quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Mercado único, política única

Esta semana, Jeremy Corbyn cedeu à pressão da ala liberal do Labour e anunciou o apoio do partido a um novo referendo sobre o Brexit. O apoio ao referendo agrada sobretudo aos que votaram pela permanência do Reino Unido na União Europeia e preferem evitar a rutura. No entanto, a manutenção do Reino Unido no Mercado Único implica o cumprimento de regras de concorrência que dificilmente são compatíveis com o Manifesto progressista do Labour. É isso que argumenta o economista grego Costas Lapavitsas, num artigo publicado na revista Jacobin em Agosto do ano passado.

Lapavitsas escreve sobre três pontos do programa de Corbyn que contrariam normas do Mercado Único europeu: (1) a política industrial, (2) as linhas da contratação pública e (3) o programa de nacionalizações.

A mudança radical da política industrial inscrita no Manifesto inclui um aumento significativo do investimento público para apoiar a produção nacional, o que enfrenta enormes dificuldades no quadro das regras da concorrência da UE. Como explica Lapavitsas: “As regras referentes ao apoio público da União Europeia centram-se em todas as intervenções que visem a indústria doméstica se estas constituírem uma “distorção” da competição. De forma geral, as regras permitem que os governos definam o enquadramento do apoio público, mas impedem-nos de determinar as orientações de uma indústria, setor ou da economia como um todo.”

Embora estejam previstas algumas exceções (para apoio a PME’s, a diferentes regiões, a investigação, etc.), o seu alcance é limitado e dependente do cumprimento de critérios como a não afetação de atividades exportadoras. Por outro lado, a utilização da contratação pública (public procurement) como forma de definir alguns critérios a cumprir pelos fornecedores do Estado – ao nível da desigualdade salarial, por exemplo – dificilmente cumpre os requisitos europeus de defesa da concorrência e do tratamento igual de todos os contratantes.

Além disso, o programa de nacionalizações proposto por Corbyn – que inclui os caminhos-de-ferro, os correios, a energia e a água – viola toda a orientação da UE, que ao longo dos anos tem promovido as privatizações como norma da integração. Na prática, recuperar estes setores e “trazê-los de volta ao controlo público” implica enfrentar a hostilidade das instituições europeias, nas quais os monopólios públicos são vistos como obstáculos ao crescimento e se definem limites para o peso dos Estados nas economias, além de se forçar as empresas públicas a serem regidas pelas mesmas regras do setor privado.

Há ainda um quarto aspeto, não referido por Lapavitsas: a constituição do Mercado Único esteve associada à abolição dos controlos de capitais e à liberalização do sistema financeiro, pilares do projeto neoliberal europeu que enfraqueceu as democracias nacionais e a sua capacidade de planear o desenvolvimento do país e fazer face a crises. Não é possível construir uma economia ao serviço de todos sem uma rutura com este consenso que pretende deixar o futuro das populações entregue aos mercados.

É por isso que o programa do Labour contraria, e bem, grande parte das normas do Mercado Único da UE, o que por si só é revelador da natureza do projeto europeu. A construção da União Europeia assentou não só na constituição do Mercado Único mas também na institucionalização da política única, inicialmente através das regras de concorrência e mais tarde confirmada com a moeda única (controlada por um banco central não sujeito à decisão democrática) e com a assinatura do Tratado Orçamental pelos países da Zona Euro. É por estas vias que a UE estabelece as linhas da política legítima e exclui as alternativas.

William Mitchell e Thomas Fazi escreveram recentemente que o Brexit abriu “uma janela de oportunidade única para a esquerda britânica (…) para mostrar que é possível levar a cabo uma rutura com o neoliberalismo e com as instituições que o suportam”. Ao apoiar um novo referendo, Corbyn pode estar a fechar esta janela. Se o fizer, confirma a ideia de que na União Europeia o voto popular é sempre reversível, sobretudo quando coloca em causa a primazia dos mercados.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Branqueamento ideológico

Público, 27/2/2019
Deixem-me ver se eu entendo a notícia.

Em vez de criar mecanismos que disciplinassem os mercados financeiros, a Comissão Europeia deixou-os à solta e, ao mesmo tempo, pressionou o governo português - e de outros países - a receber um empréstimo da troica que elevou a dívida pública para níveis incomportáveis face aos níveis de crescimento económico e à luz do Tratado Orçamental. E aplicou um programa fortemente ideológico que afundou a economia, criou uma maré de desempregados (25% da população activa), uma emigração histórica e destruição de empresas. Criou uma situação de crédito malparado como nunca se vira antes. Afectou a banca nacional, fragilizando-a ainda mais.

E para quê? Para pagar os investimentos feitos pelos bancos franceses e alemães em tíulos portugueses e livrar essa banca de perdas possíveis. E aproveitar a boleia para aplicar um programa ideológico que se demonstrou desastroso.

E agora temos uma situação desequilibrada? Na realidade, trata-se antes de mais um branqueamento das políticas seguidas falhadas que se pretende reformatar e replicar, em mais políticas falhadas, seguindo a mesma receita. 

Nada aprendem! E fazem de nós parvos.

Revisitar António Sérgio


Em 1939, na revista Seara Nova, António Sérgio (1883-1969) defende o seguinte: “transformar a moral pela economia e a economia pela moral, actuando nas duas ao mesmo tempo, e pela acção recíproca de uma em outra: eis o objetivo”. Quase vinte anos depois, Sérgio retomaria esta ideia de economia moral, sempre a propósito do seu projeto cooperativista de socialização da economia: “é um aperfeiçoamento económico da sociedade que se funda no aperfeiçoamento moral dos indivíduos e um movimento de educação moral que toma por instrumentos as necessidades económicas dos homens”.

Amanhã, pela minha parte e do José Castro Caldas, debateremos no colóquio esta versão portuguesa das utopias que se querem reais, comparando-a quer com a tradição da economia política liberal que ousou por uma vez ou outra entrar nas fábricas, a de um certo John Stuart Mill, quer com a tradição da economia moral de matriz socialista encarnada por Karl Polanyi.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Liberalismo


Há já algum tempo pediram-me uma entrada breve sobre liberalismo e outra sobre neoliberalismo para um dicionário crítico ainda em construção. Deixo por aqui uma versão, desprovida de referências, da entrada sobre liberalismo.

Visto do Norte Global, o liberalismo é uma polifacetada e moderna narrativa do progresso humano, baseada na igualdade perante a lei, na limitação do poder arbitrário do Estado e na promoção dos mercados capitalistas; baseado, em suma, na criação das condições institucionais para a expansão da liberdade individual, incluindo um neutral processo, passível de universalização, de livre escolha dos valores e dos fins.

Quarta-feira, em Coimbra: Apresentação do nº 2 da revista Manifesto


Com um dossier dedicado a questões programáticas para pensar o futuro da governação à esquerda, o segundo número da revista Manifesto, é apresentado em Coimbra no próximo dia 27. Participam nesta sessão José Augusto Ferreira da Silva (advogado e ex-vereador na Câmara Municipal de Coimbra), e José Reis (economista e professor da Faculdade de Economia). É a partir das 18h00, na Livraria Almedida (Estádio Cidade de Coimbra). Estão todos convidados, apareçam.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

O euro do nosso descontentamento


“Em vinte anos, o euro trouxe prosperidade e proteção aos nossos cidadãos”, declarou Jean-Claude Juncker. O presidente da Comissão Europeia também disse um dia que a mentira é necessária quando as coisas ficam difíceis. As coisas ficaram difíceis nestes vinte anos. E daí que a mentira se tenha tornado necessária também em Portugal.

Afinal de contas, como defender uma moeda, associada por cá a uma combinação única: duas décadas de estagnação e de divergência, com uma quebra brutal do investimento, com uma taxa de desemprego que chegou a ser o dobro do máximo histórico antes do euro e com uma dívida externa líquida que é das mais elevadas, em percentagem do PIB, a nível mundial?

A mentira é necessária: a culpa não é do euro, a culpa é da ausência de reformas. A verdade é que a responsabilidade de aderir, sem debate, a uma moeda estruturalmente demasiado forte para a nossa economia pertenceu a uma elite económico-política. Quem prescindiu de instrumentos de política monetária e cambial, tinha já aceite a abolição dos controlos de capitais, a perda de instrumentos de política comercial e industrial, em nome do mercado único, a privatização de grande parte da banca ou os critérios de convergência nominal. Estes últimos incluíam regras de constrangimento orçamental, sem qualquer ancoragem numa teoria económica sã, capaz de reconhecer que os défices orçamentais e a dívida pública são variáveis fundamentalmente endógenas, dependentes do andamento de uma economia que, por sua vez, podem estabilizar e dinamizar.

Portugal e os outros países foram trancados numa moeda desenhada em função dos interesses da Alemanha, em especial do seu capital financeiro, bancário e industrial. Com uma inflação estruturalmente mais baixa e impondo uma compressão dos salários, a Alemanha apostou num comportamento nada cooperativo de obtenção de superavits externos. A outra face da moeda, foram anos de acumulação de défices de balança corrente. Os défices de balança corrente traduziram-se, necessariamente, num endividamento crescente em euros, ou seja, em moeda estrangeira. Num contexto de liberalização financeira, que já vinha dos anos noventa, os bancos nacionais aproveitaram o acesso ao mercado interbancário em euros para expandir a sua atividade, canalizando crédito para tudo menos para investimento produtivo. Os bancos dos países centrais, de forma direta ou indireta, envolveram-se nas endividadas periferias.

E depois chegou a crise financeira transatlântica de 2007-2008, só com precedentes na Grande Depressão, outro período de grande desigualdade e de grande confiança no liberalismo económico. Os mercados financeiros passaram a desconfiar dos países altamente endividados em moeda que não controlavam politicamente. O que era na realidade uma crise de competitividade, de balança de pagamentos, foi transformada num problema de dívida pública, já que foi pelo financiamento mais difícil e caro dos défices orçamentais crescentes, devido à crise, que a turbulência se manifestou na periferia europeia. Montou-se então um grande programa de socialização das perdas dos bancos do centro europeu. Nasciam as troikas.

O euro revelava a sua natureza. Em países que prescindiram de instrumentos de política económica, quem paga o ajustamento são os salários diretos e indiretos, o Estado social e as regras laborais que protegem quem trabalha. Para a sabedoria convencional “reformas” são sinónimo de transferências sistemáticas de rendimentos do trabalho para o capital, como aconteceu durante a Troika. Entretanto, centenas de milhares de concidadãos votaram com os pés, emigrando. O país vendeu ativos estratégicos a preço de saldo. Muita capacidade produtiva foi destruída por uma austeridade contraproducente.

A significativa atenuação da austeridade e as ações do BCE permitiram uma lenta e periclitante recuperação. O país reinventou-se: uma espécie de Florida da Europa, na base do turismo e de muito trabalho precário e relativamente barato, descobrindo que o imobiliário é um bem transacionável à boleia de uma bolha. As reformas do euro reforçaram a perda de soberania orçamental, sem resolverem os problemas de fundo. A chamada União Bancária serviu para aplicar o princípio “vocês, portugueses, pagam, nós, no centro político europeu, dizemos o que se faz”: a banca estrangeira manda cada vez mais. Entretanto, a Zona Euro exporta instabilidade para o sistema internacional, agora que os défices das periferias europeias desapareceram, sem que se atenuassem os superavits do centro. Trump aí está, de dedo apontado à Alemanha. O euro foi e será fator de instabilidade, de divisão e de desproteção. É preciso acabar com esta experiência.

Artigo publicado na Revista Exame sobre os vinte anos do euro.

Terça-feira, no ISEG: Apresentação do nº 2 da revista Manifesto


Segunda sessão de apresentação em Lisboa do número 2 (IIª série) da revista Manifesto, que tem como tema «Geringonça 2.0 - Prioridades sociais». Participam nesta sessão Carlos Bastien (docente no ISEG), José Gusmão (economista), Rita Raposo (docente no ISEG) e Vicente Ferreira (aluno no ISEG). É a partir das 16h30, no Anfiteatro 3. Estão todos convidados, apareçam.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Direito ou barreira intransponível?

O Governo anunciou mais uma medida de política de habitação, que designou de «Direito Real de Habitação Duradoura».

Garantir habitação duradoura às famílias é certamente um objetivo louvável; até urgente, perante a preocupante precariedade habitacional. No entanto, este objetivo dificilmente será alcançado por via de uma engenharia financeira que assenta em mais crédito para o «morador» e benesses fiscais e outras para o proprietário e investidor imobiliário.

Este novo produto habitacional é apresentado como um híbrido entre a propriedade e o arrendamento, em que o «morador», a  designação atribuída a este estatuto, não chega a adquirir o imóvel (logo, não é proprietário), tendo, no entanto, o direito de o usufruir durante toda a sua vida e o dever de suportar encargos adicionais (logo, não é um inquilino tradicional).

Nos termos do governo, procura-se, simultaneamente, resolver os problemas do acesso à compra e a curta duração dos contratos de arrendamento: «Se, em muitos casos, o regime de habitação própria se tem revelado pouco adequado pela sua rigidez, pelo peso do investimento que representa e pelas dificuldades de acesso ao mesmo, por outro lado, o regime de arrendamento nem sempre é conducente à estabilidade e segurança desejáveis».

Não passa pelas cabeças governamentais corrigir a instabilidade e a insegurança do mercado de arrendamento regulando-o de forma apropriada ou levando a cabo um programa robusto de oferta pública de imóveis para arrendamento. Mas já passa a criação de uma espécie de mercado de direitos à estabilidade habitacional.

Com efeito, o acesso a este «direito» adquire-se em troca do pagamento de uma «caução», que deverá situar-se entre 10 a 20% do valor do imóvel. Se um imóvel tiver um valor de mercado de 150 mil euros, a caução rondará entre os 15 mil e os 30 mil euros, o que significa que boa parte de potenciais «moradores» terá de se endividar. O «morador» continuará a pagar uma prestação mensal, uma renda, que poderá ser atualizada anualmente. E passará  a assumir as despesas com a conservação do imóvel e os impostos de propriedade associados (ou seja, o IMI).

Sendo certo que esta «caução» poderá ser devolvida total ou parcialmente (se a permanência na habitação for interrompida e dependendo do tempo decorrido), ela na verdade constitui um pagamento pelo direito de morar numa mesma habitação o tempo que se deseje.

Parece uma ideia engenhosa. Segundo o governo, garante-se acesso à habitação com «menor necessidade de endividamento em comparação com a alternativa de compra de habitação própria» . Também esclarece quais são as vantagens para o proprietário: «um aumento do capital disponível sem que isso implique vender o seu património» e «uma rentabilidade estável e uma redução dos encargos com a gestão do seu património». Acrescenta ainda que se garante «uma redução do risco de incumprimento pelo morador das suas obrigações, por via da caução entregue».

A medida é recebida com ceticismo pelos agentes do setor imobiliário. No entanto, consideram que pode ser muito interessante para os fundos de investimento que procuram um rendimento regular e sem grandes encargos com a gestão.

É muito difícil vislumbrar as vantagens para os inquilinos, pois o «Direito Real de Habitação Duradoura» o que faz é criar mais uma barreira no acesso à habitação, transformando um direito em mais um mercado.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

'Crashed': A Grande Recessão mudou o mundo em que vivemos


Há momentos de descontinuidade profunda na história das sociedades, que marcam o mundo de forma decisiva e estão condenados a ocupar um lugar de destaque na memória coletiva. A Grande Recessão de 2007-08 é certamente um desses momentos. Depois da violenta crise financeira, nada seria como dantes. É esse o tema central do recente livro de Adam Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World.

Dez anos após a crise, este livro conta a história de como chegámos ao maior colapso financeiro desde 1929 e do que mudou no mundo em que vivemos desde então. O autor avisa que “a história que o livro conta é a de um descarrilamento”. Embora já muito tenha sido escrito sobre o assunto, este é um dos relatos mais informados, completos e abrangentes sobre a Grande Recessão e as suas consequências para a evolução da economia mundial e das tensões geopolíticas na última década. Poucos autores o terão conseguido fazer com a eloquência de Adam Tooze, historiador económico e professor na Universidade de Columbia.

Tooze começa por recordar como os economistas previram a “crise errada”, por estarem apenas focados nos desequilíbrios comerciais entre os EUA e a China e ignorarem os riscos intrínsecos do próprio sistema financeiro. O autor parte depois para uma análise detalhada dos mecanismos financeiros complexos por detrás da crise. O detalhe e o rigor da descrição não diminuem a qualidade da escrita, que torna a leitura agradável para os leitores e as leitoras menos familiarizadas com os conceitos. A cronologia que o autor nos oferece não se resume aos principais desenvolvimentos da crise nos EUA e nos países da Europa Ocidental, mas também na Rússia, na Europa de Leste, na China e noutros países asiáticos. As diferentes respostas das autoridades nacionais e os conflitos políticos que surgiram nesse contexto ocupam uma parte substancial da discussão no livro.

Nas décadas antes da crise, as diferenças nos modelos de crescimento e nas estruturas produtivas dos diferentes países originaram desequilíbrios entre países excedentários e deficitários. O afluxo de capitais dos primeiros para os segundos alimentou bolhas especulativas (no imobiliário ou nos mercados de ações) e tendências de endividamento cumulativo. O desenvolvimento extraordinário de Wall Street e dos lucros do sistema financeiro norte-americano podem ser explicáveis pela necessidade de captar capitais para financiar os défices dos EUA, oferecendo ativos de maior risco com retornos apetecíveis para os investidores. Os bancos europeus foram os principais envolvidos nestas operações financeiras de risco, tornando-se bastante dependentes do mercado financeiro norte-americano.

Embora a quebra dos preços das casas e dos créditos subprime tenha sido a causa imediata da crise, Tooze recorda-nos que esta tem origem na intensificação dos laços financeiros entre os EUA e a Europa nas décadas anteriores à crise, facilitada pela vaga de desregulação do setor que permitiu aumentar significativamente o fluxo de capitais e a alavancagem dos bancos. A quebra da confiança no sistema e o consequente congelamento do crédito, do qual todos os bancos estavam dependentes, fariam ruir o castelo de cartas do sistema financeiro, provocando a recessão mais profunda desde a Grande Depressão de 1929. “Nunca antes, nem sequer na década de 1930, tínhamos assistido à iminência da implosão de um sistema tão amplo e interdependente”, escreve Tooze. A queda do Lehman Brothers, em Setembro de 2008, seria apenas o início.

A crise da dívida privada foi transformada pelos políticos norte-americanos e europeus numa crise da dívida pública, através da absorção das perdas financeiras pelos Estados. No livro Austeridade: A História de uma Ideia Perigosa, Mark Blyth descreveu esta operação como o maior embuste ("bait and switch") da história contemporânea. No caso da Zona Euro, a austeridade foi o mecanismo de socialização destas perdas, passando o encargo para as populações. A agudização da crise e a generalização do desemprego foram, por isso, resultado de escolhas políticas das instituições europeias. Para Tooze, este é “um espetáculo que deve inspirar indignação. Milhões de pessoas sofreram sem nenhuma razão para isso”.

Ao expor os desequilíbrios do processo de financeirização e a necessidade de recurso ao financiamento do Estado para evitar situações de insolvência dos bancos, a crise acabou também com o mito da desregulação virtuosa – como escreve o autor, esta “derrota histórica para o capitalismo” foi a única forma de salvar um sistema em falência. A política monetária expansionista da Reserva Federal norte-americana teve um papel crucial para evitar o aprofundamento da crise global, permitindo resgatar as instituições financeiras norte-americanas e oferecer a urgente liquidez aos bancos europeus. Na Zona Euro, a rigidez de Merkel e do governo alemão levou a que se opusessem a qualquer tipo de atuação contracíclica do BCE até que fosse demasiado tarde e a crise já tivesse devastado os países da periferia. Na Grécia, o país mais afetado, a taxa de desemprego jovem continua próxima de 40% (chegou a ultrapassar os 60% no pico da crise).

Por outro lado, a resposta expansionista da China à crise global merece a análise de Tooze. Ameaçada pela desaceleração do comércio, que afetou as suas exportações, a China desenvolveu um plano de resposta através de um reforço significativo do investimento público (de cerca de 12,5% do PIB) aliado a uma política monetária expansionista que permitiu atingir altas taxas de crescimento e emprego, contrariando a tendência de recessão no resto do mundo.

Mais de dez anos depois da crise, a política monetária das autoridades norte-americanas e europeias pode ter evitado danos ainda maiores, mas não resolveu os problemas mais profundos: o QE tem servido para procurar recuperar os ganhos do sistema financeiro, sem alterar a sua estrutura e o seu funcionamento. Além disso, a austeridade (aplicada sobretudo na Zona Euro) é responsável pela lenta recuperação destas economias e pela acentuação das desigualdades. É difícil não associar os efeitos devastadores da crise e das escolhas que foram feitas à erosão dos partidos tradicionais e à ascensão de candidatos alternativos, explorando sentimentos de revolta contra o sistema. A eleição de Trump e a ascensão dos partidos de extrema-direita por toda a Europa são exemplos desta "grande crise da modernidade", nas palavras do autor. As elites ocidentais estão a pagar o preço de sujeitarem a democracia à disciplina dos mercados financeiros.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Exit, Brexit, Lexit


Aquilo que de forma manipuladora se apoda de “hard Brexit” (Brexit duro), ou seja, o Brexit, pode começar a tornar-se um daqueles casos em que o impensável se torna inevitável. Wolfgang Munchau, no Financial Times, tem acompanhado este movimento. Curiosamente, o tom do seu último artigo é de alguém que começa a aclimatar-se a este cenário: o Reino Unido deve mobilizar todos os instrumentos de um Estado soberano para lidar com o “choque”: “a crise financeira, ensinou-nos que as economias modernas são relativamente robustas se fizermos as coisas certas”, ou seja, usar o poder monetário ao serviço de uma política orçamental expansionista, incluindo a desvalorização cambial.

Para lá da conjuntura, Munchau sublinha que o regime comercial é muito menos importante do que a estratégia económica baseada na inovação, que deve estar no centro das preocupações. As duas coisas não são separáveis, na realidade, o que não implica, antes pelo contrário, aceitar a lógica do mercado interno. Fica implícito que o Estado terá neste cenário muito mais margem de manobra, até porque não está limitado pelos constrangimentos do mercado interno, por exemplo, em matérias de ajudas e de regimes de propriedade. Munchau enfatiza a necessidade de redução das desigualdades, o que pressupõe uma mudança do “modelo de negócios rentista” de matriz financeira. Uma vez mais, quebrar o poder da City é mais fácil fora da UE.

No fim, Munchau assinala: “Os economistas políticos sabem há muito que os interesses instalados impedem que os países transformem as suas estruturas industriais. É necessário um choque para que tal aconteça, o que explica porque é que a Alemanha e o Japão prosperaram a seguir à Segunda Guerra Mundial. Não há razões para pensar que o Reino Unido não pode prosperar, mesmo depois de um Brexit duro”.

Infelizmente, acrescenta: “Ninguém no seu juízo perfeito, justificaria a Segunda Guerra Mundial pelos efeitos económicos do pós-guerra. E seria errado justificar um Brexit sem acordo porque daria ao Reino Unido a oportunidade de fazer as mudanças que de outra forma não ocorreriam”. A Segunda Guerra funciona mal como analogia. Até parece o equivalente económico do argumento Ad Hitlerum, em contracorrente com o resto do artigo.

Um Brexit sem acordo e um governo trabalhista que leve o seu programa a sério, disposto a usar a soberania reconquistada, seriam a melhor combinação, uma ainda improvável oportunidade para fazer as mudanças necessárias em paz. Em última instância, quem disse que a chamada doutrina do choque tem de ter sempre implicações neoliberais?

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Zona Euro: política monetária sem governo ... e contra os governos


Neste vídeo descrevo o procedimento genérico de fixação da taxa de juro num país com soberania monetária onde a articulação entre o tesouro e o banco central (mesmo que envolvendo alguma tensão) conduz a uma taxa de juro que tem em conta os objectivos da inflação e do emprego. Evidentemente, por todo o lado o neoliberalismo impôs normativos que impedem (formalmente) os bancos centrais de comprarem dívida pública ao Tesouro. Mas, na prática, quando a soberania monetária existe, os procedimentos realmente adoptados acabam, como no caso dos EUA, por chegar ao mesmo resultado (ver aqui).

Na Zona Euro, a inflação é o único objectivo e não há um governo que se articule com o BCE, embora todos saibamos que os grande países exercem pressão sobre a condução da política monetária. Ao contrário dos EUA, as reuniões do BCE têm actas que são confidenciais. Pior ainda, o BCE não só não financia os países com dificuldades de tesouraria, tornando-os reféns dos mercados financeiros, como interfere directamente na sua política económica impondo metas orçamentais e reformas institucionais como condição para o fornecimento de liquidez aos bancos. O que o BCE fez na Grécia, na Irlanda e na Itália devia fazer pensar todos aqueles que ainda esperam por uma UE democrática.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Um caso típico do 'pensar como um economista'


Luís Aguiar-Conraria (LAC), professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, entendeu que devia fazer uma crítica às declarações do reputado professor Paul De Grauwe numa entrevista ao jornal Público.

LAC não gostou da afirmação:
O dogma do orçamento equilibrado é o pior tipo de dogma que existe. Não há qualquer razão para termos orçamentos equilibrados. Se emitirmos dívida para criar activos que sejam produtivos, por exemplo, investindo em infra-estruturas que sejam necessárias, em transportes públicos, no desenvolvimento de novas energias, se os governos fizerem isso, faz todo o sentido emitirem dívida.
LAC relaciona a política de investimento em rodovias, em particular “as auto-estradas sem custos para o utilizador”, com o baixo crescimento da economia portuguesa no passado. A partir desta associação avulsa, pretendeu tornar evidente que João Cravinho estava errado ao pensar que haveria algum contributo daquele investimento para a sustentabilidade da dívida pública. Eu próprio entendo que aquela política foi um erro, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista da prioridade dada à rodovia em detrimento do caminho de ferro, do ponto de vista financeiro pelo que significou de sujeição do interesse público aos interesses da finança (financeirização). Feita esta ressalva, e descontada a linearidade mecanicista atribuída ao argumento de João Cravinho (investimento em rodovia => crescimento económico => receitas fiscais), espanta ver um economista qualificado desvalorizar os efeitos multiplicadores do investimento público sobre o emprego e a produção da economia. Apesar dos erros que se terão cometido na política de investimento público em infraestruturas, desde o 25 de Abril até à adopção do euro, LAC não pode negar que esse investimento contribuiu, no quadro de causalidades complexas e sistémicas, para uma acelerada melhoria do nível de vida da população portuguesa. É que há mesmo um efeito multiplicador keynesiano do investimento público, mesmo que lembrar Keynes possa causar mal-estar a muitos (demasiados) economistas. Nesse período, o peso da dívida pública portuguesa no PIB não era problema e, para isso, seguramente contava a capacidade de fazer política orçamental e a existência de um Banco (que era mesmo) de Portugal.

Percebe-se que LAC se preocupe com a dívida pública a propósito do investimento do Estado, da reposição de rendimentos na função pública e da melhoria dos apoios sociais. Diz-nos que “se já era arriscado contar com o ovo no cu da galinha no virar do século, quando a dívida pública andava nos 60% do PIB, ainda mais arriscado será apostar num aumento da dívida agora, quando é o dobro.” Por que razão já era arriscado investir nos primeiros anos deste século? A resposta de LAC vem nos parágrafos seguintes e refere-se à desconfiança dos mercados financeiros que, já nessa altura, poderiam deixar de financiar o país. LAC bem sabe que, também nessa altura, a Alemanha tinha um nível de dívida semelhante ao nosso e a Espanha um nível muitíssimo inferior. Todos corriam o mesmo risco?

Ou seja, LAC ainda hoje vem defender uma tese sem qualquer fundamento científico, a de que a crise que afectou Portugal a partir de 2010 foi uma crise de dívida pública, aquilo a que os media chamam “crise da dívida soberana”, como se Portugal tivesse moeda e dívida soberanas. LAC parece ignorar alguns textos importantes escritos por Paul De Grauwe. Permito-me recordar um deles, de divulgação, mas nem por isso menos rigoroso, em que mostra com clareza como a crise da Zona Euro foi gerada pelo endividamento do sector privado, no quadro de um modelo centro-periferia e, acrescento eu, também por falta de um banco central digno desse nome, o que permitiu aos operadores financeiros fazer subir as taxas de juros para níveis insustentáveis. Podemos discutir alguma argumentação de De Grauwe – no meu caso até discordar da sua tese do “mau desenho institucional” da Zona Euro porque entendo que as causas são mais profundas – mas continuar a insistir no nexo de causalidade [dívida pública => crise de financiamento do Estado] releva de uma posição ideológica que recusa tomar em consideração a volumosa literatura científica que não alinha pelas suas opções teóricas. Para uma análise mais fundamentada sobre as causas da crise da Zona Euro, sugiro aos leitores este texto.

Basta olhar para a figura seguinte para se perceber o quanto está errado LAC.



Desde que Mario Draghi decidiu, contra a vontade do presidente do Bundesbank, mas com a condescendência de Angela Merkel, declarar publicamente que compraria a dívida pública que fosse preciso para fazer baixar as taxas de juro, os mercados desistiram da especulação contra as periferias. Contornando o Tratado, o BCE passou a financiar os Estados-membros através das suas compras de dívida pública nos mercados secundários, fazendo dos bancos comerciais os intermediários da operação. Como se vê, tudo depende da decisão política do BCE. Como bem o sabem os gregos.

LAC destaca um artigo de De Grauwe sobre os humores dos mercados financeiros e o que isso representa de risco para a dívida pública dos países da periferia da Zona Euro. O que LAC omite é a condição política para que tal risco potencial se materialize: a ausência de intervenção do BCE. Talvez LAC se tenha esquecido de que os Estados com soberania monetária, e respectivo banco central, não estão sujeitos aos humores dos mercados na dívida emitida na sua própria moeda. Obviamente, a preferência política de De Grauwe para eliminar esse risco é um salto qualitativo na união política, uma opção que não acompanho mas que não vou discutir agora. Por conseguinte, enquanto De Grauwe se mostra abertamente inconformado com a incapacidade de a UE evoluir para um Estado federal e, por essa razão, caminhar para o suicídio, LAC olha para o status quo com resignação e, admito eu, com o optimismo dos que pensam que, com tempo, tudo se resolverá. Mas deveria reflectir sobre o significado da ascensão da extrema-direita, e relacioná-la com o tempo que os povos já esperaram pela tal “Europa social”. Suspeito que já não estão dispostos a continuar à espera e vão dizê-lo mais uma vez em Maio.

O que é que preocupa LAC? A resposta é simples: no Conselho das Finanças Públicas acabou a hegemonia da “teoria da idade das trevas” (expressão de Paul Krugman), de que Teodora Cardoso era a porta-voz. Com uma recessão a caminho, a escolha de Paul De Grauwe para vice-presidente do Conselho das Finanças Públicas dá um sinal de abertura para uma análise dos orçamentos que se afasta do pensamento dominante e recupera algum do keynesianismo bastardo dos anos anteriores à hegemonia monetarista. Veremos se esta opção também implica (ou não) mudanças na equipa de economistas de Teodora Cardoso.

É com isto que LAC está preocupado. Certamente preferia que esta mudança não tivesse ocorrido e, evidentemente, não o incomoda a subordinação dos Estados aos humores dos mercados financeiros, sempre disciplinadores das finanças públicas (quando podem). Ao contrário de LAC, eu saúdo a fragilização do actual status quo da UE. Agora, tal como as minhas ideias combinam saber científico e valores para analisar a realidade e propor escolhas políticas, o mesmo também sucede com LAC. Teorias, análise da realidade, valores e escolhas políticas são indissociáveis e, por isso, é de uma enorme ingenuidade, para usar uma expressão benévola, pretender que Paul De Grauwe esclareça, sempre que fala, se o faz na qualidade de académico respeitado ou de polemista. Todos nós falamos, de forma mais ou menos velada, nessas duas qualidades, algo que é inerente à nossa condição de seres humanos, incluindo quando fazemos investigação científica e leccionamos. LAC ilustra bem a formação que os nossos alunos tiveram nas últimas décadas.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Mudança de rumo?

O governo alemão apresentou recentemente a Estratégia Nacional para a Indústria 2030. Entre outras medidas, pretende criar um fundo público para assumir o controlo de empresas do setor industrial, em “circunstâncias excecionais” e “por um período limitado de tempo”, procurando garantir a sua capacidade para competir com empresas estrangeiras. Esta estratégia de nacionalizações parciais seria justificada em “casos muito importantes”.

A preocupação com a capacidade competitiva da indústria europeia esteve também na base do megaprojeto de fusão das empresas ferroviárias Siemens (multinacional alemã) e Alstom (francesa), anunciado em 2017 com o objetivo de criar um gigante europeu na ferrovia, capaz de concorrer com a chinesa CRRC e a canadiana Bombardier. O projeto foi agora chumbado pela Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia, sob o argumento de que “as outras empresas [europeias] não iriam conseguir acompanhar a concorrência criada pela fusão”.

As reações não tardaram: Joe Kaeser, presidente executivo da Siemens que já apelidara os técnicos da Comissão de “tecnocratas retrógrados”, apressou-se a pedir uma “reestruturação urgente” da política industrial europeia, à semelhança de Peter Altmaier, ministro da Economia alemão. Também o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, considerou "obsoletas" as regras europeias e criticou o "erro político” da Comissão. Já o The Economist condenou as intenções dos políticos europeus e defendeu que estas deveriam fazer “soar os alarmes” da ortodoxia, o que, de resto, teve eco na opinião dos seus representantes por cá.

Na verdade, tanto o plano de investimento público anunciado pelo governo alemão como o projeto de fusão contrariam a ortodoxia económica, inscrita no funcionamento da União Europeia, segundo a qual o desenvolvimento dos países apenas é possível se adotarem medidas como a privatização de empresas públicas, a promoção da iniciativa privada e da concorrência (combatendo os monopólios), a liberalização do comércio internacional, entre outras. O sucesso dos países deve-se, segundo esta linha de raciocínio neoliberal, à sua integração na economia internacional, sem interferências do Estado. É esse o esquema teórico que sustenta as regras da concorrência da União Europeia, desenhadas de forma a promover a livre iniciativa privada e impedir qualquer forma de intervenção dos Estados em empresas naconais.

No entanto, estas regras são erradas e as ideias em que assentam são fundamentalmente falsas. Como já foi descrito no livro Bad Samaritans, escrito pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang e resumido de forma brilhante aqui, a história mostra-nos que todas as grandes potências mundiais recorreram a formas de protecionismo e intervenção estatal de forma a desenvolver a sua indústria e capacidade produtiva antes da abertura ao comércio externo. Foi esse o caso do império britânico na construção do seu domínio industrial no início do século XIX, através de subsídios à produção nacional ou de tarifas aduaneiras, antes da revogação das Corn Laws (impostos alfandegários que protegiam os cereais britânicos da concorrência estrangeira) em 1846.

A imposição do comércio livre aos países mais fracos foi acompanhada da implementação de tarifas aduaneiras, subsídios à produção e apoios públicos à inovação em países como a Alemanha e os EUA, que conseguiram desenvolver a sua indústria e ultrapassar o poderio do Reino Unido, tornando-se líderes tecnológicos. Esta estratégia de desenvolvimento foi seguida também pelo Japão e, mais recentemente, por vários países asiáticos – Coreia do Sul, Taiwan, Índia ou China – cujas medidas de proteção aduaneira, investimento público robusto, apoios estatais às empresas e controlo público do setor financeiro e dos movimentos de capitais têm permitido sustentar o seu desenvolvimento industrial.

Percebe-se, por isso, o empenho de Peter Altmaier em alterar a política industrial do país e promover o seu desenvolvimento tecnológico e produtivo através do apoio do Estado, sobretudo numa altura em que aumentam os receios de desaceleração do crescimento alemão.


No entanto, esta decisão do governo alemão contraria toda a orientação da União Europeia ao longo dos anos, cuja obsessão com as regras da concorrência ordoliberais levou a que impusesse severos limites ao intervencionismo público na economia, impedindo a prossecução de políticas industriais ativas pelos Estados-membro e beneficiando apenas as empresas que já eram fortes à partida.

Um plano de investimentos alemão que beneficie apenas os seus interesses é politicamente insustentável, pelo que este teria de ser pensado a nível comunitário. No entanto, uma viragem radical da política industrial europeia parece muito pouco provável, devido à resistência da ortodoxia nas instituições (reveladora de um projeto europeu visivelmente desorientado). Além disso, uma década de austeridade enfraqueceu substancialmente as condições para o desenvolvimento europeu. Os riscos serão suficientes para que a UE mude de rumo?

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Riscos, medos e lutas


É mesmo caso para dizer, como afirmou o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Pedro Nuno Santos, numa intervenção na «Convenção Nacional do Ensino Superior 2030» (7 de Janeiro), que «a educação tendencialmente gratuita não pode ficar à porta do ensino superior» e que «o financiamento deve ser feito mais sob a óptica da universalidade do que sob a óptica da acção social». A defesa do Estado social passa, de facto, por serviços públicos de qualidade, universais e gratuitos. Só assim se garante que ninguém deixa de exercer um direito por carência económica. O apoio social escolar, que continua a ser muito insuficiente e nem sequer impede o abandono da frequência e o endividamento, tem de ser complementar. As políticas de habitação e de transporte, como é referido na mesma intervenção, têm de deixar de estar entregues, em grande medida, ao mercado, recuperando a provisão pública destes bens e serviços.
Sandra Monteiro, As propinas reproduzem as desigualdadesLe Monde diplomatique - edição de portuguesa, Fevereiro de 2018.

O medo. Não o de perder uma eleição, o de não conseguir «reformar» ou o de ver cair os activos que se tem em Bolsa. O medo da insurreição, da revolta, da destituição. Há meio século que as elites francesas já não experimentavam este tipo de sentimento.
Serge Halimi e Pierre Rimbert, Luta de classes em FrançaLe Monde diplomatique - edição de portuguesa, Fevereiro de 2018.

Para lá de excertos dos editoriais, aproveito para deixar por aqui o resumo da edição de Fevereiro:

“Na edição de Fevereiro propomos olhar para a dívida pública portuguesa e a sua gestão, a fim de compreender as consequências dos reembolsos antecipados e da criação de uma ‘almofada financeira’, no quadro da Zona Euro (Eugénia Pires). Destacamos ainda uma reflexão sobre os contornos da política externa do país, perguntando José Manuel Pureza: ‘Quem é o interesse nacional?’. Nuno Dias reflecte sobre os temas do racismo e da violência policial a propósito dos acontecimentos no bairro Jamaica, e Luís Fazendeiro sobre os problemas, ambientais e não só, colocados pelo projecto do aeroporto do Montijo, aparentemente sem ‘plano B’.

No internacional, continuamos a acompanhar a actualidade dos protestos em França, em artigos que focam a repressão crescente e a luta de classes contra uma casta no poder. O Brexit no Reino Unido, com uma via estreita para uma saída de esquerda; a situação no Brasil governado por Bolsonaro, indagando ‘o que querem os militares?’; e a relação actual dos judeus norte-americanos com Israel ou a do movimento social americano com os palestinianos são outros dos destaques desta edição. No continente Internet, olhamos para as receitas da Netflix, no cruzamento das tecnologias de vigilância e da cultura de massas.”

Sexta-feira, no Porto: Apresentação do nº2 da revista Manifesto


Tendo como tema «Geringonça 2.0 - Prioridades sociais», o segundo número da segunda série da revista Manifesto será apresentado no Porto por Isabel do Carmo, José Reis e Jorge Bateira, numa sessão moderada por Milice Ribeiro dos Santos. É a partir das 18h00 na UNICEPE (Praça de Carlos Alberto, 128). Estão todos convidados, apareçam.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A mão invisível dos algoritmos


O mundo do trabalho atravessa tempos de transição. Um dos seus aspetos mais marcantes tem sido o rápido crescimento das plataformas digitais associadas aos serviços mais variados, desde o transporte (Uber) ao alojamento (Airbnb), passando pela distribuição de comida e outros produtos (Glovo ou Deliveroo) ou pela realização de tarefas (TaskRabbit). Embora esteja longe de representar a maioria dos empregos criados, esta “economia da partilha” é um exemplo claro de um mercado de trabalho em mudança.

Na última década, a evolução do desemprego tem sido salientada como prova da recuperação económica dos países desenvolvidos depois da recessão de 2007-08. O Employment Outlook 2018, publicado pela OCDE, apontava para o regresso dos níveis de emprego aos registados antes da crise na maioria dos países ocidentais, embora os salários não acompanhem esta tendência e tenham estagnado.

As plataformas digitais desempenham um papel importante neste contexto. Embora costumem ser apresentadas como negócios inovadores, a verdade é que representam a continuidade de um modelo que tem vindo a ser implementado nas últimas décadas – a precariedade e o trabalho intermitente como nova norma no mundo do trabalho (trabalho part-time, temporário, os contratos zero-horas ou os falsos trabalhadores por conta própria). Além de constituir uma forma de precariedade laboral, o trabalho nas plataformas digitais atua simultaneamente como forma de compensação para pessoas que possuem baixos rendimentos ou outros trabalhos com horário irregular.

O simbolismo da partilha esconde a natureza das relações laborais por detrás destes serviços. O caso da Uber é o mais evidente: a empresa não reconhece os condutores dos veículos como trabalhadores da empresa, mas como motoristas independentes. Assim, a Uber limita-se a gerir a aplicação digital que coloca em contacto os motoristas com as pessoas que procuram o serviço de transporte, não assumindo responsabilidade pelas condições de trabalho ou pela proteção social dos motoristas. É por este motivo que, embora possua quase três milhões de condutores em 600 cidades pelo mundo, a Uber apenas emprega oficialmente 16.000 trabalhadores (o que até já motivou decisões do Tribunal de Justiça da UE que reconhecem a plataforma como empresa de transportes e a forçam a cumprir a legislação em vigor). A estratégia destas empresas é a mesma de qualquer multinacional – conquistar o mercado e afastar a concorrência pelos preços baixos (conseguidos através de reduzidos custos laborais), procurando construir um poder monopolista no seu ramo de atividade.

Uma das características deste tipo de trabalho é o horário imprevisível, que pode variar de acordo com a procura dos serviços e com a disponibilidade de quem trabalha (cuja remuneração geralmente depende do número de serviços prestados ou de horas trabalhadas, ficando a empresa com uma percentagem fixa de cada transação). Sob a ilusão de se tornarem “os seus próprios patrões” e de poderem escolher livremente quantas horas trabalhar, os trabalhadores deste ramo não são reconhecidos como tal e não têm acesso a direitos laborais como o pagamento de subsídios e dias de férias, de ausência por doença, entre outros. Além disso, em alguns países começam a surgir avisos sobre os problemas que estes trabalhadores terão no acesso a uma pensão no momento da reforma. A retórica da "partilha", da "modernidade" e da "flexibilidade" apenas procura ocultar os conflitos sociais associados.

O negócio das plataformas digitais vive, por isso, desta nova forma de exploração inventiva em que a distribuição do trabalho organizada por algoritmos esconde as relações de poder e subordinação, além de contribuir para o desenvolvimento de alguns problemas de saúde relacionados com a exigência e instabilidade do trabalho. Nos últimos tempos, começa a haver quem perceba que este modelo de insegurança laboral ameaça expandir-se para outras áreas e se organize para o contestar, apontando o caminho. "O conflito de classes existe e a minha classe está a ganhá-lo", explicava, com razão, o bilionário Warren Buffett. O futuro do trabalho jogar-se-á na disputa pelos direitos coletivos, contrariando a lógica desreguladora do mercado.

Hoje e amanhã, em Lisboa


A «Descentralização e a reorganização do Estado» e os «Novos desafios das políticas locais» são os temas em debate, hoje e amanhã, no âmbito da edição de 2019 do Fórum das Políticas Públicas, dedicado às questões do «Desenvolvimento, Descentralização e Poder Local». As sessões decorrem na Assembleia da República (hoje, dia 12) e no ISCTE-IUL (amanhã, dia 13). O programa das duas sessões pode ser consultado aqui.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Afinal, Marcelo não votou o SNS

Nada do que se segue tem muita importância. Mas pode dizer alguma coisa.

No rescaldo das polémicas declarações de Marcelo Rebelo de Saúde (MRS), de que vetaria um projecto de Lei de Bases da Saúde se votado apenas à esquerda, MRS fez  estranhas declarações.

A primeira, disse que é a favor do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e está familiarmente ligado a ele: "Na Constituinte, votei a favor de um Serviço Nacional de Saúde na Constituição. E até tenho uma razão afetiva: o meu pai, ainda na ditadura, fez parte da pré-história do SNS, porque criou os centros de saúde", de onde nasceu "uma escola" que mais tarde "apoiou muito a posição do doutor António Arnaut" na criação do SNS, em 1979. A segunda é a de que, afinal, MRS já não vai vetar o projecto de Lei de Bases da Saúde à esquerda porque - depois de ler o projecto do Governo - MRS acha que não é tanto à esquerda e que até poderia ser aproveitado pela direita (ver primeiro emissão do programa "Circulatura do Quadrado"). E que a posição do Governo sobre a Lei de Bases se enquadra meramente nas lutas eleitorais: "Isso é a luta político-ideológica em termos de afirmação a poucos meses de eleições".

Estas mensagens requerem um comenário.

Primeiro, lendo as actas das sessões plenárias da Assembleia Constituinte (AC) de 1975/76, verifica-se que MRS não esteve na sessão plenária em que se votou o articulado relativo ao SNS.

Os debates em plenária decorriam, depois das 13 comissões parlamentares terem chegado a uma proposta de articulado, com base nos projectos do PS, PPD, PCP, MDP/CDE, CDS, UDP. No caso do SNS, a votação do seu articulado foi na sessão de 2/10/1975, (página 925). E caso se consulte a página 947, ver-se-á que MRS faltou a sessão.

Claro que, no final da Constituinte, MRS esteve na sessão em que os deputados votaram o texto completo da Constituição - no qual estava (claro!) a parte relativa ao SNS. E um MRS amalandrado dirá: "Mas votei, não votei?" E é verdade: votou. Mas também votar em 1975 no SNS não era nada de especial. Senão vejamos.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Traduzir economia política


Hoje, o capitalismo democrático é uma contradição nos termos (...) Existe uma divergência fundamental entre o princípio democrático central um indivíduo/um voto e a norma básica de mercado um dólar/um voto. A democracia prospera na medida em que o poder do dinheiro é contido (...) A política assente num capitalismo equilibrado parece hoje mais improvável do que era nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. De facto, nos anos trinta pelo menos tínhamos uma depressão devastadora, que minou legitimidade do capitalismo e dos capitalistas sem freios. Tínhamos a União Soviética, que constituía uma ameaça geopolítica e uma alternativa. E também tínhamos o mais eficaz presidente populista e progressista da história dos EUA, mobilizando o poder de um Estado democrático alargado para constranger o capital e ajudar a gente comum – um círculo virtuoso que progressivamente legitimou o governo e a ideia de uma economia mista. Hoje, as elites empresariais e financeiras capturaram a maquinaria do Estado e neutralizaram o centro-esquerda como fonte de reforma sistémica. [minha tradução]

Robert Kuttner, Será que a democracia sobrevive ao capitalismo global?, pp. 283-286.

O último livro de economia política deste jornalista e ensaísta social-democrata norte-americano deveria ser traduzido por várias razões.

Em primeiro lugar, pela pergunta e por algumas das respostas. No fundo, sem algum grau de desglobalização, do controlo de capitais a um certo proteccionismo, será cada vez mais fácil, adaptando eu o marxista Fredric Jameson, pensar o fim da democracia do que o fim do capitalismo. Tal como o fim do mundo, a que alude Jameson, com ainda maior pessimismo da inteligência do que Kuttner, este fim da democracia seria gerado pelo capitalismo que hoje realmente existe.

Em segundo lugar, por reconhecer de forma clara que o chamado capitalismo democrático dos “trinta gloriosos anos” foi o produto de circunstâncias históricas bem mais fortuitas do que geralmente se julga.

Em terceiro lugar, por colocar no centro da sua análise a relação entre controlo político da finança, mas também dos fluxos comerciais, e os ganhos institucionais do trabalho organizado no período de prosperidade partilhada e a reversão eventualmente evitável deste processo nas últimas décadas, ou seja, o fim dos controlos nacionais de capitais, o reinício do comércio dito livre nos países mais desenvolvidos e o ataque sem fim a tudo o que desmercadorizou parcialmente o trabalho.

Em quarto lugar, pelas comparações e analogias históricas pertinentes, tão necessárias em economia política: por exemplo, a comparação entre o governo trabalhista britânico a partir de 1945, com uma economia mais endividada devido à guerra, e o governo socialista da presidência de Mitterrand do início da década de oitenta; o primeiro, porque tinha a finança sob controlo, a tal repressão financeira, como lhe chamam os neoliberais, conseguiu uma margem de manobra bem superior ao segundo, compelido a render-se ao poder da finança dita privada e à integração, neste caso sobretudo europeia, que a estava decisivamente reforçando.

Em quinto lugar, pela crítica fundamentada “à desgraça do centro-esquerda”, título de um dos capítulos, dos dois lados do Atlântico desde o final dos anos setenta. Uma crítica às suas abdicações no campo da economia política e da política económica que vem de dentro, bastando aliás atentar na lista dos agradecimentos para constatar tal facto.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 18)


A edição do primeiro trimestre de 2019 «inclui um texto de Mariana Mortágua sobre um tema esclarecedor (como a banca voltou aos lucros, não paga impostos e ainda ficou com o direito de reclamar um financiamento público sobre os impostos que não paga) e um dossier sobre as dificuldades da Zona Euro. O ponto de partida desse dossier é um conjunto de artigos de Viriato Soromenho-Marques e Ricardo Cabral, originalmente publicado em Bruxelas no blog da Fundação Heinrich Böll e inédito em Portugal. Nos vários textos, os dois autores apresentam os pontos fortes e fracos do euro, discutindo em particular as suas fragilidades estruturais, e refletindo sobre os caminhos que têm sido seguidos, tanto do ponto de vista das regras quanto da aplicação das políticas de austeridade. Como Viriato e Ricardo notam, essa evolução cria uma contradição fatal: os mesmos que apresentam como condições essenciais para o sucesso do euro algumas medidas de expansão orçamental e de convergência social intra-europeia, batalham para impedir que essas condições sejam aceites e, pelo contrário, promovem as formas mais eficazes de divergência e desigualdade. Assim, perante os sintomas da sua crise, o euro agrava as condições da crise. Essas contribuições são depois discutidas em dois textos, de Alexandre Abreu e de Vicente Ferreira. Eugénio Rosa apresenta um estudo sobre os vinte anos do euro, e estuda com cuidado os seus impactos em Portugal. Finalmente, José Belmiro Alves discute o crime e a economia da contrafação».

Do editorial do número 18 da Crítica -Económica e Social, já disponível para download gratuito. Boas leituras!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Zero, zero e zero


Declarações de Pedro Siza Vieira em Setembro de 2018:

[…] são sociedades [de investimento e gestão imobiliária] que terão o seu capital admitido à cotação e que captam poupanças para depois as investirem em imóveis para arrendamento de longa duração. As sociedades só poderão deter imóveis que terão de ter em carteira durante um período longo de tempo e têm que estar dedicados ao arrendamento […]

O Governo já preparou um pacote para melhorar a oferta de habitação acessível e de arrendamento acessível, mas é sobretudo importante criar espaços para arrendamento de longa duração e queremos agora dar um passo adicional criando sociedades de investimento que só possam investir em imóveis para arrendamento de longa duração

[…] a proposta que o Governo se prepara para apresentar nos próximos tempos é de criar veículos que sejam exclusivamente dedicados à detenção, a prazo, de imóveis para o arrendamento

[…] está a colmatar uma falha de mercado que precisa de uma resposta que, neste momento, o mercado não está a dar [... e] a dar um contributo para a criação de habitação a preços acessíveis nas cidades.

Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 19/2019 de 28 de Janeiro que cria as SIGI:

“A captação de investimento direto estrangeiro revela-se estratégica para a expansão dos recursos financeiros e não financeiros disponíveis na economia portuguesa, permitindo o aumento do investimento e o reforço da competitividade do tecido económico.

Por outro lado, a diversificação das fontes de financiamento e a dinamização e competitividade do mercado de capitais […] permitem a evolução para uma maior neutralidade entre o financiamento através de capitais próprios e o endividamento.

O presente decreto-lei concretiza estes objetivos […] procedendo à criação das sociedades de investimento e gestão imobiliária (SIGI), que configuram um novo veículo de promoção do investimento e de dinamização do mercado imobiliário […]

Menções no Decreto-Lei n.º 19/2019 a «arrendamento habitacional»: 0; «arrendamento acessível»: 0; «arrendamento de longa-duração»: 0.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Inflação, crises petrolíferas e FMI


Neste vídeo explico as causas da inflação, para além da despesa pública excessiva perto do pleno emprego. Em relação com a desvalorização da moeda, faço referência às crises de balança de pagamentos que motivaram o recurso ao FMI em 77 e 83.

Portanto, ao contrário da vulgata que domina a comunicação social, a despesa pública não é a causa primeira da grande inflação, é um efeito desta que retroalimenta as restantes causas, e essas são a desvalorização continuada e a luta sindical pela manutenção do poder de compra dos salários.

Sim, o recurso ao FMI naqueles anos não foi o resultado de uma bancarrota na dívida pública. Foi o resultado de um escoamento das divisas num contexto (internacional e interno) específico, gerador de um défice externo insustentável. No caso de 1983, agravado pela política de Cavaco Silva como ministro das finanças.

A insustentável leveza do «crowdfunding sindical»


«Jerónimo de Sousa disse por estes dias que “um trabalhador nunca vai com um sorriso nos lábios para uma greve”, mas esses tempos épicos e sisudos das grandes lutas operárias morreram a golpes de crowdfunding. (...) Financiar greves com donativos não é apenas uma “subversão do direito à greve” e do que está “na génese desse direito”, como notou Jerónimo de Sousa. É a mercantilização dos direitos laborais que abre portas desconhecidas. Um dia, arriscamo-nos a ver hospitais privados a financiarem via crowdfunding greves nos hospitais públicos, portos galegos a pagar por paralisações em Aveiro ou Leixões, a têxtil da rua de cima a dar dinheiro a grevistas da têxtil da rua de baixo. Não está em causa a legalidade do processo e, no caso em questão, qualquer juízo de valor sobre a justeza da luta dos enfermeiros – sem dúvida mal pagos para as suas competências, decerto maltratados pelo esquecimento do poder político. Está em causa sim a quebra na proporcionalidade entre os esforços nulos dos grevistas e as perdas imensas de todos nós.»

Manuel Carvalho, A greve indolor, pérfida e perigosa.

«Dois pequenos sindicatos, capitaneados pela bastonária e representados por um movimento inorgânico sem uma liderança responsável, encontraram o que julgam ser o ovo de Colombo: uma greve que, não tendo qualquer custo relevante para quem a faz, pode prolongar-se durante anos. Através de uma recolha de fundos informal, sem os requisitos mínimos de transparência (o que permitirá, a ser replicada, aproveitamentos perigosos), financiam-se uns poucos enfermeiros para não trabalharem. (...) Os enfermeiros estão a fazer uma greve por procuração, sem custos para os grevistas e baratíssima para quem, beneficiando dos efeitos da greve, não a tem de fazer. Se a isto juntarmos o facto de o fundo de greve não o ser realmente e a greve cirúrgica ser numa área que pode custar vidas, temos um bingo. Perante a grosseira perversão do instituto da greve e a ausência de razoabilidade, de ética sindical e de sensibilidade social, defendo, dentro dos limites da lei, a requisição civil»

Daniel Oliveira, A greve é como a guerra, deve ter custos para todos quererem a paz

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

1979: Quando Marcelo se marimbava para o SNS

Deu brado, a intenção de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) de que vetaria uma Lei de Bases da Saúde, mesmo sem a ler, se fosse apenas votada à esquerda.

Esta estapafúrdia declaração vinda de um professor universitário - que  visa abortar o projecto de revisão à esquerda - apenas espantará quem acha que MRS é uma pessoa preocupada com a substância dos problemas. Mas para ele, a saúde dos portugueses é um pormenor; o que é essencial é saber quem ganha no jogo esquerda-direita (a direita, na sua opinião, deve ganhar). Aliás, numa recente entrevista à agência Lusa, MRS separou os "mundos" existentes no actual debate sobre a Lei de Bases a partir de uma ideia igualmente simplista e redutora. Disse ele:
Há “duas maneiras de ver o problema” no SNS: com “flexibilidade na forma como é gerido” ou de “maneira mais fixista”.

Pode parecer chocante, mas esta visão curta dos problemas não é de agora, nem é novidade em MRS. Há cerca de 40 anos, em 1979, quando o SNS foi aprovado no Parlamento como forma de dar mais saúde aos portugueses, MRS era subdirector do principal jornal nacional (Expresso). E, mais uma vez, o assunto passou-lhe ao lado.

Folheie-se o jornal dessa altura. A página 2 do semanário era sempre sua, para estender a sua "Análise Política". Na página 3, aparecia sempre a "Figura da Semana", escolhida geralmente por MRS.

Ao longo de 1979, MRS não gastou uma linha - uma que fosse! - sobre o SNS ou a saúde dos portugueses. O próprio corpo do jornal nunca abordou o assunto, à excepção da crónica parlamentar, que não era da sua autoria. E muitas das vezes o SNS foi completamente secundarizado face a outros assuntos.

E se não foi sobre a saúde, sobre o que escreveu MRS nesse primeiro semestre preparatório da votação no Parlamento do SNS?

Escreveu sobre a descolonização, o PCP, o PSD, o Governo de Mota Pinto, a crise política, os candidatos presidenciais, a descolonização (outra vez!), o regresso de António Champalimaud, a Europa, o PS, o Brasil, novamente o Brasil (Marcelo deve ter ido ao Brasil e refere-se à chamada revolução de 1964 sem nunca mencionar o golpe militar), o congresso do PS (omitindo António Arnaut, que protagonizou - segundo o repórter do próprio jornal - a segunda intervenção mais ovacionada!), os três anos da Constituição, a crise da direita (dividida e com MRS a forçar uma concertação de esforços), a crise da direita nas confederações patronais e na UGT ("a CAP atravessa crise visível e parece paralisada, dividida; a UGT ressente-se da divisão no PSD, atrofia-se à nascença; a CIP permanece em debate constante das suas diversas correntes"), a amnistia aos militares do 11 de Março e do 25 de Novembro, o discurso de Ramalho Eanes no 25 de Abril, as jogadas de Sá Carneiro, a crise entre Sá Carneiro e Eanes, a "frente eleitoral" (escolhendo Freitas do Amaral para figura da semana).

Na semana de Junho em que os deputados votaram o SNS, Marcelo escreveu sobre... o 13 de Maio em Fátima. "A Igreja Católica é uma força social indesmentível, (...) resta saber se tem consciência da situação actual do repto que se encontra lançado". Não lembra ao diabo.

Em Julho, com a criação da Aliança Democrática (entre PSD/CDS/PPM), MRS parece feliz: "Este acordo pode ajudar a clarificar as opções eleitorais dos portugueses (...) nada mais frustrante para o eleitorado do que concluir que o seu voto não escolhe o Governo. (...) Se o bloco não se desunir, a maioria governamental pós-eleitoral será provavelmente diferente da actual".

Mas a questão da Saúde em Portugal era então assim tão irrelevante? Visivelmente para MRS, sim. Mas para os portugueses, era crucial. Era mesmo um caso de vida ou de morte. Em cada dia.

Veja-se como.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O dogma do orçamento equilibrado é o pior tipo de dogma que existe

A 5 de Fevereiro de 2019, com o défice orçamental próximo do zero e num ano de eleições europeias e legislativas, o jornal Público decidiu hoje fazer capa com uma afirmação que, em lato sensu, Paul De Grauwe vem repetindo, pelo menos, desde Maio de 2010.


Não teria sido um excelente dia para mais um editorial sobre esta matéria?

As fraudes dos banqueiros não explicam a crise

"O enorme endividamento do sector privado nas vésperas da crise não é produto de fraudes. É o resultado de um sistema em que os bancos são incentivados a expandir o seu negócio sem considerar os riscos.

É bom que se avalie o que se passou na Caixa para assegurar que cumpre a sua missão de banco público, em vez de servir projectos de poder de alguns grupos. Quem cometeu fraudes deve pagar por elas. Mas se queremos diminuir o risco de futuras crises, não é para o comportamento dos banqueiros que devemos olhar. É para as regras gerais do sistema financeiro. Essas são muito mais difíceis de mudar."

 (Excerto do meu texto de hoje no DN)

Curta a passar em "loop" nas Necessidades

Filme de Robert Redford "Lions for Lambs"
As notícias traçam um retrato o mais neutro possível da iniciativa do Governo português de alegadamente reforçar o corpo de segurança da embaixada portuguesa na Venezuela.
Os elementos do GOE com a missão de garantir a segurança da embaixada e do consulado de Portugal em Caracas foram travados à chegada a solo venezuelano. As autoridades não deixaram descarregar as malas diplomáticas carregadas com equipamento para a operação.
Agora veja-se a seguinte curta metragem: Primeiro plano: oito matulões à civil surgem em fila indiana na pista do aeroporto de Caracas, muito carregados. Depois, as caras das "autoridades venezulanas" (vulgo, "polícias") que lhes dão ordem para parar e abrir as "malas diplomáticas" (vulgo caixotes, não se sabe com que material). Novo plano da cara aflita dos militares portugueses à civil. Novo plano das "malas diplomáticas" que são abertas. E é possível ver-se "armas, capacetes, coletes à prova de bala e outros equipamentos", vulgo "mais armas"). Novo plano da cara dos GOE. E um novo plano dos sorrisos das "autoridades venezuelanas" (vulgo "polícias"). Último plano de um avião a descolar...

Augusto Santos Silva, depois de ser uma das poucas caras europeias que apoiou "o presidente interino", estava à espera de quê?

O euro do nosso descontentamento

“Em vinte anos, o euro trouxe prosperidade e proteção aos nossos cidadãos”, declarou Jean-Claude Juncker. O Presidente da Comissão Europeia também disse um dia que a mentira é necessária quando as coisas ficam difíceis. As coisas ficaram difíceis nestes vinte anos. E daí que a mentira se tenha tornado necessária também em Portugal.

Este é o mote do artigo sobre os vinte anos do euro que escrevi para a revista Exame. A mentira política, ou pós-verdade, como se diz agora, tal como a pós-democracia, tem também origens monetárias europeias.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Fora do euro, há limite para os défices?


"Portanto, afirmações de que o aumento dos défices orçamentais ou uma expansão da moeda produzem inflação têm de ser analisadas em termos do modo como a oferta da economia responde ao aumento da procura nominal.

Qualquer aceleração da procura nominal que enfrente uma restrição da oferta será inflacionista – algo que não é exclusivo da despesa pública.

Para explorar esta questão, é necessário saber como responde o lado da oferta da economia. Existem apenas três opções, quando a economia recebe um aumento da procura agregada nominal (despesa):

- Aumentar o produto real - isto é, aumentar a produção real de bens e serviços.
- Aumentar os preços - isto é, aumentar o nível de preços.
- Uma mistura de aumentos do produto real e de aumentos de preços.

Se a expansão da procura nominal continuar a ser satisfeita pela segunda resposta do lado da oferta, então temos a inflação a ocorrer.

Recomendo a leitura integral deste texto de Bill Mitchell.