sábado, 13 de novembro de 2021

Desplante

O ex-ministro da Economia do Governo PSD/CDS de Passos Coelho está assustado com o que se passa em Portugal. 

Álvaro Santos Pereira colocou ontem um post no Facebook em que se mostra escandalizado com a penetração dos contratos a prazo entre os jovens. Citando um estudo da autoria do seu ex-secretário de Estado do Emprego Pedro Martins, encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian, conclui-se que três em cada cinco trabalhadores com idades ente 20 e 30 anos têm um contrato a prazo. 

Mais: queixa-se de que, apesar das suas mais elevadas qualificações, os jovens têm contratos mais precários e pior remunerados! 

Conclui ele: "É caso para dizer: este País não é para jovens...". 

As afirmações de Álvaro Santos Pereira caem que nem ginjas na tónica presentemente passada pela direita de que tudo o que se passa de mal hoje em Portugal se deve ao ... socialismo. Perigosa cegueira ideológica, já que Álvaro Santos Pereira e Pedro Martins foram precisamente os responsáveis por uma das mais profundas reformas laborais introduzidas em Portugal, que contribuiu para um maior desequilíbrio da relação laboral a favor do patronato, de que são vítimas sobretudo os trabalhadores jovens. 

Foi em Agosto de 2012. Aliás, conviria começar mais cedo. Até essa data, já se tinha verificado um longo percurso de abastardamento da legislação laboral que culminou com a criação do Código do Trabalho em 2003 - era Durão Barroso primeiro-ministro e Bagão Félix ministro do Trabalho - e da sua revisão em 2008/09 - era José Sócrates primeiro-ministro e José António Vieira da Silva ministro do Trabalho. Quando o Governo Passos Coelho/Paulo Portas tomou posse em Junho de 2011, já se sentiam os seus efeitos. Essas mexidas na lei tinham furado os limites mínimos impostos pela lei e previsto a caducidade das convenções colectivas, colocando os sindicatos a negociar de joelhos, contribuindo para a isolamento de cada trabalhador e, assim, para a sua fragilização laboral e empobrecimento. 

Mas seria no mandato de Álvaro Santos Pereira que iria ser dada mais uma forte machada. Baseando-se num acordo na concertação social fechado em Março de 2011 sob forte chantagem da Comissão Europeia, ainda pelo Governo Sócrates - a Comissão Permanente da Concertação Social serve para estas coisas, mesmo quando o patronato queria antes redução nos custos de contexto e não nos salários! -, foi aprovado um pacote laboral que redundou numa transferência de rendimento dos trabalhadores para os donos das empresas de mais de 3 mil mihões de euros anuais

Desprotegeu-se o emprego ao facilitar-se o desemprego (por inadaptação), ao reduzir-as as obrigações do patronato por despedimento com extinção do posto de trabalho e ao embatatecer-se o despedimento: cortou-se as compensações por despedimento primeiro de 30 para 20 dias por ano de antiguidade (depois, para 12 dias) e limitou-se o seu montante até 12 salários mínimos. Embarateceu-se o trabalho ao cortar a metade o preço das horas extraordinárias em dias úteis, tornando quase gratuito o trabalho aos domingos e dias feriados, e acabando com o descanso suplementar por trabalho suplementar, passando a lei a um constituir um verdadeiro incentivo ao uso de trabalho suplementar. Além disso, criou-se o banco de horas que resultou num torpedeamento aos horários de trabalho limitados por lei, aumentando em duas horas de trabalho por dia, não pagas. Transformou-se 4 feriados em dias de trabalho. Retirou-se aos trabalhadores os 3 dias de férias dados por assiduidade. Penalizou-se faltas coladas aos feriados ou fim de semana cortando-se no salário não só no dia em falta como nos dias de descanso. Permitiu-se às empresas decidir transformar pontes em período dde férias, descontando esses dias nas férias dos trabalhadores. Faciolitou-se o lay off.

E para quê?

As medidas adoptadas em Agosto de 2012 visavam reduzir os custos salariais das empresas como forma de dar uma maior margem às empresas, para se tornarem mais produtivas e competitivas. Era uma política de promoção de baixos salários que, aliás, ainda vigora. E que nos tem conduzido à consolidação de uma estrutura da economia assente em baixos salários que a suga para a estagnação em espiral.

Mas na altura a equipa de Santos Pereira - onde lá estava Pedro Martins - estimava um impacto positivo com um crescimento do emprego de "2,5% no curto prazo e 10,5% no longo prazo". Vejam-se os dados facultados então pelo Governo, publicado no jornal Público a 1/8/2012:

 

 

Mas não foi isso que se passou.  

O conjunto das medidas aprovadas pelo Governo a que se juntaram estas iriam, na realidade, provocar uma recessão de tal ordem que o desemprego oficial subiu a 17% e a "subutilização do  trabalho" - vulgo desemprego em sentido lato - chegou a 25% da população activa! Mas na verdade esse efeito na subida do desemprego fazia parte do plano, como forma de quebrar a resistência dos trabalhadores à descida dos salários nominais. O voluntarismo dos fanáticos aprendizes de feiticeiro levou todavia à explosão descontrolada do desemprego.

Veja-se o progressivo embaraço na evolução das citações de Álvaro Santos Pereira recolhidas pela comunicação social:


 

Em Março de 2012, o ministro defendia que iria tornar a economia mais produtiva. As medidas da troika eram muito bem vistas:

“Num momento em que todos somos postos à prova”, é o momento de agir para tornar a economia mais competitiva. E agir, considerou, “não é sinónimo de anúncios espampanantes e ostensivas actuações mediáticas”. Até Dezembro, “uma em cada três [medidas da troika] foram postas em prática pelas nossas equipas”.

 Em Maio de 2012,  Álvaro Santos Pereira sentiu-se um pouco incomodado com as previsões da OCDE antevendo uma subida do desemprego. Mas as reformas estruturais em curso iriam ser essenciais para o crescimento económico:

O ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, admitiu hoje que as previsões sobre o desemprego hoje divulgadas pela OCDE “não agradam a ninguém”, mas garantiu que as reformas estruturais vão permitir retomar o crescimento. Segundo previsões hoje divulgadas pelo Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a taxa de desemprego em Portugal vai continuar a bater recordes e atingirá os 16,2% em 2013. O ministro salientou, por outro lado, que as reformas estruturais que estão em curso “são o maior garante de que o crescimento económico vai voltar o mais rapidamente possível”. Para Álvaro Santos Pereira, “o futuro decide-se no equilíbrio entre austeridade e crescimento”. E os sacrifícios vão servir para garantir a independência económica e pôr as contas do país em ordem. “Os esforços só farão sentido se forem acompanhados de uma política de crescimento económico”, sublinhou o ministro, acrescentando que os portugueses enfrentam o desafio de recuperar a sua credibilidade.

No dia 1/8/2012, no dia da entrada em vigor das alterações ao Código do Trabalho, escrevia-se no jornal Público

Do lado do Governo, as expectativas quanto aos efeitos do Código do Trabalho no mercado laboral são grandes. Em entrevista recente ao PÚBLICO, o secretário de Estado do Emprego, Pedro Martins [ou seja, o mesmo!], destacava que a lei dará mais confiança às empresas na hora de contratar. Essa confiança advém sobretudo dos impactos das alterações legislativas nos custos suportados pelas empresas. Gonçalves da Silva" [que, em 2002/2003, assessorou Bagão Félix quando este avançou com o primeiro Código do Trabalho] "considera que a diminuição do custo da mão-de-obra é “um objectivo que perpassa todo o diploma”. Para es- se objectivo contribuem o trabalho suplementar mais barato, os bancos de horas individuais, os sete dias a mais de trabalho por ano à custa da redução das férias e dos feriados ou o corte das indemnizações por despedimento.

A Direcção Editorial do jornal, sempre militante, alinhava na medida. E pedia mais ao Governo de Passos Coelho. alertando:

É evidente que as mudanças na legislação laboral são indispensáveis para tornar as empresas portuguesas mais fortes para conseguirem sobreviver nos mercados globais. Mas as coisas não são assim tão simples. Uma primeira questão consiste em saber se as reformas introduzidas pelo Código do Trabalho são verdadeiramente as bases de um contrato para o crescimento ou se a redução dos custos unitários e a flexibilização do mercado do trabalho são a única estratégia que existe. É que, por si só e desenquadradas de uma política de crescimento, estas mudanças nada resolverão. (...) Ora, num contexto em que apenas se pensa em poupar, não há investimento na inovação, na ciência, na tecnologia, por outras palavras, nos factores diferenciadores por onde passa o desenvolvimento da economia. Ao mesmo tempo, o Governo continua a acreditar que a perda de peso da contratação colectiva e dos sindicatos é um ganho para a competitividade, quando podem ser um factor de equilíbrio e de desenvolvimento, mesmo que os sindicatos façam muito menos do que deviam nesta matéria. Tudo somado, o pior que pode acontecer a Portugal é as empresas passarem a acreditar que a única saída é cortar os custos do trabalho para sobreviverem. Mas não será por aí que inverteremos a espiral negativa em que estamos e em que todos perdem.

A direcção editorial não percebia que o programa era efectivamente esse: não haver política pública, passe a redundância. E deixar às empresas a solução para o país...!

Em Novembro 2012, Álvaro Santos Pereira voltou a chorar falsas lágrimas, porque sabia que a política recessiva, advogada pela troica e pelo Governo Passos Coelho, era isso mesmo que iria provocar:   

Durante a discussão na especialidade do Orçamento do Estado para 2013, o ministro voltou a lembrar que “o desemprego é, de longe, o maior flagelo social do país” e enunciou as medidas que têm sido tomadas para travar o problema.

Em Fevereiro de 2013, Álvaro Santos Pereira reconhece que medidas não estão a ter muito sucesso, mas que era porque não estavam a ser bem comunicadas.

“Não estamos a ser muito eficazes no combate ao desemprego, temos de melhorar esta eficácia”, disse na noite de sexta-feira, num encontro promovido pelo PSD em São João da Madeira. “Temos de ser humildes o suficiente para o reconhecer, mas temos também de ser ágeis o suficiente para melhorar o combate ao desemprego”, completou. “Sabemos que muitas das nossas medidas não estão a ser bem comunicadas”, afirmou, durante as II Jornadas de Consolidação, Crescimento e Coesão, promovidas pelo PSD.

Em Março de 2013, Ávaro Santos Pereira sentia-se cada vez mais impotente para travar  o desemprego que, no seu sentido lato, chegaria a abranger 25% da população activa: 

 “Estamos aqui a falar de uma renovação do acordo de concertação social na área da criação de emprego e do combate ao desemprego”, destacou no final de uma reunião da comissão permanente de concertação social. O objectivo, continuou é “avançar o mais rapidamente com políticas ainda mais eficazes, de forma a travar a espiral do desemprego”, frisou o ministro. Santos Pereira reconheceu uma vez mais que é necessário “melhorar a eficácia das políticas activas de emprego”. “Temos que rever, simplificar as nossas medidas, que nem sempre são bem percepcionadas pelas empresas e pelos empregadores”, justificou.

Álvaro Santos Pereira não iria durar  muito tempo no Governo. Foi para a OCDE. Mas nós ficámos no país e que assim continua em espiral regressiva para a estagnação. 

Aliás, foi a tentativa de revisão de aspectos desta reforma de 2012 que esteve, também, no epicentro da discórdia entre os partidos à esquerda, durante a discussão da proposta de OE para 2022 e que se saldou pela convocação de eleições antecipadas.

 


7 comentários:

Jose disse...

A pergunta é simples:
- São os exploradores capitalistas estúpidos em quererem o seu pessoal insatisfeito, inseguro e eventualmente desmotivado, ou
- As condições de operação das empresas em Portugal, promovendo a sua baixa capitalização, entregues a uma banca penhorista, dependentes de governos incompetentes e permanentemente em derivas socializantes e sempre vocalmente anticapitalistas, a promoverem um geral clima de incerteza e precaridade?

Anónimo disse...

O Pereira é politiqueiro e aposta tudo na desmemória do eleitorado: os destinatários do post eram crianças ou adolescentes à época da terapia do "é preciso empobrecer e sair da zona de conforto" prescrita pelo (des)governo Passos & Portas a que, gostosamente, pertenceu.

José Cruz disse...

As reformas que a direita vem reclamando, sem grande insistência e pouca convicção, aliás, têm aqui um precedente de grande significado.A reforma da legislação laboral,saldou-se por uma precarização do trabalho e diminuição dos salários reais, que seria o pilar do desenvolvimento económico, previsto pelo governo Passos/Portas e a pedra de toque da recuperação anunciada nas promessas eleitorais do PAF, em 2015.Este edifício legislativo continuou de pé, sem grandes alterações nos governos seguintes do PS, nem nada faz acreditar que venha a ser alterado com a famosa Agenda do Trabalho Digno, que se vier a ser retomada e aprovada, acabará por integrar muitas disposições inscritas no Código do Trabalho, suavizando-as no acessório e mantendo o essencial.Sendo esta,uma reforma adquirida e consolidada pela direita, reduzem-se as propagandeadas reformas, à da Justiça, para tornar mais rápida a aplicação da lei para os despedimentos, as condições de período experimental de trabalho e todas as restantes em que sejam acrescentados direitos ao empregador e limitados os do trabalhador e à da Segurança Social, para aumentar descontos para os trabalhadores no activo, aumentar a idade limite e as penalizações por antecipação da reforma e diminuir todos os custos inerentes para o empregador.

Anónimo disse...

Obrigado pela súmula João Ramos de Almeida, as leis do trabalho têm acima de tudo que assegurar o respeito pela constituição e pela vida em sociedade, a desproporção da força é a selva, e quem a defende é obviamente um bárbaro. Relativamente aos artistas mencionados no texto e a muitos outros com o mesmo estilo, das duas uma, ou têm um gravíssimo problema de memória ou mentem descaradamente, é também curioso de assistir a forma como a coerência, a qualidade e a competência são presenteados com certos cargos em instituições transnacionais.

Anónimo disse...

Esse malandro, do Álvaro Santos Pereira, foi o responsável por um dos maiores aumentos nos passes e bilhetes de transportes, na altura em que foi ministro da economia do horrível Pedro Passos Coelho. Para seu grande orgulho e contentamento, também usava a bandeirinha de Portugal na lapela, como a querer dizer: «Queres vender o país? Pergunta-me como.»

João Ramos de Almeida disse...

Caro José,
Nem parece seu: de cada vez que vê um argumento mais sério lá vem com a ladínha com as "derivas socializantes" quando está mais que provado que o "programa" aplicado há décadas, é o da cegueira liberal - falsa cegueira, na verdade - que assenta na ideia peregrina que, mais do que todos, as empresas é que sabem melhor da nossa vida e que tudo deve ser deixado ao seu "livre" arbítrio...

"Libertar" as empresas das peias "socializantes" deu nisto: um país eternamente pobre que caminha cada vez mais para o fundo da estagnação.

Jose disse...

«governos incompetentes e permanentemente em derivas socializantes e sempre vocalmente anticapitalistas»

O livre arbítrio das empresas está confinado ao seu negócio, e assim deve ser.

O que elas requerem da sociedade, a troco de regras de conduta que devam cumprir, é que possam dedicar-se aos seus negócios, gerindo-os racionalmente: crescendo se possível, contraindo se necessário, sem que lhes imponham obstáculos e se lhe exijam funções de assistência social que para isso pagam impostos ao Estado.
A deriva socializante do Estado, sobretudo incomoda por se cumprir em larga medida impondo funções assistenciais a quem se apresente sob o rótulo de capitalista, seja senhorio seja empresário.
O caso da precaridade contratual é dos mais confrangedores: dispensar ou despedir pessoal é matéria tão problemática e suscita tais constrangimentos, que tudo se processa sem um claro empenho mutuamente desafiante, antes balizado por datas, em que as partes sempre agem sob algum tipo de reserva.
E sim, o mercado de trabalho é um desastre: empresas sem futuro com bom pessoal mal pago, empresas com oportunidades perdidas por condicionadas a suportar erros passados.
E sempre o clamor, a emoção, fundada no disparate de que garantir emprego para a vida é norma desejável e geralmente alcançável.