Mariana Mortágua e Francisco Louçã publicaram há cerca de dois meses no Esquerda.net um artigo que visa refutar a tese de que as opções argentinas do início da década passada (nomeadamente, o abandono da paridade fixa face ao dólar) constituem um exemplo a seguir no actual contexto da periferia europeia. Nas palavras dos próprios, “os factos e os números da crise argentina, que teve como ponto alto a suspensão dos pagamentos de dívida e a desvalorização do peso, exigem cuidado na análise, principalmente à esquerda”.
Mortágua e Louçã procedem a este exercício a partir do ponto de vista dos trabalhadores e das classes populares – e eu não podia estar mais de acordo: mais do que a evolução do produto per capita ou de outros indicadores agregados que tantas vezes ocultam um agravamento de situações de desigualdade e violência social, interessa-nos a evolução da situação das classes e grupos mais explorados e vulneráveis, e interessa-nos a forma como evolui a relação de forças entre estes e as elites económicas. Até aqui, tudo bem.
Mas quais são os argumentos aduzidos para concluir que estas opções políticas “destruíram o trabalho e favoreceram o capital”, particularmente quando comparadas com o contrafactual (manutenção da paridade)? Basicamente, são de três tipos:
i) relato de alguns dos momentos mais nefastos e caóticos do descalabro da economia argentina em 2001/2002;
ii) argumentos dedutivos válidos de forma mais ou menos geral, tais como “a desvalorização da moeda tornou as importações mais caras (prejudicando a indústria e encarecendo o consumo) e as exportações mais baratas (favorecendo a burguesia agro-exportadora)”; e
iii) recurso empírico a dados estatísticos relativos ao produto, desemprego, salários e incidência de pobreza, sendo a maior parte das comparações efectuada entre os anos de 2001 e 2002 ou entre 2001 e 2005.
Acontece que não está em causa que a Argentina passou por uma crise profunda em 1998-2002 e que só recuperou de alguns dos efeitos dessa crise passados vários anos. E também não está em causa que a repartição dos custos do processo teve lugar de forma diferenciada – designadamente entre fracções do capital, entre aforradores/credores/devedores, etc. Mas até que ponto é que os dados sustentam a tese de que os trabalhadores e as classes populares argentinas perderam com esta opção face à alternativa contrafactual? É que, quando convocamos mais alguns anos para comparação e acrescentamos mais alguns indicadores, os factos e os números parecem apoiar uma história diferente.
Num post publicado hoje, Krugman relembra que, depois de contrair intensamente em 2000-2002, o produto per capita argentino encetou uma forte recuperação logo após a desvalorização, ao ponto do seu valor em 2010 ter sido cerca de 30% superior ao valor de 1998 (pré-crise) e superior em cerca de 67% ao valor de 2002. Mortágua e Louçã referem esta recuperação mas desvalorizam-na, atribuindo-a a “alguma aposta na reindustrialização do país, mas sobretudo a exploração acrescida do trabalho embaratecido e a redução do custo cambial das exportações (daquele que já era um dos maiores exportadores do mundo)”.
Acontece é que não foi só isto que se passou. Como é visível no gráfico em baixo, criado com base em indicadores retirados daqui (nem todos os anos estão disponíveis, motivo pelo qual há saltos no gráfico), o que ocorreu na Argentina de 2002 em diante foi uma retoma do crescimento do produto per capita (como mostra Krugman) a par de uma forte redução tanto da desigualdade como da incidência de pobreza.
Eu diria que uma economia que, mais do que crescer, regista uma tal redução da pobreza e da desigualdade tem de ser considerada como estando a caminhar na direcção certa. Na Argentina, tudo isso ocorreu de 2002 em diante. Compreenderão por isso que, neste caso concreto, tenha dificuldade em considerar convincentes os argumentos destes dois colegas que muito estimo: como conciliam esta notável evolução da pobreza e desigualdade com um quadro de “exploração acrescida do trabalho embaratecido”?
Sou o primeiro a admitir que não se pode proceder à transposição simples e imediata do exemplo argentino para o caso presente, pois Argentina’02 e Portugal’11 têm diferenças ao nível da estrutura produtiva, inserção na economia mundial, características institucionais do regime monetário, relação de forças entre classes e sectores, etc. Não há por isso certezas absolutas – apenas conjecturas mais ou menos plausíveis – quando argumentamos quer a favor quer contra a desejabilidade da saída do Euro por parte de Portugal ou da Grécia. É, aliás, bom que todos reconheçamos que assim é – e que este é um debate complexo e fundamental, principalmente para a esquerda, que tem de prosseguir com urgência. Agora, seguramente também não podemos invocar o exemplo argentino de forma incompleta (e, a meu ver, errónea) para rejeitar esta opção política.
Nota 1: Sobre o eventual efeito diferenciador do alegado maior volume de exportações no caso argentino, note-se que, em 2009, as exportações totais de bens e serviços por parte da Argentina foram de 66,5 milhares de milhões de dólares – ligeiramente inferiores aos 67,3 mil milhões de Portugal.
Nota 2: Sobre este mesmo assunto, vale muito a pena ler este pequeno texto de Mark Weisbrot.
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17 comentários:
Basta reduzir o nosso deficit corrente para 3% do PIB e reduzir o desperdicio do sector publico.
É mais fácil aumentar os impostps sobre as importações e baixar sobre as exportações do que andar a sair o do EURO e criar uma crise que não se sabe como e quando acabaria.
Basicamente a melhor solução para Portugal é sair do Euro. Só assim é que será possível acabar com os desequilíbrios externos da nossa economia.
Vamos lá ver se percebi: para evitar dois ou três anos de recessão e custos sociais de um desemprego elevado para os nossos padrões, saímos do euro e suportamos dois ou três anos de uma recessão ainda mais violenta e com desemprego e custos sociais muito mais brutais.
Pereira volta a falar sobre a "sua saída da crise".Fácil diz ele.A insensibilidade social daqueles que acham tudo fácil,enquanto o desemprego aumenta,a pobreza cresce,as falências se multiplicam,a miséria prolifera,o desespero se torna patente é a marca de água dos que vêem o mundo com os óculos cor-de-rosa dos neo-liberais mas que no fundo não passam de comparsas dos vampiros a corroer o país.E dizem eles que "têm soluções"
«(...) La situación es similar en Europa, pero podría decirse que aún peor. En concreto, la retórica del Banco Central Europeo, que defiende la moneda fuerte y se opone al alivio de la carga de la deuda, hace que Bernanke parezca en comparación William Jennings Bryan [secretario de Estado de EE UU de 1913 a 1916 y miembro del ala izquierdista del Partido Demórata].
¿Qué se oculta tras esta parálisis política transatlántica? Estoy cada vez más convencido de que es una respuesta a la presión de los grupos de interés. Conscientemente o no, los responsables políticos están casi exclusivamente al servicio de los intereses de los rentistas, esos que obtienen enormes ingresos de sus activos, que prestaron grandes sumas de dinero en el pasado, a menudo imprudentemente, pero que ahora están siendo protegidos de las pérdidas a costa de todos los demás. (...)
Pero la realidad es justo la contraria: las políticas beneficiosas para los acreedores están paralizando la economía. Este es un juego con un resultado final negativo, en el que el intento de proteger a los rentistas de cualquier posible pérdida está causando pérdidas mucho mayores a todos los demás. Y la única forma de conseguir una recuperación real es dejar de jugar a ese juego. »Este texto não é de um perigoso comunista ou filo-comunista.É de Paul Krugman.Prometo que vou mandar as soluções para a crise saídas da pena do pereira.É que a Krugman que aponta o que está por detrás de toda esta política torpe pode-lhe ter escapado a superficialíssima solução do amigo pereira.Entretanto alguém diz alto e bom som o que se pretendeu com a troika e com a traição de passos coelho,portas e sócrates-proteger a banca e os banqueiros.Tão só.O resto é conversa para ruminante dormir.Mas os que traem têm que ser responsabilizados.E de forma exemplar
Fácil, fácil é acusar os outros de insensibilidade ou outra coisa qualquer, sobretudo quando têm o desplante de discordar de nós.
Quem não faz o que queremos é traidor e pronto.
Queria só recordar que "aumentar os impostos sobre as importações e baixar sobre as exportações" é não só interdito na Zona Euro como na própria UE.
Chamam-lhe proteccionismo e é tido como o pior dos pecados contra os "mercados".
Cláusulas de excepção contra os mercados, porque os mercados não financiam o país.
relembra que, depois de contrair intensamente em 2000-2002, o produto per capita argentino encetou uma forte recuperação logo após a desvalorização, ao ponto do seu valor em 2010 ter sido cerca de 30% superior ao valor de 1998 (pré-crise) e superior em cerca de 67% ao valor de 2002.
mas as exportações em Portugal contam para menos de 31% do PIB
e na Argentina as exportações sempre tiveram uma talhada maior
além disso a fuga de 30% dos capitais argentinos nos 3 anos e picos da crise
não devem ter aumentado o nível de vida dos argentinos das classes médias e mais baixas
e há que enquadrar nas crises que a precederam
fazer paralelos com situações distintas com resultados espero eu distintos
ainda há uma carrada de professores argentinos que falam um português de merda nas universidades portuguesas ou na reforma
desde a Faculdade de ciências da UL
às estepes da Un. de Évora
e nem todos vieram depois de 98
não sei se estão a ver o ponto
provavelmente não
o ênfase vai para a fuga dos 35%
de capitais argentinos nos 3,5 anos da crise
provavelmente foram até mais que esses 35% estimados
e num país com um sector exportador com mais peso no P.I.B.
e com un jogador chamado el PIBE
Paulo Pereira disse...
Basta reduzir o nosso deficit corrente para 3%
99 e tal ou 100% a 3% ao ano
(1+0,03)elevado a n dá....
quer um n de quantos anos?
sair do euro
com salários de 5000 contos
que dão para comprar sardinha a 50 contos e pescada a 150 e bacallao a ?
Carlos Albuquerque disse...
Vamos lá ver se percebi: para evitar dois ou três anos de recessão e custos sociais de um desemprego elevado para os nossos padrões, saímos do euro e suportamos 20 ou 30 anos de uma recessão ainda mais violenta e com desemprego e custos sociais muito mais brutais.
faltou um zero
é um problema de escala
na holanda nos anos 80 havia fábricas que faziam projectores de diapositivos que vendiam a Portugal
essas mesmas fábricas produziam projectores de acetatos e câmaras de filmar e projectores-portáteis de cinema
algures nos anos 80 passaram para os leitores de VHS e similares
e daí para os leitores de CD's DVD's
duas converteram-se à produção de quadros interactivos para empresas e universidades
algumas empresas evoluem
outras estagnam nos mesmos produtos
e soluções
as nações também
Caro Alexandre
Excelente post. A experiência argentina não é para seguir ponto por ponto, claro, mas é evidentemente para considerar, imitando-a no que for de imitar, aproveitando o facto de eles já terem primeiro percorrido caminho análogo para evitar cometer um certo número de erros.
Que a direita considere isso tudo com espanto e horror é algo que se lamenta, claro, mas que em boa verdade não é ele próprio causador de espanto.
Que o BE assuma a saída do euro com a atitude de bloqueio que precisamente esse artigo de Francisco Louçã e Mariana Mortágua parece traduzir - isso sim, pelo que me toca, é causador de espanto e preocupação.
E repare-se que o cenário de saída até já foi enunciado, com enorme lucidez, por Lapavitsas, Teles e outros (para além do Weisbrot que agora refere, claro). Eram precisamente Lapavitsas e os outros a enunciar as possibilidades de "saída progressista" e da "saída conservadora", aliás bem distintos entre si.
Ora bem, na medida em que a esquerda continue nesta matéria com a política da avestruz, um pouco como se tivesse ele própria "comprado" a retórica de que é a UEM ou o cataclismo, de que depois do Euro será o Dilúvio, de que coitadinhos de nós sem a "Europa" íamos ao fundo, etc. (João Ferreira do Amaral propunha um dia destes, e creio que muito bem, um paralelismo com a atitude colectiva dos portugueses face ao Ultramar antes do 25A), os problemas irão apodrecendo sem serem tratados na sua raiz. Tudo o mais permanecendo igual, a probabilidade aumenta, portanto, de que, quando a coisa for considerada de frente, seja invocado o "estado de necessidade" e seja assim a direita a pegar no assunto. Maior a probabilidade, portanto, da "saída conservadora"...
De facto, não basta já, nesta altura do campeonato, discutir o montante do juro e propor a auditoria da dívida - embora isso tudo seja em si mesmo extremamente meritório, claro. O nosso problema fundamental não é de liquidez, é de solvabilidade; ou seja, é de défices externos acumulados; ou seja, é de sobrevalorização da moeda.
Isso não é panaceia? Pois é claro que não é. A professora Manuela Silva, aliás, expliva isso tudo muitíssimo bem explicadinho há já décadas. E o fundamental da explicação continua plenamente válido. (Só é triste ver como entretanto o "economista médio" parece ter desaprendido mais do que aprendido, mas isso é outra conversa). Mas perguntem-lhe, para esclarecimentos adicionais, que ela presta-vos esse serviço de boa vontade, com toda a certeza. De caminho, perguntem também ao José Maria Castro Caldas acerca de medidas de discriminação positiva dos sectores expostadores e dos bloqueios "europeus" à respectiva adopção...
Ah, e quanto ao resto, bom... é triste também que a esquerda (ou certa esquerda) pareça ter olvidado que a própria construção da UEM, o seu desenho institucional, configura um projecto essencialmente anti-democrático (a construção dum espaço à imagem do discurso da "economia pública" isto é, uma zona "livre-de-democracia", "ao abrigo de eleições", etc.) e que a colocação da "estabilidade de preços" como objectivo acima de tudo o mais - ou seja, já as assunções de Maastricht e a opção pelo "sound money" - é a verdadeira origem dos nosso males, relevando ela das assunções características da chamada escola das "expectativas racionais" e traduzindo-se tudo isso num projecto político de índole liberal-conservadora, ao qual nenhum esquerda terá alguma vez qualquer razão para ser minimamente fiel, seja qual for o ponto de vista da argumentação.
Ah... mas vejo agora que me esqueci da Argentina... Queira desculpar, caro Alexandre!
Quem não faz o que queremos não é traidor.Mas quem vende o país já o é.A diferença é abissal.Para ser mais claro.As privatizações selvagens executadas tanto pelo PS como pelo PSD,não tiveram uma opinião pública esclarecida que permitisse acompanhar e denunciar a trama que se preparava.Não vale a pena escalpelizar mais o assunto.Só posteriormente se começou a ver que uns tantos tinham lucrado imenso,uns poucos ficaram com ordenados fabulosos e a imensa maioria ficou na mesma ou ainda pior.A concentração do capital continuava e o mundo ficava ainda mais desigual.O país?Esse ficava mais pobre.Na presente crise que vivemos uns tantos também querem vender o que resta do estado,de forma célere e rápida tentando repetir o mesmo cenário.Concentrar a riqueza nas mãos dos mesmos antes que venha o vendaval que se adivinha.Isto no presente é traição.O despojar do país dos poucos instrumentos que lhe restam para garantir a sua independência tem o seu paradigma no negócio da privatização das águas.Traição é uma palavra que incomoda?Claro que sim.Os neo-liberais de turno não gostam nada de ser desmascarados.Mas o que estão a fazeré precisamente isso.A trair para comprometer ainda mais o nosso futuro.Está esclarecido a história do traidor? Podemos voltar ainda ao assunto
Desculpem lá, mas onde escrevi "economia pública", leiam por favor "escolha pública", "public choice".
Estar a escrever comentários às 3 da manhã tem destas coisas...
Um excelente comentário João Carlos Graça.Parabéns
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