domingo, 31 de maio de 2020

Pios tardios


João Vieira Pereira afiançou ontem que “reformas estruturais no dicionário do eixo franco-alemão querem sempre dizer uma coisa: a subjugação da economia e das empresas portuguesas a um alegado superior interesse desenhado a regra e esquadro num gabinete europeu onde qualquer ideologia é esmagada pelos grandes lóbis empresariais”.

O que dizer perante este diagnóstico do director do Expresso?

Em primeiro lugar, tarde piaste.

Em segundo lugar, a lógica geopolítica, que se traduz numa dependência externa acrescida, deve ser complementada com a da classe sempre que falamos de UE. Esta lógica traduz-se numa redução dos direitos laborais, do salário directo e indirecto. Este é outro dos significados das tais reformas estruturais no dicionário da UE. O exemplo da TAP, mobilizado por Pereira, vai ser realmente um bom estudo de caso do cruzamento destas duas lógicas, dado o espectro da tutela de Bruxelas a condicionar tudo. Pagamos e não mandamos para lá da banca?

Em terceiro lugar, confirma-se que a mudança de escala nunca é neutra do ponto de vista político-ideológico. Se há tantos ou mais lobistas empresariais em Bruxelas do que em Washington, a ideologia que aí domina também é a do neoliberalismo, neste caso do reforço do mercado único. Em momentos que não são excepcionais, decretados pelas grandes potências e pelo grande capital que tem país de origem, o neoliberalismo transmuta-se de forma transparente em Estado de bem-estar empresarial, mas de facto o capital das periferias beneficia menos disso, como se vê pelo montante dos apoios, em percentagem do PIB, por comparação com o centro. E daí a tendência do capital periférico para uma trajectória medíocre, procurando vulnerabilizar mais quem trabalha, através de alterações regressivas nas regras do jogo de classes.

Entretanto, as duas lógicas são mais ou menos claras no artigo de Pedro Santos Guerreiro no mesmo Expresso de ontem. Contando com a desmemória dos leitores que não leram o estudo sobre os jornalistas da troika, garante que sempre sovou “sem grande piedade os ‘alemães’”. Seja como for, agora até elogia Merkel com metáforas imperiais. Afiança que “não serão as vítimas da crise a aplaudirem o dinheiro, mas os que lhe sobreviverem”, que “não serão os mortos na economia, mas os vivos a saudarem o dinheiro de Bruxelas”. A destruição será, uma vez mais, muito pouco criativa, dado o lugar que nos cabe na divisão europeia do trabalho.

Digo a Guerreiro o seguinte: prescindo destes fundos em troca da devolução dos instrumentos de política económica perdidos. Afinal de contas, vista de Portugal, a UE esteve associada na maior parte da sua história, que começa em Maastricht, à divergência económica, à quebra do investimento, ao endividamento externo crescente e logo a uma punção dos nossos rendimentos superior a qualquer transferência. A livre circulação de capitais, decretada a partir de 1992, e a fuga aos impostos assim facilitada também ajudaram na punção.

Mas a ideia de Bruxelas-Berlim sempre foi a de garantir que existe um bloco social mínimo na periferia que continua a aplaudir esta dependência cada vez maior. E pode contar ainda hoje com todas as direitas e com a esquerda brâmane, com uma intelectualidade que nem precisa de muito para entoar loas à chamada Europa, como se vê.

Dada a extensão da crise, no entanto, pode ser que os mortos na economia decidam lutar colectivamente pela vida, pode ser que estas lutas não fiquem circunscritas a segmentos minoritários do mundo do trabalho. Pode ser. Seja como for, as lutas terão sempre de cruzar a questão nacional e a questão social, em nome de um projecto de desenvolvimento para o país.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Capa de uma qualquer revista portuguesa


Fins


Confirma-se que é hoje mais fácil pensar o fim da esquerda neste continente do que o fim da UE, do que o fim desta forma de império liberal. A esquerda dominante continua a querer salvar um arranjo que para todos os efeitos a destruiu como força de mudança. Porquê?

Talvez uma resposta indirecta possa passar por atentar num dos traços centrais de uma parte fundamental da chamada esquerda: o seu desligamento das classes populares, a colonização dos partidos, da sua base ao topo, pelos sectores profissionais ditos instruídos de classe média e alta. Thomas Piketty chamou-lhe esquerda brâmane num estudo socioeconómico sobre este assunto político-eleitoral para alguns países do centro, sendo que este não é um fenómeno exclusivamente europeu.

Este padrão de classe reflete-se não só na sua encolhida base eleitoral, mas também nos hábitos intelectuais prevalecentes, de que as apostas supranacionais do mesmo Piketty são, já agora, um exemplo flagrante, apesar de diagnósticos muito úteis sobre as desigualdades cada vez mais cavadas. O globalismo, quer em versão neoliberal progressista, quer em versão social-democrata dita radical, mas na realidade bem superficial, continua a ser o horizonte intransponível em demasiados sectores intelectuais.

E na periferia tudo é pior: a imaginação do centro faz com que a elite intelectual e política dominante, mesmo a que se diz crítica, seja eurófila até ao fim. E já só lhe resta mesmo apelar à bondade de estranhos europeus, enquanto se perde num labirinto de analogias históricas deslocadas.

Entretanto, esta esquerda até pode ter agora uma versão do que deseja por parte da UE e não vai ser suficiente do ponto de vista macroeconómico. Vamos pagar caro por esses desejos, através de cada vez maior controlo político supranacional, com uma democracia desta forma cada vez mais atrofiada. Não há subvenções grátis nas relações internacionais.

De facto, perante quebras do PIB entre 8% e 12% este ano, tanto mais violentas quanto os países periféricos estão mais expostos a serviços de exportação como o turismo, obra da troika por cá, é mesmo preciso que algo mude na política económica europeia para que tudo possa ficar na mesma na sua economia política.

As elites europeias têm instrumentos e vontade para controlar a situação, dado o capital que investiram e a fraqueza das oposições. Bom, talvez o espectro do nacionalismo italiano lhes meta algum medo. Seja como for, no fim ganha o capital financeiro alemão, bancário e industrial, mantendo os restantes países trancados num arranjo económico-monetário que reflecte primacialmente os seus interesses.

A UE é salva. Nunca acabaria espontaneamente, de qualquer forma. E isso, a moeda e o mercado únicos e logo a política única, talvez seja mesmo o mais importante para os passageiros frequentes, incluindo a tal esquerda brâmane do continente.

Portugal lá terá de se conformar com o lugar que lhe cabe neste arranjo: ser a Flórida da Europa, um país extrovertido de serviços baratos, na base de demasiado trabalho facilmente descartável. Acham o quê, que o desenvolvimento nos vai ser dado de fora, através de subvenções?

Adenda. Em editorial no Público, Manuel Carvalho, demonstrando a preguiça intelectual e o preconceito político habituais, coloca as criticas à UE por parte da intelectualmente minoritária esquerda soberanista portuguesa, que é a que nos vai valendo, no mesmo saco da extrema-direita, numa amálgama com décadas, tudo em nome dos amanhãs europeus que cantam. Obviamente, Carvalho não se deu ao trabalho de analisar, por exemplo, a economia política do Chega e o seu compromisso com os pilares da integração, do mercado único à moeda única. Porque será?

A chantagem da CIP está a atenuar-se...?


Fonte: MTSSS, GEP

... ou será apenas uma pausa até se perceber o que serão os novos apoios públicos? Ou será que o desconfinamento está a funcionar? Ou um pouco de tudo?

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Transacções infernais


A TVI teve acesso ao contrato de compra e venda do Novo Banco, cuja divulgação pública tem sido uma exigência levantada nos últimos dias na esfera política. A primeira estranheza passa pela identidade do comprador: em vez de Lone Star, o nome que surge no contrato é Nani Holdings. O contrato a que a TVI teve acesso é confidencial e está guardado a sete chaves no banco de Portugal. Um documento extenso, mas que, logo ao início, surpreende: o que podemos ler e que, a 31 de março de 2017, foi celebrado o contrato entre o fundo de resolução e a Nani Holdings. O primeiro manteve 25% do banco e o segundo adquiriu 75%. A Nani Holdings, adquirente, é detida a 100% pelo Lone Star Fund, no Luxemburgo. Este, por sua vez, tem como maior acionista, a Nani Superholding, com sede no paraíso fiscal das Bermudas, e é detida por uma diversidade de fundos geridos pela americana Lone Star, dona indireta do Novo Banco. O mesmo é dizer que será difícil fazer o percurso inverso até à responsabilização. Ou seja, até quem tem de pagar ou devolver seja o que for.

Não há grandes comentários a fazer a este excerto da notícia da TVI. Confirma-se simplesmente a sordidez associada a este processo político de internacionalização da banca nacional, em que pagamos, mas não mandamos, compelido pela integração europeia e, infelizmente, aceite pelo governo.

Entretanto, e isto é mesmo uma nota de rodapé, é óbvio que Centeno não deve ir para governador da sucursal de Frankfurt, mas se calhar pode: afinal de contas, Carlos Costa tinha experiência em transacções com paraísos fiscais da sua passagem pelo BCP.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Quem te avisa também pode ser teu inimigo


No Financial Times também passam avisos do Banco Central Europeu: dada a maior contracção económica desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial, os défices orçamentais atingirão em média 8% do PIB na Zona Euro e a dívida pública, em percentagem do PIB, irá dos 200% da Grécia aos 130% de Portugal (há-de ser superior...), o que aumentará as pressões no médio prazo, até em face das sempre orçamentalmente custosas vulnerabilidades do sistema financeiro.

A verdade é que, como temos insistido, só se o BCE quiser ou se politicamente não puder é que o peso crescente da dívida pública colocará pressões sobre Estados sem soberania monetária e por isso dependentes da bondade de estranhos.

Lembro-me sempre do exemplo do Japão, um Estado monetariamente soberano: em 1995, o último ano em que a dívida pública foi inferior a 100% do PIB, as taxas de juro das obrigações do tesouro japonês a dez anos eram um pouco superiores a 4%; vinte e cinco anos depois, o peso da dívida anda nos 240% do PIB e as taxas de juro das obrigações do tesouro a dez anos são marginalmente superiores a 0%. Um país endividado na sua moeda controla as taxas de juro, as condições de financiamento, não estando dependente da custosa ficção dos mercados. Uma parte importante da dívida é detida pelo Banco do Japão e o resto por aforradores japoneses: o Japão deve ao Japão.

A Zona Euro não é de facto o Japão, já que não é e não será um Estado.

Na Zona Euro, o Banco Central não pode financiar os Estados, estando limitado a intervir nos mercados secundários, o que tem bastado para manter as taxas de juro relativamente baixas, sendo as supostas habilidades passadas de Centeno absolutamente irrelevantes para este registo de relativa tranquilidade nos chamados mercados. Para lá disso, o grande poder do BCE é o grande poder de uma instituição supranacional pós-democrática, usada pela elite para, mais tarde ou mais cedo, impôr a austeridade e a neoliberalização conhecidas, sobretudo na periferia.

Entretanto, os Estados periféricos aguardam que no centro europeu acordem numa resposta orçamental macroeconomicamente mínima, ou seja, aguardam que algo mude na política económica da UE para que tudo fique na mesma na sua economia política. Aguardam, reparem. O que nos vai valendo é que o défice orçamental é uma variável endógena, cujo crescimento inevitável neste contexto ainda amortece a queda.

No médio prazo, como avisa o BCE, o nosso destino está traçado. Isto não é uma previsão, mas sim uma prescrição. Quem manda é quem define o que é excepcional. Na Zona Euro, sabemos com o que contamos.

Até tu, Wolfgang?


«Se a Europa quer ter alguma hipótese, tem que demonstrar imediatamente solidariedade e que é capaz de agir. Empréstimos adicionais aos Estados-membros seriam pedras em vez de pão, porque muitos deles estão já fortemente endividados»

Wolfgang Schäuble (via Adam Tooze)

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Lay-off e corrupção

Multiplicam-se os apelos para o financiamento fácil às empresas, através da prorrogação do lay-off simplificado. Marcelo Rebelo de Sousa tem insistido nessa tónica.

A ideia é a de que se trata de uma medida eficaz para impedir o desemprego. Na verdade, a medida tem efeitos contraditórios.

Como se recorda, o lay-off coloca o Estado e a Segurança Social a pagar a margem bruta de 110 mil empresas - nomeadamente metade das grandes empresas - ao poupar-lhes 84% dos seus custos salariais. Mas, ao mesmo tempo, corta em 33% os salários de cerca de 800 mil trabalhadores, o que resulta na prática numa transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas. Em segundo lugar, esse corte salarial tem fortes efeitos recessivos e provoca a pobreza dos trabalhadores. Nalguns casos, a transferência é ainda mais avultada, porque - como tem sido denunciado - os trabalhadores nem deixam de trabalhar. Em terceiro lugar, o lay-off não impede o desemprego futuro, porque apenas está vedado o desemprego por despedimento colectivo e por extinção do posto de trabalho, e apenas até dois meses depois da aplicação da medida. As empresas devem ser apoiadas, mas nunca assim.  

Naturalmente, este dispositivo tem recolhido o aplauso das confederações patronais e dos partidos à direita. Porque, na realidade, em vez de pagar directamente aos trabalhadores - promovendo a procura dos produtos e serviços das empresas - financia antes as empresas sem condições efectivas, dando valor à ideia - errada e que tem subjacente todo um programa político defendido pela direita - de que dando dinheiro aos empresários, eles saberão melhor o que fazer com ele porque, no seu entender, "são as empresas que criam emprego".

Naturalmente, as empresas devem ser apoiadas, mas não com que este lay-off sinplificado que, na realidade, nunca esteve preocupado com o desemprego.   

Na realidade, o lay-off é sobretudo dinheiro fácil - e nunca foi tão avultado - para os donos das empresas e de sobremaneira para os das grandes e médias. E sobre dinheiro fácil, talvez conviria relembrar - preventivamente - as ideias expostas no livro do jornalista Eduardo Dâmaso "Corrupção - breve história de um crime que nunca existiu".

Na opinião do jornalista, o Estado tem sido usado, nas últimas décadas, como intermediário para financiar empresas que, por sua vez, financiam os partidos ou membros do governo. Para que tudo se mantenha incólume, as leis são feitas criando "tipificações de crimes inaplicáveis ou de prova impossível" ou abrindo largos alçapões. A escassez de recursos de investigação do Ministério Público e da Polícia Judiciária complementam este quadro, tornando as investigações ineficazes.

Parece-lhe demasiado forçado? O Eduardo Dâmaso traça um lastro com décadas.

Duas sem três?


1. Ficámos a saber que, se depender do governo, o parasitário capitalismo da doença será no essencial mantido, através de parcerias público-privadas e até da possibilidade de haver medicina privada em hospitais públicos. É toda uma recusa de aprendizagem com a experiência de uma pandemia que demonstrou a inutilidade social dos privados, como aliás a Ministra da Saúde reconheceu quando disse que só o SNS não fecha as portas. Então para quê manter as portas da política escancaradas para esta expressão do liberalismo realmente existente na saúde?

2. Anteontem, a Ministra da Saúde declarou que o surto de covid-19 na Azambuja se devia “a algum relaxamento e descontracção [dos trabalhadores] durante as pausas para almoço, de mudas de roupa e até ao facto de utilizarem meios de transporte que, não sendo públicos, são colectivos e onde há algum alívio das cautelas que têm de ser consideradas”. Esta perturbadora declaração em estilo liberal, que ilibava quem tem poder patronal e colocava toda a responsabilidade sobre quem está vulnerável no trabalho, foi só muito parcialmente corrigida ontem, dizendo a Ministra que tal “não significa que haja uma desresponsabilização das entidades que coordenam o local de trabalho”. Por acaso, acho que quem manda nos locais de trabalho se sente ainda mais desresponsabilizado quando o governo faz avaliações destas.

sábado, 23 de maio de 2020

Grande filme


Agora que, no rescaldo dos mortos de um vírus, se debate como foi que fomos capazes de apostar todas as fichas num mercado global, nas importações sabe-se lá de onde e de nos entregarmos à roleta das revoadas de turistas, é tentar ver este filme de 2019, com toda a aparência de uma reminiscência de outra vida. Há uma força antiga nestas imagens modernas. É talvez a força do peixe que nos corre veias acima. Sai-se diferente depois do filme. Tentem encontrar o filme completo.

Mas uma coisa interessante - como se pode ouvir nesta conversa com o realizador, Mark Jenkin - foi que ele diz não se interessar por fazer filmes realistas. A realidade é algo muito subjectivo, diz ele. E portanto ele importou-se mais com a sua visão da realidade, com produzir e realizar um filme feito à mão, de forma experimental, filmado e montado por si, com imagens de uma dada realidade. E no entanto, e talvez por isso, o filme que sai é um filme tão forte como conceitos, afiado pela simplicidade, que acaba por nos mexer por dentro, na nossa realidade, na forma como vemos a realidade. Aliás, mais real e mais forte do que a imagem que sai da entrevista referida em cima, com entrevistador e entrevistado de sapatos a la mode e à la mode de filmar em 16mm, sem som gravado no momento e tudo feito em pós-produção.

Possivelmente, o Mark está enganado ao afirmar que os filmes experimentais não são realistas; porque se calhar são uma das formas mais eficazes de tocar e remexer no imaginário colectivo. E de lhes mexer nas mentes através dos sentidos.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

A lista


Num comunicado enviado às redações, o Conselho de Administração do Novo Banco diz que «não aceita e lamenta profundamente que o bom nome da instituição continue a ser usado como arma de arremesso político e/ou manobras político-mediáticas» e que, caso subsistam «dúvidas sobre a criação e a forma como é gerido o Novo Banco, como transpareceu, uma vez mais, do debate parlamentar (...), os senhores deputados devem procurar, através de todas as iniciativas, (...) apurar tudo o que quiserem».

É curiosa, desde logo, a referência ao «bom nome» daquele que foi apresentado como sendo «o banco bom», o que é «novo», mas que acumula prejuízos e necessidades de injeção de capital sem fim à vista, pelo Fundo de Resolução, a ponto de fazer lembrar o «velho» banco, aquele que é «mau».

Uma das questões que tem sido suscitada relativamente à gestão do Novo Banco tem que ver com as operações de venda de imóveis, podendo estar em causa montantes substancialmente abaixo dos valores de mercado, preferência danosa por determinados compradores ou o mecanismo de venda (isto é, saber se estas «têm sido feitas por via normal ou por jurisdição offshore»).

Dúvidas que, fazendo fé na disponibilidade do Conselho de Administração para tudo esclarecer, ficariam dissipadas com a disponibilização da lista destas operações, permitindo o adequado escrutínio do processo. E, no caso de comprovada má gestão, romper o contrato com o Fundo de Resolução, como sugeriu entretanto - e bem - António Costa. Dito de outro modo, porque é que o banco não disponibiliza de imediato esta informação a todos os grupos parlamentares?

Da prática e da contradição


Na prática, a teoria neoliberal é mesmo outra. Particularmente em momentos ditos de excepção, o neoliberalismo favorece uma forma de Estado de bem-estar empresarial (Corporate Welfare do original em inglês), o por aqui chamado Estado multibanco. E quem manda é quem define o que é excepcional, como se sabe da mais realista teoria política.

Trata-se agora de apoiar as fracções dominantes do capital sem qualquer contrapartida, usando uma bitola puramente comercial, baseada num passado recente medíocre, mesmo em sectores onde estariam em causa outros valores.

O caso da comunicação social é particularmente chocante, dado o estado de degradação, do plano laboral ao da qualidade da informação, a que as lógicas capitalistas com escassos freios e contrapesos conduziram um sector crucial para a vida democrática.

Ao invés de apoiar, com critérios transparentes e orientados por uma lógica de interesse público, projectos editoriais merecedores, o governo prefere subsidiar de forma só aparentemente cega, concentrando apoios, através de publicidade paga, nos grandes grupos, à boleia do argumento da difusão, privilegiando assim o infractor cultural, o infortenimento mais crasso, a mais anti-plural concentração empresarial.

Esta compra e venda de influência tem sido defendida com argumentos acerca do papel destes grupos de comunicação social na democracia, confundindo a comunicação social com os grupos empresariais.

Na realidade, o que é bom para estes grupos não é bom para a democracia. Estes grupos privados são uma ameaça ao pluralismo democrático, como se vê pela poluição ideológica que promovem e como se verá quando tivermos um governo decente e logo sob fogo dos que só sabem apodar de populistas todos os que promovam os de baixo. E eu não me esqueço do consenso austeritário promovido há uns anos atrás por estes grupos.

Não se deve confundir o bom jornalismo com o lixo editorial no meio do qual sobrevive a custo. Por isso, qualquer apoio deveria implicar alterações profundas nas relações sociais de produção neste sector. Daria bem mais trabalho político fazê-lo.

Entretanto, confirma-se que o neoliberalismo, também de excepção, está bem entranhado, quer por interesses pouco esclarecedores, quer por valores muito distorcidos.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Coluna vertebral

O CDS propõe o alargamento até Setembro do lay-off simplificado. Recorde-se que a medida corta os salários de 800 mil trabalhadores em 33%, enquanto põe o Estado a pagar 84% das despesas salariais em mais de 100 mil empresas, das quais metade das grandes empresas.

Nada mau para quem não quer a intervenção do Estado nas empresas.

Impotência revoltante

"Quando pagam, têm a certeza?" 

Ontem e deixando a direita espantada, o deputado Rui Rio fez umas perguntas estranhamente certeiras no debate quinzenal.

Perguntou a António Costa se o Governo pode garantir que os accionistas do Novo Banco não estão a desnatá-lo - ao vender ao desbarato carteiras de activos como sendo imparidades, para depois as vender ao preço de mercado, beneficiando fraudulentamente das mais-valias conseguidas. Perguntou se garante que essas carteiras - se vendidas ao desbarato - não estarão a beneficiar entidades com sede em jurisdição fiscal offshore, ou seja, fugindo ao rastreio legal das autoridades e fugindo com os lucros fraudulentamente conseguidos. E perguntou se o Governo garante que essas entidades não têm ligações precisamente aos accionistas do Novo Banco que, assim, em dupla fraude, ganhariam por dois lados: ganhando as mais-valias e ainda por cima sendo ressarcidos pelo Estado, através do contrato firmado.

A isto, o primeiro-ministro respondeu que nada sabe e que nada pode fazer para o saber. Porquê? Porque - como disse - nada depende do Governo.

E este é o retrato simbólico do actual estado de captura do Estado, fruto de uma liquefação da autoridade e do papel do Estado, tanto em outsourcing de supervisão, como através da sucursalização europeia de uma instância que se preocupa mais com o sector financeiro do que com os interesses de cada país - o BCE.

Isso acontece, como foi dito, porque:

1) as eventuais imparidades na carteira do Novo Banco são auditadas por entidades externas ao aparelho de Estado (pela firma de consultoria Ernst & Young, pela comissão de acompanhamento do Novo Banco e ainda por um auditor externo) que - no caso da comissão de acompanhamento, como lembrou a deputada Catarina Martins - já se manifestou no Parlamento impotente para ir mais longe do que aquilo que o próprio Novo Banco - o potencial interessado - lhe dá para ratificar;

2) porque quem supervisiona as imparidades é o Banco Central Europeu, através da sua sucursal em Portugal - o Banco de Portugal (de Portugal?!);

3) E quando estas entidades legitimam as imparidades comunicadas pelo Novo Banco, comunicam-nas ao Fundo de Resolução - que é uma entidade pública, mas sem fundos suficientes - para que, por sua vez, peça emprestado ao Estado. E o Estado empresta, esperando receber esse empréstimo um dia lá longe.

4) Pior: a própria auditoria ao eventual incumprimento do Novo Banco, foi subcontratada em outsourcing a uma firma de consultoria privada - a Deloitte - como se o Estado já não tivesse instrumentos próprios para actuar em sua defesa. Conviria perguntar: Que é feito da Inspecção-Geral de Finanças?  

E quando foi perguntado ao primeiro-ministro se estaria "disponivel para fornecer toda a documentação que sustenta as imparidades que justificaram o pedido de 850 milhões de euros",  respondeu:

"O Novo Banco não é público e o Estado não gere o Novo Banco. O Estado não supervisiona: quem supervisiona é o BCE; o Estado não audita as contas. Qual é o papel do Estado? Quando o Fundo de Resolução reconhece impartidades, pede que o Estado faça o empréstimo. (...) Se quer requerer a documentação, tem de a pedir aos auditores ou ao Fundo de Resolução. Não lhe podemos dizer mais."

Pois não. E isso é grave. Porque o Novo Banco é um dos principais bancos nacionais que, tudo indica, foi objecto de desfalque antes da resolução e, tudo indica, está a sê-lo novamente.

Eis um exemplo, fruto de décadas de políticas apadrinhadas pela direita (nomeadamente pelo PSD/CDS e PS), e que deve ser tido em conta quando se avalia se actual política para o sector financeira é um política soberana. E, se não é, a quem serve. Ao povo português com certeza que não é.

O SNS não fecha a porta

«O Serviço Nacional de Saúde não fecha a porta. E muitos privados puderam fazê-lo. Puderam exercer o mecanismo do lay-off. Os vales cirúrgicos, que puderam continuar a ser emitidos - e para os quais teria sido tão útil que o setor privado e social continuasse a garantir resposta - não tiveram utilização por duas ordens de razões. A primeira é porque as pessoas naturalmente tiveram receio e não os quiseram utilizar. A segunda é porque muitos convencionados, e poderemos fornecer-lhe a lista nominativa, disseram que queriam suspender as suas convenções. Disseram que não estavam lá, que não podiam. Que não era o momento, que também tinham medo. Que não estavam disponíveis para prestar serviços. E portanto isso fica agarrado à pele e não desaparece.»

Resposta da ministra Marta Temido (ver aqui, a partir dos 5' e 37'') à deputada Ana Rita Bessa (CDS-PP), que quis saber porque é que o Estado não recorreu mais aos privados da saúde no contexto da pandemia. Como se estes tivessem dado sinais, nos últimos meses (uma história ainda por sistematizar com o devido detalhe), de que se pode contar com eles quando as coisas se complicam.

Sabemos bem que a ideia de um «sistema único de saúde», que indiferencie prestadores públicos e privados (cabendo ao Estado financiar estes últimos), é um velho sonho da direita. Mas se há noção que a pandemia veio reforçar é a de que estamos perante dois universos que priorizam objetivos claramente distintos - vidas salvas e lucros gerados - como bem aqui assinalou o Ricardo Paes Mamede. Ou, como constatava recentemente Amílcar Correia, sublinhando a importância do Estado Social, que «a calamidade seria outra, bem pior, na ausência de um serviço público de saúde decente e de um regime de Segurança Social capaz de responder aos casos mais extremos de necessidade».

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Malabarismos numéricos

Pormenor dos dados fornecidos pelo MTSSS
Quando o deputado Jerónimo de Sousa sublinhou hoje no debate quinzenal com o primeiro-ministro que o lay-off está a beneficiar as grandes empresas e multinacionais, António Costa respondeu que, das empresas apoiadas pelo lay-off, apenas 0,5% das empresas apoiadas são grandes empresas e que a esmagadora maioria são micro e pequenas empresas.

De facto, assim é. Mas o problema não está aí. Está em diversos problemas:

Problema 1: Segundo os dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, os 0,5% das empresas apoiadas correspondem a 536 empresas num total de 110.847 empresas apoiadas. Ora, o problema é que, segundo o INE, essas 536 empresas representam 54% das 994 grandes empresas existentes em 2018. Ou seja, mais de metade das grandes empresas estão a ser apoiadas pelo Estado.

E o que acontece às microempresas? E às pequenas? O Estado está a apoiar 89.986 microempresas, quando existiam em 2018, segundo o INE, 334.383 empresas com pessoal ao serviço. Ou seja, apenas 27%. Da mesma forma, havia 40.963 pequenas empresas, tendo sido apoiadas 12.843 empresas. Ou seja, 32% das pequenas empresas.

Como se vê, houve uma disprepância e enviesamento nos apoiados concedidos pelo lay-off. 

Problema nº2: A distribuição  do pessoal pelos diferentes tipos de empresa pode alterar essa percepção. É que as microempresas detêm 45% do total do pessoal remunerado e as pequenas cerca de 19%. Mas as médias empresas têm cerca de 15% do total e as grandes empresas cerca de 21%. E como - em média - as grandes empresas praticam remunerações mais elevadas do que as microempresas, esse enviesamento é ainda mais acentuado. 

Aqui surge uma dificuldade para se estimar essa distribuição: é que o Ministério do Trabalho - sabe-se lá porquê! - não fornece o total de trabalhadores abrangidos pelo lay-off, nem a sua distribuição por dimensão de empresa.

Mas vamos supor que a repartição do pessoal ao serviço por dimensão de empresa é igual nas empresas abrangidas pelo lay-off. E que as remunerações médias de cada escalão de empresa se aplicam aos trabalhadores envolvidos. Se assim for e tendo em conta às isenções de contribuições sociais concedidas no apoio ao lay-off, então dois terços do bolo financeiro estará a ir para as grandes e médias empresas (38% e 28% respectivamente), enquanto as micro e as pequenas empresas recebem o outro terço (12% e 23%).

Mais uma vez: era conveniente que o MTSSS facultasse essa informação para que se possa fazer as contas e ter uma imagem mais real. Mas não deve estar muito longe dessa repartição.

Como se vê, não basta dizer que apenas 0,5% das empresas apoiadas são grandes empresas. Que se mostrem os números.

Sinais


Sabemos que um governante está a defender o interesse público quando é considerado perigoso por José Miguel Júdice, um dos principais facilitadores deste país. Pedro Nuno Santos foi considerado perigoso por Júdice. Um bom sinal.

Este conhecido fascista dos tempos de Coimbra tem um programa de televisão, em linha com o domínio das direitas.

Os grupos de comunicação social, que geram tanta poluição ideológica, são beneficiados pelo governo, através de apoios mal desenhados, sem contrapartidas aparentes. Um mau sinal.

Esta economia mata mesmo

“Remuneração dos gestores do Novo Banco disparou 75% com Lone Star”, informa-nos Cristina Ferreira no Público.

Os gestores têm seguido à risca a linha da Lone Star para o Novo Banco, cuja lógica ruinosa para o país vamos conhecer cada vez melhor: da venda de activos a preço de saldo a empresas cujo proprietário há-de um dia ser conhecido à socialização dos prejuízos.

A Lone Star é um fundo abutre que encarna a financeirização do capitalismo em estado puro. Deste processo faz parte um brutal aumento das desigualdades dentro das empresas, distanciando cada vez mais o topo da base, para que os gestores estejam alinhados com os interesses extractivos de accionistas mais ou menos voláteis.

Sim, esta economia mata mesmo.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Nacionalismos há mesmo muitos


Os crimes genocidas do nazismo e dos seus aliados trouxeram o descrédito ao tipo de nacionalismo que representavam, mas não a outros, até porque a oposição ao nazismo e seus aliados recorreu à mobilização nacionalista, associada à defesa das pátrias invadidas e mesmo, no caso dos aliados ocidentais, à das suas tradições políticas liberais e democráticas. Depois da Segunda Guerra Mundial, o nacionalismo inspirou o movimento de descolonização, apresentado como de libertação nacional contra a dominação colonial e o racismo.

Repesco um excerto de um artigo já com umas semanas de José Manuel Sobral no Público. Aprende-se sempre com os seus variados trabalhos, sejam estes em modo antropológico sobre a história de uma aldeia beirã, sobre o fiel amigo, sobre identidades nacionais e sua persistência.

Reparem como a formulação de Sobral contrasta com o que é habitual no Público sobre os nacionalismos. Insiste-se aí em falar de nacionalismo no singular, atribuindo-lhe um sentido perverso. Percebe-se bem porquê: é a mesma aposta pós-nacional e euro-liberal que se tem revelado tão irrealista quanto danosa.

Quem não tem esta obsessão ideológica, sabe de resto que não pode deixar os nacionalismos, tão poderosos e persistentes quanto maleáveis e mutáveis, à imaginação da extrema-direita dos Venturas desta assim desgraçada vida.

Num dos últimos livros que li sobre esta matéria, escrito num período de alguma euforia globalista, Margaret Canovan expôs a dependência das tradições liberal e democrática em relação ao espaços e às solidariedades nacionais, argumentando que estas funcionam como uma bateria que pode alimentar os mais variados projectos políticos.

Prescindir desta bateria seria um erro intelectual e político imperdoável, tendo em conta o passado e o futuro, até porque que teremos de continuar a falar, sei lá, de nacionalizações, de Serviço Nacional de Saúde, de produção e de maior auto-suficiência nacionais, num contexto desglobalizador, e de muito mais nesta nossa terra.

domingo, 17 de maio de 2020

Eles comem mesmo tudo


Continua a ser a melhor banda sonora para este e outros temas de economia política.

É por causa de jornalistas como Cristina Ferreira do Público que vale a pena comprar jornais. E em papel. Ela segue algumas das pistas sórdidas da banca, neste caso do Novo Banco, há vários anos:

“A partir de Outubro de 2017, assim que o banco passou para a esfera do Lone Star, com uma almofada de capital de 3,9 mil milhões de euros, a gestão começou a reconhecer perdas do “antigamente” e a vender carteiras de créditos problemáticos a grande desconto, sustentando sucessivos pedidos de capital de 2,7 mil milhões ao Fundo de Resolução, que detém 25% da instituição.”

E coloca questões pertinentes: “[A]inda se vai procurar saber o nome dos titulares das sociedades que têm estado a comprar créditos ao Novo Banco, bem como estas empresas, consideradas como “abutres”, que ganharam com o negócio?”

Acho que todos temos razões para suspeitar da resposta, tendo em conta uma peça da mesma jornalista recordada pelo Paulo Coimbra, que tem uma memória de elefante. Para perceberem o modo como estes fundos abutres operam, coloquem Lone Star e Coreia do Sul, de preferência em inglês, num motor de busca.

Pelo meio da peça de ontem, Ferreira ainda expõe implicitamente o negócio das empresas que “auditam” em função de certos interesses, levando-me a colocar uma questão singela ao Banco que não é de Portugal e ao Ministério das Finanças: 

Como querem que haja confiança no sistema se aparentemente não têm capacidade técnico-política para auditar e inspeccionar os bancos de forma autónoma, sem dependerem de empresas internacionais de imparcialidade mais do que duvidosa? E já nem falo dos grandes escritórios de advogados a que recorrem regularmente para outros serviços.

Este velho Estado tem mesmo de ser reconstruído. Esta reconstrução implica toda uma luta contra estes “mordomos do universo todo”, contra estes “mandadores sem lei”.

sábado, 16 de maio de 2020

Videoconferência sobre Trabalho e Estado Social


Para quem não pode assistir, está já disponível a videoconferência realizada no passado dia 7 de maio, promovida pela Práxis - Reflexão e Debate sobre Trabalho e Sindicalismo, pela Associação de Combate à Precariedade - Precários Inflexíveis e pelo Sindicato dos Jornalistas. Um debate que contou com as intervenções de Alexandre Abreu, Cláudia Joaquim, João Leal Amado e Paulo Pedroso, seguidas dos comentários de José Feliciano Costa, Mafalda Brilhante, Rui Miranda e Sofia Branco.

Um jornal com trabalho


A disputa da capacidade do Estado para apoiar, proteger e investir é um dos eixos centrais da luta política e social deste tempo. O seu resultado não pende necessariamente a favor da garantia das condições de vida dos trabalhadores, da protecção social de quem precisa ou do reforço da capacidade pública para defender o interesse comum (...) Aqui radica a importância das acções de luta organizadas pela CGTP no 1.º de Maio (...) Consciente do momento de tragédia laboral que vivemos, vivida como sofrimento pessoal no confinamento de cada família, a acção da central sindical mostrou que estar consciente dos riscos é o que permite reduzi-los, com preparação, organização e disciplina na observação das regras sanitárias. 
Sandra Monteiro, Defender os trabalhadores, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Maio de 2020.

Uma certeza. A necessidade de controlo democrático no quadro das empresas, fundada na representação autónoma dos trabalhadores – uma das conquistas mais preciosas do 25 de Abril – e a sua articulação com os sindicatos como organizadores da solidariedade e da negociação colectiva na empresa, e para além da empresa, vai ser uma necessidade imperiosa.
Maria da Paz Campos Lima, Enfrentar a «tempestade perfeita» nas relações laborais.

O desafio deste artigo é mostrar que o regime de lay-off simplificado, aprovado para apoiar a tesouraria das empresas e preservar empregos, é uma repartição desigual de sacrifícios, com efeitos recessivos, podendo ser ineficaz e redundar num financiamento opaco a grandes e médias empresas que podem não necessitar dele. Projecte-se então o filme.
João Ramos de Almeida, O lay-off simplificado já é austeridade.

Se quiserem então ver com regularidade o filme, assinem o jornal, apoiem este projecto cooperativo.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Ainda o Estado multibanco

A lógica do «Estado multibanco», para citar de novo a certeira expressão de José Reis, está mesmo entranhada entre nós. Depois de a Comissão Executiva da TAP e a CIP terem proposto a injeção de dinheiro público na companhia de aviação e nas empresas em dificuldades, sem quaisquer contrapartidas, vão surgindo mais casos desta prática de socializar prejuízos mantendo o monopólio de gestão privada, como assinalou aqui o João Rodrigues.

Um dos exemplos recentes decorre da insuficiente proteção social de advogados e solicitadores inscritos na Ordem, que descontam para um fundo de previdência privado (a CPAS) e não para a Segurança Social. Com a suspensão da atividade dos tribunais, muitos destes profissionais perderam emprego e rendimentos de forma abrupta, constatando-se que os seus descontos (a rondar os 240€ por mês), para pouco mais servem que assegurar a reforma, excluindo portanto o apoio no desemprego. Ou seja, ficámos a saber que há cidadãos neste país que, apesar dos descontos que fazem (em linha, em termos de valor, com os descontos de outros cidadãos), não têm acesso a medidas elementares de proteção social.

O problema não é novo, claro, mas a crise evidenciou-o. Perante a situação, e em vez de tocar na questão de fundo - a injustificável existência de um sistema de previdência incapaz de garantir mínimos de proteção social -, o bastonário preferiu apontar o dedo ao Estado, considerando que «seria útil que pelo menos os advogados tivessem os mesmos direitos que os demais trabalhadores independentes» e acrescentando que «o facto de a advocacia ter uma caixa de previdência autónoma não é», em seu entender, «argumento para o Estado não conceder os apoios que deveriam estar a ser concedidos». Ou seja, de acordo com Menezes Leitão, nenhuma objeção a que estes profissionais não contribuam para a Segurança Social (ao contrário dos trabalhadores independentes) mas tenham acesso a prestações que esta garante. Surgindo algum problema, vai-se ao Estado multibanco, a caixa a que se recorre quando a gestão privada falha ou não é sustentável, numa estranha conceção de solidariedade e de direitos e deveres.

A pandemia está a expor as desigualdades. Também vai aumentá-las?

Em Janeiro deste ano, o FMI previa um crescimento de 3% para a economia mundial; prevê-se agora que teremos antes uma contração de 3% do PIB global, bastante maior do que a registada na crise financeira de 2007-08. A recessão histórica que se avizinha e o aumento do desemprego – a OIT estima que se possam perder 200 milhões de postos de trabalho com a crise – fizeram aumentar o receio de que a desigualdade, em crescimento quase ininterrupto nas últimas décadas, se revelasse na distribuição dos custos.

Os dados disponíveis trataram de o confirmar: com o desemprego a disparar para níveis históricos, este atingiu particularmente os trabalhadores de rendimentos mais baixos, as mulheres e as minorias étnicas, bem como as pessoas com deficiência. Nos EUA, houve mais de 20 milhões de desempregados em Abril, sendo que se estima que 12,7 milhões de pessoas tenham perdido o acesso ao seguro de saúde (que era fornecido pelo empregador). Além disso, há ainda diferenças vincadas entre os países que dispõem de recursos para fazer face à crise e os que se veem numa situação bem mais complicada. A pandemia deixou claras as desigualdades existentes. Também contribuirá para as aumentar?

Foi a isso que procuraram dar resposta Davide Furceri, Prakash Loungani e Jonathan Ostry, três economistas do departamento de estudos do FMI. Os economistas analisaram o impacto que as últimas pandemias mundiais tiveram na evolução da desigualdade, tendo por amostra as últimas cinco epidemias que afetaram vários países – SARS (2003), H1N1 (2009), MERS (2012), Ebola (2014) e Zika (2016). Olhando para o impacto de cada um destes surtos nos cinco anos que se seguiram, o estudo indica que o índice de GINI aumenta em média 1,5%, o que, como notam os autores, é um impacto “grande, tendo em conta que este indicador normalmente move-se lentamente ao longo do tempo”. Os autores concluem também que a diferença entre a fração do rendimento que é canalizada para os 20% mais ricos e os 20% mais pobres cresce cerca de 2,5 pontos percentuais após as crises de saúde pública.

A explicação para o aumento da desigualdade, mesmo quando existem esforços redistributivos dos governos, é simples: as pessoas com menos rendimentos e menor nível de escolaridade têm maior probabilidade de perder o emprego durante a pandemia e maior dificuldade em recuperá-lo depois. As habilitações escolares são um dos fatores decisivos – se, para pessoas com escolaridade alta, a pandemia tem pouco impacto no emprego, para as pessoas com escolaridade baixa, esta traduz-se numa queda do emprego de mais de 5% ao fim de cinco anos. A quebra de rendimento contribui, por sua vez, para acentuar pressão recessiva nos países afetados.

As conclusões são semelhantes às de outros estudos sobre o assunto: o britânico Institute for Fiscal Studiesnotara o papel da pandemia na diminuição do acesso a serviços de saúde pelas pessoas com menos rendimento, ao passo que no norte-americano Levy Economics Institute se estudou o aumento das desigualdades de rendimento, de género e raciais como consequência da crise de saúde pública, por serem grupos mais expostos a doenças e concentrados em setores de atividade mais afetados.

Todos apontam no mesmo sentido: as epidemias e as crises que estas provocam acentuam as desigualdades. Não por acaso, os autores do estudo do FMI recomendam aos países que apostem na “expansão dos sistemas de assistência social”, na criação de “programas públicos de emprego para aumentar a oferta de oportunidades” e na “implementação de medidas fiscais progressivas”. Por outras palavras, a capacidade de resposta à crise depende de um Estado Social robusto, capaz de organizar e redistribuir os recursos disponíveis e planear a recuperação. Há coisas que não mudam.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

A conversa tem de continuar


Um soldado norte-americano de origem alemã traduz um nazi num julgamento em Itália. 

Também a história do pensamento económico pode ser entendida, pelo menos em parte, como uma conversa, um debate, ao longo do tempo. Em 2000, José Castro Caldas perguntava no Público: Conhece Albert Hirschman? Passei a conhecê-lo, graças a ele, já agora.

É nossa obrigação resgatar do esquecimento economistas do passado, sabendo que também estes mortos podem não estar a salvo da barbárie económica, sobretudo os que reconheceram o seguinte facto: a economia, toda ela, é política e moral.

Com honrosas excepções, economistas destes nunca ganharam e quase nunca ganharão o chamado Prémio Nobel, o máximo reconhecimento da área atribuído por um banco central em memória do criador dos verdadeiros prémios.

É preciso então não esquecer as palavras sábias de um economista político raro na história do pensamento contemporâneo. Foi um dos chamados pioneiros do desenvolvimento a seguir à Segunda Guerra Mundial: andava em busca de desequilíbrios frutíferos no quadro de economias mistas. Escreveu um notável artigo nos sombrios anos oitenta, uma destilação de décadas de experiência e de reflexão:

“A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática. Em vez disso, tendem a exibir um comportamento complexo e compósito, atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socieconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. Para tornar as coisas ainda mais complicadas estas duas zonas de perigo (...) não são conhecidas e muito menos são estáveis.” [minha tradução]

Muitos têm feito de tudo desde essa altura para instituir um regime socioeconómico único, onde a virtude cívica quase não tenha lugar, onde demasiado possa ser resumido a motivações egoístas e a a análises custo-benefício, um instrumento político rigorosamente equivocado.

Creio que conhecemos hoje melhor uma zona de perigo para onde nos pode conduzir uma certa economia. E ao fazê-lo, estes economistas produtores de maus hábitos, de fatais atrofiamentos, diziam-se expurgados de valores – as coisas seriam sempre o que as idealizações de mercado ditassem. No fundo, cheiravam ao mesmo de sempre: ao mau hálito do utilitarismo, a filosofia espontânea de uma certa economia tão normativa que tem de se mascarar de positiva, desprezando todos os que conhecem alguma história e filosofia da ciência. Na realidade, factos e valores estão sempre entrelaçados.

Sabemos que a generosidade, a benevolência e a virtude cívica têm de ser visibilizadas e precisamos de instituições onde possam ser praticadas e estimuladas, já que temos de ter outras onde tais motivações não são aparentemente tão importantes, até porque são tantas vezes invisíveis. Hoje, todos vêm essas motivações de norte a sul deste rectângulo.

Sem uma certa prática, a barbárie ganha. Há economistas que nunca esqueceram esta conversa. Na tradição de Hirschman, e apesar de uma ou outra concessão ao neoliberalismo, Samuel Bowles é um exemplo de persistência: em artigo recente, publicado em co-autoria com Wendy Carlin, no site que divulga a economia convencional e que está hoje um pouco desestabilizado na sua orientação, defende que a pandemia torna as motivações não egoístas absolutamente centrais numa nova narrativa económica que está emergindo.

A questão, que Bowles explorou, num dos meus artigos de referência de economia comportamental e institucional, é a da relação entre instituições e preferências, as chamadas preferências endógenas, ou seja, a forma como as instituições moldam o que fazemos, as motivações convocadas e logo o que somos.

Esta é uma conversa que não pode deixar de ter lugar. Há mais conversas destas que terão de ter lugar dentro e sobretudo fora da academia.

Há uma linha que separa

«Ninguém se lembraria de explicar a Nuno Melo a autonomia pedagógica, o atentado aos mais básicos direitos individuais se um académico ou qualquer docente fosse impedido de ter ação política ou o bom que seria se os miúdos da telescola tivessem a sorte de ter mais lições de académicos e divulgadores culturais da craveira do Rui Tavares (e não, não vou escrever nomes de historiadores de outras áreas ideológicas porque seria ofender a inteligência de quem me lê) e muito menos a brilhante e ideologicamente anódina lição do historiador sobre a Exposição do Mundo Português de 1940. O homem não perceberia e mesmo que percebesse não estaria interessado em nada disso. O CDS sempre conseguiu albergar Nunos Melos e pessoas de extrema-direita bem mais sinistras. Aliás, entre os vários agradecimentos que temos de fazer aos centristas (de Freitas do Amaral a Paulo Portas) é a capacidade de albergar uma direita não democrática sem nunca a ter deixado impor a sua agenda. O Nuno Melo, por exemplo, só não se transformou num Ventura por ser mais limitado, mas fundamentalmente porque Paulo Portas e outros controlavam-no. Mais, até seria menos plástico do que o líder do Chega, que já defendeu tudo e o seu contrário. (...) Assistir a um partido com importância para a construção da democracia como o CDS concorrer com oportunistas miseráveis como o Ventura não é nada agradável, vê-lo morrer às mãos de Nuno Melo e do seu compagnon de route Telmo Correia tão-pouco é.»

Pedro Marques Lopes, O cordão sanitário

«Quando uma mentira está a ser propalada, e uma suposta polémica não resiste à análise mais básica dos factos, não há “um dos seus”. As velhas categorias morais têm precedência sobre o tribalismo político. Não há mentirosos de direita ou de esquerda — há mentirosos. Não há corruptos de esquerda ou de direita — há corruptos. Não há demagogos de esquerda ou de direita — há demagogos. Há uma diferença radical entre cada um de nós ter um campo ideológico com o qual se identiÆca ou ter um clube ideológico com o qual tem de se identificar. O primeiro é para homens livres. O segundo é para serviçais ou para fanáticos. O que é verdade ou mentira, o que é justo ou injusto, o que é decente ou indecente, precede e prevalece sobre sermos de esquerda ou de direita — e quem não percebe isto não percebe coisa nenhuma. (...) Nuno Melo escolheu mal a época para fazer a apologia da teoria “um dos seus”, porque aquilo que mais existe à nossa volta são cavernícolas de direita a estamparem-se ao comprido. Todos os que desvalorizaram os Trumps, os Bolsonaros ou que acharam que André Ventura, o confinador de ciganos, é que dizia “grandes verdades”, estão a assistir agora da primeira fila aos resultados catastróficos de ceder nos princípios mais básicos em nome de estratégias políticas.»

João Miguel Tavares, Duas ou três coisas que a direita precisa de ouvir

Já agora, vale a pena assinalar que dias depois de o CDS-PP de Nuno Melo pretender calar um historiador, o Chega de Ventura quis calar um futebolista. Foi isso, não foi?

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Os abutres do Novo Banco


Em complemento ao que o João Rodrigues escreveu no texto abaixo, lembrei-me do que Cristina Ferreira escreveu no Público:

 “O Novo Banco passou milhares de bens imobiliários avaliados em centenas de milhões de euros para a Hudson Adviser, uma sociedade que tem como accionista o fundo norte-americano Lone Star que também controla a instituição. A empresa acabou de se instalar no último andar de um prédio de Lisboa, que pertence ao Novo Banco (...) No pacote agora confiado à Hudson Advisers encontram-se activos considerados problemáticos, isto é, os que são difíceis de rentabilizar e de vender. E que já justificaram o registo de imparidades que resultaram em perdas para o banco e explicam grande parte dos elevados prejuízos compensados por verbas públicas. Mas outros activos estão classificados como tendo grande potencial. E neste grupo está, por exemplo, o edifício sede do Novo Banco, situado na esquina da Avenida da Liberdade em Lisboa com a Rua Barata Salgueiro, avaliado em cerca de 40 milhões.”

O Governo espera o quê destes abutres? Audite-se e nacionalize-se. Entretanto, o descaramento de Centeno não tem mesmo limites.

Já basta de sininhos


Há quase três anos, chamámos a atenção, em artigo no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, para a ruinosa “solução” encontrada para o Novo Banco por um Governo às ordens de Bruxelas-Frankfurt, aceitando que Portugal funcionasse como cobaia para o princípio perverso do pagam, mas não mandam. O fundo abutre vai comer tudo e não vai deixar nada. É caso para dizer, com José Gusmão, que o descaramento de Mário Centeno tem de ter limites nesta área.

O último episódio, de suposta falta de comunicação entre o Ministro das Finanças e o Primeiro-Ministro sobre mais uma injeção no Novo Banco, é só uma farsa no meio da tragédia. E isto sem que se saiba da sordidez que para lá vai; por exemplo, sem que se saiba quem é que está a comprar a baixo preço activos do banco para, sei lá, os revender. Esta sordidez só pode começar a ser superada com uma auditoria a fundo, seguida da inevitável nacionalização, há muito necessária, do Novo Banco, tendo em conta a sua importância e a melhor experiência internacional distante e recente.

Entretanto, o Cristiano Ronaldo das finanças não deixará de jogar apenas por causa da banca. Afinal de contas, vai ter a honra de ter sido no ano passado o Ministro do superávite orçamental, à boleia da conjuntura e de um investimento público em mínimos da UE, e este ano o Ministro daquele que será provavelmente o maior défice orçamental, efeito da pandemia.

O défice é fundamentalmente uma variável endógena, muito mais dependente do andamento da economia do que das habilidades do Ministro, notem, uma vez mais. Este país tem uma história mitificada de “magos das finanças”, de Salazar a Cavaco. Começou e acabou sempre mal. É tempo de acabar com os mitos e de encarar a realidade das interdependências nos saldos financeiros sectoriais.

E, já agora, é preciso não deixar que Centeno vá governar o Banco que não é de Portugal, fazendo de moralista das finanças públicas e de correia de transmissão de Frankfurt.

Não haveria grande novidade, concedo, mas já basta de sininhos.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Quando perdemos o pé


Este estranho gráfico é a imagem da nossa fragilidade construída nos últimos 40 anos.

Grosso modo, esta foi a evolução do desemprego em Portugal nas últimas quatro décadas. Ao longo desses 40 anos, Portugal passou por fases de recessão e retoma e, no entanto, parece que nada disso influi. Parece que, apesar disso, continua a crescer o número de desempregados que, em cada vez maiores contingentes, se inscrevem nos centros de emprego.

Mas é mais do que isso. Como se pode ver na legenda, cada cor representa um mês e o seu valor representa o número de desempregados que se inscreveram nos centros de emprego nesse mês, em cada ano. É como se o desemprego - ainda que temporário - fosse uma fase necessária do emprego. E o emprego fosse de uma enorme volatilidade. Além disso, é cada vez mais elevada a amplitude entre os meses com mais baixos e mais altos valores, acrescentando mais um factor de instabilidade laboral.
 
Sobre as causas dessa volatilidade e da fragilidade que nos traz essa instabilidade, pode ler nais aqui. 

E agora concentre-se sobre a elipse final desta enorme serpente que nos envolve há 40 anos. Porque vai ouvir falar dela nos próximos meses. 

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Juízos de economia política


A economia política da integração europeia é incompreensível se não atentarmos no poder da integração furtiva, à margem das democracias nacionais, também feita por um activismo judicial supranacional. Os juízes do Tribunal de Justiça da UE e os banqueiros centrais ditos independentes do Eurosistema são figuras-chave num movimento supranacional opaco e crescentemente contestado por contra-movimentos nacionais.

Neste contexto, é necessário desvendar a decisão do Tribunal Constitucional alemão, até para aferir o grau de autonomia relativa do direito, o grau de poder infra-estrutural da superestrutura, digamos, em face do óbvio interesse económico das elites dominantes alemãs no euro e na sua continuidade. Esta continuidade implica activismo monetário, altamente codificado, por parte do BCE, mesmo que à margem dos tratados, de resto absurdos, numa espécie de estado de excepção monetário, com ramificações por toda a política económica, por toda a política.

De tudo o que fui lendo sobre este assunto, achei particularmente interpelante um artigo de pendor soberanista, escrito por um jurista e por um conselheiro do Banco de França, de que traduzo um excerto inicial:

“A decisão do Tribunal Constitucional alemão (“Karlsruhe”) de 5 de Maio é histórica.

Por um lado, assinala o primado do direito nacional sobre o direito da União Europeia, primado que resulta das constituições e que os tratados europeus não podem limitar. Esta decisão é essencial porque assinala a preeminência dos princípios democráticos e de soberania popular, únicas fontes de legitimidade aceitáveis num Estado de Direito.

Por outro lado, esta decisão constitui um ultimato e o primeiro passo, seja para uma saída da Alemanha do Euro, seja para uma obrigação de saída da Itália ou da França – em todo o caso, o fim da Zona Euro como a conhecemos. A decisão de Karlsruhe deverá tomar um lugar na história, à semelhança da queda do Muro de Berlim, representando o fim de uma experiência contra-natura e radicalmente antidemocrática de quase quarenta anos: a união económica e monetária.”

“A crise económica é uma consequência do desinvestimento na saúde”

No Público de domingo pode ler-se uma entrevista a Mark Honigsbaum, professor e historiador de Medicina na City University of London e autor do livro The Pandemic Century, publicado no ano passado.

Vale a pena ler a entrevista pelo que nos diz sobre a forma como a organização da sociedade em que vivemos constitui a base da crise que o mundo atravessa. O desinvestimento na saúde é, para o historiador, o principal fator responsável: "Houve um desinvestimento grande nos cuidados de saúde, na preparação de médicos e de enfermeiros. Foi uma escolha feita depois da crise financeira de 2008, em que se optou por medidas violentas de austeridade."

Honigsbaum critica "os programas políticos [que] são cada vez mais pensados a curto prazo", algo que é particularmente problemático no caso do financiamento e organização dos serviços públicos - no início da pandemia, o Financial Times notou que uma década de austeridade deixou o serviço de saúde pública do Reino Unido (NHS) no "fio da navalha", com falta de camas hospitalares e menor capacidade de resposta. Mas o problema do imediatismo também se reflete no impacto que temos no planeta. “A busca pelo lucro e pela produção sem fim […] tem como consequência a destruição dos habitats naturais, que são substituídos por outras culturas.” Restam poucas dúvidas de que teremos de repensar tudo isso.

Além disso, o historiador lembra que "o mais perigoso é que já há muita gente que não confia nas vacinas, nem na ciência biomédica. E qualquer passo em falso vai dar mais força a esses movimentos." É por isso que, na sua opinião, "precisamos que os cientistas cooperem. Quando aparecer uma vacina que seja verdadeiramente eficaz, vamos ainda enfrentar um desafio maior: produzir em grande escala, garantindo que esteja disponível para a maioria da população." A escala dos desafios que atravessamos é enorme e tudo indica que a crise que se aproxima terá proporções históricas. É mesmo preciso politizar a crise: afinal, o escrutínio das opções políticas que nos trouxeram a este ponto e das alternativas possíveis é tão importante hoje como sempre foi.

domingo, 10 de maio de 2020

Vitória


A manipulação ideológica da história nota-se mais nas grandes datas redondas.

Assinalaram-se os 75 anos da vitória sobre o nazi-fascismo na Europa, onde a União Soviética teve um contributo decisivo, como se sabe.

No entanto, no Parlamento Europeu, o bloco central europeu, cada vez mais sob influência da extrema-direita nestas e noutras questões, declarou, no ano passado, os libertadores soviéticos de Auschwitz iguais aos carrascos nazis de Auschwitz. Os imperialistas mais radicais foram equiparados aos que apoiaram de forma mais consistente os movimentos anti-coloniais, aos que contribuíram para inscrever os direitos sociais pelo sistema internacional afora.

A UE há muito que prefere nesta altura dar relevo, no contexto do chamado “dia da Europa”, a um discurso, feito a 9 de Maio de 1950 pelo conservador Robert Schuman, em defesa do capitalismo monopolista com escala regional no contexto da Guerra Fria. Schuman tem de resto no seu currículo uma passagem pelo primeiro governo de Pétain, cujos plenos poderes aprovou também em 1940.

Ontem, mesmo o telejornal da dois, em geral o mais equilibrado, achou por bem começar com Schuman e com a Comissão Europeia, secundarizando o dia da Vitória.

O espezinhamento intelectual e político do anti-fascismo e a hegemonia do euro-liberalismo criam o caldo material e ideológico para o ressurgimento dos monstros políticos do capitalismo em crise.

No entanto, não percamos o realismo dos combates pela memória, nem as esperanças de 1945 ou de 1974, as dos triunfos do anti-fascismo. Eles não voltarão a passar.

Uma entrevista a não perder


Se o José Castro Caldas não vem ao blogue, o blogue vai até ao economista, investigador e professor universitário, a coordenar atualmente uma linha de investigação sobre trabalho e emprego, no CoLabor. Na conversa recente com Daniel Oliveira, no Perguntar não Ofende, discute os traços específicos da atual crise económica e social, causada pela pandemia da Covid-19, as respostas que estão a ser dadas e as questões que se colocam, a nível nacional e europeu. Reflexões que ajudam a identificar os principais desafios com que nos confrontamos. Não deixem de ouvir.

sábado, 9 de maio de 2020

O que foi que aconteceu?

As linhas em baixo não mostram a situação sanitária nos Estados Unidos e na Europa. Pertencem ao mesmo país e distam apenas uns 400km.


Como já se escreveu noutros posts, aqui e aqui, as duas regiões - a Lisboa e Vale do Tejo e a do Norte, têm populações relativamente aproximadas, mas uma tem uma população industrial e a trabalhar na construção bem mais numerosa que a de Lisboa, que está muito mais dedicada aos serviços. Essa diferença poderá explicar que, enquanto os serviços foram forçados por decreto a fechar, a produção industrial e de construção se manteve activa. E resta saber em que condições de produção.

Por outro e contrariando um estranho artigo no Boletim Trimestral do Banco de Portugal - que concluía que o Covid prejudicava mais as agregados familiares de maiores rendimentos - um estudo da Escola de Saúde Pública estabelece uma relação com os concelhos de mais elevado desemprego e desigualdade e que  são os pobres quem mais perde com a pandemia.

Independentemente dessas diferenças, a questão essencial é saber o que foi feito - ou não foi feito - para, do ponto de vista sanitário, evitar que essas diferentes situações se traduzissem em resultados tão distintos no combate à pandemia.


Como foi que se deixou, durante tanto tempo, a progressão expandir-se? Desde meados de Março que a região Norte tem - até hoje - cerca de 2,5 vezes o número de infectados de Lisboa e, por isso se calhar, tem 3 vezes o número de mortos de Lisboa. Mesmo quando parece ser semelhante a tendência, o Norte está à frente de Lisboa na relação do número de mortos face ao número de infectados.


O que foi que realmente aconteceu? Alguém sabe?