sábado, 30 de junho de 2018

Domenico Losurdo


A ideologia e a historiografia ocidental parecem querer resumir o balanço de um século dramático em uma historieta edificante, que pode ser assim sintetizada: no início do século XX, uma moça fascinante e virtuosa (a senhorita Democracia) é agredida, primeiro por um bruto (o senhor Comunismo) e depois por outro (o senhor Nazi-fascismo); aproveitando também os contrastes entre os dois e através de complexos eventos, a moça consegue enfim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se nesse meio tempo mais madura, mas sem perder o seu fascínio, a senhorita Democracia pode agora coroar o seu sonho de amor mediante o casamento com o senhor Capitalismo; cercada pelo respeito e admiração geral, o feliz e inseparável casal adora levar a sua vida entre Washington e Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street. Estando assim as coisas, não é mais permitido ter qualquer dúvida: o comunismo é o inimigo implacável da democracia, a qual pôde consolidar-se e desenvolver-se apenas depois de tê-lo derrotado. Todavia, esta historieta edificante nada tem a ver com a história real. 

Excerto inicial do artigo “Revolução de Outubro e democracia no mundo”, da autoria de Domenico Losurdo, filósofo e historiador italiano. Losurdo faleceu anteontem aos 77 anos. A melhor forma de homenagear este grande autor marxista é lê-lo e usá-lo. Para quem nunca o fez, este artigo pode ser um bom sítio para começar. Infelizmente, não creio que haja qualquer obra sua editada em Portugal, em linha com grande parte do que há de mais vital nesta tradição, em geral, e nos seus veios mais críticos do chamado marxismo ocidental, em particular.

Para quem, como eu, tem dificuldade com o italiano, a obra de Losurdo está disponível em castelhano (Viejo Topo), em inglês (Verso) ou em português do Brasil (Boitempo). Por coincidência, na passada quarta-feira, fizemos-lhe uma homenagem no lançamento do livro mais ‘losurdiano’, no método, na erudição e em várias das suas conclusões, que eu conheço em Portugal, o Manual de Sociologia Política da autoria de João Carlos Graça.

Para alguma editora interessada, eu recomendaria começar pela tradução de duas obras de Losurdo: Liberalismo – uma contra-história e Luta de Classes – uma história política e filosófica. Por aqui, o primeiro livro já foi usado por Alexandre Abreu e o segundo por mim. E já nem falo da ascensão da China, onde Losurdo tem também uma visão relativamente rara nos meios da esquerda ocidental, coerente com o resto de uma obra em contra-corrente. Só conheço outro autor, por sinal italiano, com o mesmo tipo de olhar sobre esta complexa formação social: o economista político Giovanni Arrighi, infelizmente também já falecido.

Depois de se ler Losurdo, a história que se conta do liberalismo não pode ser a mesma. É-se compelido a concluir que o inacreditável à vontade com que gente que se diz de esquerda usa a fórmula “democracia liberal” é apenas o produto da sua submissão a uma poderosa ideologia, a que esquece como o liberalismo foi céptico em relação à democracia, ao poder do povo, ao longo da sua história cheia de “cláusulas de exclusão” elitistas e anti-democráticas e de uma imbricação mais longa e profunda do que se reconhece com o patriarcado, o racismo, o colonialismo ou o imperialismo. Depois de se ler Losurdo, passa a ser muito mais difícil excluir da luta de classes a dimensão da luta anti-colonial pela independência nacional. Depois de se ver a filosofia a trabalhar numa obra monumental de reinterpretação da história contemporânea, resgatando-a dos vencedores dos anos noventa, a Revolução de Outubro passa a ler lida sobretudo pelos seus efeitos externos emancipadores.

Se mais não houvesse, e há muito mais na leitura critica, comparativa e contextualizada das ideias enquanto forças materiais, associadas a determinados grupos sociais, isto bastava para afirmar que Losurdo merece ser tão lido por cá quanto o é por outros lados. Isto não quer dizer, naturalmente, que todas as suas análises históricas devam ser subscritas.

Seja como for, tivesse a linha de Losurdo tido mais influência política em Itália e talvez a esquerda desse país não se tivesse transformado na ruína actual.

Vai fazer falta.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Amanhã


Quinta sessão de lançamento do primeiro número (IIª série) da revista Manifesto, na Biblioteca Municipal de Vila Franca de Xira, a partir das 17h00. Com a participação de Ana Drago, Diogo Martins e Maria José Vitorino. Estão todos convidados, apareçam.

Equívocos e ocultações do Ministro do "Ambiente"

O Ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, foi ao parlamento afirmar que "o Governo assume a hipótese de explorar petróleo ao largo do Algarve".

Esta é a primeira vez que o governo assume explicitamente a defesa da exploração de petróleo em Portugal. Até aqui, vários membros do executivo têm-se escudado na ideia de que o país tem de conhecer os seus recursos naturais, como forma de justificar o contrato com o consórcio ENI/GALP para exploração de petróleo ao largo de Aljezur. Na verdade, nunca foi um argumento convincente: o contrato inclui todas as fases do processo, desde a prospecção à exploração. Agora, o Ministro do Ambiente não só admite a possibilidade, como assume o desejo de que Portugal se torne um país produtor de petróleo. Porém, insiste em justificar a decisão alimentando equívocos e deixando por esclarecer questões-chave.

Primeiro, é falsa a ideia de que Portugal poderá tornar-se independente em termos energéticos com base nestes contratos. Caso encontre petróleo, o consórcio ENI/GALP não está obrigado a vendê-lo em Portugal a preços mais favoráveis. Vendê-lo-á nos mercados internacionais, a quem pagar mais. Os lucros ficarão para si e as contrapartidas para o Estado português serão mínimas. O Ministro do Ambiente continua a não falar desta questão. Pelo contrário, insiste em alimentar a fábula do enriquecimento fácil do país com base em contratos muito pouco favoráveis (e cujo processo de aprovação é questionável a vários níveis).

Segundo, a promessa de que a exploração não avançará sem um estudo prévio de impacte ambiental é pouco tranquilizadora. É sabido que o risco de desastre ambiental é mínimo, desde que sejam tomadas todas as precauções. Por isso, e porque ninguém se atreverá a parar o processo depois de terem sido gastas centenas de milhões de euros na fase de prospecção, nenhum estudo de impacte ambiental irá fazer parar este processo. Se houver petróleo haverá exploração. Mas os acidentes, por pouco prováveis que sejam, acontecem - como se tem visto em várias partes do mundo. E quando acontecem os efeitos são desastrosos. O contrato com a ENI/GALP não protege o país dessa eventualidade: em caso de acidente, será o Estado português e as populações afectadas a assumir o grosso dos custos ambientais, sociais e económicos. O Ministro do Ambiente continua a não falar desta questão. Neste caso, prefere mesmo fingir que não é nada com ele.

Finalmente, o Ministro do Ambiente continua a não conseguir explicar como é que o apoio, agora finalmente assumido, à exploração de petróleo em Portugal é compatível com os compromissos assumidos pelo Estado português no Acordo de Paris. Existe hoje o reconhecimento internacional de que o combate às alterações climáticas se faz não apenas pela redução do consumo de hidrocarbonetos, mas também pela redução da sua produção. É verdade que os tempos mudaram: Obama saiu da presidência dos EUA e deixou no seu lugar alguém que fez letra morta daquele Acordo (e de outros). Isto reduz drasticamente a probabilidade de vermos diminuir a produção de hidrocarbonetos à escala mundial nas próximas décadas. O que o Ministro do Ambiente parece estar a dizer-nos é que não cabe a Portugal preocupar-se com isso. É verdadeiramente caricato que seja o responsável pela pasta do Ambiente a assumi-lo.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O que tem de ser tem muita força


Vale a pena ler este artigo porque é um marco na evolução do pensamento de um economista com enorme audiência e que tem mostrado ser capaz de olhar para a realidade e reconhecer que a sua teoria económica não tem estado à altura de a entender.
A Itália tem a oportunidade de fazer uma escolha diferente. Na ausência de reformas significativas, os benefícios para a Itália de deixar o euro são claros, diretos e consideráveis.
Joseph Stiglitz, prémio (habitualmente designado) Nobel da economia, professor na Universidade de Colúmbia, EUA.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Contra-reforma

Não é que haja uma grande esperança neste debate de amanhã. Até porque Mário Centeno já avisou - de forma espantosa, enganadora e quase escandalosa - que os "últimos resquícios da crise do euro" acabaram com o fim do programa de financiamento à Grécia.

Não há qualquer expectativa. Mas poderá ser uma oportunidade para questionar insistentemente a maioria dos oradores - nomeadamente o secretário de Estado do ministro Centeno - sobre como é que algo que acabou precisa ainda de ser reformado... 

E, depois, que reforma será essa - apenas uma mais que coxa união bancária? - que acabe por manter todas as razões que explicam a actual crise do euro?

Nomeadamente: Por que razão os países do centro europeu acumulam excedentes externos e os países da periferia défices externos - que precisam de ser financiados - e que prejudicam toda a actividade económica dos países lesados, com impacto nas suas contas públicas? De que forma se vai resolver esse problema de fundo? Será uma reforma ou apenas um papel a dizer que "os últimos resquícios da crise do euro" acabaram como o disse o presidente do Eurogrupo, em linha com o pensamento dominante desse eurogrupo informal (ilegal) e opaco, sem quaisquer actas nem documentos consultáveis?

Mais do que um manual


O usufruto dos direitos (sejam eles simplesmente ‘civis’, políticos ou sobretudo ‘sociais’) tem, por conseguinte, sistematicamente lugar já num contexto institucional delimitado, que é o da pertença ao grupo de cidadãos duma ‘polis’. Por outro lado, se é verdade que facilmente reconhecemos também, para lá daqueles, um grupo de ‘direitos humanos’ absolutamente irrevocáveis e verdadeiramente universais, adentro destes inclui-se precisamente, e de forma crucial, o de pertencer a grupos parcelares da espécie humana, as nações ou nacionalidades, que em condições habituais são inseparáveis do reconhecimento recíproco e fornecem o fundamento para a produção de estruturas políticas (das quais o estado-nação é a mais comum e na verdade a mais esperável) capazes da garantia material e formal da cidadania, enquanto requisito prévio ao pleno gozo dos direitos. 

João Carlos Graça, Manual de Sociologia Política, Coimbra, Almedina, 2018, p. 272.

Não se deixem enganar pelo título. Este livro ‘losurdiano’ é muito mais do que um manual.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Se dependesse da má fé, era um fórum muito competitivo

«Um mercado de trabalho carente de pessoal mas cada vez mais exigente em qualificações. Neste contexto não é aceitável que no segmento 18 a 24 anos, 18,2% nem estude nem trabalhe e, ainda menos, que mais 16,4% esteja a receber subsídio de doença. Somando estas duas realidades conclui-se que 34,6% dos jovens não estão a trabalhar nem a estudar ou estão "de baixa"...».

É assim, sem tirar nem pôr, que o Fórum para a Competitividade, na sua página no facebook, traça o perfil dos jovens portugueses: cerca de 1/3 (34,6%) não trabalha nem estuda ou encontra-se «de baixa» (as aspas, que insinuam tratar-se de baixas fraudulentas, são a cereja em cima do bolo). Malandragem portanto, na conversa do costume (faltando apenas relembrar que foi uma pena «que a troika tenha ido embora»).

Mas façamos as contas, tomando como referência o ano de 2017 (dado não haver informação sobre população residente em 2018). De acordo com o INE, residiam em Portugal no ano passado cerca de 1 milhão de jovens com idades entre os 15 e os 24. Entre estes, cerca de 102 mil (9%) não se encontra a trabalhar nem a estudar ou em formação (na OCDE, em 2016, eram cerca de 6% na faixa de 15 a 19 e 16,2% na faixa entre 20 e 24 anos). Ou seja, nenhuma anomalia neste âmbito quando nos comparamos à escala internacional (face à qual, de resto, temos vindo a melhorar, situando-nos desde 2015 abaixo da média).


A parte mais complicada, pela bizarria que comporta, é a que traduz a ideia de que há jovens a receber Subsídio por Doença em vez de estar a trabalhar, o que não é - segundo o Fórum - aceitável. E na ausência de referência a uma qualquer taxa de baixas fraudulentas, que obrigaria a matizar os resultados (e as conclusões a que chega), o que o Fórum faz é uma coisa tão simples quanto absurda: ao somar o número de jovens com Subsídio por Doença ao número de jovens que não estuda nem trabalha (ponham moralismo nisto), presume - na prática - que todas as baixas são fraudulentas. Ou seja, se não é falsa doença é preguiça, se não for preguiça é falsa doença. De onde se conclui que se dependesse da má fé, do preconceito enquistado e do populismo moralista, o Fórum seria muito competitivo. Mas como assim não é, somos forçados a constatar que se trata de uma agremiação pouco atreita ao rigor das contas e à seriedade na análise.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Mente sã em corpo social são?


Porque é que nas sociedades capitalistas desenvolvidas com maior desigualdade económica os indivíduos sofrem mais, estão mais deprimidos, ansiosos, stressados, viciados e dependentes? Quase uma década depois de The Spirit Level, O Espírito da Igualdade na tradução portuguesa, Richard Wilkinson e Kate Pickett voltam à análise dos efeitos perversos da desigualdade económica num livro acabadinho de sair. A área dos determinantes sociais da saúde, onde pontificam, tem indicado como as utopias de mercado, incluindo o austeritarismo, fazem muito mal à saúde: distopias, em suma.

Acho que devemos partir de uma hipótese empática: os indivíduos fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas. Assim, a tarefa política realista tem de estar duplamente em contra-movimento socialista: humanizar as circunstâncias e desenvolver as capacidades. E isto passa também por reduzir a desigualdade económica.
     

domingo, 24 de junho de 2018

Imigração, crise da UE e neoliberalismo: está tudo bem ligado.


A crise da imigração para a UE, através da Itália, tem de ser vista num plano mais amplo, o da crise económica, social e política da zona euro. É isso que explicamos neste vídeo.

sábado, 23 de junho de 2018

Bruce Springsteen - The ghost of Tom Joad


onde quer que esteja alguém a lutar por um lugar para ficar....um trabalho decente ou uma mão amiga....onde quer que esteja alguém a lutar para ser livre....olha-o nos olhos mãe e ver-me-ás a mim

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Vitória de Pirro


"Eurogrupo anuncia fim 'com sucesso' do resgate da Grécia", é o título desta notícia.

Uma década de recessão, desemprego e pobreza como não há memória, retrocesso civilizacional generalizado, venda a estrangeiros de grande parte da riqueza nacional, emigração em massa de jovens qualificados, humilhação e descredibilização da democracia, desconfiança (alargada a vários países) das instituições europeias.

Se a Europa continuar a ter sucessos destes estamos tramados.

Quatro notas para fazer frente

1. É necessário adaptar para estes tempos sombrios a famosa fórmula de Max Horkheimer sobre a relação entre capitalismo e fascismo: aqueles que não querem falar criticamente de neoliberalismo, da forma dominante de economia política hoje em dia, e que até querem defender as instituições supranacionais que garantem a sua perpetuação em parte do continente europeu, devem ficar calados sobre tendências fascizantes de novo tipo que lhe são endógenas.

2. A lógica da frente popular, do antifascismo mais consequente, nunca deve ser esquecida. Por acaso, reli recentemente o discurso de Georgi Dimitroff sobre a estratégia das frentes populares definida, em 1935, pela Terceira Internacional. Para lá da crítica ao sectarismo e da defesa de uma unidade política consequente, uma das apostas passou por não deixar a inevitável imaginação nacional entregue às direitas: “O internacionalismo proletário deve aclimatar-se, por assim dizer, a cada passo e deitar profundas raízes no solo natal. Ao revoltar-se contra toda a vassalagem e contra toda a opressão é o único defensor da liberdade nacional e da independência do povo”.

3. Hoje não há internacional e desapareceu um dos freios e contrapesos que tinha obrigado à institucionalização de formas menos polarizadoras e agressivas de capitalismo. Mas, de novo, só podem defender consequentemente os valores universais da solidariedade, os que ganham densidade em estados soberanos, as forças democráticas que estão enraizadas no solo nacional e que não aderiram à lógica supostamente leve dos fluxos e de um cosmopolitismo que mascara tantas vezes o imperialismo.

4. As sociedades mais igualitárias, seguras na sua identidade, são internacionalmente mais cooperativas, sabemo-lo há muito. E nós também sabemos bem como são hoje poderosas as forças que apostaram em destruir Estados no bloco afro-asiático e em esvaziá-los na Europa do sul. A história é repetição e novidade. Uma das boas novidades é que vivemos num mundo muito mais multipolar. A outra é que dispomos, aqui e ali, de constituições nacionais onde ainda sobrevivem as marcas do antifascismo; constituições que de resto o capital financeiro e as suas instituições de suporte europeias consideram um empecilho, lembrem-se.

Hoje


quinta-feira, 21 de junho de 2018

Há populismos de esquerda?


Esta é a pergunta que enquadra o jantar-debate de amanhã no Seixal. O pretexto é a relançada revista Manifesto, cujo primeiro número tem artigos sobre este tema. Aposto que, por razões e com implicações diferentes, eu e José Neves responderemos afirmativamente. Haverá debate. Apareçam.

Monstruosidade e cobardia


«Os norte-americanos foram confrontados com a ignomínia e obrigados a ver os rostos e a ouvir as vozes da crueldade do seu governo. A violência imposta a estas crianças, que são separadas dos seus num momento especialmente traumatizante e ficam sem qualquer apoio ou carinho de um adulto, entregues a si mesmas, transporta-nos para o passado. Mas o abjeto attorney general, Jeff Sessions, não se mostrou especialmente ofendido com a comparação. Disse que era um exagero. Explicou: os nazis prendiam as pessoas e separavam famílias para elas não fugirem, eles prendem e separam famílias para elas não entrarem. Faz toda a diferença.»

Daniel Oliveira, «Imigração: Contra a crueldade, política»

Uma das formas mais execráveis de tortura, pela sua monstruosidade e cobardia, consiste em forçar alguém a falar através da ameaça e exibição da dor e sofrimento infligidos a um familiar ou amigo. Monstruosidade porque a tortura se torna ainda mais cruel e inumana. Cobardia porque, atuando através dos mais fracos, se retira ao próprio o derradeiro direito de falar ou resistir.
Não sabemos se a ideia de separar na fronteira bebés e crianças imigrantes dos seus pais, e de as encarcerar como criminosos, partiu de Donald Trump ou dos seus próximos. Mas sabemos que apenas a uma mente muito tortuosa, e desprovida de qualquer resquício de humanidade e escrúpulo, poderia ocorrer uma coisa assim. Tal como num interrogatório sob tortura, infligida de forma indireta para se obter uma «confissão», também aqui se instrumentaliza a dor de terceiros, neste caso crianças, para intimidar e suster a imigração. É grave, demasiado grave e insuportável para haver, sobretudo no espaço europeu, tanto silêncio no ar.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Amanhã



«A existência de campos de detenção junto à fronteira entre os Estados Unidos e o México, onde pelo menos duas mil crianças imigrantes estariam encarceradas sem contacto com os seus pais e famílias, desde maio deste ano, ofende os mais elementares princípios de humanidade.
As crianças, algumas apenas com seis anos de idade, terão sido propositadamente separadas dos seus pais pelas autoridades norte-americanas como forma de dissuadir os fluxos migratórios para os Estados Unidos. O próprio Presidente Donald Trump confirmou publicamente que é assim. O conhecimento dos detalhes de toda esta prática só aumenta a nossa convicção de que estamos perante um ato cruel e de flagrante violação de direitos humanos.
As imagens publicadas pela comunicação social norte-americana mostram centros de detenção formados por jaulas onde as crianças são colocadas a dormir no chão com um cobertor térmico. Os centros estão iluminados 24 horas por dia, igualando condições próximas da tortura.
Segundo a informação pública, após a separação, não existe qualquer hipótese de reunião das crianças com as suas famílias, nem de contacto ou sequer de informação sobre o paradeiro de cada membro da família.
Manifestamos a nossa indignação e protesto veementes contra esta política desumana e indigna de qualquer sociedade civilizada e democrática, e exigimos que estas famílias sejam reunidas e livres de prosseguirem a sua vida. Certos de que esta reação é largamente partilhada, convocamos uma concentração contra a separação de crianças migrantes nos EUA, a realizar esta quinta-feira, às 19h, no Largo de Camões, em Lisboa.»

terça-feira, 19 de junho de 2018

É preciso que algo mude...

Num excelente trabalho do Negócios da passada semana sobre as alterações na área laboral, o insuspeito António Monteiro Fernandes, Professor de Direito do Trabalho e antigo Secretário de Estado de Guterres, afirmava perceber “bem que a parte patronal tenha aceitado de modo seráfico este acordo”, já que no fundamental nada muda em relação a 2012, ou seja, em relação à troika: “o fantasma que podia existir em face das negociações [à esquerda] foi completamente afastado”, “tudo o que era essencial para os empregadores mantém-se”, afirmou então.

Perante isto, há quem valorize alterações de detalhe, sublinhando, por exemplo, que é a primeira vez desde a instauração do euro que a contra-reforma não avança. Na melhor das hipóteses, o que alguns chamam de governo de esquerda não passará de um compasso de espera na mais fundamental das questões. Os representantes dos patrões estão naturalmente satisfeitos e deram sinais disso.

Afinal de contas, é hoje claro que o governo do PS aceitou a pesadíssima herança da troika ou não estivessem as verdadeiras preferências políticas de António Costa, um homem da terceira via, a revelar-se de novo, sobretudo desde que Rui Rio é líder do PSD. As propostas de comunistas e bloquistas nestas áreas têm sido sistematicamente chumbadas. Estes últimos até constituíram um grupo de trabalho sobre a precariedade, cujas conclusões foram em geral ignoradas, confirmando que este modelo de articulação não permitiu avançar em nenhuma área.

Agora, o bloco central informal aí está, com Rio e Marcelo a acompanharem o governo, os representantes dos patrões e uma central sindical que se não existisse tinha de ser inventada para assinar tudo o que o governo de turno lhe coloca à frente.

Entretanto, o PS está cada vez mais longe da maioria absoluta. O PS é muito mais frágil do que parece, sublinhe-se uma vez mais. Afinal de contas, isto é uma periferia e nas periferias os desenvolvimentos, incluindo políticos, são externamente sobredeterminados. Por isso, mas se calhar não só por isso, a pergunta não desaparece: se a terceira via colapsou por todo o lado, porque é que por cá seria, a prazo, diferente?

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Está tudo bem

Desde 2015, as três mil maiores empresas do mundo, listadas em bolsa, viram os seus lucros, medidos em dólares, crescer 44%. Daqui.

Frugalidade individual, abundância colectiva


Num vídeo que circulou há alguns dias por alguns sites noticiosos e redes sociais, vê-se um orangotango do Bornéu a tentar, de forma heróica mas inglória, lutar contra a retroescavadora que acaba de demolir a árvore onde se encontra o seu ninho. Devido à substituição de floresta por plantações de óleo de palma, os orangotangos estão hoje confinados a algumas áreas limitadas do Bornéu e Sumatra e calcula-se que poderão vir a extinguir-se no estado selvagem dentro de dez anos.

Este vídeo deprimente é uma boa ilustração de dois dos problemas ambientais mais críticos do mundo contemporâneo: a desflorestação e a perda de biodiversidade. É destruída uma área de floresta equivalente à Inglaterra a cada ano, estimando-se que metade da área de floresta tropical de todo o mundo tenha já sido eliminada. O ritmo actual de extinção de espécies é entre 100 e 1000 vezes superior à chamada taxa média normal de extinção (antes da intervenção humana), justificando que este seja considerado o sexto evento de extinção em massa na história geológica do planeta – o quinto, há 65 milhões de anos, foi o que envolveu a extinção dos dinossauros.

Estes são apenas dois de um conjunto mais vasto de problemas. No livro Colapso – Como as Sociedades Escolhem o Sucesso ou o Fracasso, o biólogo e geógrafo Jared Diamond aponta alguns outros: o esgotamento dos stocks de animais selvagens, especialmente de pescado; a degradação dos solos utilizáveis na agricultura; a destruição de outros habitats (recifes de coral, áreas lacustres,...); a delapidação das reservas de combustíveis fósseis; o esgotamento dos aquíferos e outras reservas de água doce; a poluição do solo, ar, oceanos, rios e lagos; o esgotamento da capacidade foto-sintética do planeta; a introdução de espécies invasoras; e, talvez o mais crítico e frequentemente referido de todos, o aquecimento global.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Das causas dos fogos

Persiste na opinião pública a noção de que a generalidade dos incêndios tem origem criminosa, sendo este contudo «um mito profusamente difundido pela comunicação social» e que contribui para uma «desresponsabilização da sociedade» (como assinalou em momento oportuno o relatório da Comissão Técnica Independente que analisou os fogos de junho de 2017). Aliás, uma recente reportagem sobre o incêndio do Pinhal de Leiria empenhou-se em potenciar esta ideia, explorando de forma fantasiosa (como demonstraria um exercício de desconstrução dessa tese) o achismo de que a maioria dos incêndios resulta de «fogo posto».

Deve sublinhar-se, desde logo, que a investigação das causas dos incêndios tem melhorado de modo muito significativo nos últimos anos. De facto, não só aumentou de forma exponencial a percentagem de ocorrências averiguadas no total de ocorrências registadas (de valores inferiores a 10%, até 2007, passa-se para níveis a rondar os 76%, no triénio 2013/15), como o peso percentual de incêndios averiguados e com causa apurada denota um incremento semelhante (se até 2007 apenas era identificada a causa de 3% dos incêndios ocorridos, em 2013/15 esse valor ascende a quase metade do total de ocorrências registadas).


Assim, de acordo com os dados do ICNF para os anos entre 2001 e 2015 - e considerando apenas o universo de incêndios com causa apurada (excluindo portanto as ocorrências não averiguadas e as ocorrências com causa indeterminada) - constata-se que as queimadas (45%) e queimas de lixo (1%) constituem no seu conjunto a principal causa dos incêndios (explicando 46% das ocorrências com causa apurada), situando-se os casos de «incendiarismo» (nas situações de imputabilidade) em apenas 30% do total de ocorrências. Globalmente, estas duas causas explicam 75% do total de incêndios com causa apurada, registados nos últimos quinze anos.


Por último, e mesmo admitindo que a melhoria da capacidade técnica e científica de investigação dos incêndios possa interferir na quantificação das diferentes causas, não deixa de ser interessante constatar a estabilidade, em termos relativos, da preponderância que estes dois fatores (queimadas e «fogo posto») assumem ao longo do período considerado. Ou seja, sim é verdade que a maior parte das ignições têm origem humana. Contudo, uma coisa é reconhecer que se trata, fundamentalmente, de negligência e irresponsabilidade e outra, bem diferente, é apontar o dedo ao «fogo posto» (esvaindo-se assim a converseta de senso comum em torno da «mão criminosa» que supostamente está por detrás dos incêndios).

Amanhã, em Sines


Quarta sessão de lançamento do primeiro número (IIª série) da revista Manifesto, desta vez em Sines, na Livraria das Artes, a partir das 17h00. Apresentação a cargo de Daniel Oliveira, Diogo Martins e Manuel Coelho. Estão todos convidados, apareçam.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

E se Trump tiver razão?


É preciso alguma coragem intelectual e política para dizer isto em certos meios: “Trump tem razão e o resto do G7 não”. Porquê? Porque, segundo George Monbiot, Trump defende a existência de uma cláusula de caducidade, que permita renegociar, ao fim de um certo prazo, tratados como a NAFTA, ou abandoná-los. As perversas regras do comércio e investimento internacionais não podem estar inscritas na pedra. Caso contrário, para que servem as democracias?

Anda para aí uma certa “esquerda” a querer convergir com outros neoliberais, em nome de uma fantasiosa frente comum dos “abertos” contra “fechados”, esquecendo que foram as crises e polarizações da forma dominante de economia política, assente na ideia abertura irrestrita, que contribuíram e contribuem para gerar os Trump desta vida. Na UE, esta forma de economia política, ainda mais constrangedora, tem na moeda única e no mercado único os seus pilares.

A conclusão de Monbiot deve levar a pensar: quando é possível a um escroque como Trump “apresentar-se como campeão dos interesses populares, então a democracia está mesmo em risco”.

Na realidade, o chamado neoliberalismo progressista, o dos que combinam um entendimento liberal das chamadas causas fracturantes com o neoliberalismo que causa fracturas, mata uma certa esquerda dos dois lados do Atlântico. Essa esquerda, é verdade, não faz falta nenhuma, dado que impede o aproveitamento da desglobalização que tem de se avizinhar.

Felizmente, há quem perceba duas coisas: que NAFTA, CETA, TTIP ou UE comungam de uma mesma lógica perversa e que um populismo de esquerda é o melhor antídoto simultâneo contra Trump, mas também contra o perigoso plástico político que ainda flutua dos naufrágios da terceira via.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

7 esclarecimentos estranhamente necessários sobre a greve dos professores

1) Os professores não progridem na carreira apenas com base no tempo de serviço.

2) A progressão na carreira docente está sujeita a quotas e a restrições baseadas no desempenho.

3) A maioria dos professores ao serviço nunca chegará aos escalões superiores.

4) Uma proporção absurda de professores está há mais de uma década (muitos há duas) no primeiro escalão da carreira - mesmo que tenham sido sempre classificados com muito bom ou excelente (notas que estão sujeitas a quotas).

5) Os professores nāo entram de férias quando as aulas acabam. Por estranho que pareça, a atribuição de notas, a vigilância e correcção de exames, a inscrição de alunos, a constituição de turmas, a elaboração de horários, o planeamento do ano lectivo, a organização logística de laboratórios, etc, não caem do céu aos trambolhões.

6) A perda real de salários e o congelamento das carreiras dos professores aconteceram ao mesmo tempo que aumentava o número de alunos por turma, aumentava a carga lectiva e burocrática, se eliminavam as reduções de horário para docentes mais velhos, aumentava a escolaridade obrigatória (e com ela os problemas sociais e disciplinares com que as escolas têm de lidar), diminuía o número de auxiliares e de técnicos especializados (psicólogos, assistentes sociais, etc) nas escolas.

7) O sistema de ensino público apresenta falhas óbvias ao nível da formação inicial e contínua de professores, dos mecanismos de avaliação e progressão na carreira, na capacidade de recompensar o desempenho dos melhores e de penalizar a incompetência e o desleixo, entre outras. No entanto, não foram os professores que estão nas escolas quem escolheu as regras e práticas de formação, avaliação, progressão e gestão de docentes. Não são eles que têm de prestar contas pelas consequências dessas regras.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Os preços ‘sobrevalorizados’ das casas

O último Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal dá especial atenção ao mercado imobiliário, expressando particular preocupação com o elevado grau de exposição do sistema bancário português à evolução deste setor.

Tal acontece porque o mercado imobiliário é hoje “um importante elemento de interligação entre o sistema financeiro e o setor privado não financeiro, afetando também a evolução das finanças públicas, nomeadamente através do efeito sobre as receitas fiscais associadas ao mercado imobiliário”, e, já agora, a vida das famílias, dado que uma parte importante do rendimento destas se destina ao pagamento das prestações bancárias ou às rendas das casas.

O que começa a preocupar o regulador bancário é a “sobrevalorização” dos preços das casas, ou seja, a presença de uma bolha especulativa (embora esta expressão nunca seja usada), e os efeitos que adviriam (advirão?) para o sector bancário de uma baixa acentuada dos preços. Sendo os efeitos mais marcados em Lisboa, no Porto e no Algarve, mesmo em termos agregados, a evolução dos preços é considerável: entre o segundo trimestre de 2013 e o quarto trimestre de 2017, os preços da habitação em Portugal aumentaram 32% (em termos nominais) e 27% (em termos reais).


O risco de uma baixa acentuada dos preços é significativo para um setor tão exposto ao imobiliário como o bancário. De fato, boa parte dos empréstimos concedidos destina-se a este setor, através dos empréstimos à habitação para as famílias e à construção e atividades imobiliárias, para não mencionar que uma parte não negligenciável dos ativos da banca é constituída por imóveis. Quer isto dizer, então, que uma queda dos preços das casas implicaria o incumprimento dos devedores (pelo efeito da crise do sector sobre a economia e rendimento das famílias e da desvalorização deste importante ativo), mas também pela resultante acumulação de imóveis desvalorizados.


Acresce que o risco de uma baixa acentuada dos preços é mais elevado hoje, dada a maior dependência do setor imobiliário da procura externa - incluindo a procura associada a autorizações de residência, ao setor do turismo, ou ao investimento financeiro realizado por intermédio dos fundos de investimento imobiliário. Estes últimos podem sair a qualquer momento do mercado, provocando um efeito quase imediato e amplificador sobre os preços, dada a reduzida dimensão do mercado português.

Dos receios do regulador bancário resulta evidente não só a enorme vulnerabilidade da economia e da sociedade relativamente ao setor imobiliário, mas também o enorme poder económico e político deste setor, que mantém os demais agentes e setores económicos presos à chantagem da manutenção de preços elevados.

É obrigação de um governo e de uma câmara de Lisboa, ditos socialistas, começarem, pelo menos, a conter a evolução dos preços. A alimentação da bolha imobiliária, por exemplo através de iníquos incentivos fiscais a residentes não habituais, ou a fundos de investimento imobiliário, só aumentará a magnitude dos seus expectáveis desastrosos efeitos. Até o Banco de Portugal parece já ter compreendido isto…

"A Juventude não está com..."

Não resisti a apresentar algumas linhas de um discurso que Mário Soares, então com 21 anos, jovem comunista, fez numa sessão pública do Movimento de Unidade Democrática, na sala da colectidade Voz do Operário, a 30 de Novembro de 1946.

Uma sessão que se realizou, poucos dias depois de uma conferência da União Nacional, partido único do regime fascista, em que diversos oradores suscitaram a questão de que o regime estava a perder a juventude. "Onde está a juventude adolescente que não a encontro nos quadros da União Nacional?" Ou: "Estamos a perder gerações, por falta de orientações e organização que amanhã nos farão falta e perder a Universidade é perder o futuro". 

Pegando neste facto, Soares desenvolveu o tema A Juventude não está com o Estado Novo Dizia então Mário Soares:

"Em primeiro lugar, um reparo. A Juventude não é a Universidade. Poderíamos até dizer que, com a selecção material a que se procede, a Universidade é muito pouco expressiva da Juventude portuguesa. As propinas quintuplicaram, o que quer dizer que aos filhos das classes médias e sobretudo aos filhos das mais vastas camadas da população portuguesa está vedado o acesso ao ensino superior. Os estudantes universitários, na sua maioria, são os favorecidos da fortuna - jovens que têm uma situação de privilégio em relação aos outros jovens. Na Conferência da União Nacional teme-se perder a Universidade: que dizer então dos outros sectores da Juventude?

Para ter uma ideia exacta das precárias condições de vida da juventude portuguesa é necessário integrarmo-nos em toda a política económica do Governo (...) e saber do nível de vida do nosso povo em geral. Mas a situação no que respeita à Juventude agrava-se: dado que a mão-de-obra juvenil, como aliás a feminina, é utilizada a baixos preços - como forma de concorrência e de novas explorações. A fórmula a trabalho igual, salário igual não tem sentido entre nós. Os sindicatos e as casas do povo não reconhecem aos jovens com menos de 18 anos direito de admissão - não beneficiam, portanto das caixas sindicais ou de previdência. Contratos colectivos estabelecem salários mínimos a partir de 4 escudos. Nestas condições - e conhecido o índice de analfabetismo do nosso país - como pode a Juventude trabalhadora estar com o Estado Novo?

Nenhum dos seus problemas centrais foi resolvido ou equacionado. Decorrente do baixo nível de vida está a falta de preparação técnica e cultural, a inexistência de orientação profissional segundo as capacidades e não segundo o dinheiro, a impossibilidade de fundação dum lar. Não há possibilidade de protecção à família, sem mistificações, enquanto aos jovens não for dado fundarem o seu próprio lar. Não há possibilidade duma educação cívica séria - de arrancar os jovens à taberna e ao vício - enquanto a instrução não for obrigatória e facilitada para todos, enquanto existir um divórcio entre a escola e a vida, e o ensino não for concretizado e ligado ao moderno desenvolvimento técnico.

(...). É este o triste quadro em que se move a grande maioria da nossa Juventude.

Amanhã, no Porto: Apresentação da revista Manifesto


Depois do lançamento em Lisboa e da apresentação em Faro, o primeiro número da segunda série da revista Manifesto é apresentado no Porto por Alfredo Soares-Ferreira, Milice Ribeiro dos Santos e Rui Feijó, a partir das 18h00 na Cooperativa do Povo Portuense. Estão todos convidados, apareçam.

domingo, 10 de junho de 2018

O passado económico tinha de mudar

No prefácio ao livro de José Reis sobre A Economia Portuguesa, recentemente publicado, o jornalista de economia Nicolau Santos afirma que «se trata da mais importante análise sobre o tema desde “A economia portuguesa desde 1960”, de José da Silva Lopes». Aproveitando a boleia da sugestiva e justa frase de Nicolau Santos, pode ser útil comparar dois livros que, publicados respectivamente em 2018 e em 1996, também são de história recente da economia portuguesa: o passado económico pode e deve mudar, quer em função de dois presentes muito diferentes, quer dos distintos quadros analíticos implícita ou explicitamente mobilizados e da forma como ordenam o amplo material empírico disponível, quer das contrastantes circunstâncias intelectuais de dois economistas comprometidos com este país.

O resto do meu artigo pode ser lido na edição em papel do Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês. No fundo, contrasto o livro de um “economista antigo” na convergência com o livro de um economista político na divergência.

sábado, 9 de junho de 2018

Um jornal contra assaltos europeus


A União Europeia nunca deixa durar muito os enganos de alma ledos e cegos de quem se esquece da sua matriz neoliberal. Desta vez o sossego foi interrompido pelo comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, Günther Oettinger, que espera que «os mercados ensinem os italianos a votar bem». O desprezo pela democracia, e em particular pelos mecanismos democráticos que subsistem nos quadros nacionais e locais, continua bem vivo numa instituição sempre disposta a impor governos técnicos, referendos de desgaste e outras perversões da manifestação da vontade política dos cidadãos (...) Nas ruínas do trabalho e do Estado social, a União Europeia inventa mais uma forma de satisfazer através do quadro europeu os negócios privados que, sem ela, teriam dificuldade em impor-se neste espaço. É a actuação da União que prepara as tragédias futuras. Neste contexto de maior consciência cidadã do risco financeiro e de indisponibilidade orçamental dos governos nacionais (mesmo os neoliberais) para avançarem para a privatização dos seus sistemas de pensões, empresas gigantescas como a BlackRock precisam de uma estrutura supranacional como a União Europeia para expandir o seu negócio.

Sandra Monteiro, Assalto ao trabalho e às pensões, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Junho de 2018.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Um «Rendimento Básico Incondicional» à paisana?

Depois de anunciar a intenção de criar um cheque-saúde, através da generalização da ADSE, o PSD pretende avançar agora para o domínio das prestações sociais, propondo a conversão do Abono de Família numa espécie de Rendimento Básico Incondicional (RBI). Para tal, elimina a prestação nos seus moldes atuais e envereda pela lógica de atribuição de um «Benefício Infantil Universal». Ou seja, uma prestação que não só passa a abranger todas as crianças e jovens (sendo assim eliminado o princípio de redistribuição social) como deixa de atender às diferenças de rendimento das famílias ou a situações específicas de maior fragilidade sócio-económica (como sucede no caso de famílias monoparentais ou com 3 ou mais filhos a cargo).

De facto, como mostram os gráficos seguintes, e nos termos em que a PSD a apresenta, a opção por «universalizar» e «aplanar» o atual Abono de Família (e Abono de Família Pré-Natal) traduziria, até aos três anos de idade, não só uma quebra dos montantes recebidos pelas famílias com um filho (cerca de menos 2,3 mil euros), como prejudicaria, de forma socialmente ainda mais gravosa, os agregados familiares com três ou mais filhos (que perderiam cerca de 3,2 mil euros/ano) e as famílias monoparentais com um filho (que veriam a sua prestação anual reduzida, até aos três anos, em cerca de 4,2 mil euros).


Estamos portanto a falar de cortes que incidiriam nos primeiros anos de vida, com claros impactos em termos de combate à pobreza infantil, e que afetariam regressivamente os agregados familiares com menores rendimentos (enquadrados no 1º escalão), as famílias mais numerosas (que perderiam 52% do montante que recebem) e as famílias monoparentais (que passariam a receber, também no 1º escalão, quase menos 60% do valor que recebem até aos 3 anos de idade). Globalmente, ou seja, até aos 18 anos de idade, as situações de perda são generalizadas e, tal como sucede até aos 3 anos, tanto mais gravosas quanto menor o escalão de rendimentos em que o agregado familiar se situa.


A regressão que esta «mudança de paradigma» das políticas públicas comportaria, em termos de justiça social, redução das desigualdades e combate à pobreza e exclusão, diz muito sobre o programa político em que o «novo» Partido Social Democrata está a trabalhar. Sim, repito, do partido que se diz social-democrata, agora sob a liderança de Rui Rio.

O "Tudo" que não vale nada

Em declarações recentes, o presidente do PSD, em visita a uma feira, acusou o Governo de ser responsável pelo baixo crescimento económico em Portugal.

Rui Rio disse que Portugal apenas está a crescer por arrasto da Europa, porque não fez as reformas necessárias, e por isso quando a Europa abranda, Portugal abranda e cresce menos que o conjunto da Europa. Disse assim:
"O que está a acontecer, vai continuar a acontecer. Não tenho dúvida nenhuma. Porquê? Porque no momento certo em que deveríamos ter feito as reformas e os ajustamentos necessários, não fizémos nada. Ao não fazer nada, é evidente que vamos crescer menos que a União Europeia e a UE a crescer menos, Portugal crescerá ainda menos que a UE. Mas isso nós temos avisado há muito tempo, não é?"
Ora, tudo isto é um conjunto de ideias vazias.

Primeira, é verdade que Portugal cresce por arrasto, mas tem sido assim há décadas e sê-lo-á desde que "decidimos" - ninguém votou isso - acertar o passo pelos mecanismos monetários europeus. A partir daí, o nosso "coração" começou a bater ao ritmo do "coração" europeu e, por isso, o nosso esforço de convergência abrandou.  Também foi assim de 2013 a 2015, com a direita no poder.   

Segundo, nessa altura - e ainda agora no Parlamento, em qualquer discussão sobre o passado - o PSD vangloria-se que esse crescimento verificado desde 2013 se deveu - não ao arrasto - mas às alterações na legislação laboral de 2012, que, aliás, ainda estão em vigor. E que vão continuar em vigor graças ao recente acordo de concertação social que o PS - mais uma vez - mostrou não querer pôr em causa. E aliás resta analisar - lá teremos de voltar ao tema mais tarde - se não prejudicou ainda mais a situação. Tudo para agradar - à la Tsipras - a UE.  

Terceiro, se essas "reformas" ainda estão em vigor e se a economia cresce menos que a UE então é porque têm um efeito quase nulo no crescimento económico. E isso desde que foram aprovadas. Ou então há aquele argumento espertalhão que é dizer: "Se não tivessem sido feitas, estaríamos ainda pior...."

Quarto, se assim é, é porque as reformas introduzidas pelo PSD/CDS não foram as devidas ou as que Portugal precisava para crescer mais do que a UE. E foram feitas à custa de muito sacrifício - desta vez não das empresas, dos empresários - mas de quem lá trabalha. Um sacrifício inútil. Ou melhor: útil na medida em que ajudam as empresas a desendividar-se. Mas não parece muito justo que sejam sempre os mesmos a pagar a factura de algo de que não foram responsáveis.  

Quinto, Rui Rio continua sem dizer que reformas eram - na realidade - as devidas e necessárias,  essas que o PS não fez e que o PSD faria. Aliás, como todo o PSD, deputados inclusivé, desde que o PS conseguiu o apoio dos partidos à esquerda, nunca souberam dizer ao que vêm. Criticam a austeridade, mas querem mais austeridade. Criticam a ausência de reformas, mas nunca dizem quais são. E não há um jornalista que lhe pergunte o que defende...

O PSD é presentemente um grande vazio e aquela que deveria ter sido a tábua de salvação - a legislação laboral - afinal redundou em nada. Mas, não se enganem, isso ainda vai justiticar novos apertos laborais, porque estes... não resultaram!
   

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Efabulação económica

Mário Centeno e Miguel Castro Coelho escreveram um artigo no Voxeu, o sítio de divulgação da economia convencional europeia, a louvar o seu trabalho na “viragem” da economia portuguesa. Algumas notas rápidas:

1. Atribuir a recuperação económica aos inegáveis avanços de décadas na educação em Portugal é só uma manifestação de fé. Como o próprio Centeno e Coelho afirmam, esses avanços vêm de trás e precedem a longa estagnação da economia portuguesa a partir de 2001. Se os avanços na educação são condição para uma economia diversificada e desenvolvida, eles não são suficientes, como o caso português bem mostra. Não basta investir do lado da oferta. A procura de qualificações e as políticas públicas que as promovam (por exemplo, através de uma política industrial e cambial) são o outro lado da moeda que tem faltado em Portugal. Nesta recente recuperação da economia, alimentada pelo turismo e imobiliário, com desinvestimento nos serviços públicos (onde a necessidade de qualificações se concentra), dificilmente se pode atribuir uma relação causal entre progresso educativo e crescimento económico.

2. O aumento da capacidade exportadora da economia portuguesa é celebrado, mas a palavra turismo não aparece uma única vez. Não é difícil perceber a razão por detrás. Dar relevância a este sector mina o argumento de que estamos num processo de reestruturação económica, em convergência com os países mais ricos, graças às “reformas estruturais” entretanto empreendidas.

3. Nem uma palavra crítica é dedicada à reforma laboral do anterior governo. Pelo contrário, as sucessivas reformas laborais e a "flexibilidade" gerada são, mais uma vez, celebradas: temos fluxos de trabalhadores entre emprego e desemprego parecidos com os dos EUA. Urra!? A experiência de oscilar entre os dois estados deve ser formidável para os trabalhadores... Nada que surpreenda vindo de quem sempre defendeu o recuo dos direitos do trabalho. Talvez fique mais claro a relutância deste governo em reverter uma reforma antes criticada pelo Partido Socialista.

4. Os dados do investimento usados no artigo são bem estranhos. O aumento de 9% em 2017 é sublinhado, mas não nos dizem qual é a base. Pelo contrário, oferecem-nos um gráfico com o rácio entre investimento (privado) e valor bruto acrescentado. Como o segundo também caiu, parece que estamos em linha com a restante UE. Portugal é um dos países europeus com mais baixo investimento na Europa e o país com mais baixo investimento público em percentagem do PIB.

5. Este artigo parece (mais) uma provocação aos partidos que suportam o governo.

Nuestros hermanos


¿Cómo nos vamos a extrañar de que cuando planificadamente se está deconstruyendo a los Estados europeos realmente existentes, renazcan o se revitalicen nacionalismos nuevos o viejos? ¿Cómo no entender que cuando la democracia como autogobierno de la ciudadanía pierde peso e influencia ante poderes económicos oligárquicos, o no democráticos como las instituciones europeas, renazcan demandas de soberanía, de identidad, de protección? ¿Cómo no comprender la desafección ante instituciones y partidos políticos tradicionales cuando se han ido rompiendo las reglas de un pacto implícito que ligaba capitalismo regulado con democracia política y derechos sociales? (…) Los que empleamos el término populista o populismo de izquierdas lo hacemos conscientemente. Usar la provocación como un puñetazo encima de la mesa para desvelar una realidad que se quiere negar con la descalificación de populista. Formenti lo dice claramente: el populismo es la forma de la lucha de clases hoy, aquí y ahora. Dicha la provocación y cargada de sentido, empezamos a discutir en serio de los problemas de nuestra sociedad desde el punto de vista de las clases trabajadoras. 

Excertos do prefácio de Manuel Monereo, um deputado e ideólogo do Unidos Podemos (a renovada coligação eleitoral entre o Podemos, a Esquerda Unida e outras formações), à edição em castelhano do livro do italiano Carlo Formenti La variante populista – Lucha de clases en el neoliberalismo. Por uma vez, não sigo a regra do blogue e deixo a citação numa língua estrangeira que creio ser acessível a todos. Quando tiver acabado de ler, talvez teça por aqui ou por ali algumas considerações sobre o livro propriamente dito.

Entretanto, devo dizer que sou céptico em relação à ideia da portabilidade das soluções políticas, dado que estas nascem necessariamente de situações nacionais, ou plurinacionais no caso da Espanha, concretas e variadas, mas creio que as esquerdas que não desistem deste lado podem aprender alguma coisa com o Unidos Podemos, tal como esta aliança pode aprender alguma coisa com a limitada solução governativa deste lado da fronteira.

O que é que se pode então aprender? Deste lado, a colocar o desafio da unidade das esquerdas que não desistem de mudar a relação de forças face a uma social-democracia que, apesar de algumas aparências, continua sendo esvaziada pelo euro-liberalismo e face uma comunicação social que não desiste de acentuar o narcisismo das pequenas diferenças. Do outro lado, a possibilidade de encontrar articulações que pelo menos travem ou desacelerem a marcha do comboio rumo ao abismo, sem desistir de mudar a direcção, sabendo não só que o governo do PSOE é de pura aposta eleitoral, mas também que a viragem à esquerda é manifestamente exagerada: cá como lá, quem ocupa as pastas económico-financeiras manda; cá como lá, o consenso de Bruexlas-Frankfurt manda. Generalidades, portanto.

Buena suerte, hermanos.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Prudência, dizia o ditador

Imagem já não sei se do filme "No", se do documentário "Chicago Boys"
Em 1988, a perder a campanha de um referendo que se pretendia ser plebiscitário, o general Augusto Pinochet apelou à prudência dos chilenos. Não votem "No". Não queiram deitar a perder todo o sacrifício feito.

O que é que os chilenos poderiam perder?

A economia crescia, mas esses ganhos eram desigualmente repartidos. O milagre apenas fora conseguido pelos economistas conhecidos por Chicagos Boys com a quebra de liberdades fundamentais, com as tropas no governo e as polícias na rua. De 1980 a 1989, os gastos públicos com a saúde caíram 42%, os da educação 23%, os salários reais subiram 3% em dez anos mas ficando 10% abaixo do valor de 1970, o rendimento mínimo desceu 34%.

Só a ideia de prudência tem pressuposto todo um diagnóstico das causas das crises verificadas: a crise das dívidas públicas, motivadas por défices orçamentais elevados, em que no centro está o Estado. Esse diagnóstico está errado. E como tal, a terapia conexa - a austeridade, a contenção, a prudência - não resolve nenhum problema. Pior: evita que se olhe o problema de frente. Mas não se quer olhar o problema de frente porque isso seria olhar de frente o centro do poder e, como tal, pôr em causa a actual estrutura do poder.

A aplicação da prudência era, no Chile, a forma de manter essa realidade, essa distribuição de poder. Ao mesmo tempo, aproveitava-se para culpabilizar as políticas redistributivas da esquerda.

O mesmo apelo à prudência foi feito na Grécia em 2015, com o Syriza estava no poder. Para mostrar quão prudente poderia ser um governo de radicais, a equipa de Tsipras foi além das metas. Em vez do plano de Varoufakis, que previa um saldo orçamental primário de 1,5% do PIB complementado com uma reestruturação da dívida pública (única forma de solver o problema de base, criado pelo sistema financeiro corruptamente mantido pelo BCE, apoiado numa comunicação social falida e obediente), aumentou a meta para 3,5% do PIB, durante anos e anos, com uma vaga promessa de reestruturação no futuro.

Dois pontos percentuais a mais era o mesmo que esfolar vivo um povo já em plena crise social aguda.
E tudo por receio que o BCE fechasse a torneira de financiamento aos bancos e colocasse os gregos em bichas para retirar dinheiro das caixas multibanco. Havia alternativa?

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Tinha de ser inventada

Se a UGT não existisse tinha mesmo de ser inventada para assinar acordos, todos os acordos, de concertação social, incluindo o mais regressivo do tempo da troika, lembrem-se. A concertação tem sido de resto um dos instrumentos para fazer passar por nacionais as instruções implícitas ou explícitas vindas da UE.

Perante a barragem mediática, é preciso então dar a palavra à CGTP, que assinala criticamente algumas dos recuos planeados, num quadro onde os avanços são marginais, confirmando-se que a herança regressiva da troika e toda as malvadezas ainda antes desta estão a ser no essencial mantidas.

Cá por baixo, os representantes dos patrões subscrevem e a direita aprovará na AR, naturalmente. Já as esquerdas comunista e bloquista são claras nas suas posições críticas. Na melhor das hipóteses, esta solução governativa não passará, por responsabilidades do PS, de um compasso de espera na área laboral, uma das mais decisivas. Por sua vez, lá por cima, os guardiães desta ordem, na Comissão Europeia e no BCE, não têm ainda razões para preocupação, obviamente.

A notícia da viragem à esquerda do PS foi manifestamente exagerada. E exagerada talvez se venha a revelar a força do PS, tendo também em conta os ventos europeus. Já quem fala de viragem à esquerda do PS e não é de direita está a ser vítima de um fenómeno conhecido da economia política: preferências adaptativas.

domingo, 3 de junho de 2018

Eles estão, nós estamos, mesmo por todo o lado


Thomas Frank recenseia criticamente mais dois livros da indústria editorial anti-populista. Mesmo que se esteja cada vez mais interessado no tema, é impossível ler tudo. Com base no seu conhecimento histórico das tradições populistas norte-americanas, Frank chega a três conclusões importantes: o populismo é no essencial “a forma americana de expressão dos antagonismos de classe”; a elite dominante no partido democrata tem simpatizado pouco com os padecimentos das classes trabalhadoras, abrindo espaço aos populismos das direitas; Bernie Sanders, que é hoje o melhor exemplo da melhor tradição populista nos EUA, corrobora a hipótese de que  uma certa forma de populismo “é a cura e não a doença”.

Indo para lá dos EUA, a importância dos populismos pode ser atestada pela preocupação do economista-chefe de uma multinacional alemã do sector financeiro – Allianz Global Investors. Numa análise ao fenómeno, Stefan Hofrichter afirma que “com a desigualdade em níveis historicamente elevados, é de esperar que o populismo não seja uma tendência passageira, mas uma força política relevante durante um tempo considerável”. Um dos riscos para esta gente é o de as eventuais tendências desglobalizadoras e, já agora desfinanceirizadoras, vejam lá, poderem melhorar a sorte das classes trabalhadoras, alterando a correlação de forças. O que é um risco para uns, é uma esperança para outros.

Realmente, é claro que um certo tipo de populismo é mesmo a cura democrática de que precisamos dos dois lados do Atlântico. Afinal de contas, que mais lhes mete hoje medo?

sábado, 2 de junho de 2018

Moradas falsas: pôr números nas coisas

Lembram-se do Filipa de Lencastre? Um esclarecedor artigo de Isabel Leiria no Expresso Diário de ontem permite ter agora uma noção mais clara da dimensão (e do impacto) do esquema das «moradas falsas» para efeitos de matrícula: «Quase 40% dos alunos do pré-escolar, 1º e 5º ano do Filipa de Lencastre, em Lisboa, não têm os pais como encarregados de educação. Trata-se de uma escola pública que liderou o ranking nacional em 2016 e foi terceira em 2017, sendo das mais procuradas pelas famílias».

Os números impressionam: das 45 vagas do pré-escolar, 17 (38%) são de crianças cujos pais delegaram as competências de encarregados de educação em terceiros; no 1º ano do básico, 39 das 98 vagas (40%) correspondem às mesmas circunstâncias; no 5º ano, 66 das 189 vagas disponíveis, idem. Ou seja, quase metade dos alunos que frequentam inícios de ciclo têm como encarregados de educação pessoas a quem os pais delegam essa função. E como a vaga é garantida nos anos de continuidade, os pais chamam a si esse estatuto logo de seguida, «quando o critério residência deixa de ser relevante» (como sucede por exemplo no 2º ano, em que a delegação de competências cai de 40 para 17%).


Deve referir-se que nem todas estas situações de delegação de competências correspondem a casos de matrículas forjadas (por alguma razão a percentagem não passa de 40 para 0% na transição do 1º para o 2º ano). Tal como deve sublinhar-se que o Agrupamento de Escolas Filipa de Lencastre está longe de ser caso único, sendo apenas o mais mediatizado nos últimos tempos e aquele cujos contornos hoje se conhecem melhor.

No seu conjunto, de facto, estas situações mostram pelo menos três coisas: que a cultura da concorrência e dos rankings não é uma abstração, tendo consequências muito concretas; que as direções das escolas pactuam e promovem este tipo de esquemas, procedendo a uma efetiva seleção de alunos, em nome das boas posições nos rankings (impedindo dessa forma que muitos dos que realmente residem na sua área de influência as frequentem); e, por último, que vão na direção certa as medidas recentemente adotadas pelo Ministério da Educação, no sentido de se proceder a um controlo muito mais apertado deste tipo de fraude. Por tudo isto, quando ouvirem falar em igualdade de oportunidades, e do papel da escola na mobilidade social, lembrem-se de todos os «Filipa de Lencastre», que existem de norte a sul do país.