quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Quino


«Morreu hoje Quino, um dos cartoonistas mais geniais de sempre, que usou o seu talento para denunciar a opressão nas suas formas mais brutais e nas mais insidiosas, às vezes pessimista, às vezes cheio de esperança. Somos tantos, os que cresceram com ele. Continuemos então»

José Gusmão (facebook)

A melhor forma


Mas há outra forma de olhar para a questão, garante Nuno Teles, professor na Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia. “Não faz sentido não aproveitar todos os recursos disponíveis ao Estado para fazer face à crise”, defende. O economista lembra que Portugal é dos países com os níveis de investimento público mais baixos da União Europeia e frisa que este financiamento chegaria a custo quase zero. 

 “Com taxas de juro perto de zero, é fácil que qualquer investimento público tenha um retorno superior a isso”, argumenta, admitindo estar “perplexo” com o anúncio do Governo português. Nuno Teles antecipa que com as condições previstas a taxa de juro real seja negativa, o que implica que o Estado só tem a ganhar em endividar-se agora. Além disso, soma, o principal argumento do Governo, o stock da dívida pública, tem pouco significado com a intervenção que o BCE tem feito nos mercados, comprando dívida pública e impedindo a subida excessiva dos spreads. 

E mesmo admitindo que o Estado tem pouca capacidade para delinear planos e executá-los no curto período de tempo previsto, essa questão poderia resolver-se contratando recursos qualificados para a Administração Pública. Para Nuno Teles, esta é a oportunidade de maximizar projetos que já estão em cima da mesa mas que estão subfinanciados, como é o caso da construção de um parque habitacional público para disciplinar o mercado de arrendamento, ou o impulso à reconversão energética. O único argumento que, a seu ver, poderia ser ponderado na defesa da decisão do Governo é a questão da condicionalidade: “Ninguém sabe que condicionalidade será e o país pode preferir pagar um pouco mais e não se sujeitar a ela”.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Friedrich Engels (1820-1895)


Enviado para Inglaterra em finais de 1842 para, na empresa têxtil de que o seu pai era sócio em Manchester, continuar a sua formação comercial, Engels, que já estudara as obras dos economistas burgueses, dos socialistas e comunistas utópicos e adquirira sólidos conhecimentos filosóficos, pôde contactar de perto com as classes trabalhadoras da Grã-Bretanha a quem dirige uma mensagem colocada à cabeça do livro A Situação da Classe Laboriosa na Inglaterra. Nela se pode ler: «quis ver-vos em vossas casas, observar-vos na vossa vida quotidiana, conversar convosco sobre as vossas condições de vida e as vossas queixas, ser testemunha das vossas lutas contra o poder político e social dos vossos opressores.» 

Esta experiência foi de uma grande importância na elaboração posterior de uma concepção materialista da história, como quarenta anos depois reconheceu ao escrever: «Em Manchester dera-me conta, da maneira mais nítida, de que os factos económicos […] são, pelo menos no mundo moderno, um poder histórico decisivo; em que eles formam a base para o surgimento das oposições de classes de hoje; em que estas oposições de classes […] são, por sua vez, a base da formação de partidos, da luta de partidos e, com isso, da história política toda.»

Jerónimo de Sousa, Engels e a luta na actualidade pelo socialismo, Voz do Operário, Lisboa, 27 de Setembro de 2020.

domingo, 27 de setembro de 2020

Um número triste, mas revelador


O Expresso chegou ontem ao número 2500 e decidiu assinalar a data. Para lá de um suplemento preguiçoso, convidou Leonor Beleza, Paula Amorim e Joana Vasconcelos para uma ideologicamente reveladora colaboração editorial, tendo o poder de definir os temas a abordar neste número. Estamos perante representantes, respectivamente, do filantrocapitalismo, do capitalismo monopolista de herdeiros e da cultura do porno-riquismo, celebrada, por exemplo, em Versalhes.

Paula Amorim excedeu-se no suplemento de economia: da opinião de Paulo Portas à de Adolfo Mesquita Nunes, este último assalariado de Amorim na Galp; de uma entrevista a Salvador de Mello da CUF,  um capitalista da doença parasitária a uma notícia sobre investimentos na Graça do seu sócio no rentismo fundiário da Comporta, o francês Claudio Berda. 

E que dizer da espiritualidade de um capitalista reformado da indústria farmacêutica, Luís Portela, na revista? Toda uma cultura. Houve de tudo. 

Mas será que houve mesmo um tempo em que esta imprensa teve alguma autonomia real em relação aos interesses e valores dominantes, os da classe dominante? Não sei. Sei que neste tempo não tem qualquer autonomia editorial e já não disfarça.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Anti-Renascença


No livro Casa da Rússia, John Le Carré tece uma intriga na qual os serviços secretos dos EUA e britânicos são levados a entregar uma lista de perguntas a uma suposta fonte do aparelho científico soviético, a qual, afinal, já estava comprometida pelos soviéticos. No fim de tudo, o personagem principal mostra-se espantado com a aflição de quem geria a operação. Não eram só perguntas? Sim - respondem-lhe - mas revelam o que o Ocidente sabe e não sabe.

Ora, isso acontece também no jornalismo. Há entrevistas que dizem muito mais dos entrevistadores do que dos entrevistados.

Foi o caso da recente entrevista do candidato comunista à Presidência da República João Ferreira dada à Rádio Renascença e ao jornal Público. Muito mais à Renascença, que estava representada pela sua directora de informação, Graça Franco, do que ao jornal Público representado pela jornalista Maria Lopes, já que foi a primeira quem marcou o ritmo da entrevista (ver a edição impressa aqui que não dá todo o colorido da entrevista).

As perguntas revelam o ponto de que parte o jornalista, o nível dos seus conhecimentos, o grau da sua preparação (ou a sua cedência à preguiça, ao cansaço e à pobreza vazia e desinteressante da espuma dos dias), o seu interesse (ou desinteresse) em aprofundar o pensamento do entrevistado, capaz de trazer mais luz (ou de acrescentar mais ruído ao ruído). As perguntas podem revelar igualmente o seu compromisso com a verdade do entrevistado (ou um comprometimento com os seus adversários e inimigos, acabando por ser afinal uma peça de campanha); a sua capacidade de elevação do debate e de fazer voar uma conversa entre seres que pensam (ou, dada a sua ignorância, arrastar ideias para a lama das palavras e visões curtas, resultando afinal num ataque de um troll profissional); o seu controlo das emoções para que nada perturbe esse voo das ideias (ou, na sua ausência, a raiva que deixa transparecer no tom calmo, baralhando o que está a ser debatido); no final, o seu interesse (ou desinteresse) como pessoa e ser intelectual, se é um ser humano bem formado e bem pensante, capaz de ouvir mesmo o seu inimigo, tal como se amasse tanto o próximo como a si própria, capaz de ser uma boa jornalista (ou se é apenas um inquisidor-mor em potência ou um outro cónego Melo, levado pela raiva mal gerida e mal resolvida, arrastada pelas suas convicções cegas às nuances do que está em jogo, tomado pelo seu poder momentâneo).

Vivemos tempos complicados, complexos e perigosos. A sociedade portuguesa está à beira de um momento em que uma "modernização" de três décadas de reformas, aplicadas sob os auspícios do FMI e da “liberalizadora” privatização da actividade económica, culminou num sistema político de transferência de soberania que penaliza as fracas economias e fortalece as fortes; depois de uma década de recessão e depressão provocada por vagas sucessivas de “resgates” e de políticas ineficazes aplicadas sob os auspícios da UE, a sociedade portuguesa encontra-se à beira de outra vaga em que os próprios instrumentos de “ajuda” estarão, mais uma vez, condicionados por quem nos “ajudou” a afundar. Um caldo que se teme poder descambar numa escalada do desemprego que resultará no pano de fundo de um estado permanente de emergência como forma de condicionar o debate político, numa conjuntura em tudo propícia a tensões sobre o próprio regime democrático.

E no meio de tudo isto, do que se lembrou a directora de informação da Renascença de perguntar ao candidato João Ferreira?

Segue-se a sequência das perguntas feitas. Ao fim da cerca de meia hora, que pensamentos se retiram do que pensa a jornalista da Renascença sobre o momento português, sobre o mundo? Pouca coisa, a não ser a tentativa – pouco disfarçada - de colocar (atirar) pedrinhas ao caminho de João Ferreira. Ver-se-á que nem um estagiário faria tais perguntas - porque teria vergonha de mostrar nada saber - quanto mais jornalistas séniores, como a directora de informação da Renascença que, estranhamente e porque acha talvez que nada tem a provar, acaba por agir como um estagiário que copia o que ouviu noutro lado.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Da filantropia


O porno-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo com desigualdades pornográficas, onde o dinheiro assim concentrado é sempre quem mais ordena. Embora tenha dificuldades em obter lucros, a Farfetch, fundada por José Neves, é um bom símbolo deste capitalismo, uma plataforma ao serviço do luxo. 

Como garantir a legitimidade deste capitalismo também muito pouco taxado? Aqui surge a filantropia: José Neves decidiu doar dois terços da sua eventual fortuna, aderindo ao movimento de Bill Gates. 

Deixo-vos excertos de uma crónica sobre o filantrocapitalismo que escrevi para o jornal i há uma década atrás: 

Os bilionários norte-americanos andam numa azáfama filantrópica de milhares de milhões de dólares. O sucesso dos seus negócios convence-os de que podem aplicar as fórmulas empresariais para resolver a questão social. Bill Gates e outros exibem a típica arrogância que o dinheiro concentrado e a adulação geram. 

O conhecido filantrocapitalista Warren Buffet afirmou, com realismo, que a luta de classes existe e que a sua classe a tinha ganho. Um dos efeitos do filantrocapitalismo é o de legitimar as modificações estruturais, da desregulamentação ao enfraquecimento deliberado dos sindicatos, que geraram estas desigualdades económicas, uma das principais causas, segundo inúmeros estudos empíricos, dos problemas sociais. 

 Decidir sobre as prioridades socioeconómicas, como resultado de um debate democrático entre cidadãos, que escrutine os valores em disputa, é melhor do que deixar que as preferências dos mais ricos determinem cada vez mais, dentro e fora de fronteiras, os problemas que são considerados prioritários e os métodos para os enfrentar.

Como indica a investigação na área dos determinantes sociais da saúde, não há melhor do que governos apostados na expansão dos serviços públicos e na redução das desigualdades: quanto maior é a percentagem da despesa pública nas despesas de saúde, melhores são os resultados nesta área. 

Confio mais na reforma das estruturas, impulsionada por movimentos políticos que integrem os grupos sociais interessados e geralmente subalternos, do que no esforço filantrópico que reflecte e reproduz abjectas hierarquias sociais.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Flat tax: há relação entre a progressividade e a desigualdade?

O essencial dos argumentos contra a proposta da flat tax rate, a taxa única de IRS defendida por dois partidos à direita (IL e CH), já foi exposto pelo José Gusmão no debate transmitido pela SIC Notícias. A proposta não só reduz substancialmente a receita fiscal do Estado, colocando em causa o financiamento dos serviços públicos ou das transferências sociais, como significa uma redução bastante mais significativa do imposto pago pelos mais ricos, aumentando ainda mais as desigualdades existentes no país.

Neste sentido, vale a pena ter em conta que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada aos 1% mais ricos foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por estes mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo. É o que mostra o estudo de Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Stefanie Stantcheva, "Optimal Taxation of Top Labor Incomes: A Tale of Three Elasticities", referido pela Susana Peralta no Público. A relação entre os cortes na tributação dos mais ricos e o aumento das disparidades é demasiado evidente.

O próprio FMI reconhece, no Fiscal Monitor de 2017, que Portugal é um dos países onde os impostos sobre o rendimento mais contribuem para reduzir a desigualdade, sendo responsáveis por uma redução de 0,075 pontos do índice de Gini (por comparação com a situação verificada antes de impostos). Complementado pelas transferências sociais para os grupos de rendimentos mais baixos, o IRS progressivo contribui para a redistribuição e promove a justiça social.

A conclusão é clara: a progressividade dos impostos é mesmo um instrumento de combate às desigualdades. A introdução de uma taxa única colocaria seriamente em causa esta função.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Paradoxos


No Público, Sérgio Aníbal informa-nos: “No auge de uma das maiores crises da história e apesar de uma parte da população estar já a sofrer perdas de rendimento e de emprego, os portugueses têm estado nos últimos meses, em média, a poupar uma parte maior do seu rendimento. É um fenómeno que pode parecer surpreendente, mas que na verdade é habitual no início das crises económicas.” 

Os portugueses de maiores rendimentos contribuem desta forma para a crise. Aquilo que parece racional do ponto de vista individual, dada a incerteza radical, torna-se irracional do ponto de vista macroeconómico. Keynes tinha um nome para isto - paradoxo da poupança: se todos decidirem poupar, porque desconfiam do futuro, as despesas de consumo e de investimento diminuem, o que significa que o rendimento, resultado da despesa, diminui e logo a poupança também. 

Neste contexto, aliás, pode ser muito mais difícil servir a dívida previamente contraída, já que o seu fardo aumenta em termos reais, devido à quebra dos rendimentos e dos preços. É o segredo das grandes crises que só os Estados conseguem enfrentar satisfatoriamente: se o sector privado gera superávites, o sector público, mantendo-se o saldo do sector externo constante, tem de gerar necessariamente défices orçamentais simétricos e estabilizadores. Faça-se a revolução no pensamento, reconhecendo-se, por exemplo, que é o investimento que gera a poupança, e o resto é mesmo contabilidade. 

E, sim, é capaz de não ser má ideia neste contexto taxar os depósitos dos mais ricos e injectar despesa na economia, na ausência de moeda própria.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Da «liberdade de escolha»


Poucos dias antes do 41º aniversário do SNS, comemorado a 15 de setembro, soube-se da recusa de realização de partos por parte de alguns hospitais privados, no caso de grávidas com teste positivo à Covid-19 (com as unidades em causa a alegar «motivos de segurança e capacidade instalada»). Mesmo não sendo o melhor exemplo das usuais práticas de «seleção de utentes», estas situações não deixam de questionar a efetiva capacidade de resposta do setor privado, nem de trazer à memória a fase inicial da pandemia, em que apenas o SNS não fechou portas, ao contrário do que sucedeu com diversos hospitais privados.

Por isso, quando ouvirem defender a «liberdade de escolha» no acesso aos serviços de saúde, lembrem-se que essa ideia interessa, antes de mais, aos próprios prestadores privados. E que, quando a direita defende a existência de «sistemas únicos» de resposta (que não diferenciem prestadores públicos de privados, cabendo ao Estado financiar estes últimos), estão em causa universos que priorizam objetivos distintos, numa tensão entre salvar vidas e garantir lucros (como lembrava, em devido tempo, o Ricardo Paes Mamede).

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Da americanização


Na UE, o chamado discurso do Estado da União, feito anualmente pela Presidente da Comissão Europeia,  é uma pindérica imitação do que se passa nos nada recomendáveis EUA. A americanização da economia política desta parte do continente é o horizonte intransponível dos federalistas europeus. 

A mesma Comissão Europeia que atacou a recuperação do poder de compra do salário mínimo nacional e que, entre 2011 e 2018, fez 63 recomendações aos Estados para que cortassem ou privatizassem os serviços nacionais de saúde, vem agora defender vagas institucionalizações de um salário mínimo europeu e de um qualquer sistema de saúde. Não se ganha nada de mais generoso nessa escala que não se tenha obtido na democrática escala nacional, antes pelo contrário. 

A mesma Comissão que é uma máquina de uma também ambientalmente insustentável liberalização económica internacional e que só encontra ineficazes soluções de mercado para os problemas criados pelas forças de mercado, em modo de comércio de emissões, vem assinalar metas para o que desde há algum tempo apoda de Green New Deal. Qualquer acção nesta área só será eficaz se os Estados realmente existentes investirem e planearem maciçamente, o que implica superar todas as regras europeias. 

Haja paciência para tanta hipocrisia. Haja paciência para a fé dos europeístas de tantos partidos, os mesmos que depois de terem aceite a perda de vitais instrumentos de política pela democracia querem aprofundar tão funesta tendência em matéria de política fiscal, à boleia de uma conversa perigosa sobre recursos próprios da UE. No fundo, pensam que por esta ser menos democrática e transparente poderá haver almoços grátis nas relações internacionais. Como sempre, pagaremos caro o eventual triunfo dos seus desejos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Liberalismo em movimento: como o Economist contou (e mudou) a história


Poucas publicações se terão destacado tanto na defesa do liberalismo contra todos os seus adversários como o The Economist. Na sua edição original, prometia-se aos leitores “artigos originais, nos quais os princípios do livre comércio serão rigidamente aplicados a todas as questões da ordem do dia”. O Economist funcionou desde o início como porta-voz da versão dominante do liberalismo, sendo que o anonimato dos artigos e a posição política assumida o tornam mais uma revista do que um jornal, o que se expressa no tom confiante e incisivo dos artigos – não por acaso, um editor aconselhava os recém-chegados à redação a escrever “como se fossem Deus”. No entanto, isso não implica que esta versão do liberalismo não tenha sofrido mudanças ao longo dos anos. É essa história de contradições e mudanças de rumo, acompanhadas pela mudança de editores, jornalistas e proprietários, que o historiador Alexander Zevin conta no seu livro “Liberalism at Large”, publicado no ano passado.

O Economist foi fundado em setembro de 1843 por James Wilson, nascido numa família abastada de industriais escoceses. Wilson, que inicialmente estudara para ser professor, mudou para Economia e se instalou como empresário em Londres, lançou-se no mundo do jornalismo com um panfleto sobre o impacto nocivo das Leis dos Cereais, as taxas impostas pelo Reino Unido para proteger os cereais britânicos da concorrência estrangeira. O debate marcou os primeiros anos da Revolução Industrial: de um lado, os conservadores que apoiavam a manutenção das tarifas para proteger os interesses dos senhores feudais; do outro, os liberais, partidários do livre comércio e, por isso, da abolição das barreiras existentes, o que favorecia industriais e empresários. Wilson entrou neste debate com um argumento inovador: o de que, contrariamente ao que fora defendido até então, a abolição das Leis dos Cereais seria benéfica para todas as classes, incluindo os proprietários das terras, já que o livre comércio geraria riqueza suficiente para os compensar (os conflitos entre classes sobre a distribuição dos recursos foram cuidadosamente omitidos no panfleto). A ideia deu-lhe fama e valeu-lhe os contactos certos no Partido Liberal – alguns, como Richard Cobden ou John Bright, viriam a financiar a primeira edição do Economist. Desde então, o público leitor quase não parou de crescer, sobretudo na Europa e nos EUA.

Wilson aproveitou a revista como rampa de lançamento para a política – chegou ao parlamento poucos anos depois, seguindo-se os cargos governamentais no Conselho da Índia, Tesouro e Conselho do Comércio. Outros editores seguiriam os seus passos. A consistência ideológica e o alinhamento da revista com o liberalismo dominante em cada contexto explicam, aliás, boa parte do seu sucesso. Se é verdade que os artigos adquiriram contornos “triunfalistas” após a queda da União Soviética em 1989, como escreve David Runciman no Financial Times, não é menos verdade que o jornal nunca manifestou grandes dúvidas sobre o lado da história em que se quis colocar – só nos primeiros anos, destacou-se pela defesa da não-intervenção do Estado durante a crise da batata na Irlanda (que matou mais de um milhão de irlandeses à fome) e pelas críticas severas às primeiras leis que limitavam a jornada de trabalho das mulheres e crianças nas fábricas a 12 horas diárias, o que a revista classificou como “confuso, ilógico e contraproducente”, já que prejudicaria a competitividade britânica e poria em causa os postos de trabalho. Wilson via o livre comércio como solução milagrosa para a “ignorância, depravação, imoralidade, irreligião, […] carência, pobreza e fome”, algo que “faria mais do que qualquer outro agente visível para expandir a civilização”. Confiança inabalável nos mercados, foi essa a matriz do Economist desde a origem.

A sua história não está livre de contradições. Um dos aspetos mais controversos é a relação da revista com o autoritarismo: desde a defesa das incursões imperiais britânicas na Ásia, passando pelos elogios ao governo de Mussolini em Itália, pelo apoio a golpes de estado orquestrados pela CIA na América Latina e ainda pela defesa das guerras do Vietname, Afeganistão e Iraque, o Economist raramente hesitou na escolha dos lados. A opção valeu-lhe críticas internas – Hugh Brogan, então membro da redação, caracterizou a cobertura feita pelo jornal à guerra do Vietname como “pura propaganda da CIA” – mas serviu também para garantir a sua proximidade ao poder. Houve uma exceção relevante: a entrada do Reino Unido na 1ª Guerra Mundial em 1914, consistentemente criticada pelo editor Francis Hirst como um “crime contra a razão económica, fatal para o fluxo de comércio e de crédito”. A divergência de Hirst em relação ao establishment custar-lhe-ia o cargo na revista.

Se a estrutura do império britânico e, mais tarde, da hegemonia norte-americana é indissociável do processo de acumulação de riqueza, também o é da versão dominante do liberalismo, simultaneamente adotada e promovida pelo Economist. Foi isso que levou Johnny Grimond, editor de assuntos externos durante quatro décadas, a despedir-se da redação em 2012 com a certeza de que o Economist “nunca viu uma guerra de que não gostasse”. Esta posição conservadora estendeu-se às revoluções a partir dos anos 60: sobre a revolução portuguesa de 1974, o máximo que o jornal conseguiu foi pedir que não se fizesse “de Portugal uma nova Cuba”, apoiando Spínola e o movimento reacionário contra o “golpe controlado pelos marxistas”. Toda uma visão do mundo.

A ascensão do sistema financeiro também é decisiva para a evolução do liberalismo do Economist. A revista, cujos jornalistas estavam habituados a frequentar os corredores da City (Londres) e de Wall Street (EUA), defendeu entusiasticamente a expansão da finança, o desmantelamento da regulação implementada no pós-guerra e a “independência” dos bancos centrais, que deveriam abster-se de interferir frequentemente no funcionamento do mercado. Apesar disso, durante o profundo choque provocado pela crise do subprime (2007-08), quando o colapso dos mercados financeiros deu origem à maior recessão dos últimos cem anos, o Economist não teve dúvidas: “quando o sistema financeiro global pára, só os governos podem recolocá-lo em funcionamento”.

Zevin vê a atuação da revista durante a crise como uma espécie de “estabilizador automático” do pensamento liberal, capaz de acomodar e justificar medidas intervencionistas na resposta à crise sem colocar em causa os fundamentos da ideologia. A defesa da desregulação financeira rapidamente voltou a ser tema dominante. E nem o aumento dramático da desigualdade de rendimento e riqueza nas últimas décadas leva o Economist a abandonar a fé em soluções liberais, como o reforço das medidas de defesa da concorrência e a remoção de “barreiras” no mercado de trabalho. Reforçar a função redistributiva dos Estados e taxar as fortunas dos mais ricos não parecem entrar neste lote de medidas.

Numa entrevista recente, Zevin definiu o liberalismo britânico no século XIX como um “desenvolvimento único” que casou os “princípios políticos do estado de direito e das liberdades civis” com as “máximas económicas de livre comércio e livres mercados”. Como se vê, o pensamento liberal evoluiu e moldou-se de forma a acomodar o ímpeto imperialista europeu, a racionalizar a ascensão do sistema financeiro e a abraçar a globalização como motor do progresso, sempre acompanhado (e muitas vezes impulsionado) pelo Economist, que cedo percebeu que contar a história também é influenciá-la. Não há, por isso, grandes dúvidas de que o triunfo do liberalismo deve muito a quem percebeu como tornar a sua difusão eficaz: escrever “como Deus” e raramente olhar para trás.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Duplicidades mediáticas


«Não há comparação entre o que aconteceu na Festa do Avante, onde as pessoas assistiram aos concertos em lugares sentados e distantes e foram definidas regras; e as imagens que vimos no Santuário de Fátima. No entanto, todos os títulos de jornais tiveram um sentido quase inverso ao que foi dito sobre a Festa do Avante: que o Santuário, cuidadoso, bloqueou o acesso mal se chegou a um terço da sua capacidade. A medida de emergência e improvisada teve um tratamento mais simpático do que todas as medidas preventivas do PCP, tratadas com desconfiança ou desdém. Com uma área quatro vezes superior, a Quinta da Atalaia propôs-se receber um terço (a DGS aconselhou um sexto) das pessoas que estiveram no Santuário de Fátima. Ninguém fez perguntas no Parlamento. Os jornais que fizeram do PCP o bombo da festa não pediram esclarecimentos. Não houve petições, cartazes, marchas lentas de carro. Não se trata de justificar um “erro" com outro, até porque o erro é incomensuravelmente mais evidente em Fátima do que na Atalaia. Fica é claro que a motivação contra a Festa do Avante nada teve a ver com saúde pública. Se assim fosse, a indignação seria muitíssimo sonora neste momento. A motivação era política. E sendo política, quer dizer que há quem use a pandemia para tentar limitar a liberdade política dos seus opositores. E isso é um ataque à democracia. Por mim, a Festa do Avante e as peregrinações a Fátima devem acontecer, desde que se acordem condições mínimas para que se façam em segurança. Cada um assumirá o preço político de assim o fazer. Assim como espero que os que antes gritaram e agora se calam assumam as suas verdadeiras motivações»

Daniel Oliveira, As reações a Fátima provam que o objetivo era calar o PCP

domingo, 13 de setembro de 2020

Dança de cegos

Há quem se pergunte sobre que unidade popular se quer assim tão urgente.

É que as próximas eleições presidenciais arriscam-se a um autêntico desastre. E, ainda por cima, não são irrelevantes. 

Já com três candidatos que se posicionam à esquerda, o resultado final – a julgar pelo que se sabe hoje - entronará o candidato da direita e arrisca-se a catapultar o candidato da extrema-direita. Isso contribuirá, primeiro, para uma reformatação da direita e, segundo – e pior - para um recentramento à direita da iniciativa política e da política económica e social. E não se esqueça que Marcelo Rebelo de Sousa quererá deixar, no segundo mandato, o seu dedo na História de Portugal.  

Não sei que diligências foram tomadas em busca de uma solução conjunta, capaz de criar um élan à esquerda e galvanizar a maioria do eleitorado - que, na verdade, vota à esquerda. Para isso, António Costa não ajudou, mas isso não deveria ter sido um entrave. Se houve alguma iniciativa, parece todavia que não surtiu efeito.

Pior: parece que todas as forças políticas estão apostadas em estilhaçar esse eleitorado de esquerda, ao levar os seus candidatos "até ao fim", com base naquele argumento – nada aritmético e algo voluntarista – de que, na primeira volta, convém que haja o máximo de candidatos para tocar o máximo de eleitores. No fundo, é como se as eleições fossem a feijões e, assim sendo, quantos mais levarem ao voto, melhor. Mais: parece convir desdramatizar as eleições, para que não se retirem ilações políticas da vitória dada como certa do candidato da direita. Mas trata-se de um risco imenso: o de cada uma das candidaturas à esquerda ser ultrapassada pela da extrema-direita, risco que seria agravado se houvesse segunda volta. Já vimos isso noutros países. E isto tudo sem que haja ainda qualquer acordo político entre a esquerda para uma política governamental mais consistente e duradoura, com uma visão a prazo, que não seja a colagem de pequenas políticas. 

Ora, os casos portugueses do passado - como na eleição de Mário Soares e Jorge Sampaio - são instrutivos.

Relembre-se as eleições presidenciais de 1986. Havia o candidato à direita Freitas do Amaral, contra vários candidatos à esquerda: Salgado Zenha (apoiado por parte do PS e pelo PCP, cuja candidatura de Ângelo Veloso estava disposta a desistir na primeira volta), havia a hipótese de Maria de Lurdes Pintasilgo (apoiado pela ala eanista) e a vontade pessoal de Mário Soares (que nem era apoiado pelo PS). O PCP aprovara no seu X Congresso de meados de Dezembro de 1983 que nunca votaria em Mário Soares por ser “uma e a mais provável candidatura de direita". Soares partia, pois, com uma expressão mínima de eleitorado. O que fez Mário Soares? 

Em Janeiro de 1985 - como conta Rui Mateus no seu livro Contos Proibidos - Mário Soares pediu-lhe para que falasse com Frank Carlucci – ex-embaixador dos Estados Unidos (EUA) em Lisboa no verão quente de 1975, ex-director adjunto da CIA, ex-secretário de Estado adjunto de Defesa dos EUA - sobre o apoio técnico de uma empresa especializada em eleições. Carlucci - com quem Rui Mateus admite que “mantinha contactos regulares” - chegara antes a defender que Soares “era mais importante enquanto secretário-geral do PS do que como PR”, mas nesta fase desavinda com o PS, acabou por o ajudar na sua candidatura. 

Carlucci colocou-o em contacto com “uns homens do Reagan que eram the best that money can buy: Lee Atwater (vice-director de campanha de Reagan e, de 1981/83, assistente especial do presidente e em 1986 do presidente do Partido Republicano) e Paul Manafort (advogado e principal operacional da empresa), da empresa de RP Black, Manafort, Stone & Kelly. Os dois chegaram a Lisboa num voo da TWA às 7h30 de 3/3/1985. Nessa tarde, foram conversar com a casa de Soares, em Nafarros. 

“Os americanos explicaram como trabalhavam e que tudo era possível desde que houvesse meios”. A candidatura de Lourdes Pintassilgo chamou desde logo a atenção dos especialistas dos EUA como forma de dividir votos à esquerda. Para eles, “era possível eleger Mário Soares desde que tudo fosse feito para manter Maria de Lourdes Pintasilgo na corrida” (na biografia escrita por Teresa de Sousa, Soares – segundo Rui Mateus – disse que os técnicos norte-americanos lhe teriam dito que era impossível, uma versão que valorizaria ainda mais o seu papel político...)

Essa indicação dos homens dos EUA corroborou os esforços e contactos de Soares para encorajar Pintasilgo a avançar. Mas eles tinham ainda outras tácticas.

“Entre os truques que eles tinham possibilidade de plantar, caso fosse caso disso, para desacreditar um candidato como Freitas do Amaral, no momento decisivo da campanha, havia o lançamento de um artigo num grande jornal como o New York Times, através das duas toupeiras, que, embora descrevendo o candidato com 90% de informação rigorosa, incluiria 10% de ficção. Por exemplo, seria revelada uma associação secreta avassaladora com o KGB, que seria impossível de verificar em tempo útil. O feedback dessa informação correria mundo e adquiriria tal veracidade que acabaria por se transformar num elemento implacável de dúvida sobre a integridade do candidato. Mário Soares estava absolutamente eufórico”. 

Mário Soares apresentou os homens dos EUA ao seu think-tank: Gomes Mota, Vítor Constâncio, Jaime Gama, Vasco Pulido Valente. E no dia seguinte, à sua comissão técnica, com Serras Gago. Voltaram “inúmeras vezes” a Portugal. De Portugal, visitou-se a empresa em Washington. Trabalharam todos durante 3 meses. 

Depois, houve problemas porque a candidatura de Mário Soares não lhes pagou, mas isso pouco importa agora. 

sábado, 12 de setembro de 2020

Habemus Papa


«Os prazeres chegam-nos diretamente de Deus, não são católicos ou cristãos, ou outra coisa qualquer. São simplesmente divinos. (...) A Igreja condenou o prazer vulgar, desumano, bruto, mas, por outro lado, sempre aceitou o prazer humano, simples, moral. (...) O prazer de comer existe para nos manter saudáveis pela alimentação, tal como o prazer sexual existe para que o amor seja mais bonito e para garantir a perpetuação das espécies. (...) Os prazeres de comer e do sexo vêm de Deus.»

Citado num livro do jornalista italiano Carlo Petrini, o Papa Francisco acrescentaria, com uma santa benevolência, ter havido no passado algum «excesso de zelo» nestas matérias por parte da Igreja, devido a «uma interpretação errada da mensagem cristã». Eu já não me lembro de quem é que hoje comentava que foi preciso esperar 2000 anos para ouvir uma figura de proa da Igreja dizer o que Francisco disse. Mas não se surpreendam se, entretanto, surgir um qualquer manifesto ou abaixo-assinado, subcrito por uma centena de pessoas (na sua maioria certamente católicas), a condenar estas declarações.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Covid-19: uma nova fase, com um novo padrão? (I)

Decorridos mais de seis meses desde o início da pandemia na Europa, e sendo muito incerta a sua evolução nos próximos tempos, parece contudo que a «segunda vaga» se diferencia substancialmente da primeira, em termos de letalidade. De facto, se é evidente, e muito preocupante, o aumento significativo de novos casos de infeção desde o início de julho, à escala da UE28, em termos de óbitos parece estar a manter-se a melhoria da situação conseguida com a adoção generalizada de políticas de confinamento, como mostram os gráficos seguintes. De facto, enquanto o número de novos casos diários passou de cerca de 4 mil (o valor mais baixo após o pico) para 27 mil, sextuplicando, o número de óbitos apenas duplica, ao passar de cerca de 100 para quase 200.


A evolução recente no caso de Portugal parece encaixar no padrão acabado de referir. De facto, se é inegável o acréscimo no número de novos casos e de infetados (de 170 em meados de agosto para os atuais 439, e de 12,5 para 15,5 mil, respetivamente), o aumento registado ao nível dos internamentos (17%) e no número de óbitos não acompanha essa tendência. Aliás, o número de óbitos mantém-se numa média móvel diária (últimos sete dias) de 3, desde o dia 15 de agosto (com o número de novos casos, no mesmo período, a mais que duplicar).


O facto de o número de novos casos e de infetados serem os indicadores prediletos das notícias sobre a pandemia (e também o critério primeiro de algumas decisões políticas) faz com que esta alteração de padrão tenha tendência a passar despercebida, sendo muito importante tentar compreender com detalhe o que a poderá explicar. O facto de o contágio estar agora a ocorrer em camadas mais jovens, a possibilidade de o vírus ser hoje menos agressivo, o aumento do número de testes, a deteção e tratamento mais atempado das situações, ou a melhoria da capacidade de resposta dos sistemas de saúde são algumas das hipóteses a considerar. Independentemente de, como é óbvio, devermos manter toda a prudência e continuar a adotar os comportamentos, individuais e coletivos, que ajudem a impedir um regresso à letalidade registada na primeira vaga.

Unidade urgente no tempo que escapa



quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Atentismo económico


Como assinalou recentemente Ricardo Cabral, uma quebra realista de 8,5% do PIB nacional em termos nominais em 2020 será superior ao montante que o país receberá em subvenções do fundo europeu nos próximos anos: 18 mil milhões versus 15,3 mil milhões. 

Entretanto, confirma-se, uma vez mais, que o défice orçamental é uma variável endógena, dependente do andamento da economia que por sua vez o influencia por via dos estabilizadores automáticos e da variação discricionária de despesa: as receitas caem a pique, mas o governo tenta conter um crescimento da despesa pública que é absolutamente indispensável para, compensando o recuo sem precedentes da despesa privada, suster a queda do PIB. 

Cabral prescreve um aumento rápido do investimento público, que está nos valores mais baixos de sempre, o que faz todo o sentido, tendo também em conta o ambiente económico deflacionário e, consequentemente, as baixas taxas de juro. No entanto, os constrangimentos europeus foram de tal modo interiorizados que não se pode realmente esperar muito mais do que um atentismo económico contraproducente. Se é verdade que o investimento público só pode subir, nunca subirá o suficiente para fazer a diferença macroeconómica e nunca será dirigido por um Estado estratega com um mínimo de autonomia para fazer a diferença em termos sectoriais neste contexto estrutural.

Mas quem acompanhe a opinião dominante até pode ficar com a ideia que o país terá, graças à generosidade europeia, uma grande oportunidade para o desenvolvimento, a não desperdiçar, sendo só preciso garantir que o Estado português não gasta tudo em vinho. É a mesma ilusão europeísta de sempre, acompanhada do descontextualizado número dos milhares de milhões. 

A história diz-nos que desenvolvimento não virá do exterior, ainda para mais num contexto de crise sem precedentes, num país sem instrumentos decentes de política e submetido a um crescente controlo político pela burocracia europeia, e com uma elite que já desistiu há muito de os recuperar, sujeitando-nos assim a uma vulnerabilidade e frustração cada vez maiores.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Têm todos a exata noção do que assinaram?

1. Não deixa de ser fascinante percorrer a lista de subscritores do manifesto pela «objeção de consciência» em relação à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e nela encontrar nomes que não causam a menor surpresa (Cavaco Silva, Helena Matos, Isabel Jonet ou José Miguel Júdice), outros que geram, apesar de tudo, algum espanto (António Barreto, Manuela Ferreira Leite, Pedro Lomba ou Sérgio Sousa Pinto) e outros ainda que suscitam grande perplexidade, atendendo sobretudo ao que está em causa (Adriano Moreira, António Araújo, David Justino, Graça Franco, Joaquim Azevedo ou Jorge Miranda).

2. É também interessante tentar mapear, através da lista de subscritores, interesses e motivações em jogo. Sendo evidente o peso do ensino privado, nomeadamente de setores que há muito se movem contra a escola pública (com os seus cheques-ensino e contratos de associação), e em particular da Universidade Católica (com os seus privilégios injustificados), há sinais das lógicas de aproximação ao Chega como derradeiro recurso para o regresso da direita ao poder e casos, em número significativo, de catolicismo ultramontano e conservadorismo bafiento. Por último, admita-se uma hipótese benigna, haverá subscritores que não terão percebido bem o que estavam realmente a assinar.

3. De facto, terão todos os signatários noção dos temas tratados e debatidos (sim, debatidos) na disciplina? Não reconhecem nestes domínios (ver tabela) uma vertente essencial da formação de crianças e jovens em sistemas educativos de sociedades plurais e democráticas? Perfilharão, todos eles, a ideia de estarmos perante «questões que dizem respeito à vida privada» e que cabem por isso ao «papel educativo dos pais», como sugeriu Manuel Braga da Cruz? Ou, pelo contrário, consideram que são matérias inerentes à convivência em comunidade e ao respeito pela diferença e pelo outro, exigindo que a disciplina não seja facultativa (como se de uma religião se tratasse)?


4. Terão alguns subscritores sido vítimas da campanha de desinformação e deturpação dos factos associados ao caso de que parte este manifesto, como a que sugere que o Ministério da Educação emitiu um despacho a «chumbar os dois alunos» que não frequentaram a disciplina, por decisão reiterada dos próprios pais? Saberão que estes mesmos pais recusaram, até hoje, todos os planos de recuperação das aprendizagens que lhes foram propostos? Terão os signatários Cavaco Silva e Passos Coelho noção de que aprovaram e promulgaram, respetivamente, um Estatuto do Aluno que estabelece, como consequência última da não frequência injustificada de qualquer aula, a reprovação?

5. Por último, saberão todos os subscritores do manifesto que o pai dos referidos alunos, Artur Mesquita Guimarães, é conhecido por ter pertencido à comissão executiva da Plataforma Resistência Nacional (atual Plataforma Renovar), contando com o apoio pro bono, no seu processo contra o Ministério da Educação, «do advogado João Pacheco de Amorim, que foi cabeça de lista por Coimbra do Chega nas legislativas e é irmão do número dois do partido, Diogo Pacheco Amorim, que substituirá André Ventura durante a campanha para as Presidenciais», e que isto anda tudo ligado, a mimetizar o que já aconteceu noutras paragens?

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Para honrar a democracia


Os reforços de emergência, se não forem acompanhados de medidas estruturais para a criação de uma rede pública de apoio aos mais velhos, e se esta não assentar numa articulação profunda de equipas da Saúde e da Segurança Social, vão também consolidar opções erradas que acompanham este sector desde a sua génese. Uma delas é a escolha, que o Estado português mantém, de estar ausente da provisão (pública), limitando-se a financiar instituições sociais nas quais delega as competências de cuidar destas populações. O resultado é um agravamento das tendências assistencialistas, que misturam falta de formação e preconceitos, num contexto de uma insuficiente fiscalização pelo Estado dos cuidados prestados (a começar pelos rácios exigidos entre profissionais e utentes, em particular os mais dependentes, com grande prejuízo para a qualidade da sua saúde) (...) Nesta edição, Maria do Rosário Gama defende a criação de um «Serviço Nacional de Apoio aos Mais Velhos», criando oferta pública e potenciando a rede já existente. Pela capacidade de intervenção imediata e pelo conhecimento que certamente trará dos problemas vividos no terreno, é um caminho que urge seguir. Na senda de uma rede pública e universal que possa finalmente honrar a democracia.

Sandra Monteiro, Cuidar dos velhos: por uma rede pública e universal, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Setembro de 2020.

sábado, 5 de setembro de 2020

Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos (Parte 4 - O CHEGA é contra o sistema e defende o povo?)


As primeiras três partes podem ser consultadas aqui, aqui e aqui.

1)   14) Os políticos são todos uns privilegiados e uns corruptos. O André Ventura é que está lá a bater-lhes forte. Quando alguém aponta uma crítica generalizada aos políticos, ao estilo “são todos farinha do mesmo saco”, a primeira questão que se deve colocar é “qual é a sua alternativa?”. É que uma posição, legítima, é apontar o comportamento oportunista e corrupto de uma determinada personalidade. Outra é estendê-la a toda a comunidade política eleita. Este argumento é sempre perigoso porque pretende espalhar a lama sobre todos os eleitos e, por extensão, sobre a própria democracia. O corolário do argumento é que precisamos de deitar toda essa tralha fora e eleger o salvador, o chefe, que irá expurgar o sistema de todos os seus podres e males (não soa nada a fascismo, pois não?). Nunca esclarecem por que motivo o chefe e os seus correligionários, uma vez eleitos, não teriam exatamente as mesmas pulsões corruptas de que acusam os outros. No caso de André Ventura e do CHEGA tudo se torna mais irónico porque as ações falam por si. O processo de reconhecimento de assinaturas no Tribunal Constitucional apresentou, num primeiro momento, várias irregularidades. Peixoto Rodrigues, dirigente e mais destacado membro das forças de segurança nas listas do CHEGA, foi aposentado compulsivamente por faltas injustificadas, após já ter estado envolvido num processo judicial por falsificação de passes. Mais importante: após o CHEGA defender no seu programa eleitoral “implementar a obrigatoriedade da exclusividade no exercício do mandato de deputado!” – sim, com ponto de exclamação e tudo – André Ventura, o próprio, acumulou o seu mandato com o lugar de comentador da CMTV e de consultor fiscal da FINPARTNER, consultora ligada a Caiado Guerreiro, esse sim, um real ponto de convergência do grande interesse económico e financeiro português. O mesmo André Ventura que virá depurar o sistema de todos os seus males. Estamos conversados. Igualmente destituída de sentido é a ideia de que os deputados são o pináculo do privilégio da sociedade portuguesa. Um deputado com exclusividade aufere um vencimento total ilíquido de 3994,73€, o que se traduz numa remuneração líquida de cerca de 2350€. É, por certo, um vencimento elevado para o contexto da economia portuguesa mas não é um salário milionário como a extrema-direita gosta de fazer crer. Ninguém enriquece sendo deputado. A verdadeira fonte das fortunas em Portugal está nos rendimentos de capital, em especial os não declarados e colocados em off-shores, nas rendas financeiras e do imobiliário ou nos prémios de gestão das pirâmides das grandes empresas. Não por acaso, o CHEGA, a propósito destas fontes de desigualdade, nada tem a dizer. Pelo contrário, conta até com alguns dos representantes destes interesses como seus financiadores. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Aos democratas


«A campanha contra o PCP a pretexto da Festa do Avante (amanhã haverá outro pretexto) revela que a besta fascista começa a mostrar as garras com todo o seu cortejo de seguidores boçais e com grandes e perigosas cumplicidades no poder económico e, consequentemente, na comunicação social. O inimigo principal é o PCP, mas visa a própria democracia. É bom que os democratas não fiquem em cima do muro a ver o que acontece lá em baixo.»

António Filipe (facebook)

Até dizer chega


Adam Smith, uma das principais referências da economia política liberal, já nos havia alertado no século XVIII: quando os capitalistas de um mesmo ofício se reúnem para conversar, geralmente é para conspirar contra o público. No último século, capitalistas de diferentes ofícios, ou os seus representantes, reuniram-se frequentemente para conspirar contra as democracias. Em Portugal também. A 18 de Junho de 2020, numa quinta em Loures, como relata uma investigação do jornalista Miguel Carvalho na Visão, foi servido um belo repasto a «seletos convidados», que «pesam muitos milhões na economia nacional e até além-fronteiras»: reuniram-se para conspirar com o deputado do Chega André Ventura; a questão do financiamento deste partido não terá estado naturalmente ausente. João Bravo foi o anfitrião. Este capitalista com negócios nas áreas da defesa, da segurança e dos incêndios, necessariamente entrelaçados com o Estado, afiançou: «desde 1974 que o País se afunda». 

A investigação de Miguel Carvalho deu-nos assim a ver um momento de consolidação das mais importantes redes sociais deste partido, sem as quais a acção nas outras redes, também chamadas sociais, nunca teria a mesma eficácia, até por falta de recursos. Profundo conhecedor da extrema-direita portuguesa, ou não tivesse sido autor do livro de referência sobre o seu terrorismo a seguir a 1974, Carvalho já havia começado a investigar a galáxia reacionária de que é feito o Chega: de quadros fascistas à mobilização de sectores evangélicos em modo bolsonarista, passando pelos negócios mais ou menos sórdidos – da segurança ao imobiliário de luxo – de muitos dos seus dirigentes, sem esquecer as ligações internacionais ou o caldo cultural obscurantista, de onde o negacionismo climático não está ausente. É aliás neste caldo que mergulha hoje toda uma economia política neoliberal ao serviço do aumento dos poderes discricionários indissociáveis do capital e do Estado securitário.

O resto do artigo, que recupera e desenvolve notas críticas recentes a uma apologia deste partido e à sua normalização pelo PSD de Rui Rio, pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Setembro.  

Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos: guião de conversa com um apoiante da extrema direita (Parte 3)

 

As partes 1 e 2 destas série podem ser consultadas aqui e aqui, respetivamente.

1)    8) Só o CHEGA defende os polícias. A esquerda só defende os criminosos. Este é um dos principais argumentos dos apoiantes do CHEGA. Merece, por isso, um cuidado especial. Comecemos pelo início: em democracia, qual é a função das forças de segurança? As forças de segurança são compostas por um conjunto de cidadãos (polícias) a quem se atribui a exclusividade do uso de mecanismos repressivos e armas de fogo com o estrito fim de deter quem se encontra a violar a lei aprovada pelos órgãos democráticos. Por outras palavras, a polícia representa a democracia e, por extensão, todos nós, e tem a função de zelar pelo cumprimento da lei. Sendo a utilização da força uma ação sensível em democracia, é fundamental que ação destes profissionais seja detalhadamente escrutinada. Qualquer excesso ou discriminação na utilização dessa força é uma falha de todos nós. De igual modo, tem de ser garantido que nenhum polícia se sente legitimado a fazer o papel que cabe à justiça. A sua ação está confinada ao registo de ocorrências e à detenção de cidadãos, quando isso se mostrar necessário. A força deve ser usada na estrita medida em que permite parar a violação da lei ou efetuar a detenção, e sempre em proporcionalidade face ao facto ocorrido. Se este for o ideal de atuação da polícia, creio que nenhum cidadão poderia discordar. O problema é que o CHEGA tem uma estratégia bem diferente. A estratégia de apoio público do CHEGA às forças de segurança pertence aos mais básicos manuais da extrema-direita. Em primeiro lugar, porque lhe permite ampliar a sua base de apoio. Ao contrário de um discurso flagrantemente racista ou xenófobo, o apoio à polícia é uma um registo popular com a qual muitas se pessoas se identificam. Com efeito, um passo elementar desta estratégia passa por aproximar-se de pessoas que se sintam atraídas por esse discurso, de preferência por meio de um movimento não diretamente conotado com o próprio partido. Foi o que o CHEGA fez através do Movimento ZERO. Movimento sem rosto e com grande acolhimento nas redes sociais, esta página ganhou apoio popular por alegadamente defender a melhoria das condições para os agentes das forças de segurança. Mas rapidamente passou a fazer um discurso político, de glorificação dos pobres agentes que têm de combater os crimes no terreno, por oposição aos corruptos políticos (curiosamente sempre ligados ao governo e aos partidos à sua esquerda) que apenas boicotam a sua ação e lhes negam direitos. Este discurso é instrumental como vetor de conversão da simpatia popular pela polícia num sentimento de que é nela, na ordem que representa e no seu exercício discricionário que reside a solução para a desordem que se faz sentir. A criação deste discurso – a par da criação da ideia de que Portugal é um país inseguro (mito tratado noutro ponto) – são essenciais para tornar o CHEGA um partido atrativo. Qualquer dúvida sobre a ligação do CHEGA ao Movimento ZERO ficou desfeita quando André Ventura teve direito a enfáticos aplausos e a ser puxado para a tribuna por membros deste movimento numa manifestação de polícias, mesmo contra a vontade de alguns dos sindicatos que lá se encontravam. A ilusão de que só CHEGA defende a polícia passa por confundir defesa com impunidade e ausência de escrutínio. Sempre que um agente ou um conjunto de agentes é acusado de ter feito uso abusivo da força, o CHEGA vê nisso a prova de que há uma perseguição à polícia. O caso mais evidente é o da esquadra de polícia de Alfragide. Vários polícias (talvez não por acaso todos membros de um sindicato cujo presidente acabaria nas listas do CHEGA) foram condenados por agredir um conjunto de cidadãos negros. André Ventura desvalorizou o acontecimento. Em reação às agressões feitas a uma cidadã negra da Amadora, Carla Simões, que surgiu com a cara deformada acusando a PSP de agressão após ser detida, André Ventura desvalorizou o caso e afirmou que “tanto quanto sabemos e a informação que temos, essas lesões são compatíveis com as técnicas que foram utilizadas, legítimas, de neutralização”, acrescentando que temos de decidir “se queremos estar do lado daqueles que sistematicamente estão contra as forças policiais com a paranóia do racismo ou se estamos do lado daqueles que nos defendem”. É esta falsa dicotomia que tem de ser denunciada. Não há nenhuma oposição entre ser solidário com os agentes das forças de segurança (como com outros funcionários públicos) e escrutinar as suas ações. Cada acusação de racismo ou de excesso de força deve ser analisada com o maior cuidado e, caso se demonstre verdadeira, deve existir uma atuação firme perante os abusadores. Quem abusa do poder que a democracia lhe confere para exercer as suas funções não merece ser polícia e deve ser objeto da maior condenação social. Deveriam ser os polícias os primeiros a reconhecer isto publicamente. A ideia de que qualquer investigação ao comportamento da polícia tem por base um sentimento de perseguição é falso. Pelo contrário, um elevado nível de escrutínio tem de fazer parte do contrato social que a democracia estabelece com aqueles a quem dá legitimidade para usar a força. O discurso que André Ventura defende é o da impunidade, que tem como inevitável consequência o avolumar de abusos. É o mesmo clima que nos EUA leva a que simples operações STOP se possam transformar em homicídios de pessoas indefesas por parte de elementos das forças de segurança. É um discurso perigoso. Mas é o que CHEGA defende quando, no ponto 31 do seu manifesto, propõe a extinção da figura legal do “excesso de legítima defesa”. Isto significa que qualquer ato de uma força policial, mesmo que desproporcional face à infração praticada, muito dificilmente seria punida. É franquear a porta da arbitrariedade e da justiça pelas próprias mãos. É criar uma discricionariedade no uso da força que é perigosa para os cidadãos e ameaça a democracia.  Nenhum polícia pode ser racista. Nenhum polícia pode pertencer a organizações que apoiem políticas racistas. Nenhum bom polícia pode ser apoiante do CHEGA.

Domingo, na Feira do Livro de Lisboa


Tendo certamente em pano de fundo duas publicações recentes, as Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise, um trabalho coletivo do CES, e o Cuidar de Portugal - Hipóteses de economia política em tempos convulsos, de José Reis (acabado de sair na edição em papel), a Almedina organizou uma Mesa Redonda com António Guerreiro, Boaventura de Sousa Santos e José Reis sobre os impactos económicos e sociais da pandemia. É já no próximo domingo, dia 6, na Feira do Livro de Lisboa (Auditório SUL), a partir das 15h15. Estão todos convidados, apareçam.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos: guião de conversa com um apoiante da extrema direita (Parte 2)

 A parte 1 pode ser consultada aqui.

1)     5) Portugal é um país inseguro e as minorias étnicas e raciais são as principais responsáveis por essa insegurança. Portugal não é um país inseguro. Segundo o Global Peace Index, publicado pelo Institute for Economics and Peace, Portugal é o país mais seguro da União Europeia e o terceiro país mais seguro do mundo. De igual modo, não há nenhuma ligação direta entre a criminalidade violenta e a origem racial dos indivíduos que cometem esses crimes. Segundo dados de um estudo publicado pelo Observatório da Imigração, uma vez colocados em “condições equivalentes de masculinidade, juventude e condição perante o trabalho, os dois grupos tendem a tornar-se perfeitamente equivalentes”. Sustentar e difundir estas duas ideias só interessa à estratégia da extrema-direita, para quem é fundamental mobilizar o ódio contra um grupo social, culpando-o de todos os males, no lugar de atacar a verdadeira raiz dos problemas e desenhar soluções.


Prioridades especulativas

Em virtude do seu impacto, essencialmente no turismo internacional mas também na procura imobiliária e na contenção do Alojamento Local, tornou-se plausível pensar que a descida de preços da habitação pudesse vir a constituir, pelo menos no médio prazo, um dos poucos «benefícios colaterais» da irrupção da pandemia.

De facto, na sequência do aumento dos valores de aquisição e das rendas ao longo dos últimos anos, sentidos sobretudo nas grandes cidades (e nomeadamente em Lisboa e na AML), dir-se-ia que a crise pandémica poderia estar a contribuir, escrevendo por linhas tortas, para o desejável «arrefecimento» do mercado e a melhoria do acesso à habitação por parte de famílias de rendimentos intermédios e com menores rendimentos.

Desejável descida dos preços e melhoria do acesso? Sim, mas não, ao que parece, para todos os «agentes». De acordo com um artigo recente no The Telegraph, citado pelo Diário Imobiliário, as empresas inglesas do setor parecem estar muito interessadas em conhecer o «segredo de Lisboa, um dos poucos mercados principais do mundo em que os preços das casas ainda podem subir em 2020», ao contrário do que se espera aconteça com Paris, Madrid, Londres, Genebra ou Berlim, que terão neste sentido «um ano difícil pela frente». Um contraste que leva o periódico a perguntar porque não pode o mesmo «acontecer em Londres» e o que se poderá «aprender com uma cidade cujo mercado imobiliário está definido para reverter a tendência de queda».

Os objetivos de uns não são, claro está, os objetivos de outros, com as lógicas do mercado especulativo declaradamente indiferentes a qualquer espécie de ideia de bem comum. Razão pela qual, aliás, vale mesmo muito a pena ler o artigo da Ana Cordeiro Santos na edição de agosto do Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), dedicado às contradições entre a função social da habitação e o papel do Estado, por um lado, e as lógicas de financeirização e especulação em que mergulhou o setor, por outro.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Desconstruir os mitos do CHEGA em 17 pontos: guião de conversa com um apoiante da extrema-direita (Parte 1)


A marca de contraste da sabedoria convencional é a aceitabilidade. Tem a aprovação daqueles a quem se dirige. Há muitas razões pelas quais as pessoas gostam de ouvir em palavras aquilo que aprovam. Serve o seu ego: o indivíduo tem a satisfação de saber que outras pessoas mais famosas compartilham as suas conclusões. Ouvir o que se acredita é também fonte de confiança renovada. O indivíduo sabe que é apoiado nos seus pensamentos – que não o deixaram para trás sozinho. Além disso, ouvir o que uma pessoa aprova satisfaz o instinto evangelizador. Significa que os outros também estão a ouvir e por isso estão sob o processo de persuasão.

John K. Galbraith, A Sociedade da Abundância (The Aflluent Society), 3ª ed, 1976 

Portugal testemunha a ascensão da agenda e do discurso da extrema-direita. Aos democratas, exige-se a defesa ativa dos seus valores. Essa tarefa implica a adoção de equilíbrios difíceis. Por um lado, não é eficaz a hostilização imediata dos que se dizem apoiantes da extrema-direita. Entre esses, há uma massa heterogénea de pessoas: desde apolitizados que não entendem a real gravidade da sua escolha até fascistas convictos. Impedir o alastramento e normalização do fascismo exige, num primeiro momento, argumentação assertiva e serena. Sabemos que não é fácil: a extrema-direita constrói o seu discurso sobre mitos implantados na sociedade e utiliza o ódio e a mesquinhez como catalisadores da sua influência. É isso que atribui vantagem inicial a quem partilha o seu discurso. Só a frieza analítica na desconstrução dos seus argumentos garante uma estratégia vitoriosa. É para isso que serve este guia, que explora ponto a ponto cada um dos mais comuns argumentos da extrema-direita. Depois de os ler ou ouvir, o seu amigo ou familiar até pode manter a sua posição. Mas não pode reclamar inocência ou desconhecimento. Não poderá vir dizer-lhe que não sabia. Transpõe a linha da dignidade da convivência democrática e deve entender que isso tem consequências. O convívio com fascistas é um exercício de normalização a que os democratas não se devem prestar.

1) O CHEGA não é de extrema-direita. É de uma nova direita e não é composto por fascistas.  Parte da tentativa de normalizar o CHEGA passa por negar o seu rótulo de extrema-direita e de partido fascista. O partido diz-se da “nova direita” ou da “direita moderna”. Mas o que há ali de novo? Tudo cheira ao bafio das ideias antigas. O “chefe redentor” a quem é preciso dar poder incontestado para pôr ordem nisto (André Ventura, quem mais?), a ideia de que a democracia é um antro de corruptos que apenas se querem servir a si mesmos (ignorando que sempre os sistemas repressivos tiveram mais corrupção e nepotismo do que as democracias e que a aparência do contrário só se deve à censura), a ausência de qualquer proposta para além de declarar que o sistema está podre, o cultivar a ideia de que o sentimento de insegurança é constante (quando Portugal é considerado um dos países mais seguros do mundo), apontar a culpa de todos os males a um grupo em relação ao qual existe um ressentimento social prévio e enraizado (em função do contexto histórico, podem ser os judeus, os comunistas, os negros, os ciganos ou uma combinação destes grupos) e fazer uma apologia acrítica dos setores que detêm a função repressiva no contexto democrático (militares e forças de segurança), na esperança de conquistar o seu apoio e o daqueles que veem nesses elementos o garante do restabelecimento da ordem. O que há de novo na nova direita? Nada. A receita é a mesma de sempre, com as pequenas variações que o contexto e o momento histórico impõem. “Ah, mas eles dizem que não são fascistas”. Se um animal tiver quatro patas e miar, mas insistir que é uma galinha, no lugar de um gato, considere desconfiar. Abundam os exemplos de fascistas nas suas fileiras. Diogo Pacheco de Amorim, fascista confesso, será o substituto de André Ventura no parlamento. Foi um membro do MDLP, grupo de extrema-direita responsável por vários atentados no pós-25 de Abril. É um terrorista que tem responsabilidade moral em vários homicídios. Sim, é neles que vota quando vota CHEGA. De igual modo, abundam nas fileiras do CHEGA ex-membros do PNR e de organizações neo-nazis, como a organização de Mário Machado e a Nova Ordem Social. Muitos destas organizações estiveram envolvidas em crimes de sangue. Não, eles não são novos e inofensivos. São a velha e violenta extrema-direita de sempre sob outra roupagem.

2) Se vivemos numa democracia, cada um pode ter a sua opinião e ninguém tem nada a ver com isso. A ideia de que a democracia é um espaço que acolhe qualquer movimento político organizado é um mito. Todas as democracias passam por momentos constituintes em que definem o espectro de ideias e posições que estão dispostas a acolher. No caso português, esse momento constitucional foi o 25 de Abril e os termos do nosso acordo democrático ficaram estabelecidos na constituição de 1976. A constituição é muito clara na rejeição de organizações de raiz fascista O CHEGA está, por isso, fora do arco constitucional e do acordo democrático em que a nossa sociedade assenta. Que o partido tenha sido legalizado pelo tribunal constitucional é parco contra-argumento. Como nenhum partido se declara fascista à partida, a sua não legalização com esse fundamento é pouco eficaz. De igual modo, agir a posteriori, recorrendo à ilegalização, seria um ato complexo e possivelmente contraproducente. Com efeito, a denúncia de que o CHEGA está fora do nosso acordo democrático deve partir de cada um de nós.

3) Se a sociedade tolera a extrema-esquerda, também deve tolerar a extrema-direita. Para aumentar a aceitabilidade de ser e/ou se relacionar com alguém de extrema-direita, o artifício usado passa por estabelecer uma equivalência entre extremos. Há dois problemas com este argumento. O primeiro é de substância: não há nada de semelhante nas propostas das duas áreas políticas. A esquerda é favor da igualdade entre pessoas de todas as raças etnias e credos. A extrema-direita é a favor da discriminação desses grupos. A esquerda bateu-se historicamente pela liberdade e pela democracia em Portugal durante o fascismo, tendo inúmeros dos seus membros sido perseguidos, torturados e presos. A extrema-direita foi apoiante do regime que perseguiu, torturou e prendeu. A esquerda bate-se pela defesa dos serviços públicos universais, ancorada no princípio de que a educação e a saúde são direitos vitais, que não devem estar condicionados pela discriminação do preço e do mercado. O CHEGA defende no seu programa que a Saúde e a Educação devem ser privatizadas, o que se traduzira na negação do acesso desses bens a milhões de portugueses. Votar na esquerda é votar pela não discriminação, pela tolerância, pelos valores da liberdade e pela ideia de que o cuidado médico e a educação são direitos básicos em democracia. Votar na extrema-direita é votar na intolerância associada à cor de pele, à orientação sexual ou à nacionalidade e é contribuir para uma sociedade mais desigual. Sendo mais claro: votar no CHEGA é votar naqueles que impuseram a repressão fascista, a ti, aos teus pais ou aos teus avós. É ser cúmplice de um lado negro da história de Portugal. Votar na esquerda é votar em que combateu ativamente a repressão e se bateu pelo estado democrático em que passaste a viver ou em que nasceste. Aquele onde tu e os teus filhos são livres de pensar, escrever e falar. Há uma diferença, não há? A sociedade aceita a esquerda (e a direita democrática) porque os seus princípios assentam na dignidade e liberdade democráticas, a extrema-direita não. E isto leva-nos ao truque da forma: chamar extrema-esquerda à esquerda que está à esquerda do centro é um artifício semântico para sugerir que as suas propostas também estão na periferia da normalidade democrática. Mas não estão: achar que o Estado deveria ser mais presente na economia, que a precariedade laboral deveria ser menor ou que a saúde e a educação deveriam ser públicas não as coloca de fora da democracia. Discriminar com base na cor de pele, na etnia ou na orientação sexual, sim. Não se pode comparar o incomparável.

4) Então a Coreia do Norte e a Venezuela? Antes do conteúdo, é importante de novo olhar para a estratégia do argumento. Esta é uma pergunta que os apoiantes de extrema-direita gostam de lançar quando são confrontados com as atrocidades que o fascismo perpetrou ao longo da história, designadamente em Portugal. O truque está em não responder diretamente ao problema – “como é possível apoiares uma área política que é herdeira dessas atrocidades?” – mas em criar uma manobra de diversão, sugerindo que o interlocutor sofre do mesmo tipo de fraqueza moral. É uma não resposta, que em nada anula o problema de base. Mas podemos responder diretamente à insinuação de que o socialismo/comunismo e a extrema-direita partilham das mesmas fragilidades históricas e morais. Em primeiro lugar, há uma enorme diferença entre apoiar um posicionamento político cuja substância assenta na perseguição de grupos e em sentimentos anti-democráticos ou, por oposição, apoiar um posicionamento político que inspirou modelos que, em determinados momentos históricos, distorceram os seus princípios. O socialismo/comunismo é um posicionamento político fundado na ideia de que o desigual acesso a meios de produção numa sociedade capitalista determina relações de poder assimétricas, com profundas ramificações sociais, e que essa desigualdade deve ser combatida em nome de mais equitativas e fraternas relações entre os membros de uma sociedade. Em nada se relaciona com o fascismo que, na sua génese, desde o primeiro minuto, tem como objetivo a subjugação de toda a dissensão ao pensamento do chefe e a perseguição de minorias étnicas e políticas como um passo necessário de depuração social. Isto não significa que atos políticos condenáveis não tenham sido praticados por regimes políticos que se declaravam socialistas. Mas isso foi resultado de uma deturpação política, não de uma aplicação bem-sucedida de um projeto. No que se refere ao hipotético apoio dos partidos de esquerda a esses regimes, importa esclarecer que o BE, desde a sua fundação, sempre rejeitou dar apoio presente ou de memória histórica a qualquer país socialista assente no partido único. De igual modo, foi crítico da viragem autoritária que se operou na Venezuela nos últimos anos, organizando mesmo um dossier sobre o assunto no seu portal de notícias. O PCP, por contingências particulares do seu percurso histórico, tem mantido uma posição de alguma ambiguidade neste domínio. Mas o que importa reter é que, no contexto português e no seu programa, o património do PCP é de luta da liberdade e pela democracia, não se lhe podendo apontar nenhuma tentativa de supressão da democracia ao longo da sua história. Ao sacrifício de muitos dos seus militantes devemos a liberdade que temos hoje. Com efeito, fazer esta pergunta apenas serve para os elementos de extrema-direita lançarem a confusão e se escusarem a responder pelos crimes que a sua área política perpetrou.