quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

'Crashed': A Grande Recessão mudou o mundo em que vivemos


Há momentos de descontinuidade profunda na história das sociedades, que marcam o mundo de forma decisiva e estão condenados a ocupar um lugar de destaque na memória coletiva. A Grande Recessão de 2007-08 é certamente um desses momentos. Depois da violenta crise financeira, nada seria como dantes. É esse o tema central do recente livro de Adam Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World.

Dez anos após a crise, este livro conta a história de como chegámos ao maior colapso financeiro desde 1929 e do que mudou no mundo em que vivemos desde então. O autor avisa que “a história que o livro conta é a de um descarrilamento”. Embora já muito tenha sido escrito sobre o assunto, este é um dos relatos mais informados, completos e abrangentes sobre a Grande Recessão e as suas consequências para a evolução da economia mundial e das tensões geopolíticas na última década. Poucos autores o terão conseguido fazer com a eloquência de Adam Tooze, historiador económico e professor na Universidade de Columbia.

Tooze começa por recordar como os economistas previram a “crise errada”, por estarem apenas focados nos desequilíbrios comerciais entre os EUA e a China e ignorarem os riscos intrínsecos do próprio sistema financeiro. O autor parte depois para uma análise detalhada dos mecanismos financeiros complexos por detrás da crise. O detalhe e o rigor da descrição não diminuem a qualidade da escrita, que torna a leitura agradável para os leitores e as leitoras menos familiarizadas com os conceitos. A cronologia que o autor nos oferece não se resume aos principais desenvolvimentos da crise nos EUA e nos países da Europa Ocidental, mas também na Rússia, na Europa de Leste, na China e noutros países asiáticos. As diferentes respostas das autoridades nacionais e os conflitos políticos que surgiram nesse contexto ocupam uma parte substancial da discussão no livro.

Nas décadas antes da crise, as diferenças nos modelos de crescimento e nas estruturas produtivas dos diferentes países originaram desequilíbrios entre países excedentários e deficitários. O afluxo de capitais dos primeiros para os segundos alimentou bolhas especulativas (no imobiliário ou nos mercados de ações) e tendências de endividamento cumulativo. O desenvolvimento extraordinário de Wall Street e dos lucros do sistema financeiro norte-americano podem ser explicáveis pela necessidade de captar capitais para financiar os défices dos EUA, oferecendo ativos de maior risco com retornos apetecíveis para os investidores. Os bancos europeus foram os principais envolvidos nestas operações financeiras de risco, tornando-se bastante dependentes do mercado financeiro norte-americano.

Embora a quebra dos preços das casas e dos créditos subprime tenha sido a causa imediata da crise, Tooze recorda-nos que esta tem origem na intensificação dos laços financeiros entre os EUA e a Europa nas décadas anteriores à crise, facilitada pela vaga de desregulação do setor que permitiu aumentar significativamente o fluxo de capitais e a alavancagem dos bancos. A quebra da confiança no sistema e o consequente congelamento do crédito, do qual todos os bancos estavam dependentes, fariam ruir o castelo de cartas do sistema financeiro, provocando a recessão mais profunda desde a Grande Depressão de 1929. “Nunca antes, nem sequer na década de 1930, tínhamos assistido à iminência da implosão de um sistema tão amplo e interdependente”, escreve Tooze. A queda do Lehman Brothers, em Setembro de 2008, seria apenas o início.

A crise da dívida privada foi transformada pelos políticos norte-americanos e europeus numa crise da dívida pública, através da absorção das perdas financeiras pelos Estados. No livro Austeridade: A História de uma Ideia Perigosa, Mark Blyth descreveu esta operação como o maior embuste ("bait and switch") da história contemporânea. No caso da Zona Euro, a austeridade foi o mecanismo de socialização destas perdas, passando o encargo para as populações. A agudização da crise e a generalização do desemprego foram, por isso, resultado de escolhas políticas das instituições europeias. Para Tooze, este é “um espetáculo que deve inspirar indignação. Milhões de pessoas sofreram sem nenhuma razão para isso”.

Ao expor os desequilíbrios do processo de financeirização e a necessidade de recurso ao financiamento do Estado para evitar situações de insolvência dos bancos, a crise acabou também com o mito da desregulação virtuosa – como escreve o autor, esta “derrota histórica para o capitalismo” foi a única forma de salvar um sistema em falência. A política monetária expansionista da Reserva Federal norte-americana teve um papel crucial para evitar o aprofundamento da crise global, permitindo resgatar as instituições financeiras norte-americanas e oferecer a urgente liquidez aos bancos europeus. Na Zona Euro, a rigidez de Merkel e do governo alemão levou a que se opusessem a qualquer tipo de atuação contracíclica do BCE até que fosse demasiado tarde e a crise já tivesse devastado os países da periferia. Na Grécia, o país mais afetado, a taxa de desemprego jovem continua próxima de 40% (chegou a ultrapassar os 60% no pico da crise).

Por outro lado, a resposta expansionista da China à crise global merece a análise de Tooze. Ameaçada pela desaceleração do comércio, que afetou as suas exportações, a China desenvolveu um plano de resposta através de um reforço significativo do investimento público (de cerca de 12,5% do PIB) aliado a uma política monetária expansionista que permitiu atingir altas taxas de crescimento e emprego, contrariando a tendência de recessão no resto do mundo.

Mais de dez anos depois da crise, a política monetária das autoridades norte-americanas e europeias pode ter evitado danos ainda maiores, mas não resolveu os problemas mais profundos: o QE tem servido para procurar recuperar os ganhos do sistema financeiro, sem alterar a sua estrutura e o seu funcionamento. Além disso, a austeridade (aplicada sobretudo na Zona Euro) é responsável pela lenta recuperação destas economias e pela acentuação das desigualdades. É difícil não associar os efeitos devastadores da crise e das escolhas que foram feitas à erosão dos partidos tradicionais e à ascensão de candidatos alternativos, explorando sentimentos de revolta contra o sistema. A eleição de Trump e a ascensão dos partidos de extrema-direita por toda a Europa são exemplos desta "grande crise da modernidade", nas palavras do autor. As elites ocidentais estão a pagar o preço de sujeitarem a democracia à disciplina dos mercados financeiros.

11 comentários:

vitor disse...

Enquanto o zé povinho pagar o capitalismo nunca entra em falência.

Anónimo disse...

Excelente artigo.

Anónimo disse...

A socialização das perdas do sistema financeiro foi um acto criminoso, o sistema que permitiu que isso acontecesse mantém-se inalterado, só povos sem um pingo de decência e moralidade aceitam este tipo de abusos.

Pedro disse...

Eu francamente não vejo diferença nenhuma no mundo pós-crise.

Os responsáveis não foram castigados e até se assiste a uma nova onda de desregulação.

Não que fosse necessária. Mesmo com a melhor legislação, a manutenção de figuras inenarràveis como o nosso Carlos Costa à frente da regulação, garante que qualquer legislação não sirva para nada.

A única diferença será a aceleração da subida da direita nacionalista, que era jà previsível antes da crise, à medida que se fossem agravando as consequências da globalização neoliberal.

Anónimo disse...

Já li o livro do Adam Tooze e estou de acordo que se trata, se não do melhor,pelo menos um dos melhores acerca da última crise financeira. A primeira vista, as suas 650 páginas podem “intimidar” um pouco o leitor, mas uma vez embrenhado na sua leitura , não há como poisa-lo!
Avelino Pais

Jose disse...

Todos falam nos bancos e não faltará quem fale em banqueiros tendo em vista figuras do passado e sobreviventes em mau estado tipo Salgado e seus associados.

Mas verdadeiramente são os bancários, na sua luta por prémios, que são os principais autores de um clima de desprezo por valores de segurança e sustentabilidade tradicionalmente associados à banca. Emparelham-se facilmente com políticos competindo por votos e cultivando igual desprezo por segurança e sustentabilidade na vida dos cidadãos que se lhes confiam.

A Democracia vem sendo desapossada de valores outros que não os associados à mobilidade social. E todo o esterco sobe a posições de domínio sem que um padrão de valores os selecione ou limite.

Pedro disse...

Caro José.

Gajos como o Salgado, de uma família secular de banqueiros tradicionais, foram movidos pela necessidade de mobilidade social ?

Só contaram para você…

E obviamente que quando se fala em bancos se está a falar nos banqueiros que mandam neles.

As desculpas que inventa para encobrir um sistema corrupto são maravilhosas.

Davam para um filme tipo Alice no país das maravilhas.

Anónimo disse...

Todos os banqueiros envolvidos nos processos da banca perderam dinheiro

S.T. disse...

Os crashes dos bancos dividem-se em "pudins flan" e "câmara lenta".

O Lehman Brothers era modelo "pudim flan". O Deutsche Bank é mais estilo "câmara lenta".

Vai caindo aos pedaços. Discretamente.

Sabe-se agora que só num negócio o DB queimou e tentou esconder a perda de 1.6 biliões de $ (notação americana).

"...senior managers at the bank also signed off on efforts to try and conceal losses from regulators and the public by shuffling what insiders at the bank nicknamed "the Berkshire Trade" off of the bank's trading books and concealing it in the opaque "non-core operations unit" - aka Deutsche's "bad bank," a sort of Pet Cemetary for the bank's most toxic assets."

"... os gerentes seniores do banco também endossaram esforços para tentar esconder as perdas dos reguladores e do público ao baralhar o que os insiders do banco apelidaram de "o Berkshire Trade" dos registos de negociação do banco e ocultá-lo no opaco "unidade de operações não essenciais"- também conhecido como "banco mau"do Deutsche Bank, uma espécie de Cemitério de Animais de Estimação para os ativos mais tóxicos do banco."

"...the resulting loss was nearly four times its entire 2018 profit - and the biggest loss in the bank's history."

"... a perda resultante foi quase quatro vezes seu lucro total de 2018 - e a maior perda na história do banco."

Comparando com o BES, Ricardo Salgado até parece um menino de coro. LOL
Mas com uma diferença. O BES foi oferecido a capitais estrangeiros, o DB continua de porta aberta como se nada fôsse.

https://www.zerohedge.com/news/2019-02-20/how-deutsche-bank-conspired-conceal-16-billion-losing-bet-regulators-and

Instrutivo!

S.T.

Pedro disse...

Caro anónimo.

Nós perdemos muito mais.

De qualquer maneira o dinheiro que perderam não era deles.

E será que perderam mesmo alguma coisa ou que o esconderam em off shores ?

Jose disse...

Pedro, lê mais devagarinho...