sexta-feira, 28 de setembro de 2007

James Crotty: um macroeconomista rebelde

A macroeconomia é uma das áreas da ciência económica mais interessantes e importantes (até pelas implicações que tem na condução da política económica). Também é uma das áreas mais policiadas pela ortodoxia neoliberal reinante na esmagadora maioria dos departamentos de economia.

Mas há excepções. A Universidade de Massachussets em Amherst, com o seu heterodoxo departamento de economia e o seu magnífico Centro de Investigação sobre Economia Política, é certamente uma delas. Aqui pontifica, entre outros, James Crotty que será em breve homenageado. A sua síntese criativa de Marx e de Keynes faz dele um dos mais interessantes, e talvez menos conhecidos, macroeconomistas da actualidade.

A brilhante identificação das contradições do regime neoliberal global, a teoria marxista-keynesiana das dinâmicas de investimento, as análises da crise asiática ou do processo de financeirização do capitalismo norte-americano são parte da sua agenda de investigação e fazem dele um macroeconomista de combate a estudar por todos os que acham que a economia não tem de estar confinada aos «Doutores Pangloss» desta vida. Esses que se limitam a dizer que tudo correria bem no melhor dos mundos se deixássemos o «Mercado» funcionar e que de qualquer forma «depois da tempestade [gerada por definição por um qualquer evento exterior ao «Mercado»] virá a bonança» (Keynes).

White Stripes - You don't know what love is



Novo single para um dos álbuns mais injustamente ignorados deste ano.

Evo Morales no Daily Show


Evo defende o seu programa de nacionalizações, reforma agrária e reforma constitucional para a Bolívia. Não é preciso clamar pela Virgem Maria ou erguer a espada de Bolívar para alterar profundamente as estruturas sociais do país mais pobre da América do Sul.

Via Bitoque. Infelizmente, sem legendas.

O governo é parte do problema

«Ao contrário do que tinha sido previsto pelo Governo, o investimento público vai voltar a cair este ano, constituindo uma das principais ajudas para a concretização do objectivo de redução do défice». Parece que o investimento público vai atingir o «nível mais baixo em trinta anos». «Há mais vida para além do défice?».

Com este governo parece que não. As suas opções neoliberais, traduzidas na obsessão infundada com o equilíbrio das contas públicas como fim último da política económica, contribuem mais uma vez para a estagnação da procura agregada. Discursos vazios para «dar confiança aos mercados», com o governo reduzido a uma espécie de claque do sector privado, é tudo o que parece restar. Isto não tinha que ser assim.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Quando é preciso escolher parceiros, ele nunca se engana

«O Conselho para a Globalização, iniciativa que lancei há um ano, tem agora uma nova reunião em Sintra. Líderes empresariais portugueses e estrangeiros vão debater os desafios actuais, reflectir sobre os riscos e as oportunidades da economia global e partilhar experiências».

Quem o diz é Cavaco Silva, hoje no Público. Será que um dia se vai lembrar de reunir sindicalistas do mundo inteiro que procuram contrariar o poder de negociação desmesurado que têm hoje as multinacionais face às organizações de trabalhadores em todo o mundo? Ou as associações ambientalistas que combatem a delapidação do património natural? Ou as várias ONGs que lutam por um acesso generalizado aos medicamentos pelas populações sem recursos financeiros (enfrentando a oposição das grandes empresas farmacêuticas, escudadas nas regras da Organização Mundial do Comércio)? Ou ainda as organizações de agricultores que denunciam a assimetria nos processos de liberalização dos mercados (que tendem sistematicamente a beneficiar as exportações do países mais ricos) ou o crescente controlo dos mercados pelas grandes empresas agro-industriais - factores que os remetem para uma situação permanente de vulnerabilidade, dependência e crescente empobrecimento?

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A captura das elites (II)

«É bom, no entanto, ter bem presente que hoje a mais frequente e preocupante promiscuidade de interesses que mina o SNS, não está naqueles profissionais que acumulam com o privado, mas sim na política liberal e privatizadora de Correia de Campos, que introduz, na organização e funcionamento do SNS, os interesses próprios dos mais variados grupos privados, através da privatização de determinados serviços, desde administrativos (por exemplo, o sistema informático e a conferência de facturas do SNS) até à entrega da gestão e exploração de hospitais públicos a grupos privados (como é o caso do Amadora-Sintra e das 10 novas parcerias público-privadas - PPP), através das quais Correia de Campos oferece a gestão e exploração de mais 10 hospitais públicos aos grandes grupos económicos».

João Semedo, deputado e um dos mais denodados defensores do SNS. O problema da captura é também o problema do rotativismo do bloco central que «governa para interesses, usando o que é público e devia ser de todos como um benefício para alguns». Isto tem que ser quebrado. Politicamente.

A captura das elites (I)

Em economia política do desenvolvimento tem vindo a ganhar peso a ideia de que a performance económica dos países depende, entre outros factores, da capacidade que governos e administração pública têm para forjar políticas públicas capazes de orientar e coordenar as estratégias de investimento do sector privado. Isto pressupõe que existem condições para criar uma situação de «autonomia embutida (embedded autonomy)».

Este conceito, desenvolvido por Peter Evans, pretende transmitir a ideia de que o ideal será que o Estado construa pontes com o sector privado e tenha atenção ao contexto onde intervém e, ao mesmo tempo, consiga ser autónomo em relação às pressões sectoriais de curto prazo. Isto se quer ter capacidade para promover estratégias desenvolvimentistas que prossigam o bem comum. Os Estados bem sucedidos são assim aqueles que evitam a captura do sector público por fracções do sector privado.

Infelizmente, em Portugal parece-me que as nossas elites políticas estão demasiado «embutidas» no sector privado e a perder a necessária autonomia. O caso da Lusoponte é apenas um entre muitos exemplos. Ao contrário do que pensam os liberais isto não é o resultado do «intervencionismo do Estado». Isto é o resultado da fraqueza do Estado face a um sector privado rentista que não cessa de ganhar fôlego e poder. À custa de todos nós.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

O género da economia ortodoxa

Para não se comprometer mais com exercícios fúteis e furados de previsão sobre a evolução da recente crise financeira, Ricardo Reis brinda-nos com um artigo que mostra bem como os economistas ortodoxos precisam de uns ensinamentos de economia feminista para entenderem a realidade e para assim evitarem desconchavos deste tipo:

«Recentemente, as economistas Edlund e Korn avançaram uma nova explicação para o ‘puzzle’ das prostitutas. Eles [sic] notam que é difícil uma prostituta arranjar um marido. É óbvio porque é que os homens preferem mulheres sexualmente fiéis para assegurar a paternidade dos filhos, mas é menos claro porque é que os homens são tão avessos a casarem-se com ex-prostitutas. O facto, no entanto, é que o são. Por isso, uma mulher que se prostitui prescinde da felicidade que um casamento lhe pode trazer, assim como do acesso aos potenciais rendimentos do marido. Logo, poucas mulheres o querem fazer, limitando a oferta e subindo a compensação por prescindir do casamento. A favor desta explicação, Edlund e Korn notam que as imigrantes recebem menos na prostituição do que as nacionais. Estas mulheres podem voltar para o seu país e esconder o seu passado, tendo por isso melhores hipóteses de casar, pelo que exigem uma compensação menor».

Concentro-me apenas na última parte da citação. Reparem como se assume que tudo o que acontece na vida em sociedade é por definição o resultado de escolhas informadas, livres e autónomas: «exigem uma compensação menor». Sem mais. Como podia ser de outra forma se o economista decretou que não existem estruturas de poder, mecanismos de discriminação ou contextos sociais que constrangem as alternativas com que as pessoas são confrontadas? Assim se faz economia. Má economia.

Nem que fossem 99%

O Público de hoje refere um estudo da KPMG junto de 403 empresas europeias, o qual conclui que quase 80% das empresas inquiridas concordam com a ideia da harmonização da base fiscal dos impostos sobre os lucros à escala da UE. O resultado, para alguns surpreendente, explica-se pelo facto de as empresas gastarem demasiados recursos a fazer gestão fiscal. Noutros termos, as próprias empresas reconhecem que a tendência (que a UE tem promovido, como já aqui mostrámos) para os países concorrerem uns com os outros com base na descida dos impostos sobre os lucros não passa de um enorme desperdício - com implicações devastadoras sobre a capacidade de financiamento dos bens e serviços públicos e sobre a equidade social.

Mas esta descoberta dificilmente mudará o estado de coisas na UE. Segundo os tratados existentes (que nisto não são minimamente alterados pelo novo Tratado que aí vem), a introdução de qualquer esquema de harmonização fiscal (ou, já agora, de direitos sociais) ao nível europeu exige a unanimidade dos votos no Conselho de Ministros da UE. Tendo em conta que um punhado de Estados europeus, com o apoio da Comissão Europeia, tem baseado as suas políticas económicas na redução dos impostos sobre os lucros, dificilmente veremos nos próximos tempos qualquer harmonização nesta frente. Poderiam 99% das empresas europeias concordar com a medida, poderia uma esmagadoríssima maioria dos cidadão europeus exigi-lo, poderiam até 26 países mostrarem-se favoráveis à harmonização dos impostos sobre os lucros para evitar a concorrência fiscal na Europa - bastaria um voto contra de um país para garantir que a proposta não passava.

Esta é a herança dos tratados que foram aprovados desde Maastricht. Esta é a Europa que, no horizonte próximo, continuará a contribuir através das regras estabelecidas, para a erosão do Estado Social.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O que fica dos tempos que correm

Miguel Vale de Almeida escreveu, em posta, a melhor reflexão política, moral e pessoal que eu li sobre a trajectória do ensino superior em Portugal: «A universidade caminha para deixar de ser universal. Passará a ser uni-versal: um só verso, um só lado». Os tempos seriam menos sombrios se a esquerda conseguisse sempre transmitir a ideia de que o combate à «neoliberalização» de esferas essenciais da vida social não pode nunca ser confundido com a simples defesa do que existe. A esquerda tem que ter muito mais «saudades de futuro».

Depois da economia, a música feminista



Le Tigre- After Dark




The Gossip - Standing in The Way of Control

Economia feminista

O movimento feminista chegou tarde à teoria económica (início dos anos noventa), mas, desde então, a «Economia Feminista» tornou-se numa das mais interessantes correntes heterodoxas. Esta linha teórica parte de uma feroz crítica à dominante economia neoclássica, quer aos seus tópicos de investigação, quer à sua metodologia. O homoeconomicus da economia neoclássica, ao caracterizar-se pela autonomia, racionalidade e egoísmo dos indivíduos, não permite a integração da dimensão relacional destes, onde a cooperação ou a justiça têm um papel central. Ora, sem tal abordagem, não há espaço para o conceito de género na arena económica.

Por exemplo, a discriminação salarial entre homens e mulheres só pode ser, para a economia neoclássica, resultado de diferenças fora do âmbito do mercado de trabalho (e.g. educação). A discriminação seria demasiada custosa em mercados competitivos. No entanto, se, como as feministas argumentam, alguns trabalhos tradicionalmente associados às mulheres são sistematicamente subvalorizados, um salário mais baixo pode ser perversamente considerado justo para estas actividades. Ou seja, ao integrarmos o conceito de (in)justiça, conseguimos avançar explicações para a discriminação salarial e sua perpetuação endógena ao mercado de trabalho. A teoria económica fica mais complexa, mas também mais robusta.

A Economia Feminista tem não só conseguido tratar um conjunto de novos temas para a teoria económica como o trabalho doméstico ou os cuidados prestados aos mais novos e mais velhos, como também tem reconfigurado conceitos antes consensuais entre os economistas. Ao dar visibilidade ao papel das mulheres na economia, esta corrente serve um claro propósito político emancipatório. E já deu resultados. Domínios tão importantes, como são as políticas de desenvolvimento, integram hoje explicitamente as questões de género.

Finalmente, como exemplos (aleatórios) desta corrente, temos economistas como Julie Nelson, Nancy Folbre ou o Nobel da Economia Amartya Sen. Para saber mais vale a pena passar por aqui.

Coitadinhos

O Público de hoje dá conta de um estudo de Karin Wall sobre «O Lugar dos Homens na Família em Portugal». Ficamos a saber que os homens «consideram que é mais grave faltarem ao trabalho do que elas». Pobres coitados, que vêem a sua ética do trabalho colocada em causa devido às malvadas mulheres que os obrigam a «ajudar» nas tarefas domésticas. Essas, por seu lado, não passam de umas irresponsáveis que interpretam faltas aos trabalho como «um tempo de oportunidade para a família».
Talvez tais angústias expliquem, por isso, que «só 0,8 por cento dos homens fazem sozinhos as refeições, só 1,7 por cento trata da louça e só 0,1 trata da roupa».
(Via Bitoque)

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A barreira do preço

No Público de hoje podemos ler que «cerca de metade da população portuguesa não tem capacidade para pagar uma consulta de medicina dentária». Aqui há tempos um simpático economista sueco perguntava-me por que é os portugueses tinham uma dentição tão má (uma das coisas que, algo surpreendentemente, o tinham impressionado quando visitou o nosso país). Parece que temos mesmo os piores resultados da Europa nos cuidados de saúde oral. A resposta é óbvia: incompreensivelmente, esta especialidade não faz parte do SNS e por isso os mecanismos de exclusão pelo preço são aí especialmente vigorosos. Até quando?

Ainda o maestro

Discípulo de Ayn Rand, uma das mais radicais filósofas libertárias de direita, Greenspan foi a voz mais influente na condução da economia norte-americana nas duas últimas décadas. Soube, como ninguém, aproveitar a posição imperial hegemónica dos EUA para pugnar por uma política monetária pragmática que susteve todas a crises eminentes do modelo neoliberal.

Esta política, aliada a um keynesianismo militar e à instituição de mecanismos de redistribuição regressiva do rendimento e da riqueza crescentemente apropriados pelos mais ricos, gerou desequilíbrios socioeconómicos que vão revelando todas as fragilidades do modelo anglo-saxónico de capitalismo. Agora Greenspan olha para trás, preocupado com o facto de as políticas praticadas terem alcançado aquilo a que se propunham desde que Volcker decidiu subir, em 1979, as taxas de juro para níveis historicamente sem precedentes para, com Reagan, partir a espinha ao movimento laboral norte-americano por via, entre outros, do desemprego elevado então engendrado.

Por isso é de um cinismo atroz confessar não saber por que é que os salários não acompanharam o crescimento da produtividade e ao mesmo tempo alertar que «se o salário do trabalhador médio norte-americano não aumentar rapidamente nos próximos tempos, o apoio político ao mercado livre perderá muito do seu fôlego». Pois é. A legitimidade do capitalismo é sempre precária e o seu próprio «sucesso» ameaça a sua estabilidade. Seja como for, estou certo que Ayn Rand não iria gostar de tais conclusões. Pois não era ela que afirmava que o egoísmo é a única virtude humana e o capitalismo glorioso por permitir a sua máxima expressão?

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Variedades de capitalismo e dinâmicas de inovação

O livro Varieties of Capitalism: The Institutional Foundations of Comparative Advantage, da autoria de Peter Hall e David Soskice e publicado em 2001, constituiu um marco para a ciência política comparada. O trabalho procedia a uma análise detalhada das diferentes estruturas institucionais de alguns países capitalistas avançados, recusando a ideia de que estaríamos a assistir a uma trajectória de convergência entre diferentes formas de capitalismo. Segundo os autores, mesmo em tempos de globalização e de alargamento contínuo das esferas de actuação dos mecanismos de mercado, haveria diferentes caminhos para o bom desempenho das economias. Por outras palavras, não obstante os discursos acerca do «fim da história» ou da «nova economia», Hall e Soskice defendiam que os sistemas capitalistas estariam longe de convergir para um mesmo modelo (nomeadamente para o que os autores designam por «economias liberais de mercado»).

Um dos argumentos do livro que mais repercussão teve foi o de que haveria uma diferença crucial nos modos predominantes de inovação entre «variedades de capitalismo»: as «economias liberais de mercado» (que incluem os EUA e o Reino Unido) tenderiam a produzir inovações mais radicais (novos produtos e processos que tiram partido de avanços científicos e tecnológicos de ponta), enquanto as «economias de mercado coordenado» (onde cabem a Alemanha e o Japão) baseariam o seu bom desempenho económico em inovações incrementais (ou seja, modificações e melhorias em tecnologias já existentes).

Um documento de trabalho acabado de publicar por investigadores da Universidade de Groningen vem pôr em causa os resultados obtidos por Hall e Soskice, mostrando ser impossível tirar tais conclusões acerca dos padrões de inovação. Mais especificamente, mostra-se ser impossível identificar diferenças significativas nos padrões de inovação de países como a Alemanha ou os EUA com base nos dados usados por estes autores.

Quem quiser pode ver nisto a demonstração de que o capitalismo não tem variedades - logo, mais uma acha para o questionamento da tese central de Hall e Soskice. A alternativa é ver nestes resultados um reforço desse argumento: ou seja, não só o capitalismo assume diversas formas com diferentes «graus de impureza», como a capacidade de inovação radical não é característica específica das versões mais liberais do sistema.

Tendo em conta a variedade ideológica dos leitores deste blogue, há explicações para (quase) todos os gostos.

Quando o mercado não funciona mesmo

Um dos domínios onde é fácil de perceber que o funcionamento dos mercados sem interferências externas não é garante de eficiência é o da evolução da tecnologia. Dois exemplos clássicos disto são o teclado QUERTY e o sistema de vídeo VHS. Ambos constituem soluções sub-óptimas que vingaram no mercado, apesar da existência de alternativas tecnicamente superiores e igualmente viáveis em termos económicos. Em ambos os casos, o sucesso deveu-se ao facto de os mecanismos de mercado garantirem que a partir do momento em que uma solução tecnológica vinga, torna-se extremamente difícil ela ser posta em causa pela concorrência.

No caso do QUERTY (designação que remete para ordenação das letras da segunda fila dos teclados que usamos), tratou-se de uma solução que minimizava o encrave dos martelos das máquinas de escrever - mas que se manteve até hoje apesar de terem sido identificadas disposições mais dactilograficamente ergonómicas e mais eficientes (e apesar de já não existirem máquinas de escrever...). A partir do momento em que foi adoptada desenvolveu-se toda uma indústria paralela de formação em dactilografia, de peças para máquinas, etc., que resistiria a qualquer mudança de standard.

No caso do VHS, o seu sucesso prendeu-se com o facto de ter chegado primeiro ao mercado dos alugueres de vídeo, beneficiando de um processo cumulativo em que quantos mais clubes de vídeo usavam cassetes VHS, mais consumidores preferiam adquirir leitores com esse sistema, e vice-versa - tornando impossível a sobrevivência comercial de uma solução tecnológica que era superior (dava pelo nome de BETA, alguns ainda se lembrarão), mas que se atrasou ligeiramente na produção de vídeos de aluguer.

Na The Economist da semana passada fiquei a saber como o futuro das metrópoles teria sido diferente se alguém tivesse impedido que o mercado funcionasse. O artigo em causa fala de uma companhia de autocarros eléctricos que surgiu em Londres no início do século XX e que faliu comercialmente devido a um episódio fraudulento (típico de mercados caracterizados por informação assimétrica - ou seja, praticamente todos!), embora oferecesse uma solução mais económica e tecnicamente mais fiável - e, seguramente, ambientalmente mais limpa - do que a dos autocarros movidos por motores de combustão interna baseados em derivados de petróleo.

Tivesse o mercado não funcionado e hoje respiraríamos um ar mais agradável.

Sensibilidade e bom senso

«Os EUA são muito mais realistas que o BCE. Em presença da realidade, os EUA reagem com realismo, enquanto a Europa reage escolasticamente. A descida das taxas de juro nos EUA vai prejudicar as empresas na medida em que em que com um euro alto perdemos competitividade. Quanto à Iberomoldes, já perdemos o mercado norte-americano por força da apreciação do euro».

O industrial Henrique Neto (um exemplo raro de um empresário que investe em bens transaccionáveis tecnologicamente avançados e a quem nunca ouvi uma queixa sobre a «rigidez do mercado de trabalho» português) descreve muito bem a situação depois da Reserva Federal (RF) norte-americana ter feito aquilo que lhe compete face a uma situação de crise cada vez mais grave: cortar decididamente a taxa de juro de referência. É preciso não esquecer que a RF tomou esta decisão porque tem um mandato político que aponta para uma missão dupla: crescimento económico e emprego por um lado e estabilidade de preços por outro. A Europa, por seu lado, criou uma instituição à qual foi atribuída uma missão principal a que tudo o resto deve estar subordinado: manter a estabilidade de preços. Não se espantem por isso se, apesar das boas razões existentes, o BCE decidir nos próximos tempos ser fiel à ortodoxia económica que presidiu à sua criação.

Vai uma corrida?

Aparentemente desde 1866 que não verificava uma corrida a um banco no Reino Unido. A desconfiança generalizada em relação à situação financeira do Northern Rock levou recentemente muita gente a tentar retirar as poupanças do banco em questão o mais depressa possível. Do ponto de vista individual trata-se de uma decisão movida por boas razões, mas do ponto de vista colectivo, dado o efeito cumulativo de cada uma dessas decisões, pode gerar-se uma situação irracional que poderia frustrar aquilo que impeliu cada um dos indivíduos a agir: salvar o dinheiro depositado. Isto porque o banco não tem como satisfazer simultaneamente os seus compromissos com os depositantes (a suas reservas não chegam para cobrir todos os depósitos). O somatório destes comportamentos descoordenados poderia ser assim o incumprimento e a falência.

Até meados do século XIX, os bons velhos tempos do liberalismo, as corridas aos bancos eram muito frequentes porque não existiam mecanismos de regulação pública que garantissem de alguma forma os depósitos e sobretudo porque não se tinha ainda consolidado a ideia de um credor de última instância (Banco Central) que injectasse liquidez no sistema e assim estancasse a onda de desconfiança. Estes dispositivos existem (embora na Grã-Bretanha os mecanismos de garantia sejam menos robustos do que noutros lugares e por isso talvez este triste episódio tenha aí ocorrido). Mas nos momentos de instabilidade vê-se que por detrás de um sistema liberal (e a assegurar a sua reprodução) está sempre a mão firme do Estado a salvar, pelo menos por enquanto, a situação. Não me parece que a culpa possa ser atribuída assim tão facilmente ao governo britânico. Afinal de contas foi o banco que pediu auxílio. E na ausência de regulações mais robustas, que controlem o comportamento das instituições financeiras, as dinâmicas concorrenciais da «anarquia de mercado» como que «coagem» inevitavelmente os bancos a comportarem-se de forma crescentemente aventureirista na fase ascendente do ciclo. Os «moralismos» são aqui dispensáveis. É preciso olhar para a estrutura que gera estes comportamentos. Há aqui questões difíceis, que os liberais têm de enfrentar, como este artigo de Martin Wolf bem ilustra.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O nirvana de Greenspan

O primeiro post deste blogue dava conta da crescente divergência entre os salários e a produtividade nos E.U.A. Hoje, Alan Greenspan, em entrevista ao Financial Times (publicada pelo Diário Económico) mostra-se surpreendido com esta tendência:

«O mundo que Greenspan descreve parece-se mais com um "mercado-nirvana global" com uma curiosa peculiaridade: os lucros são muito superiores aos que se esperaria num mundo onde a concorrência global é cada vez mais apertada. "Em termos contabilísticos até sabemos o que provocou tudo isto" - o peso dos salários, em termos de percentagem do rendimento nacional, nos EUA e noutros países desenvolvidos é invulgarmente baixo comparativamente aos padrões históricos -, "mas em termos económicos desconhecemos que processos isto envolveu", refere».

Quanto a esta última confissão de ignorância, talvez possamos dar uma ajuda. Devagarinho, para ser mais fácil: Ne-o-li-be-ra-lis-mo!

Reproduzo em baixo o gráfico, anteriormente publicado, que ilustra a gritante divergência entre a produtividade e o salário horário nos E.U.A. durante as últimas décadas:


Desigualdade

Artigo do Público sobre um relatório da OCDE (Education at a Glance 2007): (1) analisando uma série de indicadores, Portugal é o país da OCDE «onde tirar o curso mais compensa» em termos de crescimento dos rendimentos auferidos ao longo da vida; (2) Portugal é um dos países da OCDE onde as origens de classe mais influenciam o percurso escolar dos indivíduos («os filhos de licenciados têm 3,2 vezes mais probabilidade de tirar um curso do que seria normal»). Isto quer dizer, como aliás seria de esperar no país mais desigual da Europa, que existem poderosos mecanismos de transmissão intergeracional das desigualdades materiais. Depois venham-me falar de mérito. Os valores do mérito ou da excelência só podem florescer em sociedades que conseguiram bloquear muitos dos mecanismos que fazem com que os destinos das pessoas fiquem selados pela «lotaria da vida». Sociedades que apostaram na igualdade.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Mudança tecnológica e desemprego

Dos comentários à posta anterior emergiu uma discussão recorrente quando se fala de revoluções tecnológicas - trata-se de saber em que medida estas poderão ser responsabilizadas por períodos prolongados de desemprego.

Um coisa que já devíamos suspeitar é que esta questão é menos simples do que pode parecer. Vista em termos agregados, a mudança tecnológica tem efeitos contraditórios sobre o volume de emprego. Por um lado, tende a provocar uma perda de postos de trabalho, na medida em que conduz frequentemente à substituição de mão-de-obra por capital físico, bem como ao declínio de certas actividades que se vão tornando irrelevantes. Por outro lado, as novas tecnologias também significam a produção de novos bens e serviços, logo a oportunidade para criar novos empregos.

Posto noutros termos, tipicamente a mudança tecnológica implica a libertação de recursos produtivos (nomeadamente, a força de trabalho), os quais podem ou não ser aproveitados para outros fins. Se estes recursos são ou não utilizados produtivamente depende de muitos factores, nomeadamente das instituições do mercado de trabalho, das características dos trabalhadores envolvidos, das políticas macroeconómicas seguidas, entre outros.

Ao atribuir o desemprego francês na primeira metade da década de 1990 ao novo paradigma tecnológico, Viviane Forrester menorizava aspectos muito mais relavantes como sejam a política macroeconómica fortemente contracionista seguida desde o início da década de 1980 na generalidade dos países da Europa ocidental, mas também os efeitos da liberalização internacional dos mercados (associados simultaneamente à conclusão do Uruguay Round e à finalização do Mercado Interno na sequência do Acto Único Europeu), que se fizeram sentir em alguns sectores mais expostos à concorrência externa.

Não, não creio que o comentário do Nuno resulte de uma 'fézada', caro Diogo. Mesmo aceitando que é extremamente difícil identificar o peso de cada factor na determinação de um fenómeno tão complexo como o desemprego.

Não basta ler a contra-capa

Jcd, do Blasfémias, a propósito da publicação deste livro, comenta dois livros: o «Horror Económico» de Viviane Forrester e «No Logo» de Naomi Klei. Ambos foram êxitos de vendas. No entanto, talvez devido aos largos anos que nos separam da sua publicação, jcd parece não lembrar-se bem do que leu na altura. Todos os livros podem, e devem, ser escrutinados criticamente, mas não vale estar a «ler» o que não está lá.

O «Horror Económico» não parte da premissa de «que as pessoas vivem cada vez pior e que estamos mais pobres do que estávamos há 100 ou 200 anos». O livro, centrado na realidade francesa, parte sim das elevadas taxas de desemprego a que, países como a França, pareciam condenados. A comparação faz-se, por isso, com o quase pleno emprego de há 30 anos.

O livro tem, contudo, muito por onde se criticar. Parte de uma premissa falsa ao associar desemprego estrutural ao actual paradigma tecnológico. E, por isso, cai também em vários equívocos em relação às alternativas que propõe. Ao contrário do que jcd afirma, Forrester não defende o fim do capitalismo, mas sim a redução do horário de trabalho (que se veio a verificar no governo Jospin) e a revalorização de um conjunto de serviços sociais criadores de emprego. Quanto ao uso de produtos derivados na «economia de casino», acho que a recente crise financeira é eloquente o suficiente...

«No Logo», de Naomi Klein, é um livro bem mais valioso. Embora peque pela ausência de qualquer teorização, Klein consegue, descrever o modus operandi das grandes multinacionais e, mais uma vez, ao contrário do que jcd afirma, não se esquece dos trabalhadores destas empresas no extremo-oriente. No que considero ser a melhor parte do livro, Klein descreve as terríveis condições de trabalho nas zonas especiais dedicadas ao investimento estrangeiro.

Finalmente, temos o ataque a Ramonet, director do Le Monde Diplomatique, e às suas supostas previsões catastrofistas sobre o fim do capitalismo. Há muito tempo que me habituei a ler Ramonet, em artigos e livros, e nunca lhe li tal formulação. Aliás neste caso não são apresentadas quaisquer referências. Aconselho então jcd a tirar de novo os livros que critica das sua estantes e a lê-los de novo antes de se decidir a escrever disparates preconceituosos.

Mais um simpatizante do terrorismo


«Entristece-me que seja politicamente inconveniente reconhecer o que toda a gente sabe: a guerra no Iraque deve-se sobretudo ao petróleo», escreve Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve, nas suas memórias.

Como resolver a crise?

«Governo Socialista vai investir 93 milhões de euros para modernizar as polícias, uma subida de 46% face a 2007». Este parece ser o sector prioritário em termos de aumento do investimento público. Num contexto de crise social grave e na mais desigual e injusta sociedade europeia, um governo socialista prefere reforçar o aparelho repressivo. Será que o nosso incipiente «Estado social» vai passar a ser cada vez mais um robusto «Estado penal»?

Ainda a crise

Agora que as forças da desconfiança e da incerteza levam a uma inédita corrida a um banco no Reino-Unido, um dossier, preparado pelo esquerda, pode ajudar a deslindar alguns dos fios que conduziram a mais esta crise financeira de alcance global.

Destaco o artigo do economista heterodoxo espanhol Juan Torrez Lopes. Explica bastante bem os mecanismos da crise e denuncia a passividade dos bancos centrais ao permitirem a especulação desenfreada que alimentou a bolha. São apenas «escravos de uma ortodoxia sem qualquer base científica (pois nem um só dos postulados no qual se baseia a política monetária e económica que defendem está demonstrado como mais conveniente ou adequado)». Particularmente interessantes são as suas propostas para conjurar a instabilidade financeira. Estas baseiam-se no sensato princípio de que é preciso bloquear «os mecanismos que transmitem a especulação e a volatilidade a todas as actividades económicas». É de facto urgente voltar a Keynes e a Tobin.

domingo, 16 de setembro de 2007

As metáforas podem ser perigosas

Teixeira dos Santos declarou, durante o recente encontro dos ministros das finanças da UE, que «as águas do Douro não são turbulentas» (Público de Sábado).

Não sei se o ministro disse isto para acalmar os seus colegas, à entrada para uma viagem de barco pelo Douro, ou se pretendia dar um alcance mais metafórico à sua declaração. Vamos assumir a segunda hipótese, até porque esta está mais de acordo com o tom complacente do conclave face aos potenciais efeitos de contágio de mais uma crise do regime financeiro liberal: não se passa nada de especial, é preciso mas é controlar a inflação e assegurar o equilíbrio orçamental que a melhor política é sempre a ausência de política. Pois bem. Esqueceu-se o ministro que a reduzida turbulência das águas do Douro é o resultado da construção de um complexo sistema de barragens que permitiram regularizar o caudal do rio.

Nos mercados financeiros, desde há mais de vinte anos, que pouco mais se faz do que destruir barragens. Mas isto das metáforas não é para todos. Dito assim até parece que os mercados financeiros são tão naturais como o rio Douro.

Bússola


Numa entrevista, dada ao Jornal de Negócios em Junho, o comissário europeu («socialista») para a fiscalidade afirmava que, num contexto de livre circulação de capitais, «harmonizar as taxas de IRC é acabar com a concorrência fiscal» à escala da União Europeia, responsável, na sua opinião, pela criação de «um melhor ambiente para os negócios». E assim se bloqueia deliberadamente a tão necessária harmonização fiscal na União.

Um estudo recente do Compass mostra a urgência de se avançar nesta direcção. O Compass é um centro de produção e difusão de ideias ligado, mas não confinado, ao que resta da ala esquerda do New Labour. Prova duas coisas: (1) que ainda há, em alguns partidos europeus da internacional socialista, grupos organizados que não se resignaram a administrar a transição mais ou menos rápida para sociedades cada vez mais mercantis e injustas (onde é que eles estão em Portugal?); (2) que existe a consciência de que é importante formular diagnósticos e sobretudo propostas políticas inovadoras que se cristalizem em programas que possam conquistar maiorias. Luta das ideias mais uma vez.

Luta das ideias

A. Cabral acha que eu tendo a exagerar o papel que as ideias e os intelectuais desempenham na evolução das sociedades. Bom, talvez eu tenda de facto, por defeito de formação e por considerar que a dimensão da luta das ideias foi e é muito descurada à esquerda, a sobrestimar a importância das normas, dos valores, das ideologias que a cada momento se vão forjando e que definem a forma como os indivíduos interpretam o mundo, as opções que tomam e as alterações nas «regras do jogo» que decidem promover.

Prefiro pecar por excesso do que deixar-me aprisionar em interpretações que tendem a confiar na bondade de um activismo sem bússolas ou na ilusão de que as forças da história trabalham de alguma forma a favor dos projectos socialistas. Prefiro assim enfatizar o papel da produção e da difusão das ideias, a forma como certas instituições (academia, comunicação social e outros aparelhos ideológicos) tendem a robustecer determinadas agendas políticas, a forma como estas circulam e moldam os termos dos debates e a percepção dominante do campo dos possíveis. Produção, circulação e popularização de ideias, construção da hegemonia, acção política deliberada.

As vitórias do neoliberalismo também passaram e passam por aqui. Embora saibamos que o combate é desigual, aprendamos então com a «direita gramsciana». E lembremos, com Marx, que «as ideias são uma poderosa força material»...

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Um livro de combate

Pelo A. Cabral fiquei a saber que Naomi Klein, a célebre jornalista-ensaista-activista canadiana, tem um novo livro onde procura explicar como é que as mais desvairadas utopias de mercado conquistaram, a partir dos anos setenta, a hegemonia um pouco por todo o lado, graças a uma combinação variável de coerção (do Chile de Pinochet ao Iraque) e de luta das ideias (o papel de ideólogos como Hayek ou Friedman e das instituições inspiradas pelas suas ideias).

Voltarei a este livro. Por agora fica aqui esta entrevista e um excelente dossier preparado pelo The Guardian. Destaco apenas a forma certeira como, na entrevista, a autora caracteriza os fundamentalistas do capitalismo sem fim: um desejo de pureza, a fé na harmonia dos interesses e a crença de que todos os problemas se devem a distorções, colectivamente impostas, que perturbam o funcionamento espontâneo do mercado.
Boas leituras.

Editors - Smokers Outside The Hospital


Os Editors lançaram agora o seu segundo albúm. Com músicas muito "orelhudas", como esta. Já não soam tanto a Interpol.

Quem é que é infantil?

Ao contrário de Helena Garrido, defendo que pode ser acertado instituir medidas de apoio aos cidadãos mais pobres, sobretudo aos cidadãos que caíram em situações de desemprego involuntário, e que se encontram a braços com um serviço da dívida que não cessa de aumentar devido, em parte, aos comportamentos irresponsáveis e «predatórios» dos bancos e a mais uma crise no regime financeiro liberal. Não percebo como é que se pode dizer que medidas sensatas deste tipo infantilizam os cidadãos. Mecanismos de protecção bem desenhados impedem, em momentos de crise, o acentuar de ciclos viciosos de pobreza, a contracção da procura, a generalização de fenómenos de insolvência ou o alastrar do pânico. Impedem que sejam sobretudo os pobres a pagar a crise. E depois há também a necessidade de criar mecanismos de regulação que atenuem os ciclos de crédito e a especulação. É que infantil aqui só mesmo alguns dos padrões de comportamento dos próprios agentes da finança de mercado.

Nota: a ilustração desta posta é da autoria do Pedro Vieira, o magnífico irmaolucia.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O solo onde a democracia floresce

Um artigo de Vital Moreira. A ler. A «democracia liberal pode coexistir com formas assaz limitadas de mercado. Nos anos 60 do século passado, a generalidade das democracias europeias eram caracterizadas por um forte intervencionismo do Estado na economia, por monopólios públicos em vários sectores económicos, pelo planeamento público da economia, pela fixação de preços de muitos bens e serviços. Mais do que economia de mercado em sentido estrito, muitos falavam em "economia mista", não faltando mesmo elaboradas teorias sobre a aproximação entre o capitalismo e o socialismo (tendo em vista algumas experiências de "socialismo de mercado")».

Diria mesmo que a experiência histórica nos mostra que formas robustas de democracia só podem florescer no solo alimentado por este tipo de estruturas e pelas ideias que lhes estão subjacentes. Por outro lado, é muito curto dizer que uma «economia de mercado bem sucedida tornou-se uma condição de êxito da transição democrática e da consolidação da democracia liberal», mas que «só por si o mercado não gera a democracia». O mercado tem as costas demasiado largas, é muito plástico e pode coexistir com os mais variados arranjos nos regimes de propriedade (entre outros elementos) e com vários tipos de sistemas socioeconómicos (é anterior ao capitalismo e nenhum sistema alternativo pode provavelmente prescindir dele para falar curto e grosso e para retomar coisas já escritas pelo próprio Vital Moreira).

A questão crucial é a de saber se não estamos num processo que, a continuar, tenderá a secar o solo onde a democracia pode florescer. O aumento do poder das forças do mercado e a consolidação de regimes de propriedade que dão demasiado poder aos accionistas seriam alguns dos mecanismos dessa secagem. Por exemplo, o economista Jean-Paul Fitoussi, insuspeito de simpatias socialistas, fala de uma «regressão "pacífica" das democracias» que se deve fundamentalmente à «expansão da esfera do mercado quer no interior de cada país quer à escala do Planeta» (A Democracia e o Mercado). Estaríamos assim numa conjuntura histórica marcada por uma situação de desequilíbrio entre um mercado em acelerada expansão (politicamente suportada como sempre aconteceu) e uma esfera da política democrática em perda de fôlego. Este é quanto a mim o problema central.

O capitalismo é glorioso


Nos Estados Unidos, o maior fundo de pensões de funcionários públicos vai investir 1.5 mil milhões de dólares em projectos de investimentos em infra-estruturas, antes responsabilidade exclusiva do poder político (estradas, centrais energéticas, etc). Tais investimentos serão, assim, claras privatizações.
Eu percebo que seja bom negócio, mas não existe aqui um conflito de interesses?

Via Michael Perelman.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Ainda os museus

Foi ontem anunciada uma mostra de arte do Hermitage em Lisboa. Precursora do futuro pólo deste museu em Portugal, esta exposição irá custar 1,5 milhões de Euros. Pareceu-me, por isso, pertinente publicar um pequeno texto (com alguns cortes) que escrevi para o Le Monde Diplomatique - edição portuguesa (nº4, II série), aquando do anúncio do protocolo com o Hermitage. Aqui vai.

Museus portugueses: um património rico mas subfinanciado


Hoje é reconhecido não só o papel da Cultura como criadora de riqueza - através do turismo e da promoção de industrias criativas -, mas também como promotora da educação e da inclusão social e territorial. [...]

Mas a criação de sucursais do prestigiado Guggenheim, a anunciada «deslocalização» do Louvre e do Centro Georges Pompidou ou a saga do Hermitage em busca de meios de sobrevivência, seja através do «aluguer» de obras da colecção, seja da criação de pólos ou de sucursais idênticas ás do primeiro, não pode deixar de agitar os meios culturais e de permitir uma série de interrogações.[...]

Teoricamente, trata-se de uma troca justa: os museus vendem a sua «marca», simplesmente, e/ou cedem obras em situação de reserva ou de «segunda linha», obtendo assim receitas que na maioria das vezes são essenciais à sua sobrevivência. Bom exemplo desta estratégia é o já referido Museu Hermitage de St. Petersburgo. Um dos maiores e melhores museus do mundo, vítima do sub-financiamento da era pós-soviética, procura outras fontes de receita que não o Estado, contornando também o facto de se encontrar numa região ainda razoavelmente marginal aos circuitos turísticos de massas.

Surpreendentemente, em Março de 2006, anunciou-se a criação em Portugal de um pólo do Hermitage, previsto para 2010, com o pomposo nome de «Centro Hermitage da Península Ibérica», antecedido da realização de exposições temporárias com obras da colecção daquele museu. Ainda sem localização definida ou orçamento anunciado, este centro foi apresentado como uma vitória da diplomacia portuguesa, que viria segundo as palavras da actual ministra da Cultura «(...) colmatar o facto de a colecção museológica portuguesa ser excessivamente nacional e 'pobre' do ponto de vista internacional» (DN, 21/02/05). [...]

Portugal contribuirá para resolver os problemas de sobrevivência do Hermitage, ao mesmo tempo que cede temporariamente património e paga elevados custos para surgir associado a outra grande «marca» de museus internacionais, desta vez em Washington no Smithsonian. Neste contexto, e com os anunciados cortes orçamentais para os museus portugueses (mais de 23% no orçamento global do Instituto Português de Museus) cabe perguntar: onde nos leva a irresponsabilidade da política governamental para a área dos museus? [...]

Sucede que, em nome do combate ao défice orçamental, os museus portugueses vivem hoje os mais difíceis dias das últimas décadas. À endémica falta de vigilantes que não raras vezes tem levado alguns ao encerramento parcial ou mesmo total, acresce a degradação acelerada dos edifícios, das museografias e das colecções (quem e com que meios restaura actualmente o património do Estado?).[...] Justamente quando se verificam esforços reais para incluir Lisboa nos circuitos das itinerâncias internacionais, como sucedeu com a apresentação da colecção Rau no MNAA, em 2006, anuncia-se que o corte orçamental obrigará a realizar não mais do que uma exposição por museu. Como afirmou recentemente Alexandre Pomar «Por cá, alguém se terá equivocado, e a aventura é chocante para museus mais pobres do que os da Rússia» (Expresso/ Actual, 20/17/07").

Católicos com as prioridades certas

A pobreza será, talvez, o principal problema do nosso país. Resultado de uma distribuição desigual, mais de um quinto da população portuguesa vive abaixo do limiar estatístico de pobreza (menos de 60% do rendimento mediano). Portugal é o segundo país europeu (dos 15) neste ranking de vergonha, atrás da Irlanda. Claro está, que, se tomarmos o poder de compra em cada país (PPP), Portugal aparece destacado à frente. Os dados são do Eurostat.

É, por isso, escandalosa a ausência da questão no espaço público nacional. A pobreza é invisível. Está confinada às quatro paredes de quem a sofre. Num esforço para tentar recolocar o combate à pobreza no centro do debate político, a Comissão Nacional Justiça e Paz (organismo laical da conferência episcopal portuguesa) está a promover uma petição à Assembleia da República. Uma iniciativa muito oportuna que deve contar com a assinatura de todos, católicos ou não.

O mito da transparência

Sempre que há uma crise financeira (e no actual regime financeiro liberal as crises não cessam de se repetir) a retórica é sempre a mesma: é preciso aumentar a transparência e a circulação de informação para que os agentes não voltem a cometer os mesmos erros e exageros. É evidente que isto é quase só palavreado oco de banqueiro central ou de economista liberal que quer impedir que se discuta o essencial: a criação de mecanismos de controlo e de regulamentação que bloqueiem as dinâmicas colectivas irracionais a que os mercados financeiros liberalizados são tão propensos.

Dado que os mercados financeiros se baseiam em apostas em relação ao futuro e dado que o futuro é incerto, então nada mais previsível do que a emergência de convenções e de fenómenos de mimetismo. Em geral, a pressão social e a concorrência entre os agentes financeiros são factores que explicam a consolidação e hegemonia de interpretações da realidade que estão na base dos frequentes episódios de euforia financeira. Esta situação tem dois efeitos perniciosos. Por um lado, dá origem a um enfraquecimento do espírito crítico durante o boom, a uma tendência para não se pôr em causa a sabedoria convencional (Keynes dizia que nos mercados financeiros, para a maioria dos agentes, mais vale ser «mal sucedido com as convenções do que ser bem sucedido contra elas»). Por outro lado, desencadeia o que se designa por «miopia face ao desastre». Quer isto dizer que os agentes, a partir do momento em que partilham a crença na sabedoria do mercado, tendem a subestimar de forma sistemática os sinais e as anomalias (a tal informação) que se vão acumulando e que apontam para a insustentabilidade da situação. Até ser demasiado tarde. Depois vem o pânico...

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Democratizar o ensino superior?

«Um estudante que tenha média de 12 valores e opte por pedir ao banco 25 mil euros para financiar um percurso académico de cinco anos, e decida amortizar o empréstimo no prazo máximo de 10 anos, terá que preparar-se para desembolsar quase metade do valor contratualizado só em juros».
As contas estão feitas no Jornal de Negócios. A democratização do ensino superior não passará por aqui.

Simplesmente não sabemos (II)

«Manter as taxas pode levar a falências em catadupa e causar uma crise financeira; descê-las deve aquecer a economia e gerar inflação».

Ricardo Reis no Diário Económico. Esta alternativa é enganadora. A inflação parece ser neste momento o menor problema da economia norte-americana. De qualquer forma, dados os ciclos viciosos que se podem estar a gerar (com o aumento do número de agentes em situação de insolvência), não é certo que o corte das taxas de juro possa resolver o problema.

Parece que estamos condenados a falar da crise (que também é uma crise num modelo de crescimento neoliberal, assente na especulação, no endividamento e na estagnação salarial) para além do próximo mês.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Política de alianças

André Freire publicou hoje um excelente artigo de análise do acordo PS-BE para a Câmara de Lisboa (via Arrastão). Será que este acordo pode contribuir para romper «o enviesamento para a direita do sistema partidário português?» Será que a captura da direcção do PS pelas correntes neoliberais é apenas circunstancial e pode ser reversível com outras figuras e sobretudo com outra correlação das forças sociais e políticas? Não deveria o BE apostar na acumulação de forças em oposição às orientações neoliberais do governo Sócrates, mas sem fechar o leque das opções, pelo menos para já, relativamente a 2009? E quais poderiam ser os termos de convergências políticas mais ambiciosas à esquerda? E por que é que quase ninguém fala sobre esta questão (a da alternativa)? Será que é possível em Portugal um programa reformista forte de esquerda? Com os actuais constrangimentos internacionais? E qual o balanço das participações de outros partidos da «esquerda socialista» em governos?

Uma coisa é certa: acho que são questões e impulsos políticos deste tipo que assustam a direita dos interesses. Por isso vale a pena prosseguir com eles.

Desemprego e regulação do mercado de trabalho

São recorrentes as comparações entre os países mais desenvolvidos feitas por organizações como a OCDE ou o FMI, onde é mostrada a relação entre regulação do mercado de trabalho e a taxa de desemprego. Os países onde os trabalhadores beneficiam de maior segurança são os países com maior desemprego. Discussões, como a flexisegurança ou o desemprego jovem, partem sempre deste ponto de partida e são, por isso, claramente enviesadas. Não interessa se, por exemplo, segundo a OCDE, Portugal (a par do México) seja um dos países com maior protecção do trabalho (?!).

Neste artigo, um conjunto de economistas (com Andrew Glyn entre eles) desmonta estas comparações grosseiras. A análise empírica destes autores prova uma não-relação entre as duas variáveis. Pelo contrário, o estudo mostra como diferentes variedades de organização do trabalho podem resultar numa baixa taxa de desemprego. O mundo é complexo e o capitalismo variado.

No entanto, como explicar a aparente unanimidade da teoria económica? Os autores mostram: «(...) preocupação que a investigação empírica na explicação da alta taxa de desemprego no mundo desenvolvido tenha sido, a um nível perturbador, orientada por esforços para verificar ou confirmar a teoria ortodoxa, em vez de a testar criticamente». Pois.

Simplesmente não sabemos (I)

Vitor Constâncio, governador do Banco de Portugal, em entrevista ao Diário Económico: «Mas admite que possam haver implicações desta crise financeira para a economia real?
Se a duração for curta, não muitas. Se a crise nos mercados se resolver ao fim de pouco tempo, então retoma-se o cenário central [para o crescimento económico] ( . . .) Ainda não estamos na situação em que temos a certeza que haverá consequências negativas para a economia. É necessária mais informação (. . .) Se o problema na economia mundial fosse apenas o ‘subprime’, seria absorvível sem grandes consequências. O problema é que tudo isto foi titularizado, objecto de derivados e vendido em todo mundo e, logo, ninguém sabe quem é que vai ter as perdas e em que dimensão. É esta falta de informação e de transparência que está a criar o problema de falta de liquidez de mercado. Há uma quebra de confiança».

A incerteza irredutível face ao futuro deve ser sempre o ponto de partida para explicar os comportamentos dos agentes económicos, as limitações e a precariedade do seu conhecimento, a sua maior ou menor preferência pela liquidez, a emergência de convenções e os comportamentos miméticos, a alternância de fases de euforia e de pânico nos mercados financeiros, o papel da confiança ou as consequências, muitas vezes negativas, da descoordenação e descentralização das decisões mercantis. Em momentos de crise isto torna-se particularmente saliente. Para grande embaraço dos economistas ortodoxos.

domingo, 9 de setembro de 2007

Eutanásia do Rentista

Martim Avilez do Diário Económico acha que «juros baixos tornam o desafio mais simples (...) juros altos empurram o Governo para decisões difíceis e puxam pela criatividade dos empresários - que precisam das exportações para sobreviver».

Discordo totalmente. Juros altos, no actual contexto, apenas promovem os traços mais parasitários do capitalismo (para quê investir se posso ter uma taxa de remuneração alta esperando que o meu dinheiro frutifique com a simples passagem do tempo?). Uma política de juros altos dificulta o investimento capaz de modernizar a nossa estrutura produtiva, reduz a procura agregada, o rendimento e pode, em última análise, reduzir a poupança.

É uma orientação que vai contra aquilo que deve ser feito: estimular a economia, ter uma atitude mais tolerante em relação à inflação e assim enviar o sinal certo aos detentores de capital: vão trabalhar malandros!

Eutanásia do rentista chamou-lhe acertadamente Keynes. É evidente que para evitar o florescimento da especulação é preciso reenquadrar a actividade dos mercados financeiros. Keynes também propôs isso. Taxas e mecanismos de controlo e regulação. Já agora, é vergonhoso que não exista nenhuma edição recente da Teoria Geral em Portugal.

A política do bem comum

«O Vereador independente eleito nas listas do Bloco de Esquerda, anunciou que a autarquia suspendeu a prática de tiro em Monsanto. O Clube Português de Tiro a Chumbo, está em Monsanto desde 1963 e ocupa uma área de 134 mil metros quadrados. Sempre utilizou "o pulmão de Lisboa" como uma espécie de "coutada privada" de prática de tiro. Foram décadas de acumulação de chumbo nos solos, com risco de contaminação dos lençóis freáticos, poluição sonora e riscos para a integridade física dos visitantes do Parque. Vira-se agora mais uma página na História de Monsanto». Bernardino Aranda no blogue Gente de Lisboa.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Manu Chao



Manu Chao tem novo álbum. Promete. O vídeo para o primeiro single é realizado por Kusturica.

Aqui há uns anos, quando a Câmara de Lisboa era governada pela coligação de esquerda PS-PCP, o músico deu um memorável concerto gratuito de três horas, em Belém, para milhares de pessoas. Novo álbum, novo concerto?

Porque devemos ter um sector empresarial público (I)


Na passada segunda-feira, no seu monólogo semanal, António Vitorino defendia a privatização dos monopólios naturais, como a rede eléctrica nacional ou o abastecimento de água. Já aqui tínhamos sido muito críticos desta fúria privatizadora do governo, destituída de qualquer racionalidade económica.

Oportunamente, (o recorrente) Ha-Joon Chang publicou um relatório, encomendado pelo departamento dos assuntos económicos e sociais das Nações Unidas, sobre a reforma das empresas públicas. Escrito sem qualquer preconceito, o autor analisa teoricamente as vantagens e desvantagens destas empresas, estuda diferentes casos de (in)sucesso à volta do mundo e apresenta um modelo de reforma. A discussão não é simples e, sobretudo, não é fácil. As empresas públicas são recorrentemente associadas a ineficiência e incompetência. Por isso, voltarei a este relatório. Para já, transcrevo (com uns acrescentos meus) as quatro justificações para a existência destas empresas.

1. Monopólio Natural: em indústrias onde as condições tecnológicas impõem um só fornecedor monopolista, as empresas privadas poderão apropriar-se de rendas e produzir abaixo do nível social óptimo. Ex. Abastecimento de água ou electricidade (como a recentemente privatizada REN).

2. Externalidades: o sector privado pode ter incentivos reduzidos para investir em sectores que produzem bens essenciais para outras indústrias nacionais. Ex. indústria química.

3. Falha dos mercados de capitais: o sector privado pode recusar-se a investir em sectores considerados de alto risco ou com horizontes temporais muito alargados de retorno do investimento. Ex. indústria aeronáutica.

4. Serviços básicos: empresas do sector privado, guiadas pelo lucro, podem recusar (pelo preço ou pelo racionamento) a provisão de bens considerados essenciais aos mais pobres ou àqueles que vivem em zonas remotas (exemplo: transportes colectivos, serviços postais).

Obrigado Gulbenkian

Acaba de sair, editado pela Gulbenkian, o Sistema Nacional de Economia Política da autoria de Fredrich List (1789-1846), considerado um dos fundadores da Escola Histórica Alemã, uma das mais interessantes correntes do pensamento económico.
Por falta de tempo, deixo-vos, por agora, uma passagem: «É uma regra de bom senso que, chegando ao cimo, se retira a escada pela qual se subiu para não deixar aos outros o meio de treparem a seguir a nós (...) Uma nação [Inglaterra] que, através de medidas proteccionistas e limitações à navegação, desenvolveu a sua manufactura e navegação a tal ponto que nenhuma outra nação consegue entrar em livre concorrência com ela, não pode fazer nada mais inteligente do que arremessar a escada da sua altura, pregar às outras nações as vantagens da liberdade do comércio, reconhecer arrependida, que estivera até ao presente no caminho do erro e que só agora chegara ao conhecimento da verdade».

Os países em desenvolvimento têm em List um dos seus grandes pontos de apoio para uma política de «educação industrial» com recurso ao proteccionismo selectivo e temporário. Na verdade, a riqueza das nações nunca deixou de passar por aqui.

O ranking da direita intransigente (II)

Helena Garrido escalpeliza o «ranking da liberdade económica», mostrando muito bem algumas das suas fragilidades. Este trabalho de escrutínio é um «exercício que raramente se faz jornalisticamente». Pois é. Por isso é tão fácil usar e abusar de rankings que apenas reflectem os preconceitos dos seus autores.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O renascer da política

Alertado por este post do Blasfémias, fui tresler o já famoso relatório sobre «A França e a Mundialização» encomendado por Sarkozy a Hubert Vedrine, antigo ministro dos negócios estrangeiros françês.

Existe, obviamente, muito para discordar neste relatório. Contudo, é de louvar a vontade francesa de fazer renascer os instrumentos de política económica, seja através do proteccionismo selectivo, seja através da regulação dos mercados financeiros. A economia é demasiado importante para ser deixada ao mercado.

Não resisto a fazer duas breves citações do relatório que facilmente podiam ter sido retiradas deste blogue:

«Os liberais e economistas adeptos da abertura sistemática recusam todas as medidas de protecção. Por outro lado, alguns invocam a protecção como panaceia. São dois erros dogmáticos. Algumas protecções justificam-se, outras são ineficazes».

«A crise financeira do Verão de 2007 nos Estados unidos colocou em evidência o carácter ilusório da auto vigilância dos investidores financeiros e o encadeamento onde os estabelecimentos de crédito escapam às leis bancárias (...)».

(a fraca tradução é da minha total responsabilidade)

Para quem quiser perceber a crise financeira


Em entrevista ao Diário Económico de há uma semana, Ricardo Reis, professor em Princeton, afirmava categoricamente: «Num mês não se falará nesta crise do crédito». Parece que se precipitou. As consequências da turbulência financeira do passado mês são ainda desconhecidas, mas as preocupações sobre os seus possíveis efeitos recessivos são crescentes.

Entretanto, no Le Monde Diplomatique deste mês, Frédéric Lordon escreve o, até agora, melhor artigo sobre a recente crise financeira. O autor consegue, de forma clara e articulada, desmontar os mecanismos por detrás da crise e sistematizar quais os riscos que assolam a economia mundial. Notável.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

O ranking da direita intransigente (I)

A direita intransigente ficou muito excitada com a queda de Portugal no «ranking da liberdade económica» (passou, em 2005, da décima nona para a trigésima oitava posição). O que é que o governo português andou a fazer (bem) para merecer esta distinção? Esperamos respostas. Entretanto, este exercício tem apenas a vantagem de nos dar a conhecer como os neoliberais trabalham nos seus bem financiados ‘think-tanks’ (existe alguma tradução aceitável?). Bem, talvez em Portugal os financiamentos não sejam tão generosos. Afinal de contas a nossa burguesia é a tristeza que se sabe. De resto, este estudo apenas reflecte os preconceitos ideológicos desta corrente e não deve ser levado a sério. Parece que até a Causa Liberal faz parte da rede que o suporta.

Um país fracturado

«As políticas de combate ao abandono escolar não estão a funcionar. Em 2006, Portugal não só não conseguiu reduzir essa estatística negra do sistema de ensino, como assistiu mesmo ao seu agravamento: a percentagem de jovens que saíram precocemente da escola e cujo nível de estudos não ultrapassa o 9º ano de escolaridade subiu de 38,6%, em 2005, para 39,2%».

Mais um dado que reforça a ideia de que existe uma fractura social profunda. O problema é antigo e reflecte um país desigual e com taxas de pobreza elevadas. A crise económica prolongada apenas reforça esta situação. Muitos são assim expostos a «escolhas trágicas» evitáveis. Por isso é urgente, entre outras medidas, o reforço da acção social escolar, não só no secundário, tal como foi prometido pelo governo, mas em todos os níveis de ensino.

Ideias Justas (II)

«A CGTP reivindicou hoje um aumento de 5,8 por cento para o Salário Mínimo Nacional, para 426,5 euros, em Janeiro de 2008, com vista a que atinja os 500 euros em 2011». Este compromisso foi assumido pelo governo. Esperemos que seja para cumprir. 500 euros até 2011. Ao contrário do que dizem os liberais, o crescimento do salário mínimo pode, por via da procura, contribuir para a dinamização da economia e para o crescimento do emprego. E depois, numa das mais desiguais sociedades, é da mais elementar justiça social. A pobreza entre os trabalhadores assalariados tem de ser combatida. Não conheço melhor forma.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Ideias justas (I)

Em Portugal «os mais ricos têm 8,2 vezes mais que os mais pobres, o dobro da média nos 15. Por isso, além de outras políticas a desenvolver, parece admissível pensar nalgumas medidas de política fiscal, a saber: 1) introduzir um escalão entre 250 mil e 375 mil euros, a que será aplicada uma taxa de IRS de 45%; 2) acima desse valor a taxa de IRS será de 50%; 3) reintroduzir o imposto de sucessões para rendimentos acima dos 500 mil. São ideias que não tornam o mundo perfeito. Mas ajudam a combater as actuais e enormes imperfeições».

Nicolau Santos no Expresso. É sempre bom saber que ainda há jornalistas económicos com colunas de opinião que não se conformam com um dos principais problemas da nossa economia.

Sobre a propriedade

«A propriedade privada é um alvo difícil porque as concepções sociais a seu respeito são muito contraditórias e evoluem historicamente. Os primeiros impostos sobre o capital industrial não foram considerados pelos empresários como uma violação do direito de propriedade? Há violações da propriedade privada que não causam qualquer comoção social apesar de serem graves, por exemplo, os salários em atraso».

Vale mesmo a pena ler este artigo de Boaventura de Sousa Santos. A acção insensata do movimento verde-eufémia deu origem a uma desproporcionada discussão onde emergiram um conjunto de concepções completamente descabidas sobre a propriedade privada.

Desde tontices metafísicas, em que a propriedade privada aparece como um prolongamento natural do homem, até afirmações que a transformam numa relação incontestável entre um sujeito e um objecto, tudo foi dito. E, no entanto, como este caso também vem demonstrar, a propriedade não passa de um «feixe de direitos e de obrigações» que regula o controlo e usufruto dos vários bens (por isso se fala de direitos de propriedade). Se falamos de direitos então a propriedade não pode deixar de ser vista como uma relação social. Trata-se de saber que tem liberdade para fazer o quê com o quê e quem é que está exposto a essa liberdade. Isto é definido pelo Estado. As formas que a propriedade assume - pública, privada ou comunitária - são o resultado de decisões políticas. E dentro de cada uma das formas assumidas muitos podem ser os recortes dos direitos e obrigações. A propriedade é moldável. Muitos liberais gostam de pensar ilusoriamente que o Estado existe para defender a propriedade privada. Como se esta lhe preexistisse num qualquer estado da natureza fantasioso. Não é assim. As formas que a propriedade privada assume decretam-se, contestam-se e mudam-se.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O regresso de Keynes

«Com os efeitos da crise financeira do ‘subprime’ (crédito hipotecário de alto risco) por conhecer, os empresários portugueses preferem, neste momento, não pôr as mãos no fogo pela retoma da economia portuguesa e deverão retardar os projectos de investimento previstos». Como Keynes não se cansou de sublinhar, em capitalismo são as frágeis expectativas dos empresários em relação a um futuro que é radicalmente incerto (o passado é um guia falível) que determinam os padrões de investimento. Incerteza que é aumentada pela natureza descentralizada e descoordenada das decisões privadas. Em situações de quebra de confiança em relação à evolução da procura futura cabe ao investimento público ajudar a domar as «forças obscuras» do tempo e a quebrar os ciclos viciosos da crise da procura. Esta mensagem de Keynes tem de ser reabilitada na Europa. Na prática, e independentemente dos discursos para fora, ela nunca foi esquecida na condução da política económica nos EUA.

Os liberais já estão à esquerda do PS?

Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (o grande centro irradiador do liberalismo económico em Portugal) e ex-ministro das finanças do PS (caiu por ter discordado abertamente de alguns grandes projectos de investimento público), Campos e Cunha não poderia deixar de ser um liberal. E, no entanto, a sua fé nas virtudes do mercado concorrencial não se estende a sectores que são monopólios naturais, como é o caso da Rede Eléctrica Nacional (REN). Sectores que pelas suas características tornam impossível ou altamente ineficiente a existência de mais do que uma empresa a operar.

Em artigo no Público da passada sexta-feira, Campos e Cunha estranha o consenso neoliberal que bloqueia a discussão sobre os enormes riscos de passar um sector com estas características para mãos privadas. As possíveis quebras no investimento na manutenção e modernização da rede (invoca o desastroso exemplo norte-americano) ou a possibilidade de uma «regulação laxista» são alguns dos riscos por si identificados. Isto num sector onde as falhas são pagas por todos.

De facto, a miopia do equilíbrio orçamental a todo o custo, as pressões dos grandes grupos económicos rentistas (interessados em capturar um sector monopolista onde os lucros estão garantidos) e o desaparecimento de qualquer rasto de pensamento socialista na direcção do PS estão a permitir a apropriação privada sem fim de sectores estratégicos de evidente interesse público. Aqui a regulação não substitui a propriedade pública. A monitorização das operações privadas é difícil e custosa e a possibilidade de captura do regulador pela empresa que controla a actividade é real. No futuro, esta desastrosa e irresponsável decisão de privatização (inclusive do ponto de vista das finanças públicas) terá de ser revertida. Até lá todos pagaremos os custos.

domingo, 2 de setembro de 2007

Ainda pior que o desemprego temporário, a precaridade permanente

Tal como nos anos anteriores, dezenas de milhar de candidatos (45 mil) ficaram por colocar nos concursos para professores dos ensinos básico e secundário. Tal como nos anos anteriores os sindicatos fazem alarde dos números do desemprego (aqui). Tal como nos anos anteriores, o Ministério da Educação (ME) minimiza o tema, afirma que tudo está a correr pelo melhor e, lamentando o desemprego, apressa-se a afirmar que o Estado não pode dar emprego a todos os que se candidatam a um lugar no ensino (aqui).

É um facto que muitos dos candidatos à docência são recém-licenciados, os quais nunca ensinaram. E é um facto que o Estado não pode garantir o emprego a qualquer indivíduo que se apresente a concurso. No entanto, o ME é desonesto quando tenta passar a ideia de que é esta a situação da generalidade dos candidatos que ficaram por colocar. A Fenprof calcula em cerca de 13 mil os professores que já ensinaram e que ficaram este ano sem emprego. Não sei se os números são correctos, mas o ME não se esforça por corrigi-los.

O que nem o ME nem os sindicatos afirmam é que a generalidade dos professores contratados que estiveram a ensinar no ano passado - incluindo não apenas os que ficaram sem emprego, mas também os 3.252 professores agora colocados - passou o ano lectivo de 2006-2007 sem saber se estaria na mesma escola no ano seguinte (sem saber, portanto, quais os investimentos de médio-prazo que valeria a pena fazer nas suas actividades lectivas e extra-lectivas).

O que continuo, inexplicavelmente, a não ver afirmado pelos sindicatos nem reconhecido pelo ME, é que existem no país algumas dezenas de milhar de professores que são manifestamente necessários ao ensino, mas que todos os anos são obrigados a passar o verão sem saber se vão estar colocados numa escola e, caso o sejam, em que escola vão trabalhar, com que alunos, em nome de que projecto educativo - com as consequências que isto tem para as suas vidas pessoais e para a qualidade do ensino.

Os professores contratados são úteis ao ME: não progridem na carreira (por definição, não têm carreira para progredir) - o que permite poupar no orçamento -, são facilmente descartáveis em caso de necessidade, podem ser alocados a diferentes escolas sem qualquer possibilidade de resistência. Com a escassa abertura dos lugares no quadro docente, uma proporção crescente de professores passa nisto largos anos da sua vida - alguns ultrapassam os 20 anos de itenerância e de incerteza. Isto independentemente das suas habilitações, da sua competência, da sua entrega ao ensino. E independentemente da óbvia necessidade que o sistema de ensino tem dos seus serviços.

É difícil compreender como é possível uma situação tão absurda e tão gritante de precariedade continuar a merecer o silêncio de sindicatos (que tipicamente concentram as suas preocupações nos problemas dos professores de carreira, como é o caso do concurso para professores titulares) e mesmo de partidos de oposição.