantes dão, de forma intencional ou não, contributos para a desmobilização.

Há aqui um círculo vicioso que é preciso assinalar uma vez mais: as classes populares desconfiam cada vez mais da política e dos políticos e participam cada vez menos, a política é cada vez mais elitista, as elites, incluindo demasiadas de esquerda, são tendencialmente federalistas, ao contrário das classes populares cada vez mais eurocépticas, a política de reforço da integração é sinónimo de impotência para o campo progressista, até porque a falta de enraizamento popular facilita a cooptação intelectual e política das elites, crescem o descontentamento e a desconfiança populares. É claro que este círculo é o círculo dos neoliberais e da sua vitória estrutural. Este é o círculo que alimenta a extrema-direita. O que é extraordinário é que haja quem à esquerda não só não queira ver o círculo, como acabe por participar na sua perpetuação. Quebrar este círculo é o principal desafio.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Ajustar a troika


Façamos um exercício. Imaginemos que os desvios das previsões do Memorando de Entendimento (MdE), verificados entre a versão inicial e a 11ª Avaliação, para os anos de 2011 a 2016, se vão repetir nas estimativas estabelecidas pela troika para o período entre 2014 e 2019. Ou seja, vamos supor que as discrepâncias observadas até aqui reflectem a margem de erro inerente aos cálculos das instituições internacionais, constituindo por isso um bom instrumento para ajustar, tendo em vista uma aproximação à realidade, as mais recentes previsões do FMI relativamente a Portugal. E vamos supor também, por momentos, que a austeridade funciona (conduzindo ao cumprimento dos objectivos do próprio programa de «ajustamento»), o que nos leva a não questionar, portanto, a lógica subjacente às tendências de evolução que a troika estabelece nos diferentes indicadores.

Já assinalámos neste blogue por várias vezes (por exemplo aqui), a discrepância crescente entre as previsões iniciais inscritas no Memorando de Entendimento (assinado em Maio de 2011) e os resultados e previsões (rectificativas) que foram sendo estabelecidos ao longo das sucessivas revisões do MdE. Tal como já sublinhámos o facto de o optimismo inflamado da troika se ver consecutivamente obrigado a postergar no tempo o ansiado início do sucesso do programa, à boa moda dos «amanhãs que cantam», mas sempre no amanhã que está por vir. Os gráficos ali em cima ilustram bem tudo isto: a descoincidência entre a linha vermelha (previsões iniciais) e a linha azul (previsões da 11ª Avaliação) demonstra a persistente margem de erro da troika, podendo-se igualmente constatar que em regra, nos termos das previsões iniciais, as estimativas de inversão de tendências já deveriam ter ocorrido (o que de facto não sucede, como demonstra a divergência entre as previsões e a linha a negro, relativa a resultados).

Realizando este exercício de «correcção dos erros da troika» (linha a roxo, nos gráficos), a partir da replicação das suas próprias falhas, constatamos que a previsão relativa à evolução do desemprego aponta para um aumento até 2017, estagnando a partir daí num valor próximo dos 18% (que indicia a consolidação do «novo normal», num claro contraste com a visão optimista de descida acentuada deste indicador a partir de 2013, nos termos da 11ª Avaliação). Quanto à dívida pública em percentagem do PIB, a previsão ajustada indicia uma subida até 2015 e estagnação em 2016, iniciando-se apenas nesse ano a trajectória de descida. E quanto ao PIB, que se estimava na versão inicial do memorando começar a crescer logo em 2012, atingirá em 2019 cerca de 185 mil milhões de euros (um valor inferior ao previsto na 11ª Avaliação, que o situa, nesse ano, em cerca de 200 mil milhões de euros).

O pressuposto deste exercício não tem qualquer fundamento estatístico, pelo que dificilmente chega sequer a ser discutível. Mas nessa matéria, de fiabilidade, convenhamos que as previsões da troika também não oferecem muito mais. Se nos recordarmos que a versão inicial do memorando previa que a economia estivesse já a crescer a 1,2% em 2013, quando na verdade assistimos a uma contracção na ordem dos -2,1%, estamos conversados. Aliás, percebe-se muito bem por que razão a tese da sustentabilidade da dívida pública - esgrimida por todos quantos querem evitar, irresponsavelmente, que se discuta a sua reestruturação - não tem chão minimamente firme que a suporte.