segunda-feira, 5 de maio de 2014

Gary Becker (1930-2014)


Morreu ontem Gary Becker, economista de Chicago premiado com o prémio em memória de Alfred Nobel e, porventura, um dos intelectuais mais influentes da ciência social dos últimos 50 anos. Gary Becker foi um sem dúvida um grande inovador. Ele conseguiu expandir a grelha teórica económica neoclássica a novos campos da teoria social: do crime às taxas de fertilidade. A matriz reducionista da racionalidade de mercado passou, assim, para lá da mera afectação de recursos produtivos para esferas antes exclusivas de outras ciências sociais (aparentemente o economista não teria escolhido a sociologia como licenciatura “por ser demasiado complicada”).

Gary Becker tornou-se pois o grande fundador do que o economista político Ben Fine chama de “imperialismo económico”. Ou seja, o processo de colonização da teoria económica convencional a outras ciências sociais, quer através dos seus métodos (como na econometria), quer através dos seus pressupostos teóricos (sociedade atomizadas compostas por agentes racionais que maximizam a sua utilidade). Este tem sido um processo espectacularmente bem-sucedido. Veja-se o exemplo do “best seller” “Freaknomics” – que mais não é do que a popularização de investigação de um discípulo de Becker, onde fenómenos como a relação entre aborto e crime são explicados através de análise económica neoclássica centrada nos “incentivos”.

Infelizmente, esta colonização das ciências sociais por parte da teoria económica é amiúde bem-vinda pelos “colonizados” que, assim, julgam encontrar uma dita respeitabilidade científica aparentemente perdida. Veja-se, por exemplo, a ubiquidade de conceitos como capital humano, tema querido a Becker e aos seus colegas da escola de Chicago. O capital deixa de ser uma relação de poder tradutora da desapropriação de recursos para ser uma realidade distribuída (melhor ou pior) entre todos, cuja propriedade, em última análise, depende da vontade individual de cada um. O poder (e a política) abandona aqui a teoria social. As sociedades humanas são reduzidas ao resultado da soma de indivíduos cujas escolhas em todas as esferas da vida social se regem pela racionalidade de mercado. A hegemonia neoliberal de expansão infinita do mercado encontra aqui o seu zénite intelectual.

1 comentário:

koenige disse...

Bourdieu, ao debruçar-se sobre Becker no seu Estruturas Sociais da Economia, produziu uma das mais deliciosas execuções sumárias de que há memória em debates intelectuais (não tenho infelizmente o original francês nem a tradução portuguesa à mão):

"It is from this inversion of the scale of values that economics as we know it was born. (And whose implications some particularly intrepid economists, like Gary Becker, are merely following out — their very thinking being its unreflected product — when they apply models constructed in accordance with the postulate of calculating rationality to the family marriage or art)" (p. 7)

Isto lido em Português foi das coisas que mais me fez rir, uma obra inteira demolida nuns simples parênteses.

Há também esta: "It is one of the virtues of Gary Becker, who is responsible for the boldest attempts to export the model of the market … into all the social sciences, that he declares quite openly what is sometimes concealed …: 'The economic approach … is not restricted to material goods and wants or to markets with monetary transactions … [it] provides a framework applicable to all human behavior'. Nothing now escapes explanation in terms of the maximizing agent: … parliaments and municipal authorities, marriage (conceived as the economic exchange of services of production and reproduction) or the household, and relations between parents and children or the state. This mode of universal explanation by an explanatory principle that is itself universal (individual preferences are exogenous, ordered and stable and hence without contingent genesis or evolution) no longer knows any bounds" (p. 209).