Sandra Monteiro, O tecto de vidro europeu, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Novembro de 2021.
domingo, 7 de novembro de 2021
Um jornal que não esquece o trabalho e o capital
A metáfora do tecto de vidro é conhecida. Ela convida-nos a analisar as condições em que vivemos e actuamos politicamente olhando, não só para os problemas bem visíveis à nossa volta, mas também para os que só identificamos com clareza virando os olhos para cima (...) Nas últimas décadas, a arquitectura das regras orçamentais e monetárias da União Europeia constitui um tecto de vidro particularmente poderoso na subalternização de sectores sociais cada vez mais amplos, bem como de uns países em relação aos outros (...) O agora governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, fez questão de lembrar a todos a existência dessas regras, do tal tecto de vidro europeu, logo em Junho, por altura do arranque das negociações do Orçamento do Estado para 2022 entre o governo e os partidos à sua esquerda. «Os apoios do Estado que perduram no tempo levam a perdas para o Estado que perduram no tempo», e «a evolução do mercado de trabalho antes e durante a crise mostrou um elevadíssimo grau de adequabilidade da legislação aos desafios, até extremos, que a economia enfrentou», afirmou Centeno. Em suma, nada de mexer na lei laboral da Troika e da direita (caducidade das convenções colectivas, princípio do tratamento mais favorável, indemnizações por despedimento, etc.). Nada de mexer em despesas que passassem a ser estruturais, desligadas dos apoios de emergência da pandemia. Nada de considerar outras propostas dos partidos à esquerda do Partido Socialista, como a reversão da desastrosa privatização dos CTT ou a reestruturação da dívida pública. E, facto particularmente chocante, nem sequer pensar em aproveitar a suspensão das regras do Tratado Orçamental em vigor até ao fim de 2022 para aliviar a contenção orçamental e aumentar o investimento público, de modo a que o país deixasse de ter um dos mais frágeis pacotes orçamentais de resposta à crise pandémica que são conhecidos. O que sobrava, neste quadro incompreensivelmente auto-restritivo?
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5 comentários:
O PS é mesmo "O Partido das Contas Certas"? Não exactamente. Tal como a maioria dos partidos que ocupam o poder na Eurozona, o PS é um Partido de Certas Contas, o partido português em que "todos são Centeno", o cativante "Ronaldo das Finanças" que - logo a seguir, não por acaso, ao inefável Jeroen Dijsselbloem - presidiu ao Eurogrupo entre 12 de Janeiro de 2018 e 12 de julho de 2020...
A. Correia
Correcto A. Correia!
O Partido “Socialista”, os partidos europeístas são por um certo tipo de contas, contas que servem os interesses dos maiores parasitas do mundo, como é o caso da Goldman Sachs…
Se fossem mesmo por contas certas e por uma economia produtiva que serve a maioria nunca teriam criado a distopia euro-liberal que reduz o investimento público que verdadeiramente interessa, o que melhora as condições de vida de muitos, ao mínimo!
Os avisos à navegação lançados por Centeno em Junho passsado tinham um destinatário principal: o Governo de António Costa. Centeno - que se mudou para o chamado "Banco de Portugal" mas mantendo influência leonina no Governo, através do actual Ministro das Finanças - receava o quê? Receava que o Governo optasse por (e/ou consentisse) um OE2022 muito "aquém da Troika", desenhado para que os parceiros de Esquerda (PCP, BE, PEV) viabilizassem a coisa sem fazer muitas ondas e/ou para que o PS pudesse enfrentar as legislativas seguintes, eventualmente antecipadas, com a popularidade em alta.
Vale a pena ler a recente intervenção de Centeno - já depois do OE2022 chumbado e com novas eleições no horizonte próximo - perante a Presidente do BCE, C. Lagarde, e o nosso António Costa (*):
https://www.bportugal.pt/intervencoes/intervencao-do-governador-do-banco-de-portugal-mario-centeno-na-sessao-solene
Ou seja, nos próximos meses vamos ouvir falar bastante das recomendações/imposições do Banco Central da Moeda Única, entre nós representado por Centeno.
A. Correia
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(*) - Não por acaso, C. Lagarde esteve presente, no mesmo dia, na reunião do Conselho de Estado, pouco antes da ratificação da decisão de dissolução da AR, já tomada por Marcelo. E não se limitou a assistir...
"O PCP é um partido de massas, o BE é um partido dos mass media" - disse já António Costa, em tempos não muito recuados. Acredito que ele pensa isso mesmo, e que estas são as razões pelas quais teme a influência de cada um destes partidos e, nem sempre subtilmente, procura alimentar uma certa animosidade entre eles. Em boa verdade, poderíamos acrescentar que o BE está muito longe de ser um partido de massas (nem uma freguesia governa, p.ex., além de ter escassa presença no movimento sindical); pelo seu lado, o PCP, bem como o aliado PEV, está muito longe de ser um partido dos mass media (um pouco por falta de vocação mas sobretudo porque não o deixam). Quando actuam de forma minimamente concertada, como sucedeu relativamente a este Orçamento do Estado, as coisas complicam-se para um Governo PS que precise de garantir na AR algum apoio à esquerda, mas sem desrespeitar certos valores que mais alto se alevantam...
A crise agora criada pela geringonça Costa-Marcelo vai fazer com que o OE2022 provavelmente não esteja aprovado antes de Julho do ano que vem. O objectivo comum de ambos com a dissolução da AR e as eleições antecipadas - em lugar da votação pela AR de uma segunda proposta de OE2022 - é claro como água: trata-se de acabar com a influência maligna do trio BE-PCP-PEV, nomeadamente no que diz respeito a este e a futuros orçamentos; o atraso (superior a seis meses) assim provocado na aprovação final do OE2022 é visto como um dano colateral, certamente bem tolerado por C. Lagarde e também pela Ursula maior que, lá do alto da Comissão Europeia, nos observa e nos guia. Claro que há também objectivos de Costa e de Marcelo que são diametralmente opostos: Costa aposta numa maioria absoluta PS+Livre+PAN, enquanto Marcelo aposta numa maioria absoluta PSD+CDS+IL+PAN (Sim, o PAN dá para os dois lados, os animais não se importam.).
A. Correia
O que sobra é a estupidez de pensar-se que as condições de prestação e remuneração do trabalho são indiferentes às crises e alterações na economia.
A caducidade dos contratos significa isso mesmo: o que hoje é possível pode não o ser amanhã.
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