segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Haja esperança

O Público de ontem tem um texto magnífico da autoria de Manuel Gusmão. Não me ocorre melhor forma de fechar um ano sombrio: «E contudo tudo se transforma. Transforma-se o mundo em nós e fora de nós. E da mudança dos tempos e das vontades, nós participamos. Não como animais caminhando para o abate, nem como demiurgos incondicionados. Mas como agentes procurando o máximo de consciência possível, estendendo as mãos e tacteando os possíveis; fazendo de acordo com os tempos a vinda de um outro tempo. Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar. O carácter profundamente transformador do trabalho humano, o facto de uma criança de dois anos ser capaz de produzir uma frase que nunca ouviu, o facto de a poesia reinventar a língua em que se escreve, o facto de as artes serem construções antropológicas e de os humanos se configurarem e reconfigurarem, segundo uma auto-poiesis histórica, são fundamentos suficientes para que nos possamos, sem mais garantias, prometer um futuro, 'uma terra sem amos'. Porque nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa». Bom ano de 2008 para todos.

Os ídolos também se abatem

No último dia do ano, aqui fica um artigo do insuspeito New York Times onde se defende que a hegemonia da crença na bondade ilimitada das forças de mercado está a ser corroída por vários desenvolvimentos endógenos ao capitalismo. As alterações climáticas, a crise financeira, as desigualdades abissais na distribuição dos rendimentos e da riqueza ou os resultados deploráveis de um sistema de saúde mercantilizado poderão estar a criar as condições para uma revisão das prioridades políticas nos EUA. Esperemos que sim. Para mim a questão central continua a ser a que Karl Polanyi formulou há mais de sessenta anos: a de criar condições ideológicas e políticas para reforçar o «contra-movimento» que protege a sociedade «contras as devastações dos ‘moinhos satânicos’» criados por todas as utopias de mercado.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Informação económica

Vale a pena acompanhar com atenção o economia.info. Três jornalistas económicos - Sérgio Aníbal, Rui Peres Jorge e João Silvestre - de três jornais diferentes - Público, Jornal de Negócios e Expresso - editam todas as semanas uma Newsletter que tem um objectivo ambicioso: «Propomo-nos a divulgar, de forma acessível, informação económica de conteúdo essencialmente académico e empírico. Sempre que possível, procuraremos que esses ‘avanços da semana’ se relacionem com temas que estejam a marcar o debate público». Estão a fazê-lo com assinalável sucesso desde final de Outubro. É um verdadeiro serviço público que mostra bem como o jornalismo económico tem ‘avançado’ em Portugal graças ao trabalho de uma nova geração de economistas, por sinal todos do ISEG, que sabe realmente do que fala.

Tenho apenas um reparo crítico e duas sugestões. O reparo diz respeito à utilização da expressão «avanços da semana» que julgo prestar-se aos piores equívocos porque entra no terreno pantanoso de saber o que é um ‘avanço’ científico em ciências sociais, como é que ele é identificado e por quem. Acho que ‘debates da semana’ seria mais adequado e permitiria talvez abrir o leque da investigação coberta. Confesso que implico com a ideia dos ‘avanços’ porque me lembro sempre daqueles que defendem, com a arrogância dos ignorantes, que um economista não deve ler nada com mais de meia dúzia de anos. Isto não tem qualquer sentido numa ciência que lida com questões irremediavelmente históricas, morais e políticas e onde tanto se perde e se recupera e às vezes tão pouco se transforma.

As sugestões são simples: prestar uma maior atenção à produção dos economistas académicos que são intelectuais públicos assumidos e ao excelente trabalho de divulgação em economia feito por tantos jornalistas por esse mundo fora (estou pensar nas Alternatives Economiques, nos artigos de Doug Henwood ou de Christopher Hayes, só para dar exemplos de trabalho com qualidade que se faz em economia à esquerda).

Economia e fé no mercado

Quando leio o que alguns economistas académicos andam a escrever sobre o BCP lembro-me desta frase certeira de John Kenneth Galbraith: «tal como é convencionalmente ensinada, a economia é em parte um sistema de fé, cujo propósito não é tanto revelar a verdade, mas mais fortalecer a confiança dos que dela comungam nos dispositivos sociais estabelecidos».

sábado, 29 de dezembro de 2007

Agora diz que é a cultura

«O BCP em lugar de mudar a cultura da gestão em Portugal, deixou que a cultura portuguesa mudasse a sua gestão» (Pedro Pita Barros no Diário Económico). É sempre a mesma cantiga quando as taras do capitalismo financeiro português são reveladas. Os economistas convencionais fazem de tudo, até mobilizam argumentos ‘culturalistas’ totalmente arbitrários, para iludir o essencial: as responsabilidades de gente que acumulou poder e dinheiro e que usou todos os recursos proporcionados pelo capitalismo global para acumular ainda mais dinheiro. A ideologia da «criação de valor para o accionista» e da necessidade de robustos incentivos pecuniários, destinados a alinhar os interesses da gestão com os interesses dos accionistas, são parte do mesmo problema. Até porque os milionários rendimentos desta gente foram durante anos justificados com recurso a esta ficção mercantil. A sua reciclagem - ‘falhámos porque ela não foi aplicada com suficiente afinco’ - está em curso. Tarefa de economista, tarefa de ideólogo.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Capitalismo e Corrosão Moral

Hannah Arendt afirmou, em A Condição Humana, que o problema principal da tese que defende a redução das motivações humanas ao egoísmo não reside no facto de ser verdadeira, mas sim no facto de poder tornar-se verdadeira, pondo assim em causa a existência de uma ordem social viável. De facto, nenhum sistema socioeconómico consegue reproduzir-se de forma satisfatória apenas com indivíduos egoístas. Felizmente, e ao contrário do que João Miranda possa pensar, as motivações humanas são complexas e exibem uma tremenda variabilidade e plasticidade. Um dos problemas do desenvolvimento do capitalismo sem freios é precisamente o de gerar ideologias que podem persuadir as pessoas de que o egoísmo racional é o alfa e ómega da vida humana e de criar estruturas e incentivos que dão livre curso não ao interesse próprio (noção vazia porque o que interessa a cada individuo varia e depende em parte da natureza das instituições em que está imerso), mas sim à cupidez mais desbragada, traduzida na busca incessante de dinheiro. Quando isto acontece as próprias fundações do sistema são abaladas. É que, como afirmou Albert Hirschman, o capitalismo precisa muito mais de generosidade, confiança, reciprocidade e até de altruísmo do que os seus ideólogos tendem a reconhecer e do que as estruturas geradas pela expansão, sempre politicamente suportada, do mercado se calhar possibilitam (sobre a corrosão moral gerada pela expansão do mercado ver também o contributo de Fred Hirsch). Não deixa de ser irónico que o capitalismo precise de ser defendido dos seus mais denodados defensores.

A esquerda socialista contra o neoliberalismo


Como já aqui se indicou, o sucesso político do partido da esquerda na Alemanha, formado pela aliança da social democracia que restava no SPD e dos neo-comunistas do PDS, é um dos sinais políticos mais interessantes dos últimos tempos na Europa. Oskar Lafontaine, um dos seus dirigentes, deu uma entrevista ao Público (via Nuno Ramos de Almeida): «o neoliberalismo propaga uma grande mentira: a sociedade actual, mais rica, não pode permitir-se ter um Estado forte que já era viável numa sociedade mais pobre». Os paralelismos com a situação portuguesa são irresistíveis e podem ajudar a clarificar os nossos problemas: «Oskar Lafontaine poderia ser descrito como uma espécie de Manuel Alegre alemão. Mas com duas grandes diferenças: tem ideias políticas claras e é consequente (. . .) Uma experiência que devia fazer pensar a moribunda ala esquerda do PS. Porque seria isto impossível em Portugal? Talvez uma explicação: o PS não tem uma verdadeira base sindical (. . .) Mas também vale a pena olhar para o sectarismo reinante no resto da esquerda» (Daniel Oliveira).

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A nova caridade e o desmantelamento do estado social

O Público de ontem tem um editorial, da autoria de Paulo Ferreira, que revela uma das linhas de força do pensamento liberal com 'consciência social': substituir o estado social e a sua lógica de provisão baseada na solidariedade, ancorada em direitos, por um vago «empreendedorismo social» baseado nos «cidadãos empenhados» em «organizações voluntárias». Caridade com novas roupagens. Assim se alimenta a ideia de que o desmantelamento do estado social e a contracção dos mecanismos de redistribuição podem ser encarados com complacência porque milhares de iniciativas da «sociedade civil» florescerão para ‘cuidar’ dos ‘pobres merecedores’, substituindo as organizações ‘burocráticas’ do estado social por estruturas mais ‘flexíveis’ e ‘próximas das pessoas’. Nada, a não ser um projecto político de regressão social, autoriza estes idealismos. Como afirmou Michael Walzer, em As Esferas da Justiça: «a caridade privada produz a dependência pessoal e, portanto, também os vícios habituais da dependência: de um lado deferência, passividade e humildade; arrogância do outro». Só a provisão pública, bem organizada, pode encarar e respeitar os indivíduos como cidadãos com direitos. Rendimento garantido, educação pública, prestações sociais decentes, políticas de pleno emprego, serviços públicos acessíveis a todos, solidariedade assente em impostos progressivos e na provisão coordenada de bens e serviços essenciais. Só assim se constrói uma sociedade decente. A caridade da «sociedade civil» é pouco mais do que a administração ineficiente de paliativos que alimentam os piores vícios e distorções. Sobre isto vale a pena ler a excelente posta de Jerome do blogue European Tribune: «a privatização da solidariedade, em larga escala, é um sinal de falhanço, não de sucesso».

Turbulências

«O facto de existir um processo de coordenação não implica que exista harmonia ou equilíbrio, nem no sentido ideológico como uma característica imanente do capitalismo, nem no sentido rigoroso de uma propriedade de estabilidade dinâmica que prevalecesse nos mercados (. . .) a complexidade e a mutação estrutural só podem ser explicados como desenvolvimentos históricos». Assim escrevia Francisco Louçã no seu livro A Turbulência na Economia. A crise e a instabilidade recorrentes, ainda que até agora circunscritas, da actual configuração histórica do capitalismo sob hegemonia da finança de mercado aí estão para mostrar a necessidade de um quadro teórico que saia da obsessão com o equilíbrio de mercado da teoria económica dominante. Agora, em artigo no esquerda, Francisco Louçã defende, apoiando-se na evidência que se vai acumulando, que «a crise de 2008 será por isso a primeira grande crise financeira da desregulação ou da financiarização desregulada dos mercados mundiais». A previsão em ciências sociais, como Francisco Louçã sabe melhor do que ninguém, é um exercício arriscado. Até porque existe sempre a possibilidade de que a acção individual e colectiva contrariem de forma inesperada o cenário que agora se identifica como mais provável. O problema é que quem tem poder político ainda está preso a uma ideologia que bloqueia a introdução de reformas robustas num sistema financeiro que é o resultado de mais de duas décadas de neoliberalismo. Controlo de capitais e novas taxas dissuasoras da especulação, fim dos paraísos fiscais, criação de uma autoridade europeia de regulação financeira, limitação das operações de titularização e de especulação com recurso ao endividamento, maior controlo público sobre as actividades dos bancos, reversão dos processos de privatização da segurança social ou acção coordenada nos mercados cambiais são parte de uma necessária agenda de mudança estrutural (sobre isto consultar o euromemorandum 2007).

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

A crise e os erros da Europa II

Se a estes pilares juntarmos a fragmentação nacional dos regimes fiscais, da legislação laboral ou da política social, cujo grau de harmonização continuará a ser diminuto ou mesmo inexistente, facilmente se entende como a integração europeia tem criado incentivos que orientam perversamente as políticas públicas nacionais no sentido da erosão dos direitos sociais ou laborais, bem como da fragilização da justiça dos sistemas fiscais. Dos actuais projectos de desregulamentação das legislações laborais nacionais, apoiados pela Comissão, até aos sucessivos cortes nos impostos que oneram os grupos sociais mais privilegiados, aos estados, sobretudo aos mais pequenos como Portugal, parece restar pouco mais do que procurar «seduzir» os capitais, cuja mobilidade o processo de integração tem feito tudo para promover, ou então procurar sair da crise através da promoção das exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho. Como todos os outros países tendem a fazer o mesmo, num processo descoordenado, o resultado é perverso: um mercado interno europeu desnecessariamente contraído por uma orientação de política que supostamente o deveria estimular.

Os padrões de desigualdade social e regional «anglo-saxónicos» são um dos resultados deste processo. Os problemas de desemprego são outro. Estes últimos têm a sua origem não na suposta «rigidez do mercado de trabalho» europeu, mas sim na rigidez de uma ortodoxia económica anti-keynesiana que nega à Europa aquilo que poderia ser um dos seus grandes trunfos: constituir um espaço ideal, porque relativamente autónomo em relação às forças da globalização, para a coordenação de políticas económicas anti-cíclicas de relançamento económico e de geração de emprego, como parte de um processo mais vasto de acumulação de forças para proteger os serviços públicos da lógica do mercado e para contrariar deliberadamente os mecanismos mercantis de polarização.

Foi por isso que mais de trezentos economistas europeus apresentaram recentemente um detalhado documento onde criticam o novo Tratado por continuar a ter marca neoliberal que corrói o modelo social europeu e onde propõem uma política económica alternativa com soluções concretas para os problemas da Europa. Porque não são os idealismos jurídicos, que se agarram a uma carta de direitos vazia e a umas vagas referências à «economia social de mercado» e aos serviços de interesse geral, que podem contrariar as tendências fortes que nos estão a levar a um modelo de capitalismo falhado.

Nota: estas duas postas foram publicadas em artigo no Público (24/12/2007).

A crise e os erros da Europa I

A actual instabilidade financeira, originada pela crise nos mercados de crédito nos EUA, que rapidamente se alastrou à generalidade dos mercados financeiros e que agora ameaça as economias dos dois lados do Atlântico, tem contribuído para enfraquecer a crença nas virtudes ilimitadas do aprofundamento dos processos de mercado com o seu cortejo de privatizações, de desregulamentação e de financeirização da economia. Martin Wolf, economista liberal e editor do Financial Times, considerou recentemente que «o que está acontecer nos mercados de crédito é um grande golpe na credibilidade do modelo anglo-saxónico de capitalismo centrado nas transacções financeiras» (Financial Times 12/12/2007). No entanto, isto não impediu os líderes reunidos em Lisboa de assinar um Tratado que não inverte, longe disso, o processo global de aproximação da União Europeia a um modelo neoliberal de capitalismo cujas fragilidades socioeconómicas se tornam agora particularmente evidentes.

Esta convergência tem essencialmente três grandes pilares impulsionadores, aceites quase sem discussão pelas elites políticas e económicas, e que constam do Tratado de Lisboa: (1) uma Comissão Europeia dotada de instrumentos e de vontade política para alargar a lógica do mercado interno e da concorrência a um número crescente e potencialmente ilimitado de áreas; (2) uma moeda única gerida por um Banco Central «independente» do poder político democrático e com um mandato focado exclusivamente na estabilidade de preços, sem qualquer preocupação com o impacto das suas decisões ou omissões no crescimento económico e na criação de emprego; (3) um orçamento comunitário residual e uma orientação de política orçamental presa à miragem do equilíbrio das contas públicas, concebida como um fim em sim mesmo, que não permitem que os poderes públicos, europeus e nacionais, possam influenciar o andamento da economia e desta forma promover o pleno-emprego.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Dinheiro que é mesmo melhor que dinheiro

Continuam as revelações das sórdidas acções no banco de «referência» do hipertrofiado
capitalismo financeiro português (BCP). Na direita intransigente reina um silêncio ensurdecedor. Se calhar pode estar em jogo a viabilidade das suas aventuras editoriais. Será que vão dizer que é mais uma «campanha de informação e desinformação»? Mas vamos ao que interessa. E o que interessa é que quando as coisas apertam se recorre ao tão famigerado Estado e aos «politizados» recursos humanos das suas empresas públicas: «actual presidente da Caixa Geral de Depósitos está disponível para liderar a próxima equipa de gestão do Banco Comercial Português». A confiança é um activo que, em momentos de crise, só o Estado parece garantir. Ainda bem que temos a CGD. Esta crise, provocada pela ganância, que agora se suspeita criminosa, da administração do BCP, tem pelo menos uma vantagem: contribui para minar a fé na bondade ilimitada da empresa privada sem adequado escrutínio público. Pena é que as autoridades de supervisão e de regulação tenham andado tanto tempos distraídas. Vítor Constâncio ainda vai ter muitas explicações para dar. Aguardemos serenamente. Entretanto, na liberal Grã-Bretanha, o cenário da nacionalização do Northern-Rock parece cada vez mais inevitável. A crise, sempre a crise, a revelar a falência de todos os projectos de capitalismo puro.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Referendo europeu

Roubado ao Zero de Conduta.

Para onde vai a legislação laboral?


A definição e redefinição das regras que regem as relações sociais para lá da placa onde está escrito «proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço» e que repartem os direitos e as obrigações entre patrões e trabalhadores é assunto crucial para determinar como se vive no espaço onde a maioria das pessoas passa uma parte importante do seu dia. Que determina, em grande medida, aquilo que podem ser e fazer na outra. Por isso aguardava-se com expectativa as conclusões do Livro Branco sobre relações laborais. Aqui chegados e para formar uma opinião sobre uma matéria complexa, vale a pena começar por ler o excelente trabalho de Manuel Esteves no Diário de Notícias. Jornalismo económico no seu melhor. Num espírito construtivo destaco, pela positiva, a ideia de reverter a extensão da duração dos contratos a prazo para os três anos em vez dos seis definidos no anterior código (não deveria ser autorizado mais do que um ano, mas para isto seria preciso outra correlação das forças políticas e sociais). Quanto ao resto - despedimentos, adaptabilidade, e contratação colectiva - aguardo as análises de quem percebe do assunto. Sublinhar apenas, como afirma um membro da comissão técnica ao Público, que «a controvérsia sobre a flexi-segurança acabou por inibir o sentido da inovação». E ainda bem que foi assim. Em Portugal, esta ideia, na ausência de um estado social forte e de patrões qualificados, só iria servir para que as «inovações» fossem no sentido de uma ainda maior precarização das relações laborais. Isto foi parcialmente travado. Ainda bem que parece que nos enganámos.

O Banco de Portugal decidiu meter o BCP na ordem?

«O encontro decorre esta tarde e vai servir para o supervisor dar explicações sobre o andamento das averiguações e procurar criar o ambiente propício à saída dos administradores do BCP associados aos actos de gestão considerados irregulares» (Público). Já é tempo do Banco de Portugal acabar com a complacência liberal em relação às brincadeiras irresponsáveis de certos banqueiros que só prejudicam a economia. Tarefa ainda mais importante numa altura em que a economia portuguesa é das mais vulneráveis da UE à instabilidade financeira gerada pelas actividades dos especuladores e financeiros. Gente que hoje desfruta de uma «liberdade» de movimento sem precedentes. Resultado de mais de duas décadas de hegemonia da crença nas virtudes ilimitadas do mercado.

Nota: aguardamos ansiosamente as reacções da Atlântico.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O BCE é um problema da Europa


«No Parlamento Europeu o presidente do BCE apontou para tempos de riscos de inflação e, obviamente, taxas de juro elevadas. Jean Claude Trichet parece acreditar que a inflação vai subir. Continuo sem perceber bem o mecanismo» (Helena Garrido). Não há mecanismo, só uma obsessão. A economia europeia dá sinais de desaceleração, o euro aprecia-se e estiola a competitividade da indústria europeia e o desemprego permanece elevado. Coisas menores. Pelo menos parece que a estabilidade do sistema financeiro, corroída pelas dinâmicas concorrenciais engendradas por processos de liberalização irresponsáveis, é agora uma prioridade. Pena é que o BCE não pareça retirar ilações sobre a arquitectura institucional que dá origem a esta desestabilizadora alternância de períodos de euforia e de pânico (aqui vale a pena ler o euromemorandum de 2007). De qualquer forma, a marca genética liberal do BCE bloqueia soluções que reintroduzam algum controlo sobre os desmandos da finança de mercado. Os eurodeputados, por sua vez, limitam-se a ouvir as palavras de Trichet e parece que também podem fazer perguntas. A falta de controlo e escrutínio democrático do BCE, aliada a um mandato absurdo, estão a custar demasiado caro à Europa.

Negócios da China

A actual crise financeira parece estar a baralhar as tradicionais hierarquias de poder dos mercados internacionais. Depois da capitalização do Citybank por um fundo estatal de Abu Dabhi, é agora a vez do Merryl Linch (outro grande banco internacional) recorrer a um fundo estatal chinês.

Melhores de 2007 - I

Começo pelo álbum que começa a reunir a unanimidade da crítica internacional para melhor do ano, o "Sound of Silver" dos LCD Soundsystem.

Impactos do salário mínimo: «o diabo está nos detalhes»

A direita intransigente continua à procura de estudos empíricos que mostrem o impacto negativo do salário mínimo. E quanto mais procuram mais se mostra como o assunto é controverso na «comunidade» dos economistas

Leiam o prefácio ao estudo empírico sobre o impacto negativo de uma acentuada actualização (50%) do salário mínimo jovem (trabalhadores com 18 e 19 anos) efectuada em 1987 («existem efeitos de substituição para trabalhadores com produtividades marginais mais elevadas») para uma avaliação do estado da discussão na ortodoxia. 

Aí se diz que os modelos sem fricções são particularmente inadequados para analisar as dinâmicas do mercado de trabalho (lá se vão os tais sólidos fundamentos teóricos de João Miranda aprendidos em maus manuais de introdução à economia). E depois temos este estudo mais geral: «o impacto do salário mínimo, em diferentes ambientes económicos, pode gerar diferentes resultados em termos de emprego». 

Vejam ainda a síntese da OCDE (organização que mais tem promovido as políticas de desregulamentação do mercado de trabalho): «A experiência recente mostra que o salário mínimo moderado não é um problema» em termos de emprego. É o que está aqui a ser discutido. Uma actualização moderada do salário mínimo que recupere o poder de compra perdido e que alinhe o seu crescimento real com o crescimento da produtividade. 

Mais uma vez isto pode ter várias virtudes económicas no actual contexto: (1) contribui para minorar a pobreza entre quem trabalha; (2) reduz as desigualdades salariais; (3) cria incentivos adicionais que podem gerar aumentos da produtividade entre os trabalhadores abrangidos; (4) tem impactos positivos em termos da procura; (5) cria incentivos moderados para a mudança do perfil de especialização da nossa economia. 

E depois temos os argumentos ético-políticos mais gerais (que são na realidade inseparáveis dos económicos): (1) o salário mínimo reduz a assimetria de poder entre empregadores e empregados; (2) o salário mínimo é a expressão do reconhecimento político de que existem transacções que são o resultado de escolhas coagidas por circunstâncias não consentidas que colocam pessoas vulneráveis em situações trágicas evitáveis (terem de vender a sua força de trabalho por um salário de pobreza, por exemplo). Questões que estão no centro das melhores tradições do direito do trabalho e da economia política.

As lições de Chang XIV - O reforço da propriedade intelectual é um entrave ao desenvolvimento

A compreensão imperfeita dos processos de inovação, associada à pressão de alguns interesses privados, levou (e leva) muitos governos a confundirem a promoção da inovação com a protecção de direitos de propriedade intelectual (DPI). A defesa do reforço dos DPI estendeu-se rapidamente às relações económicas internacionais, sendo o acordo TRIPS («Trade related aspects of intelectual property rights») um dos elementos chave da acção da Organização Mundial do Comércio, atribuindo a esta organização o poder de impor o respeito pelos DPI a todos os países membros.

O reforço das DPI não é apenas desnecessário à inovação na maioria dos contextos; esse reforço constitui um obstáculo injustificável ao desenvolvimento económico e social, impondo aos países menos desenvolvidos restrições que muitos dos actuais países ricos rejeitaram para si próprios no passado.

Embora o primeiro sistema de patentes tenha surgido ainda no século XV, a maioria dos países industrializados só adoptaram legislação sobre patentes na segunda metade do século XIX. Tipicamente, estes sistemas serviam mais para complementar outros instrumentos de incentivo à invenção nacional (em particular, os prémios), do que para garantir os DPI de empresas estrangeiras (que eram largamente desrespeitados). Alguns países ricos não adoptaram qualquer sistema de patentes, ou aboliram os existentes, até ao início do século XX, como forma de promover a sua indústria (e.g., a empresa Philips na Holanda, a indústria química na Suiça). A contrafacção (de que hoje são sistematicamente acusados vários países em desenvolvimento) foi prática generalizada no processo de industrialização da Alemanha e dos EUA.

Nos dias de hoje, os países ricos não se limitam a querer impor o respeito pelos DPI em todo o mundo; procuram activamente reforçar o sistema de DPI existente, alargando o seu âmbito de aplicação a novos domínios (e.g., software, métodos de gestão, a própria vida...) e aumentando o prazo de vigência desses direitos (e.g., a duração típica do direito de patente passou de 13 anos no final do sec.XIX, para 20 anos na actualidade).

Estas alterações são do interesse desses países, que detêm 97% das patentes mundiais e a larga maioria das marcas registadas e dos ‘copyrights’. No entanto, elas criam dificuldades acrescidas - e quase sempre desnecessárias - no acesso ao conhecimento e à tecnologia por parte dos que mais necessitam (segundo o Banco Mundial, os custos desse aceso correspondem hoje a cerca de metade da ajuda externa prestada pelos países ricos aos países em desenvolvimento).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Salário mínimo: combate empírico


Mas deixemos a teoria. Qual tem sido a avaliação empírica da introdução ou aumento dos salários mínimos? A discussão tem sido animada nos EUA, com um número crescente de estados a imporem aumentos do salário mínimo acima do estipulado pelo governo federal. Aqui encontrão um bom número de trabalhos dedicados aos efeitos da introdução de aumentos do salário mínimo em diferentes estados e condados norte-americanos, da Florida à Califórnia. Por exemplo, na Florida, o salário mínimo horário foi aumentado dos 5.15$ dólares federais para 6.15$. Um aumento de quase 20%. O número de trabalhadores beneficiado pela fixação do salário mínimo passou de 310 000 para 850 000. Os custos associados aumentaram de 140 milhões de dólares para 410 milhões. E, no entanto, mesmo nos sectores mais dependentes de mão-de-obra não qualificada, como a hotelaria, tal aumento traduziu-se num custo de 1% do seu volume de negócios. Eloquente, não?

Salário mínimo: combate teórico

A direita ultra-liberal arroga-se da autoridade científica da teoria económica para defender a abolição do salário mínimo. No entanto, é incrível como, quando se dão ao trabalho de esboçarem uma abordagem teórica substantiva, se agarram ao que aprenderam em Micro I sobre mercados competitivos. O mercado de trabalho seria composto por uma miríade de empresas que contrataria a um preço de equilíbrio fixado por uma simples interacção entre a procura e a oferta de trabalho. Não existe aqui qualquer relação de poder entre trabalhadores e empregadores; como afirmou Samuelson, neste modelo é indiferente ser o capital a contratar o trabalho ou o trabalho a contratar o capital. Estranho que se verifique sempre o primeiro caso, não?

Contudo, como o João afirma, a teoria económica, mesmo a mais ortodoxa, é mais sofisticada do que isto. Se, em vez de um modelo competitivo, adoptarmos um modelo de concorrência mais próximo de um monopsónio, onde o empregador detém poder de mercado na fixação do salário, os equilíbrios potenciais são múltiplos, podendo um aumento do salário mínimo resultar num aumento do emprego (Card e Krueger, vale a pena ler o resumo). Por outro lado, se adoptarmos o modelo de «salários de eficiência», dos Nobel Akerloff e Stiglitz, um aumento dos salários, aumentando os custos directos do trabalho, pode influenciar positivamente a produtividade do trabalhador e reduzir os custos indirectos do trabalho (recrutamento, controlo, etc). E isto dentro da ortodoxia. Se complicarmos um pouco e considerarmos que as empresas têm algum grau de discricionariedade na fixação dos seus preços e processos de produção, salários mais altos podem ser ajustados através de diferentes mecanismos que não afectam o nível de emprego: melhores técnicas de produção, melhores técnicas de vendas, aumento dos preços, redistribuição da massa salarial na empresa em benefício dos trabalhadores mais mal pagos, etc.

Salário mínimo: para terminar com os argumentos de autoridade

A absurda declaração da JP sobre o salário mínimo já mereceu bons comentários, entre outros, de Daniel Oliveira, Pedro Sales e Vital Moreira. A direita intransigente, por sua vez, decidiu invocar poderosos argumentos de autoridade: «O salário mínimo deve ser um dos assuntos em que a discrepância da opinião popular e o conhecimento dos economistas mais se evidencia» diz um; a proposta da JP está suportada por «sólidos fundamentos teóricos» diz outro. A direita intransigente tem obviamente todo o direito de procurar ser o intelectual colectivo dos sectores mais retrógrados do patronato português, mas os seus «argumentos» roçam a ignorância e a desonestidade intelectual quando invocam o apoio «científico» dos economistas para as suas cruzadas. Este é um assunto que divide a «comunidade» e que, mesmo dentro da teoria económica dominante, é altamente disputado. Por exemplo, os prémios Nobel Kenneth Arrow, Lawrence Klein, Paul Samuelson, Robert Solow e Joseph Stiglitz, juntaram-se, em 2006, a mais de 650 economistas académicos na defesa de um aumento do desvalorizado salário mínimo norte-americano, considerando que seria um bom instrumento de combate à pobreza e à desigualdade e que poderia contribuir para reequilibrar as relações laborais. Depois temos, entre outros, o famoso estudo empírico de David Card e Alan Krueger mostrando que o salário mínimo não provoca necessariamente desemprego. E quanto aos fundamentos teóricos, basta conhecer os modelos teóricos do paradigma da informação assimétrica para ter muitas dúvidas sobre as conclusões simplistas do modelo de concorrência perfeita que trata o trabalho humano como se este fosse uma mercadoria homogénea. E depois há cada vez mais economistas convencionais, como Stiglitz, que modelizam as relações laborais como relações em que existem assimetrias de poder e em que os ganhos de produtividade não se traduzem necessariamente em correspondentes aumentos salariais. Basta conhecer um pouco de história económica para saber que é assim. Chega portanto de argumentos de autoridade económica. Este gráfico (para os EUA) diz tudo sobre como o «mercado» assegura a convergência automática entre o crescimento da produvidade e o crescimento dos salários. Enfim, a direita intransigente continua viciada em convenientes ficções mercantis.



Adenda: Entretanto, Bz do insurgente tem um comentário à minha posta que merece ser lido. O seu argumento em nada modifica a realidade da discrepância entre o crescimento dos salários e o crescimento da produtividade nos EUA, nos últimos 30 anos. Como mostra o artigo de onde o gráfico foi retirado, o crescimento da produtividade ultrapassou em 50% o crescimento do salário real mais outros benefícios auferidos pelos trabalhadores (por exemplo, com prémios de seguro de saúde). O meu ponto mantém-se portanto. Bz não apresenta nenhum argumento que justifique esta divergência (como poderia ser de outra forma?). O seu argumento sobre o facto destes trabalhadores beneficiarem da globalização (produtos mais baratos) é totalmente arbitrário já que estamos a falar de crescimento de salários reais (a inflação ou deflação já estão incorporadas). Os outros pontos de Bz só são válidos se conseguir demonstrar que o crescimento dos salários acompanhou a produtividade nos outros sectores. Basta olhar para o seu novo gráfico para ver que o problema liberal se mantém (análises mais finas que revelassem o crescimento do leque salarial só o acentuariam). E depois existe a interessante questão da segmentação do mercado de trabalho (implícita no seu argumento) à qual voltarei. Quanto ao resto, como sabe Bz que os restantes 19350 economistas da AEA ou que os outros prémios Nobel vivos são contra o salário mínimo? Conhece algum inquérito?


As lições de Chang XIII - Na maioria dos casos a propriedade intelectual promove os lucros privados, mas não o bem-estar social

Os medicamentos de combate à SIDA custam 10 a 12 mil dólares por paciente/ano, 3 a 4 vezes o rendimento per capita dos países mais ricos do continente africano. Perante isto, o governo sul-africano decidiu no final da década de 90 infringir os direitos de patentes detidos pelas grandes multinacionais do sector farmacêutico, produzindo genéricos no país com base nas fórmulas dos medicamentes existentes. A resposta das empresas farmacêuticas não se limitou à interposição de um processo em tribunal contra o governo sul-africano; o caso deu início a uma campanha massiva a nível mundial de justificação dos direitos de propriedade intelectual.

As empresas farmacêuticas argumentavam que o monopólio concedido através das patentes às empresas que criam novos medicamentos - o qual lhes permite determinar os preços de forma unilateral - constitui o principal incentivo para investirem em investigação. Sem esse incentivo, diziam, os recursos mobilizados para o esforço de inovação diminuiriam drasticamente, pondo em causa a descoberta de mais e melhores soluções farmacêuticas no futuro.

Este argumento tem sido utilizado para justificar a existência - e o reforço - do sistema de propriedade intelectual, não apenas no sector farmacêutico mas em muitos outros, constituindo hoje uma das principais preocupações dos países ricos nas negociações sobre comércio internacional na OMC.

Mas ideia de que a propriedade intelectual é essencial para o desenvolvimento da humanidade é, no mínimo, parcial. Por um lado, embora os incentivos materiais sejam relevantes, eles estão longe de ser o único factor de motivação para a produção de inovações: a curiosidade científica e a promoção do bem comum são forças tão ou mais poderosas do que aquela (por exemplo, 3/5 do financiamento da investigação farmacêutica nos EUA é garantido pelo Estado ou por organizações não-lucrativas).

Para além disso, na maioria dos sectores de actividade a propriedade intelectual é basicamente irrelevante enquanto motivação para a inovação - as empresas que inovam são sempre beneficiadas, seja porque a empresa tem uma reputação indisputada, seja porque a inovação é difícil de imitar, ou porque o tempo necessário a um concorrente para imitar garante que a situação de monopólio se estende por longos períodos. Isto garante ao inovador a realização de lucros suficientemente elevados para compensar os investimentos em investigação e desenvolvimento.

Nestes casos, os direitos de propriedade intelectual são desnecessários à promoção da inovação. O seu único efeito é o de permitir à empresa que os detém impor unilateralmente as suas condições de troca, reduzindo assim o grau de realização dos benefícios sociais potenciais da inovação.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Salário mínimo: instrumento de combate

Segundo o DN do princípio do mês, um estudo do Ministério do Trabalho confirma o «custo marginal» do aumento do salário mínimo. O impacto foi estimado em 0,18% da massa salarial nacional. Como explicar então a afirmação de Van Zeller, presidente da CIP (principal confederação patronal), que classifica este aumento como «desastroso»? O João aponta, no post abaixo, que os aumentos podem estar a servir de moeda de troca nas negociações da reforma da legislação laboral. Se bem que não devamos negligenciar a importância da reforma em curso, o combate do patronato ao salário mínimo não deve ser interpretado como meramente instrumental. As críticas aos aumentos acordados fazem parte da sua ofensiva contra a própria ideia de salário mínimo. De facto, com um salário mínimo universal, o trabalho é parcialmente «desmercadorizado». A determinação salarial é colectivamente feita, deixando de ser o simples resultado da negociação de mercado.

Contudo, este instrumento de democracia económica é inaceitável aos olhos do patronato. Assim, já que não existem actualmente condições políticas para defender o fim do salário mínimo, adoptou-se a estratégia de o desvalorizar até à irrelevância. Uma estratégia até hoje bem sucedida, já que: (1) são cada vez menos os trabalhadores que auferem o salário mínimo (5%); (2) é cada vez maior a diferença entre este e o rendimento médio nacional (50%). Esperemos que os aumentos anunciados assinalem a inversão desta tendência.

O Salário mínimo contra a mediocridade patronal

Em 2005, a CGTP apresentou a proposta de elevar o salário mínimo para 500 euros até 2010. Na altura Sócrates considerou esta proposta irrealista e irresponsável. No entanto, em 2006 foi assinado, por todos os parceiros sociais, um acordo de concertação social que fixou esta objectivo para 2011. Nos últimos tempos, a CIP, demonstrando até que ponto os representantes patronais honram os compromissos assumidos, procurou associar este acordo a modificações na legislação laboral que nada, a não ser o mais estreito e míope interesse dos mais desqualificados sectores patronais, autoriza. Felizmente, o bom senso imperou e ontem deu-se mais um passo para que o salário mínimo possa recuperar o poder de compra perdido nos últimos anos. Segundo o DN de hoje, 241 mil trabalhadores terão, no próximo ano, um aumento real de 3,6% do seu salário com «um custo marginal para as empresas». Trata-se de uma simples questão de bom senso socioeconómico e de justiça social mínima. De facto, um salário mínimo decente é um excelente instrumento de combate à pobreza e às desigualdades sociais, constituindo um estimulo à procura que pode ter, ao contrário do que gostam de alardear muitos economistas viciados em modelos cujo equilíbrio pode situar-se abaixo do nível de subsistência, alguns impactos positivos (provavelmente modestos) na dinamização da economia.

Um tratado sem muros

O eurodeputado Miguel Portas, numa sucessão de postas (I, II, III, IV), procura descodificar um Tratado cuja dificuldade de leitura apenas está ao nível do desejo dos governos em furtarem o documento ao escrutínio democrático dos cidadãos. Destaco duas ideias no campo socioeconómico: (1) «A Carta é um compromisso pela média baixa dos Direitos. Por exemplo, os cidadãos têm ‘direito a trabalhar’ e ‘direito a procurar emprego’ (só faltava que não tivessem. . .), o que é bem diferente de terem ‘direito ao emprego’, a formulação clássica da social-democracia europeia e do movimento dos trabalhadores»; (2) «Se a Comissão impera nas finanças e o BCE na moeda, outro tanto se não pode dizer dos domínios onde a ausência de Europa se tem feito sentir. A saúde, a educação, a formação profissional e as políticas sociais continuam, no essencial, circunscritas a cada Estado nação. (. . .) Por outras palavras e para lá das palavras, o que seria verdadeiramente importante para uma estratégia de reinvenção do Estado social fica para cá do Tratado». É de sublinhar que a «regulação assimétrica» europeia, bem denunciada por Miguel Portas, orienta perversamente as políticas públicas nacionais no sentido da erosão dos direitos sociais ou laborais, bem como da fragilização da justiça dos sistemas fiscais. Não se podia ter pensado em melhor arquitectura institucional para criar um plano inclinado neoliberal.

As lições de Chang XII - Em muitas situações, as empresas públicas são mesmo a melhor solução

Há três argumentos principais que fundamentam a interferência directa do Estado na produção de bens e serviços.

O primeiro tem a ver com actividades cruciais para o desenvolvimento económico que envolvem investimentos avultados, riscos elevados e períodos de gestação longos - características que afastam os investidores privados, tipicamente motivados por lucros seguros e de curto prazo. De facto, na generalidade dos países que são hoje desenvolvidos as empresas públicas não surgiram para substituir o capitalismo mas para lançá-lo - com o Estado a assegurar os investimentos necessários à industrialização, quando o seu sucesso era ainda incerto.

O segundo argumento consiste na existência de ‘monopólios naturais’ - situações em que as condições tecnológicas fazem com que seja mais eficiente ter uma única empresa a produzir (é o caso, por exemplo, das redes de distribuição de electricidade, água, gás e caminhos-de-ferro). Nestes casos, o monopolista tem o poder de estabelecer unilateralmente os preços e outras condições de troca, o que torna recomendável que alguém controle o monopolista.

Finalmente, o Estado intervém directamente na produção quando tal é necessário para garantir a coesão social e territorial (por exemplo, se a localização de serviços postais fosse determinada por meras considerações de custo-benefício, muitas zonas periféricas tenderiam a ser excluídas).

Muitos liberais aceitam estes argumentos, mas replicam afirmando que qualquer um dos problemas referidos pode ser resolvido através de uma mistura instrumentos que envolvem a regulação, os impostos e os subsídios sobre a actividade privada - sem necessidade, portanto, da existência de empresas públicas.

O problema desta alternativa é que ela assume que é mais fácil levar a cabo uma regulação eficaz da actividade privada do que controlar directamente a produção. Na verdade, a regulação indirecta exige a presença de um Estado forte, capaz de organizar um esquema de incentivos sofisticado, métodos e instrumentos de monitorização robustos, um sistema jurídico que efectivamente penalize as infracções, bem como a força política suficiente para confrontar os interesses privados sempre que surjam divergências quanto aos termos da regulação. Ou seja, um Estado que não consegue pôr as empresas públicas a funcionar, dificilmente conseguirá regular devidamente a actividade das empresas privadas.

Noutros termos, menos Estado na produção directa implica mais (e melhor) Estado no controlo indirecto da produção. Quando as coisas correm mal, pouco há a fazer - como demonstram os casos dos ‘apagões’ na Califórnia em 2001 e a desorganização total dos caminhos-de-ferro ingleses em 2002, na sequência das respectivas privatizações. E quando o aparelho administrativo do Estado é rudimentar (como em muitos países em desenvolvimento) ou o seu poder relativo diminuto (como no caso de Portugal) aumentam os riscos de o interesse público ficar refém dos interesses particulares.

Europa ou a crise da social democracia

André Freire, em artigo no Público de ontem, mostra como existem fundadas razões para descontentamento com o rumo da integração europeia «mesmo quando nos colocamos numa perspectiva social-democrata (excepto talvez se a reduzirmos à actualização neoliberal chamada ‘terceira via’)». Um dos principais problemas reside precisamente na hegemonia que a ‘terceira via’ continua a exercer no débil imaginário social-democrata, o que explica que a Europa, mesmo com governos de partidos da segunda internacional, seja hoje o «cavalo de Tróia da globalização neoliberal» quando poderia ser, com outras políticas, o espaço ideal para controlar e comandar este processo.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

As lições de Chang XI - Quem diz que as empresas públicas são ineficientes e desnecessárias não anda a ler jornais

Na posta anterior desta série viu-se que a ideia de que as empresas públicas são necessariamente mais ineficientes do que as privadas tem pouca sustentação teórica. Tão ou mais importante do que os argumentos teóricos são os exemplos históricos. Olhemos para alguns casos de economias de crescimento rápido nos últimos anos.

O governo de Singapura através da sua agência de participações públicas, é accionista maioritário de empresas de: aviação comercial (Singapore Airlines, provavelmente a empresa mais bem sucedida do sector a nível mundial), semicondutores (onde são líderes mundiais), telecomunicações, imobiliário (a quase totalidade dos terrenos do país e 85% da habitação são propriedade do Estado) e engenharia (e.g., a multinacional SembCorp).

Até 1996, o governo do Taiwan controlou directamente 1/6 do produto nacional do país. Nas privatizações realizadas a partir desse ano (que afectaram apenas uma parte das empresas públicas), o Estado manteve participações que atingem em média 35.5% do capital dessas empresas e nomeia directamente cerca de 60% dos administradores.

O caso paradigmático da importância do sector público empresarial na Coreia do Sul é a empresa metalúrgica POSCO - central para o desenvolvimento do país desde a década de 1950, tornou-se a 3ª maior empresa mundial do sector. Só foi privatizada no final da década de 1990, como resultado da crise asiática (e não por ser considerada ineficiente enquanto empresa pública).

Na China o processo de desenvolvimento iniciado no final dos anos 70 foi todo ele baseado na actividade das empresas públicas; ainda hoje, 40% da produção industrial é controlada pelo Estado – e se o seu peso relativo diminuiu, tal tem mais a ver com o crescimento do sector privado do que com a contracção do público.

No Brasil, a Petrobrás (petróleo) e a Embraer (aeronáutica) ainda hoje nos mostram como empresas públicas podem apoiar as estratégias nacionais de desenvolvimento e, simultaneamente, afirmar-se como referências internacionais.

Renault (automóveis), Alcatel (equipamento de telecomunicações), St Gobain (materiais de construção), Usinor (Aço), Thomson (electrónica), Thales (defesa), Elf (petróleo e gás), Rhone-Poulenc (farmacêutica) e Volkswagen (automóveis) são nomes que nos lembram que também na Europa as empresas públicas têm sido fundamentais para o desenvolvimento económico, tendo em muitos casos a capacidade de tornar-se líderes mundiais nos respectivos mercados. Na maioria dos casos, a privatização (total ou parcial) de algumas destas (e outras) empresas teve mais a ver com convicções ideológicas, com a pressão da Comissão Europeia e com apertos orçamentais dos Estados, do que com a demonstração empírica da sua irrelevância ou ineficiência.

Como sair do pesadelo americano?

Este trabalho do Economic Policy Institute, um dos poucos «think-tanks» progressistas na área da economia nos EUA e que foi responsável por este extraordinário abaixo-assinado em defesa do salário mínimo decente, mostra bem como as desigualdades atingiram níveis sem precedentes. Entre 2003 e 2005, as desigualdades de rendimentos aumentaram como nunca desde 1979: «400 mil milhões de dólares, antes de impostos, mudaram dos 95% das famílias mais pobres para os 5% das famílias mais ricas». Isto representou a acentuação de uma tendência forte iniciada com a revolução conservadora do final dos setenta e que hoje é denunciada até por economistas convencionais como Paul Krugman.

No entanto, quebrar esta tendência exige atacar o consenso neoliberal. Poucos economistas estão em melhor condições do que Robert Pollin para propor uma política económica igualitária capaz de superar a letal combinação de «keynesianismo militar» e de políticas centradas no corte dos impostos para os mais ricos. Uma política económica alternativa centrada em «imperativos morais» como a criação empregos decentes, cuidados de saúde para todos, educação e ambiente. Uma política económica financiada pela anulação dos cortes de impostos de Bush e pelo fim da aventura imperialista no Iraque (138 mil milhões gastos só em 2007).

Nota: para uma elaboração das ideias de Pollin, este artigo sobre a possibilidade do pleno emprego na época da globalização é um bom ponto de partida, assim como este excelente livro:

Solidariedade contra a roleta russa do egoísmo

João Ferreira do Amaral (JFA) é um dos poucos economistas com intervenção pública que se atreve a desviar do consenso neoliberal que ainda vigora em Portugal. Esta sua intervenção sobre a sustentabilidade da segurança social, realizada numa iniciativa da presidência portuguesa da UE, é um excelente exemplo de rigor científico e seriedade intelectual. Em nove páginas mostra como «é um erro dizer que os regimes de repartição vão entrar em falência e que os únicos que poderão sobreviver serão os de capitalização». O facto é que «se não houver condições para a sustentabilidade de um regime de repartição também não haverá para um regime de capitalização». O sistema público de pensões assente na solidariedade intergeracional e o sistema assente na roleta dos mercados financeiros dependem, entre outras coisas, da relação entre as dinâmicas demográficas e a evolução da produtividade da economia. No entanto, segundo JFA, o sistema público de repartição assegura maior igualdade, transparência, segurança e estabilidade macroeconómica ao evitar a especulação financeira desenfreada. Acrescentaria apenas que a experiência tem também mostrado que o sistema de repartição tem custos globais de gestão muito inferiores ao sistema de capitalização. Quando um economista defende as virtudes do sistema privado de capitalização é sempre bom saber quem é que lhe paga o salário. Os bancos e as seguradoras não dormem e por isso instigam a construção de cenários dantescos de falência do sistema público que nenhuma análise séria hoje autoriza.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Pleno emprego


«Num regime de pleno emprego permanente, a ameaça de despedimento deixaria de desempenhar o seu papel como medida disciplinar. A posição social do patrão seria ameaçada e a confiança e a consciência de classe dos trabalhadores cresceria. As greves por aumentos salariais e por melhorias nas condições de trabalho criariam tensões políticas (. . .) a ‘disciplina nas fábricas’ e a ‘estabilidade política’ são mais apreciadas pelos homens de negócios do que os lucros. O seu instinto de classe diz-lhes que o pleno emprego permanente é nocivo para si e que o desemprego é uma parte integrante de um sistema capitalista ‘normal’». Michal Kalecki, um dos mais importantes economistas pós-keynesianos. A luta de classes da economia política marxista bem articulada com ideias sobre a importância da procura efectiva. Keynes e Marx combinados. A política económica orientada para o pleno emprego como via para a acumulação de forças capaz de impor politicamente uma estratégia igualitária de provisão de bens e serviços e de «reformas fundamentais» no regime de propriedade. Estávamos nos anos quarenta e o liberalismo recuava por todo o lado. Ontem como hoje tudo se joga na política económica. Quem fixou, nos anos noventa, as regras das políticas monetária e orçamental na União Europeia percebeu Kalecki muito bem. É que o desemprego duradouro é a melhor forma de ‘partir a espinha’ ao movimento sindical e assim recriar os mecanismos disciplinares que facilitam a tarefa de desmantelamento do estado social e de compressão dos salários. Por isso é que as ideias keynesianas podem ter, ao contrário do que muita gente à esquerda ainda possa pensar, implicações profundamente radicais. Para além disso, não há nenhum sistema económico viável sem contra-poderes fortes no espaço da produção.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Beirut - Elephant Gun

Insatisfeitos

Uma das razões invocadas pela teoria económica dominante para a liberalização do mercado de trabalho é a possibilidade de uma maior adequação dos desejos dos trabalhadores com os dos patrões. Infelizmente, a teoria não encaixa na realidade portuguesa. Segundo o DN, o número de insatisfeitos com actual emprego duplicou face a 2000. Além da natural insatisfação com as condições de trabalho, a segunda razão apontada é precisamente a precariedade do vínculo laboral. Só os desejos dos patrões são assim satisfeitos com a progressiva precarização do mercado laboral nacional. Um caminho que o actual Governo parece querer continuar a seguir.

Wall street e estatismo

É iinteressante notar, como aqui se faz, como, no actual contexto de crise, grandes ícones da economia global estão a recorrer a fundos estatais para se recapitalizarem. Recentemente, um fundo estatal dos Emirados Árabes (onde estão 10% das reservas de petróleo mundiais) reforçou o seu peso no capital de um dos principais bancos mundiais, o Citybank. Depois dos processos de privatização - onde o Citybank foi um actor activo -, observamos o processo inverso. Irónico, não? Contudo, não nos devemos deixar enganar com estas notícias. O comportamento destes fundos pouco se distingue dos fundos privados. Os objectivos aqui perseguidos em nada são guiados pelos propósitos, aqui e aqui apontados, para a detenção de um robusto sector público empresarial.

Agravamento da crise financeira

A crise financeira do último Verão está longe do seu fim. Ontem, a estratégia concertada dos principais bancos centrais não foi bem recebida pelos mercados bolsistas. Aparentemente, a mera injecção de liquidez não resulta, dada a opacidade reinante sobre a real dimensão da crise. Dado o risco, uma maior disponibilidade de fundos não resulta em mais investimento. Maiores cortes na taxa de juro, que reduzam a incerteza das decisões, são assim apontados como única saída. Uma medida que os Bancos Centrais não parecem dispostos a tomar devido às actuais pressões inflacionistas.

Entretanto, a crise agudiza-se. Já não é, como parecia no Verão, uma mera crise de liquidez provocada por problemas numa pequena parte do sistema financeiro (o crédito imobiliário de alto risco). A crise generalizou-se e transformou-se numa grave crise de crédito - motor da financiarizada economia global. Como bem aponta Nouriel Roubini, esta pode bem ser a «primeira crise real da globalização financeira».

Desemprego e Flexexploração

A situação de desemprego elevado, resultado de uma política económica errada à escala europeia, gera um ambiente que favorece a proliferação de propostas para ‘resolver’ o problema através do desmantelamento progressivo das regras que protegem os trabalhadores. Um dos principais elementos do diagnóstico feito pela rede de economistas por uma política económica alternativa na Europa (euromemorandum) diz respeito à minuciosa denúncia dos efeitos regressivos do que o sociólogo Casimiro Ferreira, em artigo no Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, designa por «flexexploração». De facto, é sabido que a expansão de formas contratuais atípicas é um dos ingredientes para a crescente vulnerabilidade dos trabalhadores à pobreza: «a taxa de pobreza entre os trabalhadores com contratos precários é três vezes mais elevada do que entre os trabalhadores com contrato permanente» (euromemorandum). Como afirma Nuno Teles, também no Mdiplo, é tempo do problema do emprego deixar de ser uma responsabilidade exclusiva dos Ministérios do Trabalho para passar a constar da agenda dos Ministérios das Finanças, do BCE e da Comissão. Caso contrário, o ciclo vicioso da precariedade, pobreza, contracção da procura e aumento do desemprego vai continuar por toda a Europa.

Preocupações industriais

A intervenção de Henrique Neto no programa Negócios da Semana de ontem merece todo o destaque. Trata-se de um capitalista industrial com negócios no sector exportador em áreas intensivas em tecnologia e com conhecida intervenção cívica. Está por isso bem posicionado para avaliar a situação da economia portuguesa. Os seguintes pontos sintetizam as suas principais ideias: (1) A apreciação do euro é desastrosa para a economia portuguesa e a complacência do BCE perante as actuais dificuldades é incompreensível; (2) uma parte do sucesso exportador da Alemanha deve-se à existência de instituições públicas robustas (nomeadamente no sector financeiro); (3) a especulação, o rentismo fundiário e a ausência de uma política de solos são parcialmente responsáveis pelo sobreendividamento das famílias que pagaram pela habitação muito mais do que deveriam assim enriquecendo um sector muito minoritário da sociedade portuguesa; (4) a situação da nossa economia é também o resultado de más opções de política económica que privilegiaram os sectores errados; (5) a CIP mostra que não é capaz de respeitar os compromissos previamente assumidos ao tentar agora ligar as negociações sobre a evolução do salário mínimo a modificações na legislação laboral; (6) esta iniciativa da CIP explica-se pela pressão do sector do turismo que continua a apostar na mão-de-obra barata e sem direitos; (7) o governo está a privilegiar este sector, através dos projectos de interesse nacional, o que só acentua um perfil de especialização assente nos baixos salários, na construção e na especulação imobiliária, repetindo assim os erros de sempre; (8) é preciso um cuidado e sensibilidade adicionais quando se frustram as legitimas expectativas dos trabalhadores em relação à segurança social. Enfim, tivéssemos nós mais empresários como Henrique Neto e talvez pudéssemos aspirar a uma variedade de capitalismo mais decente.


Nota: a fotografia é de Pedro Guimarães

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Para escapar à propaganda


«É ilusório pensar que a Europa política poderá avançar através do apuramento de formas institucionais apenas, que depois o debate político se encarregará de preencher: não há 'antes' e 'depois' neste processo, e todas as analogias históricas possíveis parecem demonstrar que só se se confundir com causas concretas e substantivas pode a causa europeia aspirar a ser entendida como útil e necessária pelos cidadãos da União. E no essencial, essas causas só podem ser duas: a da defesa da 'paz' e a do 'modelo social europeu'». António Figueira.

«Sendo este Tratado muito semelhante a uma Constituição que já foi referendada, alterado a natureza do projecto europeu, retirando de forma desigual poderes aos estados nacionais e não sendo politicamente neutro é inaceitável que entre em vigor sem ir a referendo. Havia alternativas: a eleição de um Parlamento Europeu Constituinte ou a decisão de avançar em passos mais curtos e mais ponderados. Ao concluir que referendos a este tratado inviabilizarão a sua aprovação é apenas a demonstração de como ele foi apressado». Daniel Oliveira.

«Segundo os tratados existentes (que nisto não são minimamente alterados pelo novo Tratado que aí vem), a introdução de qualquer esquema de harmonização fiscal (ou, já agora, de direitos sociais) ao nível europeu exige a unanimidade dos votos no Conselho de Ministros da UE. Tendo em conta que um punhado de Estados europeus, com o apoio da Comissão Europeia, tem baseado as suas políticas económicas na redução dos impostos sobre os lucros, dificilmente veremos nos próximos tempos qualquer harmonização nesta frente. Poderiam 99% das empresas europeias concordar com a medida, poderia uma esmagadoríssima maioria dos cidadão europeus exigi-lo, poderiam até 26 países mostrarem-se favoráveis à harmonização dos impostos sobre os lucros para evitar a concorrência fiscal na Europa - bastaria um voto contra de um país para garantir que a proposta não passava». Ricardo Paes Mamede.

Anedotas e tragédias

O «Tratado de Lisboa reforça a dimensão social da UE, sendo puramente anedótico acusá-lo de reforçar o 'neoliberalismo'». Tem razão Vital Moreira. Como assinala o euromemorandum, o Tratado apenas se «limita» a manter o enquadramento neoliberal que, desde o final dos anos oitenta, orienta as grande opções políticas da União Europeia. Não é uma carta de direitos absolutamente vazia do ponto de vista socioeconómico e umas referências vagas à «economia social de mercado» que vão travar a concorrência fiscal, a ortodoxia económica imposta pelo BCE e pela Comissão e a extensão do principio do mercado interno a esferas crescentes da vida social. A CGTP revela por isso grande lucidez política ao denunciar este tratado. É que a tragédia da «flexexploração» segue dentro de momentos.

As lições de Chang X - O ataque às empresas públicas faz menos sentido do que pode parecer

«O Estado é ineficiente por natureza» é uma das frases-chave da lenga-lenga habitual dos neoliberais. E as empresas públicas, como extensões do Estado, ineficientes são. A certeza com que a afirmação é proferida é tão grande que me leva a suspeitar que quem a faz nunca pensou na fragilidade dos argumentos que a sustentam.

São três os argumentos teóricos habitualmente esgrimidos para atacar as empresas públicas. O primeiro diz que os gestores públicos, por não serem os proprietários, não se preocupam o suficiente com o destino das empresas que gerem. O segundo argumento diz-nos que os verdadeiros proprietários - ou seja, cada um dos cidadãos do país em causa - têm pouco a ganhar do ponto de vista individual com o bom funcionamento das ‘suas’ empresas, pelo que nunca se darão ao trabalho de exigir um bom desempenho por parte dos respectivos gestores. Por último, diz-se que o facto de terem o Estado sempre pronto a socorrê-las caso as coisas corram mal constitui um incentivo adicional para que as empresas públicas sejam mal geridas. Na gíria dos economistas, estes três argumentos dão pelos nomes de problema do agente-princial, problema do ‘free-rider’ e problema do ‘soft-budget’.

O que os neoliberais parecem querer ignorar é que qualquer um destes argumentos se aplica, sem grandes transformações, à gestão de empresas privadas. Desde inícios do século XX que se generalizou o modelo de separação da propriedade e da gestão de empresas nas economias capitalistas - e, por muitas voltas que se dê, também no caso das empresas privadas o problema do agente-principal permanece essencialmente por resolver (o caso de Enron foi só o mais visível dos inúmeros exemplos de gestão fraudulenta no sector privado).

O problema da dispersão do capital das empresas também se coloca no sector privado, convidando os accionistas individuais (por vezes dispersos por todo o mundo) a deixarem para os outros a monitorização próxima das ‘suas’ empresas. Quanto ao problema do ‘soft-budget’, também as empresas privadas, quando são suficientemente grandes e importantes para as economias nacionais, sabem que podem contar com o Estado para as socorrer quando as coisas correm mal.

Em suma, problemas de eficiência associadas ao (des)alinhamento de incentivos não são um exclusivo do sector público. E muitas vezes, as soluções encontradas são aplicáveis tanto no público como no privado. Poder-se-ia dizer que os argumentos teóricos são inconclusivos, mas que o mau desempenho das empresas públicas é empiricamente inquestionável. Pois, assim não é. Mas isso ficará para outra posta desta série.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Consequências da crise

«O que está acontecer nos mercados de crédito é um grande golpe na credibilidade do modelo anglo-saxónico de capitalismo centrado nas transacções financeiras». Martin Wolf, o mais arguto observador liberal dos desastres financeiros recentes, no Financial Times.

Alternativas Europeias - Apresentação

Trezentos e trinta e sete economistas europeus, entre os quais se encontram os membros deste blogue, subscreveram o «Euromemoradum 2007 - Alternativas à Pobreza e à Precariedade na Europa». Trata-se de um rigoroso diagnóstico anual da economia e sociedade europeias e de um esforço colectivo para definir um conjunto realista e robusto de alternativas de política à escala europeia que permitam superar o «quadro neoliberal» responsável pela «crise financeira, pela incerteza económica e pela crescente desigualdade social».

Entre os muitos tópicos abordados, destaco a análise do «Tratado Reformador». Ao contrário do que afirmam os seus defensores, e apesar de alterações de pormenor ou de retórica, considera-se que este tratado mantém no essencial «o conteúdo da anterior proposta», sobretudo na área da política económica e social. E é precisamente aqui que este grupo de economistas apresenta propostas concretas. A agenda é ambiciosa e irrecusável: combate à especulação financeira, promoção do crescimento económico e do pleno-emprego, diminuição das desigualdades e da pobreza, combate às alterações climáticas, defesa dos serviços públicos e sua autonomização em relação às regras liberais do mercado interno, promoção da cooperação internacional contra os acordos comerciais assimétricos. Também é assim, com bons diagnósticos e com boas propostas, que se luta contra o senso comum neoliberal.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Pelo referendo à Consti... ao Tratado Reformador

Não é só o tratado que está aqui em causa, é toda a ideia de uma União Europeia mais democrática e transparente. Via Arrastão.

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As universidades respondem

Soube-se hoje da demissão do conselho directivo do Instituto Superior Técnico, provavelmente motivada pela derrota sofrida aquando da aprovação do novo estatuto de direito privado.

Sobre as implicações do novo Regime Jurídico das Universidades já muito foi dito neste blogue: I, II, III, IV. A novidade está na oposição demonstrada por professores e alunos ao processo de mercantilização em curso. A informação é, no entanto, difícil de conseguir. Além das notícias vindas do IST - para o qual o novo regime foi feito à medida -, descobri, neste blogue, a vitória da lista discente B, da Universidade do Minho, cujo manifesto inclui uma frase onde, eloquentemente, se explica o que está em causa: "A Universidade, tendo que deixar de ser uma torre de marfim, não tem necessariamente de passar a ser uma estação de serviço".

Gostava de ter mais informação do que se passa nas diferentes universidades portuguesas. Os comentários são, por isso, muito bem-vindos.

As lições de Chang IX - Porque é que a livre de circulação de capitais não serve os propósitos do desenvolvimento

No discurso neoliberal, a livre circulação de capitais a nível internacional seria uma bênção para os países menos desenvolvidos. O afluxo de investimentos a estes países iria não apenas colmatar a escassez de capitais domésticos, como trazer consigo novas técnicas, novas formas de gestão e organização, e a exigência de novas prática nas políticas públicas.

Mas olhemos para as formas que o fluxo internacional de capitais assume e para as suas consequências. Para além da ajuda pública ao desenvolvimento (uma parcela ínfima dos fluxos), os capitais estrangeiros chegam aos países menos desenvolvidos sob a forma de: empréstimos, aquisição de dívida (pública e privada), investimento de portofólio (por exemplo, compra de acções de empresas domésticas) e de investimento directo (aquisição/instalação de capacidade produtiva).

Os três primeiros tipos de investimento foram aqueles que mais depressa se desenvolveram nos últimos anos e os seus resultados sobre os países em desenvolvimento são conhecidos. Caracterizados por uma enorme volatilidade, eles tendem a desestabilizar os mercados financeiros locais, exacerbando quaisquer tendências de evolução - afluem aos molhos quando as perspectivas são boas (favorecendo leituras excessivamente optimistas do crescimento económico) e são os primeiros a fugir quando as coisas ameaçam correr mal. Dado o peso desmesurado que têm nos mercados financeiros dos países em desenvolvimento - e.g., o mercado de capitais da Nigéria, o maior da África sub-sahariana é 5.000 vezes mais pequeno que o americano - a fuga dos capitais estrangeiros torna tais ameaças em realidade (como demonstram as sucessiva crises financeiras da última década e meia - México, Sudeste asiático, Rússia, Brasil, Turquia, ...).

Em contraste, o investimento directo estrangeiro (IDE) é mais estável, acarretando consigo mais capacidades produtivas e conhecimentos. Mas o IDE também tem as suas limitações e problemas: os vários estudos realizados sobre o contributo do IDE para a melhoria das competências técnicas e organizacionais dos países de destino são inconclusivos; em muitas situações, também o IDE pode ser relocalizado rapidamente; a filial pode ser usada pela empresa mãe para obter empréstimos bancários no mercado doméstico, diminuindo os capitais disponíveis a nível nacional; grande parte das vezes o IDE não é mais do que a aquisição de empresas já existentes, com objectivos que podem passar inclusive pela sua destruição (para limitar a concorrência internacional).

Talvez por isso, o controlo do investimento externo tem sido um elemento fundamental nas estratégias de desenvolvimento referidas nas postas anteriores desta série.