segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Há limites à actuação do BCE?

Acompanho os argumentos de João Galamba neste post. O fundo europeu não é mais do que um esquema "Frankenstein" de engenharia financeira que na ânsia de dissipar o risco, só o agrava. Também o acompanho na necessária refundação do BCE, o que implica a mudança dos tratados europeus. Tenho, no entanto, dúvidas sobre a capacidade do BCE em deter "o poder de anular todo e qualquer risco de insolvência". Imaginemos que o BCE age como garante de todas as dívidas europeias, financiando directamente os estados. Todos os países com uma dívida insustentável, devido ao agravamento da taxa de juro praticada nos mercados, passariam a ter os seus problemas de acesso ao financiamento resolvidos. No entanto, não acredito que o problema das dívidas se resuma a um problema de liquidez. A Grécia é hoje claramente um país insolvente, devido ao stock e composição da dívida, por mais pequena que seja a taxa de juro cobrada. Portugal, provavelmente, também. Ou seja, não me parece que o facto do BCE garantir toda a dívida grega pudesse prevenir um default de um dos países da zona euro. Não é por acaso que economistas favoráveis à intervenção do BCE nos moldes propostos, como Martin Wolf, prevêem uma inicial distinção entre quem tem problemas de liquidez ou está insolvente.

Presumo que o João Galamba argumentará que nesse caso o default seria totalmente absorvido pelo BCE. Aqui discordo. O BCE, como qualquer banco, tem capital próprio fornecido proporcionalmente por cada um dos Estados membros. Com um default, o BCE teria de ser recapitalizado por forma a absorver as perdas. Aliás, mesmo sem o cenário do default, o seu balanço aumentaria desmesuradamente, levando à necessidade de recapitalização. Ou seja, nestes cenários, o BCE tem a garantia, pelo menos implícita, da capacidade dos estados de, individualmente, recolherem impostos que sirvam para fazer frente a eventuais perdas. Mas o problema está no facto de esta recapitalização exigir muito mais do orçamento alemão do que do português. No fundo, os eleitores alemães estariam assim a pagar a factura da mutualização das dívidas ou de um eventual default grego. Penso que está aqui a razão da resistência alemã a qualquer solução deste género.

Mas vou presumir (a minha presunção talvez seja demasiada) que João Galamba argumenta que na verdade o capital próprio de um banco central, ou mesmo as garantias orçamentais que lhe subjazem, são irrelevantes. Bancos centrais não poderiam ir à falência por definição e o BCE teria o poder de simplesmente apagar as perdas do seu balanço. Começamos aqui a navegar em terreno desconhecido e, provavelmente, meramente teórico. O euro, mais do que qualquer projecto político, foi constituído como moeda de reserva internacional concorrente do dólar (papel em que foi bem sucedido) ao serviço dos interesses do capital financeiro dos países do centro europeu. No entanto, face à posição dominante do dólar, não me parece que a aceitabilidade internacional (ou mesmo doméstica) do euro fosse a mesma no cenário acima descrito. O euro seria uma moeda mais fraca, já que a confiança na moeda desapareceria, pelo menos parcialmente. Neste cenário, países como a Alemanha, que construíram o euro à imagem do marco, não teriam interesse na moeda única.

Resumindo, qualquer mutualização da dívida à escala europeia (quer seja via BCE ou outro mecanismo como as euro-obrigações) só pode ser bem sucedida se tiver uma garantia orçamental, com recursos próprios, que escape aos interesses nacionais de cada país. Essa garantia chama-se orçamento europeu, com impostos europeus. E para isso, tenho muita pena para quem não gosta da palavra, precisaríamos de federalismo democrático. Se tal projecto é possível politicamente é outra conversa, mas uma coisa é certa, não há solução económica europeia sem Estado europeu.

Da austeridade

A OCDE, uma das instituições austeritárias de referência, cortou hoje a previsão de crescimento na zona euro de 2% para 0,3% em 2012. Mais cortes se seguirão com estas políticas, assumindo que até lá a zona euro, tal como a conhecemos, ainda existe. Entretanto, a "euforia" em torno da cimeira do euro terminou entre os especuladores. Isto só pode surpreender os do pensamento económico mágico da austeridade expansionista, das cimeiras históricas ou da ajuda...

Desporto para a juventude

O Nuno Teles já tinha assinalado uma estranha previsão que consta do OE para 2012: "Em 2011, o produto contrai 1,9% e o desemprego cresce 1,5 pontos percentuais, mas em 2012 o produto cai 2,8% e o desemprego só aumenta 1 ponto percentual". Conclusão: "o governo deve estar a prever emigração maciça". Na realidade, o governo do empobrecimento desigual não se limita a prever. Tem a palavra o secretário de estado da juventude e do desporto: "Se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras."

Inimigos de Gaspar

Pedro Romano é um jornalista económico que tem o péssimo hábito de ler e analisar os relatórios do Instituto Nacional de Estatística. O INE é um dos inimigos da ideologia de Gaspar: "O diagnóstico de Gaspar parece estar enviesado em pelo menos dois pontos: 1) De acordo com o INE, não há, ao contrário do que é pressuposto pelo Ministério das Finanças, empresas da indústria transformadora a trabalhar próximo dos limites da capacidade (em média, pelo menos). A taxa de utilização da capacidade instalada foi de 74,5% em Setembro, em linha com os valores dos meses anteriores; 2) As próprias empresas dizem que o principal obstáculo à produção é a falta de procura, bem longe de qualquer outro tipo de constrangimento. Se a procura externa relevante não melhorar (cenário plausível nesta altura), aumentar as horas trabalhadas pode inclusive ter como efeito principal permitir dar resposta às encomendas com um menor número de trabalhadores, criando pressões para o aumento do desemprego no próprio sector exportador. Durante o período mais agudo da crise económica, algumas das soluções negociadas na Alemanha consistiram, aliás, numa política precisamente simétrica, em que se reduziam as horas trabalhadas para impedir despedimentos."

domingo, 30 de outubro de 2011

Perguntas ao Álvaro

Ao afirmar que o salário mínimo nacional só pode aumentar com o aumento da produtividade, tem noção de que está a interpelar-se a si próprio, pois é responsável por uma política que diminui recessivamente a produção? E que essa contracção afecta o que há de mais essencial na produtividade, a criação de riqueza? Ou pretende alcançar a produtividade por pura aritmética, isto é, por um aumento do desemprego ainda mais grave do que a regressão do produto?

José Reis no Público de hoje.

Tempo precioso


“[A] manutenção da prosperidade é extremamente difícil no mundo moderno e é tão fácil perder tempo precioso”. Assim termina a carta de Keynes a Roosevelt, escrita em 1938 e a que o Nuno Teles já fez referência: a crise não é uma oportunidade para nada, mas sim um imenso desperdício a superar o mais rapidamente possível por políticas de estímulo. O objectivo, a economia moral desta tradição intelectual, é criar as condições económicas para uma sociedade civilizada, ou seja, para uma sociedade que combine pleno emprego, justiça social e amplas liberdades, o que também depende da adequada domesticação de vários interesses económicos e da transformação dos especuladores nas tais bolhas numa torrente de investimento empresarial produtivo, substituindo o padrão pernicioso em que o investimento produtivo se torna em bolhas na torrente especulativa. Isto só pode ser feitos com taxas e controlos sobre os capitais financeiros desestabilizadores, tal como defendia Keynes.

Os líderes europeus, grandes especialistas em perder tempo precioso, poderiam perder cinco minutos a ler esta carta e mais cinco a ler um dos últimos artigos de “Lord” Robert Skidelsky onde este economista político mais ou menos conservador ataca a inanidade de uma austeridade que tornará a prosperidade impossível, lembrando aos credores que a destruição dos devedores é a ruína de todos e assinalando, a devedores e a credores, que temos de nos afastar de forma coordenada das “costas selvagens da globalização”. Temos antes de nos aproximar de uma desglobalização que refragmente regionalmente a economia global e a torne mais sustentável. É claro que as instituições europeias, que enquadram as decisões políticas que têm sido tomadas, foram concebidas contra todas as ideias expressas por Keynes e pelos seus mais relevantes seguidores, facilitando o que hoje cada vez mais reconhecem como uma grande perda de tempo, já que está bloqueada a acção política coordenada de investimento na escala relevante, que é, em primeiro lugar, a escala onde está a soberania monetária.

sábado, 29 de outubro de 2011

Do desavergonhado plano governamental de redução dos salários

Já vimos que, na passagem de 2010 a 2012, o número de desempregados vai subir de 603 mil para 727 mil, mais 21%. Mas, no mesmo período, as dotações para subsídio de desemprego vão cair 8%. Chamem-lhe o que quiserem: ignorância, insensibilidade, má-fé. Este é um episódio de que o Governo deveria envergonhar-se.

Daniel Amaral

Está na hora?

Seguindo Miguel Madeira, a decisão da Autoeuropa em dar mais mais oito dias de férias para ajustar a quebra na produção indica como o país está a precisar de tudo menos da tal meia hora adicional, um dos truques de uma direita que aposta sempre nos interesses dos sectores económicos mais retrógrados. Como é que se traduz Kurzarbeit para português e para os sectores mais avançados e que já pagam salários decentes? E, já agora, como é que se diz na língua de Merkel austeridade recessiva na desunião europeia?

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Com o capital não se brinca?


A reestruturação da dívida Grega parece estar a ser feita sem que o governo grego meta para aí nem prego nem estopa. Nesse sentido não é uma reestruturação liderada pelos devedores, para utilizar a categoria criada pelo Research on Money and Finance.

Mas também não me parece que seja uma reestruturação tão “voluntária” como isso. Um corte de cabelo de 20% pode ser um bom negócio, mas um outro de 50%, nem tanto. Nesse caso, também não é uma reestruturação liderada pelos credores.

Se eu não estiver enganado é uma reestruturação liderada pela Alemanha no papel de potencial devedor (e consentida pela França, entre outros). Uma espécie de reestruturação que não cabe na dicotomia “liderada por credores / liderada por devedores”.

O que mais me impressiona nesta reestruturação é o que ela revela do poder que um estado (ainda) tem contra os conglomerados financeiros. Tem o poder de fazer desaparecer de um só golpe 50% da dívida Grega aos privados, parece que tem o poder de não desencadear um “evento de crédito” e o accionamento dos Seguros de Crédito (CDSs), tem o poder de modificar o discurso no espaço público, transformando “calote” e “bancarrota” em “perdão”, tem o poder de silenciar uma legião de economistas que na véspera afirmavam que um incumprimento num estado da Euro Zona desecadearia o caos e a desordem.

Posso estar enganado, podem ter dado contrapartidas aos bancos que nós não conhecemos (embora me pareça duvidoso que os requisitos de rácio de capital e a oferta de dinheiros públicos para a capitalização se possam contar como contrapartidas). Mas o que me parece é que estamos perante uma manifestação invulgar do poder dos poderes públicos em resposta a um sentimento de “no bail out” que é muito forte na sociedade alemã e incluiu não só os periféricos pecadores mas também os bancos.

Eu que já ouvi dizer tantas vezes “com o capital não se brinca” sou levado a observar que por vezes com o que não se brinca é com um Soberano em estado de necessidade. O Soberano, independentemente da sua cor política e da intimidade cultivada com a finança ao longo de muitos anos, pode mesmo ser forçado pela pressão popular e pela necessidade, a levar muito mais longe do que gostaria à partida os seus exercícios de força política. Quem sabe ainda veremos a interdição de transacções com offshores, a taxação das transacções financeiras e tantas outras desconsiderações aos capitais que no passado só a esquerda defendeu.

Ainda poderemos assistir a isso e não nos devemos surpreender nem chocar só porque não se ajusta à primeira em alguma categoria conceptual a que estejamos habituados.

Aqui, como em muitas outras eventualidades, a história é boa conselheira. Quando o Soberano espirra, o capital com que nunca se deve “brincar” pode apanhar uma pneumonia. E por vezes o Soberano a espirrar primeiro não é aquele de quem se esperava o espirro.

As comissões liquidatárias


Vale a pena olhar para o Relatório "estritamente confidencial" da Troika sobre a Grécia, que se pode encontrar em qualquer blog ou site de informação. Este relatório é uma confissão, tão extraordinária como redundante, do falhanço da intervenção na Grécia. Não há nenhuma explicação económica para os cenários agora construídos, nem para as razões pelos quais os anteriores falharam tão escandalosamente. O relatório simplesmente revela um chorrilho de novas estimativas, apresentadas como se a sua elaboração resultasse de um alto critério científico que, no entanto, não é apresentado, e que só o leitor mais imaginativo conseguirá descortinar.

Em primeiro lugar, o exercício de projecção. Existe uma revisão para pior das projecções de todos os indicadores relevantes, mas apenas na medida que os torne mais compatíveis com os dados que se vai entretanto conhecendo. Numa técnica já bem conhecida no nosso país, quanto mais nos afastamos em direcção ao futuro, mais delirantes são as estimativas. Apenas para dar alguns exemplos, a troika prevê superávites primários a partir de 2012 e entre 4,3 e 4,5% a partir de 2014 até 2020. Ao mesmo tempo, prevê para o mesmo período (2014-2020) taxas de crescimento superiores a 2% e perto dos 3% entre 2015 e 2019. O relatório identifica como necessários novos empréstimos à Grécia com valores entre os 252 e os 440 mil milhões.

No plano das explicações, o relatório é pura e simplesmente risível. Fala do agravamento recessão e do impacto que esta teve na degradação dos restantes indicadores, mas nenhuma relação é estabelecida entre o agravamento da recessão e o próprio pacote de ajustamento. Aliás, só isso permite que a Troika preconize um agravamento das medidas de austeridade ao mesmo tempo que prevê taxas de crescimento acima dos 2% durante o período de aplicação dessas medidas. Assim, a explicação da troika fica-se pela ocorrência de "choques externos" (aquilo a que outros chamam economia) e a uma insuficiente execução do programa de privatizações. É assim o raciocínio dos fanáticos. Se o remédio agrava a condição do paciente, é preciso reforçar a dose.

Essa ideia é, aliás, expressa sem rodeios no documento. O cenário construído admite o agravamento da recessão e a continuação do aumento do endividamento da Grécia até 186% do PIB em 2013 (184% em 2014) e daí retira a conclusão de que é preciso mais "apoios" e reformas estruturais mais profundas. O único elemento de realismo em todo o relatório é o reconhecimento da necessidade de uma restruturação da dívida, ou seja, o que a esquerda anda a dizer há um ano e as várias autoridades europeias garantiam que seria uma calamidade.

Por cá, esta comissão liquidatária arrisca-se a ser ultrapassada no seu zelo pelo próprio Governo. Passos Coelho e os seus ministros multiplicam-se em medidas e declarações, entregando o país em sacrifício como prova do seu empenho. Duas provas recentes são as declarações extraordinárias do Primeiro-Ministro, dizendo que se nos fosse oferecido um perdão da dívida, recusava e que para sair da crise é preciso "empobrecer" o país. Hoje podemos ver na Grécia como esta estratégia é inteligente.

Mas é assim que continuarão a pensar as comissões liquidatárias. Porque o seu objectivo não é resolver os problemas de endividamento. O seu objectivo é cortar nos salários (como disse João Ferreira do Amaral aqui) e acabar com o Estado social. E essa operação será um sucesso, se não conseguirmos construir o movimento e unir todas as forças para travar o fanatismo. Dia 24 de Novembro trava-se uma das batalhas fundamentais.

Também publicado em www.esquerda.net

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Péssimo acordo


O acordo alcançado esta madrugada pelos líderes da zona euro vai de encontro às piores expectativas. Vamos por partes.

1) Foi anunciado o reforço do Fundo Europeu de Estabilização Financeira para um bilião de euros. No entanto, este reforço será feito através da sua alavancagem, ou seja, através do crédito angariado pelo próprio fundo. Os Estados europeus só se comprometem com uma parte do seu capital e as suas responsabilidades estarão limitadas à contribuição inicial. Não existe qualquer garantia mutualizada da dívida, como aconteceria no caso das euro-obrigações. O funcionamento deste fundo ainda não é claro, mas a confiança na sua capacidade em ajudar um dos grandes países (Espanha ou Itália) já está comprometida, pois estará organizado em diferentes "tranches", com riscos diferentes, uma vez que só uma parte está realmente garantida. A necessidade de envolvimento de países exteriores à Zona Euro, caso da China, é bizantina…

2) A anunciada reestruturação da dívida grega, que muitos erroneamente têm interpretado como um perdão de 50% da dívida, é o exemplo acabado do que temos definido neste blogue como uma reestruturação liderada pelos credores, de acordo com os seus interesses. A banca privada, voluntariamente, desconta 50% da dívida que detém, mas consegue um mecanismo de compensação europeu, superior a um terço das perdas assumidas. O problema é que o impacto no todo da dívida grega é pequeno. O relatório secreto da troika apontava para um impacto de cerca de 20% do PIB em dois anos, isto numa dívida de 160% do PIB. Os números anunciados de 120% do PIB em 2020, já de si insustentáveis, partem de pressupostos de crescimento económico (2% a 3%) e superávites primários orçamentais (mais de 4% do PIB), entre 2014 e 2020, completamente irrealistas. Não levam em conta quer o défice externo da economia grega (hoje ainda à volta dos 8%), a que corresponde necessariamente um aumento do endividamento público ou privado (ver os nossos posts sobre balanços sectoriais), quer a composição da dívida grega (como pode um país crescer num contexto em que o Estado arrecada mais receitas do que despesas na ordem dos 4% do PIB, que são mais do que transferidos para o exterior sob a forma de pagamento de juros). Estes objectivos nunca serão alcançados. Esta reestruturação só serve para proteger a banca, adiando o inevitável.

3) Foi anunciada nova ronda de austeridade europeia, seja através do compromisso italiano, seja já o aviso para a necessidade de novas medidas de austeridade em Portugal. Portanto, teremos mercados externos deprimidos e mercado interno ainda mais contraído. Juntar crise à crise.

4) Finalmente, naquilo que é estrutural nesta crise, ou seja, os desequilíbrios externos dentro da zona euro e a necessidade de uma estratégia de crescimento económico articulada, nada é dito ou feito. Esta não é uma crise da dívida pública. Esta é uma crise do euro.

A Economia problema


O Conselho Científico das Ciências Sociais da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), presidido pelo Professor José Mattoso, acabou de dar um importante contributo para resolver um problema que se arrasta há muitos anos: a degradação do ensino e da investigação da Economia em Portugal por falta de pluralismo na maioria dos Departamentos de Economia e nos painéis que avaliam na FCT os projectos de investigação na área de Economia e Gestão.

No relatório do Conselho destaco:

“A questão do pluralismo nas ciências sociais e humanidades pode-se pôr, pelo menos, em relação a dois domínios: o pluralismo dos temas de investigação e o pluralismo de paradigmas e de metodologias de análise.

No que se refere ao pluralismo de temas, não parece haver, de forma directa, um problema sério quanto à actividade de investigação realizada no nosso País. No entanto, de forma indirecta, o pluralismo pode ser, e tem sido, afectado. Assim, a existência de temas que por um fenómeno de “moda” fixam demasiado as atenções e o trabalho dos investigadores em prejuízo de temas igualmente importantes ou a menor apetência para, em certas áreas científicas, os investigadores abordarem temas da realidade portuguesa de mais difícil publicação, são exemplos de condicionantes ao pluralismo que podem surgir de forma indirecta.

No que se refere ao pluralismo de paradigmas e de metodologias, a situação é distinta. Toda a ciência tem a sua visão mainstream e as ciências sociais e humanidades não são excepção. No entanto, por vezes, o poder da visão mainstream torna-se de tal forma dominante que pode levar a uma redução significativa do pluralismo, ao estiolar das ideias inovadoras e ao bloqueio da emergência de novos paradigmas, emergência que é essencial para o progresso científico.

O caso mais visível desta redução do pluralismo será talvez o da Economia. Situação que é agravada pelo facto desta ser uma ciência social que tem, necessariamente, uma componente política muito forte, pelo que as opções políticas interferem com os critérios científicos e não são de menor importância na competição entre paradigmas. Esta característica impõe uma atenção redobrada a este caso, uma vez que a ausência de pluralismo na ciência económica não resulta directamente, longe disso, da maior capacidade explicativa da visão mainstream. No caso da Economia tem-se mesmo popularizado um termo, “o pensamento único”, para traduzir o afunilamento e ausência de pluralismo que tem afectado nas últimas três décadas a investigação nesta área científica, com consequências negativas evidentes sobre o respectivo progresso.

Esta situação verifica-se também no nosso país, onde têm sido frequentes as chamadas de atenção de investigadores da área científica da Economia para o que consideram ser uma discriminação contra trabalho de investigação que não siga o paradigma mainstream. Ainda recentemente cerca de noventa investigadores dirigiram uma carta ao Presidente da FCT apelando para um maior pluralismo na avaliação de projectos de investigação (Anexo 4).

Também tem sido chamada a atenção, por outros investigadores, para o facto de os painéis que, sucessivamente, se têm encarregado da avaliação das unidades I&D terem demonstrado alguma desconfiança em relação à investigação que não se enquadra na visão mainstream. A situação na área científica da Economia no que respeita ao pluralismo será porventura a mais grave. Mas este problema pode também afectar outras áreas das ciências sociais e das humanidades.


A posição do CCCSH

O CCCSH considera que é importante garantir o pluralismo na investigação científica, nas suas diferentes facetas, em especial no que respeita a paradigmas e metodologias. Tratando-se de investigação financiada por dinheiros públicos, tal exigência torna-se particularmente imperiosa. A responsabilidade de garantir o pluralismo compete sobretudo à FCT e não tanto às unidades I&D, que poderão naturalmente desenvolver a sua actividade segundo os paradigmas que livremente entendam dever adoptar.

Recomendações

Recomendações à Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Organizar e disponibilizar, para os projectos e bolsas aprovados, informação sobre os assuntos que são objecto da investigação, classificando-os de forma adequada à realização da monitorização que permita identificar e ocorrência de condicionantes ao pluralismo temático;
Assegurar uma composição dos painéis de avaliação de bolsas, projectos e unidades I&D elementos que dê a garantia de respeitar o pluralismo de paradigmas e de metodologias, sem abdicar dos melhores critérios de avaliação do mérito científico da investigação e sem pretender a ressurreição de paradigmas científicos já ultrapassados.

Recomendações às Unidades I&D

Combater a persistência de paradigmas ultrapassados, que muitas vezes só continuam a ser prosseguidos devido à não existência de incentivos à mudança por parte das unidades I&D.”

A mesma história

Há já algum tempo (anos, mesmo) que é muito claro que uma das condições necessárias para viabilizar a Zona Euro é colocar o BCE a agir como um verdadeiro Banco Central, como um credor de última instância capaz de travar a especulação em torno de dívida incorrectamente designada por soberana. O BCE tem de garantir directamente uma parte da dívida dos Estados, mesmo que tal processo possa ter de ser mediado numa primeira fase, e para salvar as aparências, por uma qualquer instituição reconfigurada para o efeito, mas com acesso directo ao poder financeiro do BCE: um embrião das euro-obrigações emitidas e garantidas pelo Banco Central, como deve ser. As elites políticas dominantes recusam dar tal passo, agitando a “independência” do BCE e a sua obsessiva missão que é manter uma estabilidade de preços com um viés deflacionário: independência face aos poderes democráticos, dependência face ao capital financeiro; estabilidade dos preços no meio da ruina económica e do desemprego de massas. De resto, a performativa teoria económica que esteve por detrás da criação do euro nestes moldes é a mesma teoria que pode acabar com ele. Para esta tarefa também contribui um FEEF bem amanhado para gerar toda a instabilidade financeira, incapaz de fazer face às pressões especulativas, até porque depende dos tais Estados só formalmente soberanos e que caem uns atrás dos outros. É claro que temos o reconhecimento tardio da ruína grega gerada por uma austeridade que continuará a causar a mesma destruição, acompanhada de calculada pilhagem, em periferias estranhamente passivas. E temos um novo momento do tal Estado bombeiro, uma “recapitalização” de um sector bancário moribundo, mas sem aparente aumento do controlo político, única forma de o reformar e colocar ao serviço da economia. Em suma, mais uma cimeira histórica...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Feist -"The Bad in Each Other"

Carta a Franklin Roosevelt

Em 1938, Keynes escreveu uma carta ao presidente norte-americano, F. D. Roosevelt, aquando da recessão em que os EUA entravam, depois da recuperação impulsionada pelo New Deal. Já aqui aludimos a este período, marcado por políticas económicas restritivas. Keynes identifica as causas para a recuperação que se seguiu à crise do início dos anos trinta (promoção do crédito, esquemas de apoio aos desempregados, investimento estratégico) e exorta o presidente norte-americano a continuar o caminho da recuperação económica, através do investimento público, promoção da negociação colectiva ou mesmo, se necessária, da nacionalização de sectores estratégicos. A actualidade da carta é desconcertante, mesmo com as óbvias particularidades históricas. Para além de ser uma bela peça literária, a secção abaixo é deliciosa. Nela são feitas observações sobre como lidar com os empresários, aqui equiparados a animais domésticos que precisam de ser educados.

O custo de uma reestruturação da dívida


O que diz um fala-barato? Uma reestruturação da dívida “iria significar anos para obter crédito externo”; depois de 1892, o país esteve 60 anos “para voltar aos mercados financeiros internacionais”, disse o Ministro Santos Pereira no Parlamento (segundo o Público de 26 de Outubro, página 4).

Passos Coelho já tinha observado antes dele: "Quando se fala em perdão de dívida para alguém, isso significa que os credores perderam a esperança de receber o que emprestaram. E enquanto tiverem memória não emprestam nem mais um euro". O “perdão” da dívida colocaria Portugal fora dos mercados financeiros "durante muitos anos" e a viver "níveis de austeridade absolutamente incomparáveis e brutais" em relação aos actuais.

O que diz quem estudou o assunto (neste caso dois investigadores do “insuspeito” Fundo Monetário Internacional)?

“Este ensaio avalia empiricamente quatro tipos de custo que podem resultar de um incumprimento soberano internacional: custos de reputação, custos de exclusão do comércio internacional, custos para economia doméstica canalizados pelo sistema financeiro, e custos políticos para as autoridades. Conclui que os custos são em geral significativos mas de curta duração e que por vezes não operam através dos canais tradicionais. As consequências políticas de uma crise da dívida, em contrapartida, parecem ser particularmente severas para os governos e ministros das finanças em exercício, como em geral acontece com as crises cambiais”.

Vejamos em mais detalhe o que se pode aprender lendo este estudo.

1) Os episódios de incumprimento são muito frequentes. Entre 1824 e 2004 ocorreram em todo o mundo 257 casos (cerca de três por ano). A maior parte, 126, teve lugar na América Latina, mas a Europa contribui com 15%. Metade dos incumprimentos registados diz respeito aos últimos trinta anos.

2) Incumprimento e crescimento do PIB: “o incumprimento surge associado a um decréscimo do crescimento de 1.2 pontos percentuais por ano”, mas, “o impacto do incumprimento parece ser de curta duração”. Além disso “embora as regressões anteriores sugiram uma associação robusta entre incumprimentos da dívida e baixo crescimento, elas são apenas indicativas de uma correlação entre as duas variáveis” sendo difícil identificar "a direcção de causalidade entre crescimento e incumprimento”.

3) Incumprimento e reputação: “Actualmente há acordo quanto ao facto de que um incumprimento não conduz a uma exclusão permanente dos mercados de capitais internacionais. De facto, a evidência sugere que, embora os países percam o acesso durante a fase de incumprimento, uma vez concluído o processo de reestruturação, os mercados financeiros não descriminam, em termos de acesso, entre incumpridores e não-incumpridores”. “Países que entraram em incumprimento na década de 1980 conseguiram aceder de novo ao crédito internacional em cerca de quatro anos”. O incumprimento tem um efeito no custo do crédito, mas esse efeito é de curta duração: “Um incumprimento no ano t-1 tem um efeito grande e significativo nos ‘speads’ de cerca de 400 pontos base. O efeito do incumprimento no ano seguinte ainda é considerável, 250 pontos base, mas não é estatisticamente significativo. Efeitos a mais longo prazo são pequenos e não são estatisticamente significativos.”

4) Incumprimento e comércio internacional: “O registo histórico de países impondo quotas ou embargos a um país que entrou em incumprimento é muito limitado”.

5) Incumprimento e o sistema bancário doméstico: “A evidência que encontramos sugerindo a presença de uma compressão de crédito nos mercados domésticos causada por incumprimento é muito fraca".

6) Implicações políticas de um incumprimento: “Os incumprimentos parecem encurtar, de um modo significativo, a esperança de vida dos governos e dos governantes encarregues da economia".

Corolário dos autores do estudo: “Por vezes os políticos e os burocratas parecem levar ao extremo o adiamento do que parece ser um incumprimento inevitável”. Muito para lá do “ponto de incumprimento”, isto é, “o ponto em que o custo de servir a dívida na plenitude dos seus termos contratuais é mais elevado do que os custos incorridos quando se procura uma reestruturação desses termos…”

Opinião semelhante e de fonte igualmente “insuspeita” encontra-se na Economist.

Passividade selectiva

Passos Coelho tentou sossegar os banqueiros ansiosos, garantindo que o Estado será um temporário “accionista passivo” se tiver de entrar no capital dos bancos privados, como tudo parece indicar, para os salvar dos seus negócios com a dívida pública, até há pouco tão apetitosa, já que não é por patriotismo que os bancos nacionais detêm mais ou menos 20 mil milhões de euros desta, a que se tem de juntar outra dívida periférica igualmente reestruturável, mas também para os salvar da dívida privada, num contexto de recessiva austeridade tão intensamente saudada pelos espíritos santos da economia política nacional e geradora de tantas insolvências.

Como referiu Silva Lopes, um economista com quem temos estado muitas vezes em desacordo, mas que sempre criticou a liberalização e a complacência financeiras, o Estado não pode entrar no capital dos bancos para assistir impávido e sereno, sem participar na gestão. O Estado tem de exercer todos os poderes de accionista. Só assim se pode começar a superar um sistema financeiro que tão maus serviços prestou à economia portuguesa, aos sectores produtivos. O crédito é um bem público e tem de ser um instrumento de política económica. Mas não esperem que o governo dos actuais e dos novos aspirantes a “donos de Portugal” perceba isso. Não está na sua natureza.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Importa-se de explicar?

Fernando Ulrich, presidente do BPI (um dos três bancos portugueses que detêm obrigações gregas) não concorda com o perdão de parte da dívida à Grécia, uma vez que «essa decisão significa reconhecer que a dívida soberana de países da zona euro perde o estatuto de ser um activo sem risco». Um activo sem risco? Se assim é, a que propósito os bancos seguem as notações pornograficamente exorbitantes das agências de rating, cujo fundamento assenta justamente no risco de incumprimento por parte dos Estados?

Para acabar de vez com os mitos da crise

Se nalguma coisa a narrativa austeritária tem sido singularmente bem sucedida, é a disseminar e explorar o mito de que os países da periferia europeia viveriam acima das suas possibilidades por os seus trabalhadores trabalharem de menos e terem regalias a mais. Esta visão hegemónica foi abundantemente vendida aos eleitorados e opiniões públicas dos países do centro europeu, claro, mas tem também exercido grande influência na própria periferia.

Acontece que é, simplesmente, mentira. Este post publicado no blogue da Real World Economics Review, que tem por base um exercício anterior de Kash Mansori, reúne cinco tabelas que mostram isso muito bem. É um conjunto de indicadores a que nós e outros já nos temos referido, mas que aqui se encontram convenientemente reunidos e resumem a questão de forma cristalina.

As figuras falam por si, mostrando que, de uma forma geral, os trabalhadores da periferia europeia…

1) trabalham mais horas;

2) têm taxas de actividade idênticas ou mais elevadas (especialmente Portugal e Espanha);

3) no caso de Portugal e sobretudo da Grécia, apresentaram níveis de crescimento médio anual da produtividade do trabalho, entre 2000 e 2008, idênticos ou superiores aos do centro europeu;

4) registam níveis de despesas sociais per capita bastante mais reduzidos;

e 5) apresentam um nível de despesas com pensões de reforma em percentagem do PIB (isto é, relativamente à capacidade da economia) idênticos aos do centro europeu;

Ou seja, a narrativa hegemónica é uma rematada mentira de consumo fácil, destinada a persuadir as vítimas da espoliação de que "não há alternativa". Quanto à verdadeira história, resume-se nos seguintes pontos:

1) Uma perda de competitividade dos países da periferia europeia ao longo da última década que não se deveu à evolução da produtividade do trabalho mas sim à pertença a uma zona monetária perversa, com um euro sobrevalorizado face ao exterior e, no interior da zona euro, uma competição cerrada ao nível da compressão salarial promovida acima de tudo pela Alemanha...

2) …perda de competitividade essa que, ao longo da última década, provocou o gradual aumento do défice comercial e constrangeu o nível de actividade económica, com consequente perda de receitas fiscais (aumentando o défice orçamental)...

3) …a que se seguiu uma recessão mundial, de 2008 em diante, que implicou uma contracção dos mercados de exportação, com consequente aumento adicional do défice externo e contracção adicional da actividade económica, implicando uma perda adicional de receitas fiscais e um aumento dos gastos do estado por acção dos estabilizadores automáticos (como o subsídio de desemprego)…

4) …recessão mundial essa que incluiu uma crise bancária que esteve na origem da opção política pelo resgate público de bancos falidos em condições desastrosas (somando défice ao défice), aliás na sequência das gigantescas rendas que os estados vêm há muito, e por diversas vias, assegurando à banca…

5) …somando-se ainda ao desperdício obsceno de fundos públicos decorrente da captura do Estado por interesses rentistas, nomeadamente através das ruinosas “parcerias" público-privadas.

Portanto: uma crise cujos fundamentos residem nas estratégias do capital centro-europeu; que foi despoletada por uma recessão mundial também ela decorrente do funcionamento do capitalismo financeirizado; e que se tornou insustentável devido ao desperdício acumulado do erário público em benefício de interesses rentistas nacionais, com a banca e os grandes grupos económicos à cabeça.

E pela qual são os trabalhadores, pensionistas e classes populares a pagar - de uma forma nunca vista e, se não reagirmos à altura, permanente.

Mais do que uma crise, é um gigantesco roubo. E temos todos a obrigação de lutar contra ele nas ruas, nos locais de trabalho… e nas mentes daqueles com quem falarmos.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A verdade amarga



Paul Krugman no NYT:
(...)
Pensem em países como o Reino Unido, Japão e os EUA que têm grandes dívidas e défices e, no entanto, continuam a pedir emprestado a baixas taxas de juro. Qual é o seu segredo? A resposta, em parte, reside no facto de terem moeda própria e de os investidores financeiros saberem que, num aperto, estes países podem financiar os seus défices criando mais moeda. Se o Banco Central Europeu garantisse da mesma forma as dívidas europeias a crise seria muitíssimo aliviada.

Isso não causaria inflação? Provavelmente não … a criação de moeda numa economia deprimida não é inflacionista. Mais ainda, na realidade a Europa precisa de uma inflação um pouco mais alta. Uma taxa de inflação demasiado baixa condenaria a Europa do sul a anos de deflação esmagadora, na prática garantindo desemprego elevado por muito tempo e uma cadeia de falências.

Mas, segundo nos dizem, este tipo de política é inaceitável. O estatuto que criou o Banco Central Europeu supostamente proíbe este tipo de manobra, embora não custe a crer que alguns advogados inteligentes arranjariam uma forma de contornar isso. O problema de fundo é que o euro foi desenhado para combater a última guerra. É uma Linha Maginot feita para impedir a repetição dos anos setenta, o que é pior que inútil quando o verdadeiro perigo está na repetição dos anos trinta.

E, como disse, este desenrolar dos acontecimentos é trágico.

A história da Europa do pós-guerra é profundamente instrutiva. Sobre as ruínas da guerra, os Europeus construíram um sistema de paz e democracia, e ao mesmo tempo construíram sociedades que, embora imperfeitas – e há alguma que não o seja? – são possivelmente as mais decentes da história humana.

Contudo, esta conquista está ameaçada porque a elite europeia, na sua arrogância, trancou o Continente num sistema monetário que recriou o espartilho do padrão-ouro e este – tal como o padrão-ouro nos anos trinta – tornou-se uma armadilha mortal.

Pode ser que os líderes europeus acabem por apresentar um plano de resgate verdadeiramente credível. Desejo isso, mas não acredito nisso.

A verdade amarga é que, cada vez mais, o sistema do euro parece estar condenado. E a verdade ainda mais amarga é que, tendo em conta a forma como este sistema se tem comportado, a Europa poderia melhorar a sua situação se ele acabasse o mais depressa possível.

Continua a chorar

A notícia do Público de hoje sobre as eleições argentinas reproduz de forma acrítica o que uma certa imprensa económica, nomeadamente a The Economist, diz sobre a economia argentina, dando assim voz “aos economistas”. Estes e outros analistas dizem que coisas péssimas estão há vários anos prestes a ocorrer, incluindo do ponto de vista político, agitando o fantasma do autoritarismo. Péssimo é o hábito de usar “os economistas” como argumento de autoridade. Se deixaram de fazer isso na secção nacional porquê continuar a fazê-lo na internacional? De resto, quem leia a The Economist sabe que aí se repete o mesmo desde que um Kirchner foi eleito (artigos de 2003 ou 2008, por exemplo): a economia argentina, devido às suas políticas “intervencionistas”, está à beira da tal “hora da verdade” mencionada pelo Público. A peça do Público destaca precisamente a taxa de inflação para dar a ideia de instabilidade, esquecendo que no contexto argentino uma inflação de 20%, como se diz, é historicamente baixa, com a excepção do período mais intensamente neoliberal de ancoragem ao dólar, que levou ao colapso com deflação e tudo. O que conta é o rendimento real e a sua repartição, como sublinha o economista Mark Weisbrot num excelente artigo sobre a vitória de Kirchner, perguntando: “será que a Europa está a ouvir”. Com artigos como os do Público, a resposta só pode ser negativa e o desastre o que se sabe.

Continuando. É verdade que as políticas monetárias e fiscais de Eduardo Duhalde iniciaram a recuperação, mas estas políticas não se seguiram ao que é designado no Público por “rude golpe” do default e da desvalorização, já que foi Duhalde quem os impulsionou e que foram estas duas políticas que permitiram precisamente o início da recuperação. Os Kirchner confrontaram os credores e adicionaram uma política de expansão assente na recuperação de instrumentos de intervenção no campo social e económico. Enfim, quem nos dera esta insustentabilidade, com um crescimento projectado de 8% para 2011, com uma melhoria continuada, com quase dez anos, dos indicadores económicos e sociais, com um processo de reindustrialização, visível na alteração do perfil exportador argentino. O que a opinião ainda convencional ainda não é capaz de compreender é que o sucesso argentino se deve precisamente à ruptura com as políticas neoliberais anteriores, primeiro com o incumprimento e a desvalorização cambial e depois com a reintrodução de palavras como “proteccionismo”, nacionalizações e política social. Bem melhor do que a pilhagem que se seguiu à política de submissão às exigências dos “investidores internacionais” a que revistas como a The Economist dão voz e para quem a Argentina de Menem e Cavallo era o paraíso na terra.

domingo, 23 de outubro de 2011

Chora por nós Argentina

O Alexandre Abreu já tinha assinalado a recuperação socioeconómica argentina. Um sucesso que se seguiu precisamente à reestruturação da dívida e à desvalorização cambial, ambas tão incompreensivelmente diabolizadas entre nós. Graças a um comentário de José M. Sousa, confirmando que o blogue é bem mais do que os posts que escrevemos, tomei conhecimento de um novo estudo do Center for Economic and Policy Research. Este dá-nos uma visão actualizada da trajectória argentina que confirma a análise feita pelo Alexandre e que explica o sucesso político do apelido Kirchner, primeiro com Nestor e depois com Cristina, que será hoje reeleita Presidente da Argentina por margem histórica. Pudera: o mais intenso crescimento “ocidental”, desde 2002, com autonomia face à finança internacional, com diversificação económica e não na base de um mítico “boom” das exportações agrícolas, com redução das desigualdades ou diminuição da pobreza, graças, entre outros factores, à triplicação das despesas sociais em termos reais neste período e ao aumento do emprego. O estudo implode com várias ideias feitas e que ainda circulam, à esquerda e à direita, no nosso país e retira algumas implicações para as atascadas periferias europeias, as actuais vítimas de elites predadoras: é necessário proceder a uma reestruturação maciça da dívida por iniciativa dos devedores, por forma a reduzir substancialmente o seu fardo, mesmo que isso possa envolver, para a Grécia em primeiro lugar, sair do euro. Este pode ser um dos efeitos da rebelião das periferias, o outro pode ser uma reconfiguração do euro que supere a austeridade. Por isso é que temos de trabalhar com cenários neste contexto. Uma leitura a não perder.

A crise (adiada) do neoliberalismo - parte VI

(Continua daqui: I, II, III, IV e V)

O colapso do sistema financeiro exigiu dos Estados a mobilização de recursos financeiros na ordem das centenas de milhares de milhões de dólares, visando evitar a paralização dos sistemas financeiros e as suas repercussões na actividade económica. Tal não evitou, ainda assim, que o PIB mundial decrescesse em termos reais pela primeira vez desde o pós-Guerra, conduzindo a uma ainda maior degradação das contas públicas – e à crise da dívida soberana que hoje assola vários países.

Entretanto, o sistema financeiro continuou sob assistência estatal, beneficiando de garantias para obtenção de crédito, bem como de empréstimos a baixo custo por parte dos bancos centrais. Parte dos recursos assim obtidos foram utilizados para adquirir títulos da dívida pública de vários países, nomeadamente daqueles cuja fragilidade financeira justifica a aplicação de taxas de juro atractivas para os investidores. Isto terá contribuído para que a crise se tenha revelado menos severa para o sector financeiro do que para o resto da economia: depois de ter sofrido perdas na ordem dos 42,6 mil milhões de dólares em 2008, o sector financeiro dos EUA obteve lucros de cerca de 55 mil milhões de dólares em 2009, distribuindo bónus aos gestores superiores a 20 mil milhões de dólares.

A grande crise do neoliberalismo apresenta-se hoje como um contrasenso. Surgindo como o exemplo mais recente e mais gravoso das implicações de um modelo de desenvolvimento que conduz ao aumento das desigualdades sociais e à instabilidade económica e financeira, o resultado da crise parece ser hoje o aprofundamento desse mesmo modelo. A crise financeira dos Estados conduz ao aumento da carga fiscal sobre os assalariados e à redução dos apoios sociais, num contexto em que o desemprego alastra, acentuando assim as dinâmicas de desigualdade. O apoio ao sector financeiro, justificado pela persistência de dúvidas sobre a sua robustez, fomenta o crescimento do seu peso na economia, preservando e até reforçando a sua influência política.

Tal influência ajuda a explicar o alcance modesto das reformas até agora introduzidas no funcionamento dos sistemas financeiros: a lógica de auto-regulação dos mercados não foi substancialmente alterada; os grandes aglomerados financeiros não foram desmantelados, tornando incontornável a necessidade de apoio dos Estados em futuros cenários de crise; e os fluxos internacionais de capitais seguem sem restrições em grande parte do mundo.

A crise financeira que teve início em 2007 terá ajudado, como sugeriu Stiglitz, a transmitir ao mundo a mensagem de que o actual modelo de desenvolvimento económico é insustentável. Mas por ora ficou adiada a sua reforma.

(Texto publicado no anuário JANUS 2011-2012.)

sábado, 22 de outubro de 2011

Les Portugais?



Infelizmente sem legendas em português.

60% de corte de cabelo?

O Financial Times teve acesso a um relatório confidencial da troika – BCE, FMI e Comissão Europeia – sobre possíveis cenários de reestruturação da dívida grega. A primeira novidade é que se chega à conclusão que é necessário um corte na dívida de 60% (maior do que os 50% de que se tem falado) para que a Grécia não precise de um terceiro pacote de financiamento. O colapso da economia grega e o falhanço da austeridade são evidentes. No entanto, a troika não dá o braço a torcer e culpa os gregos pela lentidão na aplicação das “reformas estruturais”. O autismo relativo ao que se está a passar na Grécia consegue ainda surpreender. A realidade não interessa quando temos uma teoria elegante. Mais interessante é constatar o desacordo dentro da troika. O BCE, porta-voz dos interesses do capital financeiro europeu, recusa os cenários de corte da dívida grega. Qualquer proposta de solução europeia implicará a refundação deste Banco, colocando-o ao serviço da economia e sob controlo democrático. Contudo, dada a actual correlação de forças europeias, tal proposta é cada vez mais do domínio da “Terra do Nunca”.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Diz-me qual é a tua prioridade política, dir-te-ei que interesses serves...

Não me parece que a prioridade do Governo seja o défice público, mas os custos salariais. Está a ser aplicada uma fórmula para ganhar competitividade que passa por gerar desemprego, aumentar o horário de trabalho e flexibilizar a legislação, conseguindo assim baixar o nível geral dos salários. É um modelo que sempre foi discutido, mas nunca foi aplicado com esta dureza. E estou convencido de que não funciona em Portugal (...) As famílias estão demasiado endividadas. Esta fórmula até pode dar resultado se o ajustamento necessário for pequeno e as famílias tiverem menos dívidas. Neste caso, vai provocar um aumento significativo do incumprimento junto da banca.

Suave?


Vítor Gaspar usa o termo “crise sistémica” no OE, mas isso não significa que os problemas deste euro, que estão na origem da perpetuação da crise iniciada num sistema financeiro disfuncional, sejam minimamente identificados. Será que a crise foi o produto de um “sistema” de indisciplina financeira das periferias, um problema de “dívida soberana” excessiva que colocou Portugal no seu “centro”? Parece: “A evolução recente demonstra que no contexto da União Económica e Monetária, problemas orçamentais e financeiros nos países membros, mesmo de pequena dimensão, têm um potencial de contágio significativo a nível internacional.”

Portugal pode então causar problemas e já sabemos que este governo não quer incomodar o capital financeiro, nacional e internacional, que originou a crise. O governo quer somente obedecer à politica dos credores porque isso serve a sua agenda ideológica de destruição do Estado social, do mundo do trabalho ainda organizado. De forma só aparentemente pacóvia prefere assim apresentar a sua política de intenso empobrecimento desigual como um exemplo para a Europa, um “exemplo da possibilidade de ajustamento bem-sucedido na área do euro.” Isto é uma impossibilidade, claro, porque o euro, na ausência reformas profundas, não tem mecanismos de ajustamento que garantam a sua viabilidade, a nossa viabilidade dentro dele.

Quais as razões apresentadas pelo governo para esta economia sacrificial? Uma frase: “falhar as metas que temos pela frente não é uma opção, dadas as consequências devastadoras que teria para a nossa economia.” É difícil imaginar consequências económicas mais devastadoras do que as que serão engendradas por um OE que assenta numa hipótese irrealista neste contexto depressivo: não vamos falhar as metas orçamentais fixadas.

É caso para perguntar: será que o reconhecido efeito de contágio que a nossa inevitável reestruturação da dívida causará, tanto mais intenso quanto mais precoce, não deveria ser desde já uma arma negocial do país, e, já agora, das restantes periferias na mesma situação, para assim obter outras condições financeiras, uma reconfiguração do euro, e também contribuindo para que outro OE fosse apresentado, um OE menos assimétrico nos seus efeitos, mas sobretudo um OE que assumisse que a consolidação das finanças públicas só pode realisticamente ser consequência do crescimento e que este só resultará do dinamismo da procura interna e externa? Claro que sim, mas para isso teríamos de ter um governo com outras prioridades ideológicas, com outros interesses.

É evidente que a proposta de reestruturação da dívida por iniciativa dos países devedores que recusam ser esmagados, envolvendo prazos, juros e montantes, é uma opção que acarreta riscos, acentuando tensões eventualmente produtivas e acelerando uma clarificação urgente e para a qual temos de estar preparados: renovada integração ou desagregação.

A questão é um bocadinho mais complicada



Numa altura em que inúmeros representantes políticos, jornalistas histéricos e comentadores celebram vergonhosamente um assassinato, vale a pena recuperar esta análise sóbria e inteligente de James Petras, datada de há alguns meses atrás, acerca dos interesses e motivações em jogo no conflito líbio:

Maniqueísmos à parte, este conflito começou como uma guerra civil entre duas fracções das elites líbias: uma autocracia paternalista e crescentemente neoliberal que gozava de um apoio popular considerável versus uma elite treinada e financiada pelo imperialismo ocidental, apoiada num conjunto amorfo de chefes religiosos, tribais e regionais, apoiantes da monarquia e quadros neoliberais, sem quaisquer credenciais democráticas ou nacionalistas e desprovida de uma base popular de apoio significativa.

Por mais que certos críticos possam acusar o Ocidente de ‘hipocrisia’ e ‘duplicidade de critérios’ por bombardearem Khadafi mas não os déspotas de inumeros países do Golfo, na verdade os poderes imperiais têm vindo a aplicar os mesmos critérios em cada uma destas duas regiões: defendem estrategica e consistentemente os regimes autocráticos clientelares que permitem aos estados imperiais instalar bases militares estratégicas, levar a cabo operações secretas e criar plataformas logísticas para as guerras em curso no Iraque e Afeganistão, bem como para o conflito previsto com o Irão. Atacaram a Líbia de Khadafi precisamente porque este se recusara a contribuir activamente para as operações militares do Ocidente em África e no Médio Oriente.

E uma nota adicional: para quem ainda tenha ilusões relativamente à isenção de canais como a BBC ou a CNN, é especialmente divertido reparar como em todos os excertos de declarações passadas de Khadafi que são agora recuperados, os intérpretes que fazem a dobragem para inglês usam sistematicamente um tom de ‘mau da fita’ para reforçar o processo de demonização do inimigo. Reparem, vale a pena.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Compara-se

Para quem possa estar interessado nestes temas, amanhã e depois terá lugar na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra o Colóquio Internacional A Política para a Saída da Crise: Europa Mediterrânica e América Latina em comparação. A entrada é livre.

Os donos do euro?

Os muitos erros cometidos na resposta à crise da zona euro têm uma causa comum: a zona euro é uma grande economia fechada. Cada um dos seus 17 membros é pequeno e aberto (...) os líderes políticos que governam a zona euro têm uma mentalidade de pequena economia aberta - todos, sem excepção.

A formulação de Wolfgang Munchau do Financial Times é uma das maneiras de expor a falácia da composição inscrita na desunião europeia, em geral, e na zona euro, em particular, que aqui também temos sublinhado de uma outra forma: o que pode parecer racional para as elites de cada país individualmente considerado, tendo em conta as estruturas económico-políticas europeias entretanto criadas, – apostar numa estratégia medíocre de redução do salário directo e indirecto, conseguida também através de novas e duradouras alterações neoliberais nas economias políticas nacionais, para assim tentar aumentar as exportações e os lucros – gera um resultado globalmente irracional à escala europeia, ou seja, um mercado interno europeu contraído por um défice permanente de procura salarial, o que acaba por diminuir o investimento e aumentar o desemprego europeu. Os interesses de longo prazo de fracções importantes do capital produtivo nem sequer são bem servidos pela derrota estrutural das classes trabalhadoras à escala europeia. Esta foi obtida graças ao bem sucedido esforço de transformação institucional liderado por uma aliança entre o capital financeiro e as fracções mais extrovertidas e apetrechadas do capital industrial concentradas no centro, as forças sociais por detrás deste euro. Os seus donos?

Um dilema grego?


“Ficar na eurozona, diz Varoufakis, requereria uma reestruturação radical do modo como funciona todo o sistema da moeda única. Regressar ao Dracma … requeria uma desvalorização da moeda muito difícil que poderia levar a um corte enorme do PIB Grego de um só golpe”.

O País que se cuide


No início desta semana, João Cardoso Rosas concluiu a sua coluna no “Diário Económico” com perplexidade:

“Um governo sério e consequente que quisesse reduzir os custos financeiros do Estado procuraria diminuir a desigualdade, em vez de a agravar.”

Suponho que é mesmo perplexidade o que muita gente sente ao ver o ministro das Finanças defender um orçamento que tem todos os ingredientes para arrasar a economia e a sociedade portuguesa.


Da minha crónica no jornal i

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Entre o quê?


O resultado da orientação do Orçamento será passar da recessão à depressão e multiplicar o desemprego e a penúria. Ele não inverte o caminho da recessão, é a antecâmara do desastre grego.

Octávio Teixeira

Afinal, Portugal não é a Grécia. É o Chile. De há 30 anos. Não vamos apenas recuar no rendimento per capita, mas também na História, na integração europeia e, seguramente, na qualidade da democracia. Em prol de quê? - Em prol de uma fé. E a troco de quê? - A troco de uma mão cheia de nada.

Pedro Lains

Entretanto, também no Negócios, Helena Garrido contrasta com o realismo destes distintos economistas ao alinhar com o governo na ideia de que os ajustamentos patrocinados pelo FMI têm sido em geral bem sucedidos. Que estudos suportam esta tese bizarra? Falar do exemplo de Portugal nos anos setenta e oitenta não vale por causa de uma palavra: escudo. Se quer um exemplo mais aproximado que olhe para Sul, para a Argentina.

Garrido alinha ainda na conversa da flexibilidade, nome de código para maior facilidade em gerar e transferir custos sociais por parte de patrões medíocres para os trabalhadores e para o conjunto da comunidade, e na conversa da confiança dos investidores estrangeiros, o outro nome para a pilhagem de recursos nacionais em sectores estratégicos e que, também por isso, conferem poder.

A flexibilidade e esta confiança não criam um único posto de trabalho, claro. Pelo contrário, aprofundam a recessão e ajudam a acelerar a destruição de emprego através da maior facilidade em despedir e em baixar salários, com a correspondente acentuação da quebra de procura e do aumento do número de famílias e empresas insolventes, o que trava o investimento, e através da aquisição de activos a baixo preço, o que, para além de significar apenas transferências de direitos de propriedade, só incentiva as famosas reestruturações e mais despedimentos. De resto, numa economia em colapso, induzido por uma austeridade entusiástica, a confiança não passa de uma palavra vazia. É a dinâmica da procura que define o essencial da disposição para investir na criação de nova capacidade para produzir e o crédito não flui entre ruinas.

E a Irlanda, supostamente a iniciar um círculo virtuoso? Bom, a Irlanda registou precisamente a maior quebra do produto a nível mundial até há pouco, um brutal aumento do desemprego, que mais do que duplicou, ultrapassando 14%, e uma continuada transferência de rendimentos para o exterior. Um milagre da flexibilidade.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O bom aluno


Quem ainda pensa que os credores vão ficar muito agradecidos pelos esforços em cumprir as metas do défice e depois nos vão dar muito boas condições para um novo empréstimo é bom que vá ouvindo o Comissário Europeu Olli Rehn: “Apesar destes esforços, a última informação sugere que há riscos a respeito do cumprimento da meta de défice de 2011”. E rematou: “Isto é lamentável”.

Depressão

Com este orçamento todos saberão o que são as “gorduras” do Estado: salários, pensões e bens sociais, da saúde à educação, amputados; a vida de tantas famílias injustamente fragilizada. A acentuação da quebra da actividade económica que se segue transforma a recessão prevista em depressão inevitável e aumenta ainda mais o desemprego. Os planeadores deste empobrecimento desigual, desta desvalorização do salário directo e indirecto dos sectores público e privado, podem tentar cortar a despesa, mas não controlam o défice porque lhes escapa a reacção da economia a uma política orçamental perversa. É esta política de total submissão perante os credores que tem de ser superada pela acção colectiva dos cidadãos empenhados na auditoria e na renegociação da dívida.

Público de hoje.

Gaspar no casino (I)

Na entrevista de ontem, o ministro das finanças Vítor Gaspar fez-me lembrar um jogador de casino. Daqueles jogadores que, em desespero de causa, sentem um impulso súbito, uma espécie de intuição, um feeling. Começando a suspeitar que há qualquer coisa de errado nas perdas que foi somando (ao distribuir metodicamente, por várias jogadas, as fichas de que dispunha e dando assim conta que foi ficando cada vez com menos), decide subitamente apostar tudo, de uma só vez, no mesmo número de sempre. Confiando, portanto, que esse golpe de asa lhe trará o resultado mágico que ambiciona. Esperando que ventos de sorte o bafejem.

Foi estranho assistir ao desvanecer daquela imagem de técnico exímio das finanças, de robot que sabe com milimétrica precisão como se conserta o maquinismo das contas públicas, de conhecedor infalível das leis universais que regem as despesas e as receitas, os superavits e os défices. Do mago a quem o futuro não consegue escapar. E ver surgir, em seu lugar, a sombra das incertezas quanto à evolução do ambiente económico internacional e a manifesta incapacidade para garantir - desta vez - que o aumento sanguinário e injusto dos sacrifícios resolve em definitivo os problemas. Nada que demova o ministro, porém, de continuar a apostar tudo (e tudo de uma vez) no número que tem falhado. A frieza da razão (não a da acção, que essa continua, ainda mais gélida e implacável), dá agora lugar a um exercício de fé. Aquela fé que emerge no desespero: se acreditarmos com muita força conseguimos, se confiarmos cegamente o milagre acontece, mesmo quando se acumulam os sinais de impossibilidade.

Estamos pois em plena governação de jogador de casino. Fixem os números que o Nuno Teles aqui registou para a posteridade. E mais estes, que poderão ser premonitórios. Na verdade, as opções do governo assemelham-se mais a um outro famoso jogo de roleta, mas com a diferença de a arma dispor de cinco balas e apenas um orifício vazio. Vai ser preciso muita, mesmo muita fé.

O mais deprimente deste OE é saber que é demasiado optimista

Há muito por onde pegar, mas ficam estas duas notas iniciais:

1- Com os nosso principais mercados exportadores estagnados (Alemanha) ou em contracção (Espanha), o Governo prevê um aumento das exportações de 4,8%;

2- Em 2011, o produto contrai 1,9% e o desemprego cresce 1,5 pontos percentuais, mas em 2012 o produto cai 2,8% e o desemprego só aumenta 1 ponto percentual (o governo deve estar a prever emigração maciça).

Lá para Abril, se entretanto o céu não cair sobre as nossas cabeças, temos novo pacote de austeridade.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A crise (adiada) do neoliberalismo - parte V

(Continua daqui: I, II, III e IV)

Parte das poupanças dos mais ricos é reciclada sob a forma de crédito ao consumo e à habitação para as classes menos favorecidas. A estagnação dos salários reais dos grupos de rendimentos mais pobres implica que o crescimento do consumo só pode ser obtido através do recurso ao crédito, originando um novo mercado atractivo para os investidores financeiros. No mercado da habitação, como noutros mercados, o afluxo em massa de capitais (desta feita sob a forma de crédito) favorece o crescimento dos preços dos activos, convidando as famílias a endividar-se na expectativa de que os preços das casas continuarão a subir no futuro. Mas não sendo o aumento do preço da habitação acompanhado pelo crescimento dos rendimentos reais, mais cedo ou mais tarde o valor dos activos imobiliários revela-se insustentável. Aos primeiros sinais de incumprimento nas prestações aos bancos, antecipando uma possível queda dos preços, alguns proprietários começam a desfazer-se das suas casas, contribuindo assim para despoletar o colapso da bolha especulativa imobiliária.

Na crise financeira que teve início nos EUA, com origem precisamente no mercado de crédito à habitação dirigido a famílias com menores posses, os efeitos do colapso da bolha especulativa fizeram-se sentir muito para lá do universo dos actores directamente envolvidos. Desta feita, não foram apenas as famílias que se viram a braços com dívidas que superavam em muito o valor das casas, ou os bancos que se tornaram proprietários de habitações difíceis de transformar em liquidez no imediato. A crença na auto-regulação dos mercados, que esteve na base da desregulação financeira e da demissão das agências públicas responsáveis pelas actividades de supervisão, permitiu que os créditos concedidos pelos bancos fossem transformados em títulos transaccionados nos mercados financeiros e incorporados em produtos financeiros crescentemente opacos e complexos. A difusão destes produtos pelo sistema financeiro mundial conduziu a uma crise generalizada, que paralisou as actividades seguradoras e de crédito, provocando uma crise económica sem precedentes nas últimas décadas, cujos efeitos ainda se farão sentir por alguns anos.


(Texto publicado no anuário JANUS 2011-2012. Continua.)

Dois eventos

Passe a publicidade na primeira pessoa, mas para informação de quem possa estar interessado, seguem-se os anúncios de dois eventos em que irei participar nesta 4ª feira, 19 de Outubro:

Às 17h, na sala 2 do Centro de Estudos Sociais - Coimbra, irei falar sobre migração e diferenciação de classes na Guiné-Bissau rural, com comentários de João Rodrigues e João Pedro Campos (o primeiro dos quais é o meu estimado amigo e companheiro de pedaladas). Mais informações aqui.

Às 22h, na redinamizada Zona Franca do Chapitô, em Lisboa, segue-se uma "conversa bravia" acerca dos motins em Londres com Luhuna de Carvalho (Spectrum), Renato Teixeira (5 Dias), Sérgio Lavos (Arrastão) e moderação de Miguel Cardoso (Unipop). Segue-se o texto de apresentação, retirado do site do Chapitô - Zona Franca:

"Londres: pilhagens, revolução ou o que foi então?

Londres rebentou e, em pouco tempo, o vírus alastrou e pegou. Na blogosfera portuguesa o debate à esquerda ficou amplamente marcado, por um lado, pelos que apontaram o fenómenos pela sua inconsistência revolucionária e, por outro, pelos que, lendo o terreno como uma súbita apropriação do espaço que sempre lhes foi negado, se recusaram a julgar a pureza revolucionária dos amotinados."


Ler

Em artigo no Público, André Freire identifica bem a natureza ideológica de uma política orçamental que radica no “ódio profundo” aos servidores públicos e à justiça social, que para esta gente não passa, para usar uma formulação reaccionária clássica, de “inveja idealizada”. Desvalorizar e desmoralizar os servidores públicos é fundamental para a economia política da pilhagem dos recursos públicos. André Freire faz por isso um pertinente apelo à unidade das forças sindicais e políticas, onde se inclui um PS que se quer ser de esquerda, se quer ser civilizado, se quer ser qualquer coisa, só pode votar contra o orçamento da depressão. Entretanto, no Económico, João Cardoso Rosas identifica com realismo alguns dos custos do planeado incremento da desigualdade económica num país já tão fracturado.

domingo, 16 de outubro de 2011

E agora?

O ajustamento tem de ser feito à custa do emagrecimento do Estado e não à custa dos contribuintes e dos funcionários públicos (...) E se, mesmo assim, todas estas estratégias não chegarem, há sempre a possibilidade de termos de reestruturar as nossas dívidas.

Álvaro Santos Pereira debatia assim em Março deste ano no Negócios, apresentando as bondades da austeridade idealizada como romance de cordel. Acho que posso repetir o que afirmei nesse frente a frente:

A austeridade já não é a conta gotas. A torneira abriu-se e a história repete-se. Os economistas pré-keynesianos ganharam politicamente em toda a linha. O refúgio na retórica vaga da "gordura do Estado" é uma fuga à ética da responsabilidade. É evidente que nenhum espírito isento discordará do combate ao desperdício, aos grupos económicos que parasitam o Estado e fogem às suas responsabilidades fiscais ou ao cancro da economia informal. No entanto, as politicas de austeridade exigidas pelos "mercados" e pelas "estúpidas" regras dos pactos europeus implicam em todo o lado fazer cortes abruptos, injustos socialmente e contraproducentes economicamente.

Por que é que a lógica intrínseca e as consequências inevitáveis das políticas de austeridade não são enunciadas? Estamos já em plena política à FMI, mesmo que sem uma das variáveis, a desvalorização cambial, que tornou no passado estas políticas menos destrutivas. Neste contexto, vários estudos, incluindo do próprio FMI, reconhecem que a austeridade é sempre recessiva. Os cortes nas despesas sociais e nos serviços públicos, os cortes salariais na função pública e o aumento do desemprego, que se segue à compressão da procura, aumentam o medo na economia, levando à aceitação de cortes salariais no sector privado e, com as alterações regressivas da legislação laboral associadas, a uma diminuição do poder da esmagadora maioria dos trabalhadores. Esta é a inconfessada economia política da austeridade.

A outra globalização


A outra globalização é a dos milhões que se coordenam para protestar pacificamente no mesmo dia.

O que há de importante no 15 de Outubro não é só os milhares em Lisboa, Porto e outras cidades portuguesas. É a escala mundial do movimento. A globalização de pernas para o ar.

Não faltam razões para o protesto.

Até agora nada de importante mudou quanto às razões que provocaram a crise: a compressão dos salários, o enriquecimento do 1% que vive de rendimentos, o desvio desses rendimentos do investimento para aplicações especulativas via off-shores, hedge-funds e outras aberrações financeiras.

Esta crise não é Grega, Portuguesa ou Irlandesa. É o episódio final de um regime de acumulação de compressão dos salários e procura sustentada a crédito. A tentativa desesperada de preservar este regime e os privilégios do 1% que vive de rendimentos é o verdadeiro nome da crise. O alvo escolhido pelos 99% é certeiro.

Agora é preciso alargar, unir, avançar ideias e propostas em que os 99% se reconheçam. Ser inteligentes, apesar de indignados. Perceber que querem confundir protesto com motim para produzir imagens chocantes para os telejornais. Nada disso é difícil para os serviços de provocação mesmo que sejam pobrezinhos.

Mas ontem não conseguiram. Pareceu-me até que os profissionais da PSP não estavam para aí voltados. E se algum dia estiverem é preciso resistir... pacificamente. Esse é um dos ensinamentos mais importantes de muitas lutas ganhadoras.

sábado, 15 de outubro de 2011

A fraude pouco inocente dos rankings escolares

Como já vem sendo costume, os jornais de fim-de-semana dão grande destaque aos rankings das escolas, construídos com base nos resultados dos exames nacionais. Tal como sucede todos os anos, os lugares de topo dos rakings são ocupados por escolas privadas.

Alguns jornalistas procuram sofisticar a interpretação dos resultados com base em argumentos que já deveriam ser do conhecimento de todos: os exames não são, nem devem ser, a bitola única de aferição do desempenho das escolas; as médias apuradas não têm em conta o facto de as escolas privadas concentrarem alunos oriundos de famílias de maiores posses e com maiores níveis médios de formação; os rankings não têm em conta o contexto socioeconómico das escolas assim avaliadas; etc.

No entanto, por muitos qualificativos (e não são muitos, na verdade) que sejam introduzidos nas análises, a mensagem central que resulta é sempre a mesma: as escolas privadas preparam melhor os alunos. Desta forma, este método de avaliação das escolas é uma fraude – e uma fraude perigosa.

É uma fraude porque corresponde às piores práticas de avaliação de políticas públicas. Se alguém nos disser que as políticas públicas de apoio às empresas são um sucesso porque as empresas apoiadas são aquelas que têm melhor desempenho competitivo (criam mais valor, criam mais emprego, sobrevivem mais, etc.) devemos perguntar se os apoios não foram dirigidos para as empresas que tinham, à partida, melhores condições competitivas (e.g., uma situação financeira mais sólida). Da mesma forma, se alguém afirmar que os apoios públicos a estágios para recém-licenciados são um sucesso porque os estagiários encontram emprego ao fim de pouco tempo, devemos perguntar-nos se os estágios não estão a ser dirigidos para indivíduos cujas licenciaturas de base garantem à partida maior empregabilidade. Na teoria Estatística, chama-se a isto ter em conta o ‘efeito de selecção da amostra’ – se quem é apoiado tem, à partida, maior probabilidade de ter melhor desempenho não devemos atribuir o bom desempenho ao apoio concedido.

Eu defendo que a avaliação das políticas deve ser feita com esse rigor, evitando que os recursos públicos sejam utilizados ao sabor dos interesses particulares e das preocupações eleitorais dos governantes. É exactamente por isso que gostaria que em Portugal se avaliasse o desempenho das escolas públicas e privadas – e que essa avaliação tivesse as mesmas preocupações metodológicas que se impõe no caso da avaliação das políticas de apoio às empresas ou à transição para a vida activa. As preocupações que estão presentes nas melhores práticas internacionais, como as que são descritas no Livro Verde que serve de base à avaliação de políticas no Reino Unido, ou nas avaliações conduzidas pelo Government Accountability Office que funciona junto do Congresso Federal dos EUA.

Em termos práticos isto significaria começar por analisar as classificações dos alunos nos exames nacionais tendo em consideração variáveis que afectam o seu desempenho (background educativo e socioeconómico dos pais, condições de estudo em casa, acesso a bens culturais no meio envolvente, organização das escolas, constituição das turmas, etc.). Numa segunda fase, importaria analisar, com base em análises estatísticas robustas, porque motivo algumas escolas públicas têm um desempenho melhor do que as outras. Finalmente, este tipo de análise contribuiria para ajudar a perceber em que medida é possível introduzir melhorias no sistema público de educação.

Por contraste, os rankings nada contribuem para o debate necessário sobre a Escola Pública em Portugal. Com base nestes rankings ficamos sem saber se as escolas públicas cumprem melhor o seu serviço do que as privadas (será que alunos com as mesmas condições de base têm desempenhos distintos nos dois sistemas de ensino?). Ficamos ainda sem saber o que determina o bom desempenho das escolas públicas que se encontram no topo dos rankings (é a organização da escola? é a qualidade dos professores? é a constituição das turmas? é a envolvente local? é a mera concentração geográfica de alunos oriundos de famílias mais favorecidas?). Também fica por esclarecer se as escolas públicas bem ou mal classificadas cumprem devidamente as suas funções gerais, que vão muito além dos resultados dos exames (por exemplo, contribuem para evitar o flagelo nacional que é o abandono escolar precoce? ajudam a sinalizar situações de maus tratos sobre menores? de forma geral, favorecem a mobilidade social em Portugal?).

E, no entanto, todos os anos a fraude que são os rankings ganha visibilidade e influência. E, com isto, as escolas privadas ganham clientes (mesmo que não os mereçam) e subsídios do Estado; parte da classe média desiste da escola pública, iludida por esta publicidade enganosa (favorecendo a desqualificação do sistema público); e as escolas públicas lutam pela sobrevivência fazendo dos exames nacionais o fim último da sua existência. E, face a isto, ainda há quem continue a acreditar que os rankings das escolas prestam um bom serviço ao país.