quarta-feira, 8 de junho de 2011

Democracia (mais ou menos) verdadeira

Quase toda a gente sabe que os deputados à Assembleia da República são eleitos (como foram no Domingo passado) em listas distritais segundo o método dos quocientes de D’Hondt. Muita gente sabe também que o método D’Hondt tende a favorecer os partidos maiores em detrimento dos mais pequenos – os seus defensores argumentam que isso favorece a governabilidade. Menos apreciado, porém, é o facto do próprio carácter distrital das listas favorecer também os partidos maiores e prejudicar os mais pequenos – tendo, na verdade, um efeito de maior magnitude do que o próprio método D’Hondt.

Em combinação uma com a outra, estas duas características do nosso sistema eleitoral produzem resultados que se afastam substancialmente da proporcionalidade: com base nos resultados provisórios das eleições de Domingo (não tendo em conta os votos do estrangeiro nem os quatro deputados que por eles serão eleitos), observamos que, em média, cada deputado do PSD foi eleito com 20.436 votos (PS: 21.342) – ao mesmo tempo que os 62.496 votos no PCTP/MRPP ou os 57.641 no PAN não deram origem à eleição de qualquer deputado.

Dei-me ao trabalho de fazer as contas para verificar qual seria o número de deputados eleito por cada partido em três cenários alternativos: i) círculos distritais segundo o método D’Hondt (i.e. o sistema actual); ii) círculo único nacional, método D’Hondt; e iii) círculo único nacional, proporcionalidade estrita. Os resultados são os seguintes:

Não vou aqui alongar-me com juízos políticos em relação a qual destas alternativas deverá ser considerada preferível - nem em abstracto, nem em face da aplicação ao caso concreto destas eleições. Penso que a esquerda, com excepção talvez da que não alcançou representação parlamentar, tem seguramente tarefas mais importantes perante si e batalhas mais importantes a travar. Aprofundar a democracia passa por muitas outras coisas - e as mais importantes são de carácter substantivo e participativo (por oposição a formal e representativo). Ainda assim, como contributo para o debate acerca da abstenção ( e da alienação face aos mecanismos concretos da nossa democracia representativa que subjaz a essa abstenção), penso que não será despiciendo ter em conta que houve muitos milhares de eleitores pelo país fora (0s 20.435 votantes no BE em Braga ou os 16.884 votantes no PAN em Lisboa, para referir apenas os dois exemplos mais extremos) que se dirigiram às respectivas mesas de voto, votaram em consciência e, exclusivamente devido às características do sistema eleitoral, não contribuíram para eleger ninguém. Têm bons motivos para estarem chateados.

Actualização: Os comentários a este post contêm diversos elementos e referências adicionais importantes (e interessantes). Entre outras coisas, implicam que o método subjacente ao cálculo da terceira coluna da tabela aqui apresentada (atribuição de uma percentagem de mandatos igual à percentagem de votos, com arredondamento ao inteiro mais próximo) não possa ser simplesmente designado por "proporcionalidade estrita" (como aqui fiz, erradamente), uma vez que o grau de proporcionalidade dos diferentes métodos de atribuição de mandatos é discutível, dependendo aliás de como se defina e operacionalize "proporcionalidade". Isso não afecta, porém, o argumento central (e não especialmente original) do post, que diz respeito ao impacto da fragmentação dos círculos eleitorais ao nível do afastamento entre a percentagem de votos obtidos e a proporção de mandatos atribuídos a cada partido.

24 comentários:

Gato disse...

Parabéns por ter feito as contas.

Trata-se de uma realidade sobre a qual venho alertando as pessoas que me são próximas.

Infelizmente, quando se fala de reformulação do modelo eleitoral a reacção "pavloviana" dos comentadores inclina-se de imediato para os círculos uninominais que, como está bom de ver, só agravariam a questão da falta de representatividade e "chateariam" muito mais gente.

Anónimo disse...

Mesmo assumindo que o carácter participativo é neste momento o flagelo da democracia o que escreveu é demasiado importante para ser relativizado, penso até que "pequenas" mudanças no cerne das questões essências são normalmente muito proliferas. Mais um texto com a qualidade habitual, muitos parabéns.

Anónimo disse...

É imperativo que o sistema seja alterado.
A continuar assim qualquer dia os deputados na assembleia apenas se representam a si próprios.

josé manuel faria disse...

No caso do círculo único os pequenos partidos (excepção do PS e PSD)de certeza que teriam ainda melhores resultados porque o voto útil funcionaria muito menos: o eleitor da CDU em Bragança saberia que o seu voto valeria o mesmo que o de Lisboa.

Antonio disse...

Se pelo método actual já é difícil obter uma maioria para formar Governo, imagine-se o que seria com o método da proporcionalidade! Isso estimularia a existência de muitos mais partidos políticos (passaria a ser "fácil" conseguir um deputado). Não creio que seja por causa do método que há abstenção. Na minha opinião o partido que ganha as eleições devia ter automaticamente 50% dos deputados e os restantes 50% seriam então distribuídos pelos outros partidos. Isso sim, daria governos fortes e estáveis que é o que tem faltado a Portugal.

Anónimo disse...

Mais grave é 25000 emigrantes elegerem 4 deputados!

Gonçalo Abrantes disse...

Obrigado por ter feito estas contas.
Ainda hoje falava com colegas sobre este assunto e tinha a percepção destes resultados de forma intuitiva. Aqui encontrei a prova do que pensava.
Definitivamente, o método proporcional é, e sempre será, o que melhor representa as intenções dos eleitores votantes.

Anónimo disse...

Pode explicar como fez as contas ao último método? É que o método de Hondt em círculo único não é mais que um método proporcional. A não ser que ande a brincar aos arredondamentos, não imagino como podem dar diferente.

maria povo disse...

Parece-me que a questão é TÃO PERTINENTE E IMPORTANTE QUE MERECE SER DISCUTIDA!!!

Talvez com a mudança do método eleitoral a representatividade dos cidadãos fosse maior!

Para quando o VOTO OBRIGATÓRIO???

os da abstenção teriam de TER DE OPTAR!!

Ladrões! lancem este debate! OBG!

Alexandre Abreu disse...

@ Anónimo das 07:23:

A questão passa efectivamente pelos arredondamentos, mas não me parece que possa ser considerada "brincar".

http://pt.wikipedia.org/wiki/Método_D'Hondt

O 226º e último deputado eleito aplicando o método D'Hondt a um círculo único nacional seria o 95º do PSD (2.145.452 / 95 = 22.583,71). Nenhum partido com uma votação inferior ao PAN elegeria deputados (o partido seguinte é o MPT, com 22.494, que é menor do que 22.583,71).

Com o método estritamente proporcional, cada deputado é eleito com 5.330.664 / 226 = 23.587 votos. O PSD, para comparação com o exemplo acima, elegeria 2.145.452 / 23.587 = 90,959 deputados. É aqui que entram os arredondamentos: considerando apenas as partes inteiras, seriam eleitos apenas 217 deputados. Arredondando ao inteiro mais próximo, temos os 226. Isso implica que todos até ao PPM (0,635) elegem - e que o PSD elege 91 deputados. Concordará comigo que este arredondamento faz mais sentido do que arredondar, por exemplo, os 90,959 deputados do PSD para 95 (como na outra opção), não?

Cumprimentos e obrigado por todos os comentários.

Anónimo disse...

Obrigado pelo contributo.
Qual é o próximo passo? Para onde se pode enviar isto, para que alguma coisa possa ser mudada?
Abraços

Miguel Barroso disse...

Vejam este artigo que explica muito bem, como funciona o actual sistema eleitoral e propõem uma solução bastante justa - mantém o método de Hondt, mantém a representatividade dos círculos eleitorais, tem em conta os votos brancos/nulos e evita que a abstenção favoreça desproporcionalmente os grandes partidos: http://www.freezone.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=178%3Avotacao-e-matematica&catid=9%3Apolitica&Itemid=7%3B

s.oliveira disse...

quando dei em administração pública no 10º (nos anos 80) o método de hondt decidi tornar-me abstencionista.
não consegui levar essa decisão à letra pois apenas votei em presidenciais ou autárquicas (e apenas para eleger o presidente da câmara).
este método é um insulto à democracia e ao eleitorado e (e também à nossa inteligência).
quando acabar este método e optar-se pela proporcionalidade pura talvez volte acreditar na democracia.
já imaginaram na antiga grécia aplicarem o método de hondt para se eleger alguém?

os gregos inventaram a "democracia" e o senhor hondt enterrou-a.

s.oliveira disse...

p.s.
a estas contas falta apenas apurar a proporcionalidade estrita por círculos distritais mas os exemplos apresentados bastam para dar uma amostra da injustiça.

Anónimo disse...

Caro Alexandre.

Um exemplo simples. 1 partido tem 6 votos e 4 partidos têm 1 voto. São 5 deputados.

Aplique o seus método dos arredondamentos e ficam todos com 1 deputado cada. Grande justiça.

João Carlos Graça disse...

Caro Alexandre
Muito obrigado por ir sublinhando o que devia ser óbvio, mas ainda assim se tem tornando cada vez mais obscurro debaixo duma torrente de idiotices quotidianamente debitadas acerca deste assunto. O método de Hondt é, sim, o mais rigorosamente proporcional de todos os métodos (em particular, é-o claramente mais do que os de Imperiali e Saint-Lague, seus rivais mais directos nesta matéria).
Para isso se impor é, porém, necessário que os círculos sejam grandes. Quão maiores o forem, melhor (naturalmente, não com 4 contra 6 votos, falemos a sério...).
Se as objecções têm a ver com a "governabilidade", dificuldade em formar maiorias, etc., bom, isso então é outra conversa. Quem assim fala, assume por conseguinte que acha que a minoria deve governar a maioria... porque sim, pela "estabilidade", pela "coerência programática", etc. Seja, mas então dê-se abertamente a cara por isso. Aí é obviamente outra a discussão...
Se nos colocamos do ponto de vista da proporcionalidade, porém, a opção é indiscutível: manutenção do método de Hondt, mas com círculos maiores: um hipotético "círculo do Minho", p. ex. (Braga + Viana) já elegeria evidentemente 1 deputado do BE, e por aí fora...
Atenção, porém, à observação aguda de JM Faria. Chama-se a isso "segundo efeito de Duverger". O dano que os pequenos partidos sofrem do ponto de vista da "estática comparada" tendem a transformar-se e ampliar-se em danos "dinâmicos"... continuarão aqueles 20 e tal mil votantes do Be em Braga a votar BE em eleições subsequentes? Eis a questão. Isto cria, evidentemente, uma enorme "barreira à entrada" de novos partidos, a qual é meramente fáctica, enquanto na Alemanha e na Itália, p. ex., ela é formal: 5 e 4 por cento, respectivamente. Se se fizer 1/(n+1) conclui-se rapidamente que em Santarém (com 10 deputados) a fasquia fáctica é entre nós de 9,09 por cento, em Castelo Branco (4 deputados) ela atinge uns absurdos 20 por cento, etc. Todos esses distritos, note-se bem, são hoje em dia já uma enorme "coutada" eleitoral garantindo um mais que confortável head-start ao Centrão (PS-PSD).
Eis algo em que devia evidentemente pensar-se, quando se fala, por exemplo, de coligações (mesmo que meramente pontuais, ou até apenas implícitas, com desistências recíprocas alternadas) entre, por exemplo, o BE e a CDU. Mas isso, claro, sou eu a falar, com a minha mesquinhez, o meu paroquialismo e as minhas contas de merceeiro. Os "nobres espíritos" pairam e pairarão, é claro, muito acima, destas tacanhezas...

Alexandre Abreu disse...

@ Anónimo das 15:39:

Lamento, mas não entendo. No seu exemplo, 10 votos / 5 deputados = 2 votos/deputado. Logo, o partido com 6 votos elege 3 deputados; torna-se difícil atribuir os outros dois mandatos entre quatro partidos empatados, claro, mas isso só é problemático por se tratar de um universo eleitoral muito pequeno, com um empate perfeito entre quatro partidos...

Unknown disse...

Olá. Para evitar a questão dos arrendondamentos, há fórmulas estabelecidas. Sobre o assunto: http://www.kenbenoit.net/pdfs/PA84-381-388.pdf

Pedro

Alexandre Abreu disse...

Obrigado a todos.

Como verão na "Actualização" que acrescentei ao post, esta discussão (e o texto enviado pelo Pedro Magalhães, a quem agradeço) permitiram-me perceber que incorria em erro ao designar por "proporcionalidade estrita" o método que utilizei na terceira coluna da tabela, i.e. atribuição de uma % de mandatos igual à % de votos, com arredondamento ao inteiro mais próximo.
Aliás, o próprio conceito de "proporcionalidade" não é universal, dependendo da forma como é definido e operacionalizado.
Por exemplo, podemos considerar que o sistema de atribuição de mandatos mais proporcional é o que minimiza a soma das diferenças (em módulo) entre os votos efectivamente obtidos por cada partido e os votos que corresponderiam à multiplicação do número de mandatos atribuídos pelo rácio (nº total de votos / nº total de mandatos). Mas podemos considerar antes os resíduos quadrados (penalizando adicionalmente desvios individuais mais acentuados) ou outras formas ainda de operacionalizar a "proporcionalidade" (ver o texto indicado por PM).
No caso em apreço (legislativas 2011) e utilizando estes dois últimos critérios para comparação(acabei de fazer as contas), o método D'Hondt implica uma soma dos resíduos quadrados igual a 13.747.330.401 (quase 14 mil milhões), enquanto que o outro método que aqui usei (proporções iguais, arredondamento ao inteiro mais próximo) implica uma soma dos resíduos quadrados igual a 745.773.275 (setecentos milhões de votos). Se compararmos a soma dos resíduos em módulo, D'Hondt implica um resíduo total de 313.824, enquanto que o método alternativo implica um resíduo de 98.309.
Pelo que neste caso concreto fica claro que, se adoptarmos algum destes dois critérios de proporcionalidade, o método D'Hondt está longe de ser o "mais proporcional".
De qualquer forma, nada disto invalida o argumento central do post, que consiste no efeito de distorção (e de iniquidade distrital, aliás provavelmente inconstitucional) introduzido pela existência de círculos distritais. Em todo o caso, a discussão é mais complexa (e interessante!) do que eu sugeri inicialmente, pelo que agradeço a todos pelos contributos e pela oportunidade de aprendizagem.

Maquiavel disse...

À falta de proporcionalidade directa, poderia existir um círculo único nacional com método d'Hondt (mal menor), ou no mínimo círculos distritais com proporcionalidade directa.

Agora círculos pequenos com método d'Hondt é fazer troça dos eleitores que näo votam nos partidos grandes!

Pior que isso, claro, só os famigerados círculos uninominais!

grazia tanta disse...

Fiz há um ano um trabalho que dá resultados paralelos

http://www.slideshare.net/durgarrai/um-sistema-eleitoral-falsificado-e-enganador

um abraço

João Carlos Graça disse...

Caro Alexandre
Argumentos demasiado especiosos contribuem geralmente mais para obscurecer os assuntos do que para clarificá-los. Obrigado, quanto a isso, por "keep your eyes on the ball"... a questão central é o dano real sofrido já pelos pequenos partidos, por causa da pequenez dos círculos.
Quanto ao método da minimização dos desvios não me quero pronunciar de forma demasiado peremptória, mas quanto ao de Saint-Laguë uma coisa lhe digo: a lógica aí é beneficiar directamente os partidos mais pequenos, facilitando-lhes ou barateando-lhes explicitamente a eleição do 1º deputado. Isso parece-me, devo dizer-lhe, filosoficamente muito discutível... Se os eleitores do PSD, por exemplo, são mais do que 95 vezes superiores aos do MPT, porquê, com que base sustentar que o MPT deve eleger o 1º deputado e o PSD não o seu 95º? Bem sei, é a lógica da protecção à "endangered species"... mas sinceramente acho isso de aplicação discutível ao caso em apreço (já se vê que não voto no PAN...). Neste caso, eu voltaria o argumento inicial do Alexandre ao contrário: toda a espada tem dois gumes...
Assim, no meu modesto entender, o método de Hondt daria uma solução óptima (proporcional até uma ordem n sem súvida defensável, e não mais do que isso) desde que referido a um círculo único nacional. Formar círculos maiores não é o óptimo, mas constitui nesse contexto um passo na boa direcção.
As propostas e as ideias habitualmente em cima da mesa são, porém, toda uma outra coisa: círculos mais pequenos, mesmo uninominais, abandono da proporcionalidade, argumento da "ligação do deputado ao círculo" (ou "aos eleitores"), conversas sobre governabilidade e "dificuldades em formar maiorias estáveis"... eis o pão nosso de cada dia nessa matéria.
O propósito do Alexandre é obviamente outro... mas encontra-se muita falácia pelo caminho. Já vi defender, por exemplo, a ideia de que o facto de o sistema ser proporcional ou maioritário não conta muito, dado que num país como a Espanha o método é de Hondt, mas a proporcionalidade fáctica é muito pequena (por causa da pequenez dos círculos). Isso é, porém, usado para denegrir o método de Hondt e RECUPERAR COMPARATIVAMENTE O FIRST-PAST-THE-POST!... Não se esqueça, caro Alexandre, deste "efeitos retóricos" subtis não raro envoltos em especiosidades "algorítmicas"...
Atenção, também, ao facto de que círculos únicos nacionais produtores de proporcionalidade em contexto de "sistemas mistos" (como o da Alemanha), apesar de produzirem, sim, uma proporcionalidade fáctica global maior do que o nosso, vêm também associados à existência de quotas mínimas nacionais (5 por cento, na Alemanha). Isso, só por si, já "varre" obviamente toda a discussão de minudências, tornando-a supérflua... Não obstante, a existência mesmo destas quotas (5 por cento na Alemanha, 4 na Itália) pode perfeitamente ser invocada para sublinhar que em 17 dos nossos 22 círculos nós temos já quotas fácticas (ou "fasquias" mínimas) bem superiores a essas. Na verdade, em todos os distritos, excepto Lisboa e Porto; e deixando Setúbal, Aveiro e Braga perto dos 5 por cento.

Leonor Areal disse...

E já agora, seria possível fazer as contas para proporcionalidade estrita por círculos distritais? Obrigada :)

Mafig disse...

Espero que o sistema se mantenha! Mesmo assim o nosso País já é difícil de governar, quanto mais se se diminuir a proporção dos primeiros.