sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Paredes de vido, paredes de granito


O individualismo é em geral produto da sobrestimação do valor próprio e da subestimação do valor dos outros. (...) O individualista tem por vezes a ilusão de que o individualismo é uma manifestação de liberdade individual. A verdade é que, quem pense, decida e actue apenas pela sua cabeça e pela sua vontade individual acaba por ser prisioneiro das suas próprias limitações. Isolado, atrás da aparente liberdade, o indivíduo acaba por ser escravo de si próprio. (...) Ao contrário do que afirmam os defensores do individualismo, a opção pela formação de uma opinião colectiva e de uma actuação colectiva constitui uma afirmação de que o indivíduo se libertou das próprias limitações individuais. Constitui assim uma expressão da liberdade individual. 

Álvaro Cunhal, O Partido com paredes de vidro, Edições Avante!, 1985, pp. 85-86 

Estes excertos de Álvaro Cunhal ajudam a pensar sobre a relação entre liberdade individual e ação coletiva, para lá do individualismo liberal. Cunhal ajuda a pensar politicamente, eticamente. Os que acham que a tradição marxista é desprovida de ética, devem ler, começando em Marx e recomeçando em Cunhal. Não podemos acabar em nós mesmos, realmente. Nunca começamos ou acabamos em nós mesmos. 

Basta pensar na lotaria nacional: a possibilidade de levarmos vidas longas, saudáveis e ilustradas depende sobretudo do país onde nascemos e cada vez mais, outra vez, da classe social, da lotaria familiar. Daí a necessidade de reconhecer a dívida social com que nascemos, daí a necessidade de um imposto sucessório, por exemplo, daí a necessidade de irmos mais longe e alterarmos as relações de propriedade para barrarmos desigualdades tão cavadas. Daí a necessidade de termos consciência social. Há tantas necessidades sociais por satisfazer. E sabemos que existem meios. 

Lá fui reabrir o livro herdado, com manchas, e lembrei-me do meu pai. Estávamos em 1985 ou 1986, tinha oito anos ou nove anos, e fui com ele ao Pavilhão dos Olivais a uma sessão do PCP, com Álvaro Cunhal. Andaria em campanha com Cunhal uma década mais tarde. Lembro-me de ver o livro à venda e de ter fixado logo o nome, como não? 

Andava na escola primária dos Olivais, em frente ao pavilhão, na mesma rua da faculdade onde acabei a lecionar, depois de muitas voltas. Também depois de algumas voltas políticas, acabei a apoiar o Partido de novo, desde 2015, depois de uma interrupção de pouco mais de uma dúzia de anos, de um voto no PS à militância no BE. 

Bom, o meu pai lá comprou o livro. O que é o Partido? E com paredes de vidro? Lá me terá explicado, mas já não me lembro da sua explicação. Leria o livro mais tarde. É a única memória que tenho do meu pai de punho erguido, envergava um sobretudo esverdeado. Tê-lo-á erguido mais vezes, claro. Imitei-o, tal como imitava as minhas avós na Igreja. Sempre gostei de rituais, somos seres miméticos. Ele teria ainda muitas vidas, faleceria cedo demais, em 2017, num dia de fogo, num ano de centenário. Apesar de não ser militante desde o início dos anos 1990, o Partido estava representado, não me esqueço. 

Quase quarenta anos depois dessa memória, prestei-lhe hoje, uma vez mais, a homenagem que devemos aos mortos, da Igreja cheia ao cemitério inundado de flores, onde se vai e não se está, creio que foi Saramago a dizê-lo. Hoje, estive mais tempo do que é costume, houve uma cerimónia religiosa breve. Enfim, é a homenagem aos que só morrem verdadeiramente quando morre a última pessoa que deles se lembra, como gostava de dizer o meu pai, que perdeu o seu pai ainda mais cedo, num acidente de trabalho em França, pouco antes de se tornar o primeiro licenciado da família. Morre-se a trabalhar. 

Estou na sua, nossa, terra, geografia sentimental em estado impuro, rodeado de castanheiros e de carvalhos que, entretanto, cresceram, de paredes de granito que, entretanto, escureceram. Tudo o que escrevo parte daqui, agora estou consciente disso. Não estava, antes. Há paredes de vidro por onde entram raios de sol, deixando ver o que precisa mesmo de ser visto, olhado, reparado. 

História com h pequeno e grande, memória individual e coletiva. Sozinhos não somos nada. E somos sempre compelidos a tomar partido nesta vida. Mais vale fazê-lo de forma consciente.

Nick Cave - Ghosteen speaks


quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Do capitaloceno


As televisões insistem nos carros deslocados pela violência das correntes, nas pontes tão facilmente derrubadas, nas imagens dramáticas dos resgates ou no cenário pós-apocalíptico que se seguiu. O capitaloceno é real, isso todos têm já a obrigação de saber. Serão cada vez mais os que tiram as conclusões radicais que se impõem.  

Pela minha parte, partilho uma imagem particularmente violenta: um trabalhador, compelido por uma empresa capitalista da distribuição, arrisca a sua vida. Morreu-se assim na região valenciana. Morre-se muito a trabalhar, porque as empresas colocam o lucro acima da vida. Ainda não há freios e contrapesos coletivos suficientes ao seu poder no presente momento da história. Os capitalistas têm ganho demasiadas lutas de classes. 

Lembro-me da economia que mata do Papa Francisco, que dá a ver as conexões, da fórmula imorredoura de Chico Mendes, sindicalista da Amazónia morto a tiro - “ambientalismo sem luta de classes é jardinagem” -, ou de um slogan que vai à raiz - “fim do mundo, fim do mês, a mesma luta”. 

Temos de ligar tudo, já que é de superar o capitaloceno que se trata.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O imobiliário na sua própria bolha


«O regime fiscal de Residente Não Habitual (RNH) e o programa de autorização de residência para investimento [Vistos Gold] deveriam ser revisitados para atrair investimento direto estrangeiro», defendeu há dias o presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII).

Hugo Santos Ferreira considera que Portugal está a perder capacidade de captar investidores devido à perda de atratividade destes regimes, havendo por isso a «legítima expectativa do setor na revisão destes dois programas». Tanto mais quanto, argumenta o presidente da APPII, o atual ministro da Economia já sublinhou que o governo quer promover o investimento direto estrangeiro.

Além da referência aos cidadãos brasileiros interessados em viver em Portugal («com altíssimo poder aquisitivo, são bilionários, para quem o tema segurança e atratividade fiscal é essencial», sublinha), o presidente da APPII dá também o exemplo de «muitos americanos a desejar sair do país», advogando que «é preciso colocar Portugal no mapa». Até porque, acrescenta, Portugal concorre com outros países europeus, que têm programas semelhantes.

Conclui-se, portanto, que não há nenhuma crise de habitação em Portugal, nem nenhum desfasamento entre os preços das casas, que não param de subir, e os rendimentos das famílias. Dir-se-á, ouvindo os representantes do setor, que o problema reside apenas na falta de casas e que nada tem que ver com o impacto das novas procuras, incluindo obviamente as procuras externas, nessa elevação dos preços e inacessibilidade das famílias a um alojamento.

Bem sabemos, claro, que Santos Ferreira está a defender os interesses do setor, clamando por mais matéria-prima (casas) e, no caso, incentivos fiscais que alimentem a procura por cidadãos estrangeiros com posses. Sabemos tudo isso. E por isso sabemos também que devemos desconfiar de quaisquer sinais de preocupação, mais gerais, sobre a crise de habitação e o seus impactos nas famílias e até no funcionamento das economias locais. São só lágrimas de crocodilo, vertidas por um setor que apenas vive e pensa na sua própria bolha.

A economia muito política do genocídio


Israel já lançou 85500 toneladas de explosivos em Gaza, o equivalente a sete bombas atómicas. 

Linda Bilmes é uma economista convencional, professora de política pública em Harvard, que ficou conhecida do grande público por ter publicado, com Joseph Stiglitz, uma estimativa dos custos da guerra imperialista no Iraque: três biliões (3 trillion, em inglês), três milhões de milhões de dólares. Enfim, mais vale estar vagamente certa. 

Publicou recentemente um estudo, em coautoria, onde estima que os EUA financiaram 70% do genocídio na Palestina, sublinhando as conexões financeiras entre o sistema imperialista capitaneado pelos EUA e o colonialismo sionista. Afinal de contas, num ano, os EUA gastaram cerca de 22,7 mil milhões de dólares em ajuda militar a Israel (22,7 billion, em inglês). 

Diz-se que o que não se conta, não conta. O que conta também, e muito, é que a embaixadora dos EUA na ONU tenha insultado Francesca Albanese, como se denunciar rigorosamente o genocídio em curso fosse antissemita. Este insulto foi, na realidade, uma confissão da parte dos EUA.

Adenda. Um gráfico, que vale mil palavras, retirado do estudo acima referido:


terça-feira, 29 de outubro de 2024

Uma fé nos peitos


“O futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz.” A 11 de março de 1939, em pleno regime fascista, num mundo prestes a soçobrar perante as hordas nazifascistas, um jovem intelectual de 25 anos perscrutava o futuro. 

Atrevia-se então a afirmar o amor pela vida e o imperativo da felicidade, “dada pela satisfação da linha de conduta, pela satisfação de que se procede bem”. 

Álvaro Cunhal terminava o artigo, intitulado “um problema de consciência”, deixando um testemunho, fazendo a si próprio e aos outros uma promessa, consciente do que tinha já passado e do muito que haveria de passar: “Atravessar-se-ão tragédias com lágrimas nos olhos, um sorriso nos lábios e uma fé nos peitos”. 

Fé, notai, secular, certamente, mas fé, salto para o que, no fundo, é desconhecido, embora se possa antever aqui e agora em potencialidade. Este salto implica, sabia-o bem, a declinação de uma primeira pessoa do plural, feita de muitos, com a tal fé nos peitos, ali e agora. 

Em boa hora decidiram as Edições Avante! reeditar em opúsculo este artigo, acompanhando-o de belas ilustrações de Ana Biscaia, numa edição de primorosa simplicidade, impressa em Agosto de 2021 na tipografia Damasceno, em Coimbra. 

Adquiri-a na Festa do Avante! de 2024 e li-a numa noite quente, mas de janelas encerradas, numa Coimbra cheia de fumo, devido aos incêndios – “o exterior parece terrivelmente inimigo”, como afirmou Cunhal na primeira frase do artigo. 

Há consolo na leitura, embora isso não seja o mais importante. O mais importante é mesmo a renovação de uma fé, pelo testemunho partilhado, numa cadeia do tempo sem fim, tentado pela analogia. 

Desse opúsculo passei para outro, em busca de ligações: Comunistas e Católicos, um caderno também das edições Avante!, já de 1975. O seu primeiro texto é um excerto – “a mão estendida aos católicos” – do Informe Político ao Primeiro Congresso do PCP na clandestinidade. 

Já se nota o estilo inconfundível de Álvaro Cunhal, que fez trinta anos durante os dias que durou o Congresso, como informa Pacheco Pereira na sua monumental biografia, cada vez mais empática, digamos, de volume para volume. 

Nas mais duras condições nacionais e internacionais, Cunhal fazia as distinções que se impunham, em particular entre “política da Igreja Católica”, de recorte fascista – “não os combatemos pela sua atividade religiosa”, sublinhava – e a massa de trabalhadores católicos, “explorados e oprimidos como nós”. Seria um ponto de partida para o reconhecimento de que os católicos fazem parte da primeira pessoa do plural, para a qual contribuem de pleno direito. 

A política com p grande passa sempre por um esforço para fazer distinções moralmente justas e politicamente produtivas em conjunturas históricas bem concretas. E para isso o conhecimento não basta: é necessária uma fé nos peitos.

Publicado na Terra da Fraternidade, “um espaço independente e inclusivo de encontro e intervenção no âmbito religioso, alimentado por vozes de diferentes tradições e espiritualidades que lutam pelo progresso social”.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Da luta pela democracia


No sábado, fomos muitos, muitos mil a gritar: “justiça para Odair” ou “vida justa, estamos fortes”. O contraste ético-político com o viva a morte da escumalha fascista, na ordem das dezenas, não podia ter sido maior. A democracia, a vida justa para todos, defende-se na rua, de forma militantemente antifascista. 

Ontem, entrei numa livraria e dei de caras com um livro marcante, traduzido com quase três décadas de atraso, da autoria de Christopher Lasch (1932-1994), um historiador e crítico norte-americano. O leitor português não tem direito a uma introdução contextualizadora e enquadradora, numa obra publicada postumamente, em 1996, naturalmente datada aqui e ali, escrita tomando por referência sobretudo o contexto dos EUA, com um olhar por vezes demasiado nostálgico em relação ao passado democrático. Às vezes até é melhor não ter introdução à edição portuguesa, dados os frequentes atentados intelectuais, da deturpação ao pretensiosismo. 

Lasch soube precocemente que a desdemocratização é um projeto de elites crescentemente globalistas, um processo com um conteúdo de classe evidente, em sociedades com fracturas socioeconómicas e culturais crescentes. O perigo não vem das massas, não vem das classes trabalhadoras enraizadas, pelo contrário, vem mesmo de cima, incluindo do apoucamento elitista e ideológico do Estado nacional, sem o qual não há democracia. Esta e outras pistas importantes dão à obra a sua atualidade, digamos. 

O saudável populismo democrático de Lasch contrasta com preconceitos antigos, propagados por elitistas como Ortega y Gasset, um dos muitos liberais que permaneceu silencioso e pretensamente equidistante quando era necessário lutar contra os fascismos, por exemplo ali entre 1936 e 1939. Houve liberais que fizeram pior, claro. Não se pode contar com os liberais no sentido continental do termo.

sábado, 26 de outubro de 2024

Muitos mil


Vida Justa vencerá.

Hoje, manifestação Vida Justa, em Lisboa


O Vida Justa condena a decisão das autoridades de permitir que o Chega termine a sua contramanifestação no mesmo local da manifestação «Sem Justiça não há Paz» - na Assembleia da República. Por isso, a organização decidiu alterar o local de destino da sua manifestação para os Restauradores. Início no Marquês de Pombal, hoje às 15h00.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Social-democrata o tanas


Saindo em defesa de Montenegro e do seu governo - o que já de si é sintomático - Cavaco Silva regressou hoje às páginas do Público, aproveitando de caminho para divulgar mais um livro de sua autoria (desta vez não publicado no estrangeiro). Com a costumeira sobranceria, declara que a dicotomia esquerda-direita é «uma velha divisão totalmente ultrapassada», sugerindo, como motivação para a escrita, ter sido «levado a pensar que, nos meios mediáticos e opinativos, reinava um certo esquecimento do que é a social-democracia europeia moderna».

No referido artigo, Cavaco defende que a moderna social-democracia «reúne o melhor dos valores do liberalismo e da justiça social». Mas em nenhum momento faz a mais ténue alusão à provisão direta de serviços públicos, marca de água incontornável da social-democracia. Não espanta, claro, ou não fora Cavaco quem instaurou a concorrência entre público e privado na saúde e a substituir o princípio matricial de acesso «universal, geral e gratuito» do SNS por um acesso «tendencialmente gratuito». Sim, o mesmo PSD que votou contra a criação do Serviço Nacional de Saúde, que tentou limitar a gratuitidade à «insuficiência de meios económicos» em 2021, e que hoje, com Montenegro, arranja mil formas de transferir recursos públicos para os privados, fomentando o mercado da doença, em vez de investir no SNS.

Para Cavaco, catalogar as medidas anunciadas por Luís Montengro nos termos da referida dicotomia, serve apenas como «arma de radicalização do discurso e do combate político», por parte de «alguns políticos e analistas» (e sim, só se for mesmo de alguns, nas televisões, dado o manifesto e continuado desequilíbrio e enviesamento da opinião). Mas o Ricardo Paes Mamede já tinha até tratado de assinalar, de forma lapidar, a dissimulação retórica deste partido liberal, mas que continua a apresentar-se como social-democrata. Social-democracia o tanas, de facto.

Haja mundo


“Guterres é um dos poucos políticos decentes e sérios do nosso tempo, além de ser um homem livre e que não aceita imposição de narrativas.” Rodrigo Sousa e Castro tem toda a razão. 

Guterres deixou de ser bom aluno de maus mestres há muito e daí mais um ataque dos liberais até dizer chega da IL. Estes apoiantes do genocídio na Palestina, estes negacionistas das alterações climáticas, não lhe perdoam as posições corajosas. 

Obviamente, Guterres fez bem em estar presente na cimeira dos BRICS em Moscovo. Estava lá grande parte do mundo representado e é preciso dialogar com todos, mesmo com quem, como a Rússia, violou o direito internacional. Deixaria de falar com EUA, nesse caso? 

Não, Guterres não alinha nas noções liberais, e logo indisfarçavelmente racistas, de “comunidade internacional” ou de “ordem baseada em regras” à moda dos EUA. A ONU e o direito internacional são outra coisa.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Momento de incultura


Os meses foram passando e pouco mais se sabia além de que Robert De Niro estaria presente. Nas vésperas do festival finalmente o tão aguardado programa. 7 filmes, sim leram bem, 7 filmes internacionais (...) Foi provavelmente a pior experiência de cinema de todos os tempos num vergonhoso festival que a pretende celebrar. O espaço para as pernas e braços era inexistente perante a forma como as pessoas eram empacotadas, as legendas impossíveis de ver devido a todas as cabeças que se prolongavam umas à frente das outras tapando o ecrã, que à distância a que a maioria estava dele mais não era que o mesmo que estar a ver o vencedor de Cannes num telemóvel. Telemóveis esses que teimavam a ser consultados pelos presentes, por entre buzinas do trânsito lá fora, rádios dos seguranças que recebiam ruídos imperceptíveis e staff que por lá andava para trás e para a frente. Ver o filme? Não parecia ser importante. 

David Bernardino perdeu 130 euros, mas sobreviveu para nos contar toda a verdade sobre um mediático evento organizado pela sociedade indigente de comunicação – Tribeca Lisboa: Um Insulto ao Cinema, ao Espectador e à Cultura em Portugal

O grupo Impresa insulta-nos regularmente com falsificadores, facilitadores e fascistas. Três nomes, três exemplos: José Gomes Ferreira, Marques Mendes e José Miguel Júdice. Gera assim poluição ideológica, dada a ausência de freios e contrapesos jornalísticos e culturais suficientes. 

Ao invés de ver os seus privilégios cortados por manifesto incumprimento da missão pública de informar e de formar, é direta e indiretamente subsidiada pelo Governo, evitando assim a falência. Este grupo paga às direitas em propaganda maciça: a oferta ideologicamente condicionada cria a sua própria procura em política, aposta-se aí. 

As consequências estão à vista, por todo o lado e em toda a parte, até porque a TVI-CNN do pirata do Douro é igual: erosão da cultura democrática e da democratização da cultura. A destruição da RTP faz parte do mesmo processo.

Vida justa


Os familiares e amigos de Odair Moniz, associações de moradores do Zambujal e de outros bairros, a Vida Justa e outros movimentos sociais e antirracistas convocam uma manifestação pacífica para reclamar justiça para Odair, paz nos bairros e respeito pelas pessoas que lá vivem.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Não nos podemos abster


O novo Procurador-Geral da República está à espera de quê para abrir processo de inquérito contra este criminoso e constituí-lo arguido por crime de ódio? É absolutamente revoltante e pornográfico que alguém que se diz cristão se compraza com a morte de um ser humano! 


Perante mais uma declaração fascista de André – viva a morte! – Ventura, de apoio à criminosa violência policial no Bairro do Zambujal, o jurista Miguel Prata Roque interpelou justamente o novo Procurador-Geral. Merece quatro ou cinco comentários complementares. 

Em primeiro lugar, e começando pelo fim, é preciso relembrar o Papa Francisco, pois ele estava a pensar em “cristãos” como Ventura: “Quantas vezes vemos o escândalo dessas pessoas que passam o dia na igreja, ou que lá vão todos os dias, e depois vivem a odiar”. 

Em segundo lugar, Ventura quer destruir o que resta da ideia e da prática do Estado de Direito Democrático e Social, com primazia das classes trabalhadoras, ou seja, da maioria, no quadro de uma economia mista, base material mínima da subordinação do poder económico ao poder político. Os que o acompanham na defesa da violência policial, como os liberais, querem o mesmo. O capitalismo televisionado quer o mesmo. Como disse António Brito Guterres:

“Trinta mil especialistas de segurança em todo o lado. Malta, isto é uma questão de acessos, de direitos fundamentais: educação, saúde, emprego, qualificação, direito ao lugar, direito ao imaginário. Deixem-se de tretas.” 

Em terceiro lugar, já se sabe qual é o projeto das direitas, dos que as financiam, e em relação ao qual não pode haver abstenções: menos Estado social, mais Estado penal, mais Estado-Garantia para os grandes negócios, fórmula popularizada por Passos Coelho, pai desta gentalha, de Montenegro a Ventura, passando por Rocha; herdeiros de uma troika que nunca superámos em aspetos fundamentais.

Em quarto lugar, é sempre do Estado que falamos, da natureza do Estado. Infelizmente, falamos de um Estado que viu a sua soberania perfurada pela integração europeia, que viu fragilizadas a sua autoridade democrática e a sua capacidade de ser um baluarte contra o fascismo, através do Estado social – direito do trabalho, pleno emprego, serviços públicos e prestações sociais universais. Com austeridade perpétua, inscrita nas regras europeias, teremos insegurança social perpétua e um caldo político cada dia mais autoritário. 

Finalmente, aqui estamos: o antifascismo tem de partir do aqui e agora, da reconquista da soberania popular, da reconstrução do Estado social, e logo da economia mista também prevista na Constituição, com socialistas a sério, comunistas, ecologistas, católicos progressistas e tantos outros democratas e patriotas. Ainda somos poucos, mas não nos podemos abster, insisto.

Amanhã, debate da Causa Pública, em Lisboa

A pandemia de COVID-19 marcou um ponto de viragem, ao levar à suspensão temporária das regras orçamentais, permitindo uma resposta mais robusta através do aumento dos gastos públicos. Esta suspensão criou um precedente para repensar a forma como a UE gere as suas regras fiscais, abrindo a porta a um novo debate sobre como conciliar as preocupações com a estabilidade macroeconómica com o investimento em políticas que promovam o crescimento sustentável, a equidade social e o combate às alterações climáticas.
Com o regresso das regras orçamentais reformuladas, surge uma nova oportunidade – e um novo desafio. De acordo com o anunciado, as novas regras visariam permitir um maior foco no ajustamento estrutural a médio prazo e uma maior ênfase no crescimento sustentável e verde. No entanto, os limites ao défice e à dívida continuam a ser pontos de pressão, especialmente para os governos que desejam aumentar o investimento público e expandir os serviços de saúde, educação e protecção social.
O debate que agora se impõe é, portanto, crucial: que margem de manobra resta para políticas progressistas dentro deste novo enquadramento? Será possível expandir os serviços públicos, aumentar a proteção social e investir em áreas estratégicas sem comprometer a sustentabilidade orçamental e, ao mesmo tempo, cumprir com as novas exigências europeias?


É este o dilema a tratar no debate «Que espaço existe para políticas progressistas com as novas regras orçamentais europeias?», promovido pela Causa Pública, que contará com a participação de João Nuno Mendes e José Guilherme Gusmão. A moderação estará a cargo de Maria Valente. A sessão realiza-se amanhã, a partir das 18h30, na Livraria Almedina no Atrium Saldanha, em Lisboa. Entrada livre.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Menos de um minuto


- Em quanto países é que a China interveio militarmente nos últimos quarenta anos? 
- Interveio no Vietname. 
- Isso foi há mais de quarenta anos. Em quantos países existem bases militares da China? 
- Em alguns. 
- Num país apenas, o Djibouti. Por outro lado, os EUA atacaram pelo menos treze países no mesmo período e os norte-americanos têm pelo menos 750 bases, em cerca de oitenta países, muitas delas em redor da China. 

Em menos de um minuto, um excelente jornalista norueguês fez perguntas simples e informadas ao antigo Secretário-Geral da OTAN, o norueguês Jens Stoltenberg. É quanto basta para expor as mentiras do imperialismo. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Da desinformação à demagogia eleitoralista é um passo

A massa de congressistas que ontem se levantou em peso e aplausos, quando Luís Montenegro falou em «libertar» a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento «das amarras de projetos ideológicos ou de facção» - numa indisfarçável aproximação ao Chega -, não só não fará ideia dos temas realmente tratados na disciplina, como não terá noção de que os mesmos já faziam parte das orientações da Educação para a Cidadania, no tempo de Passos Coelho e Nuno Crato.

Sim, é verdade. Por estranho que possa parecer a muitos dos militantes que estiveram ontem no Congresso do PSD em Braga, os temas da educação sexual, igualdade de género e interculturalidade já constavam - e bem - dos currículos do básico e secundário no tempo do anterior governo de direita. Aliás, as questões relacionadas com as «instituições e a participação democrática», que Montenegro diz querer agora «cultivar», foram integradas no programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em 2018, por um governo do PS.


Não esqueçamos, porém, que já em 2020 o manifesto pela «objeção de consciência» reuniu figuras diversas, algumas das quais expectáveis pelo seu conservadorismo (Cavaco Silva, Helena Matos ou José Miguel Júdice), outras mais surpreendentes (António Araújo, David Justino ou Joaquim Azevedo), sendo de admitir, nestes casos, que possa não ter sido claramente percebido o que estava em causa. O próprio ministro Fernando Alexandre, aliás, visivelmente desconfortável com a iniciativa de ontem, foi incapaz de dar um exemplo de queixas concretas, assumindo apenas que a disciplina continuará a ser obrigatória.

De qualquer modo, como refere Eunice Lourenço, «que as mudanças numa disciplina que pretende formar melhores cidadãos tenha sido o momento alto do discurso de Luís Montenegro diz muito sobre o PSD que esteve reunido em Congresso». Pois diz, diz mais até. Excetuando quem se levantou e aplaudiu por convicção informada, diz muito sobre a permeabilidade dos congressistas, por desinformação, ao discurso do Chega. Desinformação a que Luís Montenegro não hesitou deitar mão, num impulso demagógico e desprovido de escrúpulos, com objetivos meramente eleitorais.

Economia política em Coimbra


O economista Costas Lapavitsas estará em Coimbra nos dias 24 e 25 de outubro, próximas quinta-feira e sexta-feira. No dia 24, dinamizará um seminário no CES em torno do seu mais recente livro - The State of Capitalism; no dia 25, dará a aula inaugural, na FEUC, dos doutoramentos em que o CES participa. Aparecei.

Empatizar

Ahmad de Gaza, ontem, dia 380.

O sociólogo Pedro Adão e Silva (PAS) escreveu ontem sobre o declínio da empatia na sociedade, assim, demasiado em geral. Não refere o papel do capitalismo sem freios e contrapesos neste processo de desumanização, apesar de ser um tema clássico da sociologia, da economia moral.

Entretanto, dezenas de crónicas depois, PAS continua sem empatizar publicamente com o martirizado povo da Palestina, vítima de um holocausto colonial perpetrado pelo Estado de Israel. Já empatizou com Kamala Harris, vice-Presidente de um país que acha legitimo atacar civis do lado errado da linha de cor.

Há silêncios que têm de ficar registados. O poder de escrever três vezes por semana no principal diário nacional acarreta responsabilidades, como Carmo Afonso bem sabia. 

E haja memória e história: por comparação com a guerra da Ucrânia, a social-democracia lusa tem sido, em geral, de um silêncio sepulcral; sempre é melhor do que a social-democracia alemã, claro, cuja sombra do apoio vocal ao genocídio do povo palestiniano paira por aí, fazendo lembrar o opróbrio de 1914, o apoio à guerra imperialista. Há um cheiro a químicos no ar.

A falta que faz um Olof Palme, a social-democracia europeia a sério, de recorte tão anticolonialista quanto eurocético. 

domingo, 20 de outubro de 2024

Crise de habitação e uma conversa amena, à margem do problema

Na recente conferência promovida pelo Grupo Casais sobre «Aceleração da Construção da Habitação» discutiram-se, como assinalou o Expresso, «possíveis soluções da crise de habitação em Portugal». Como seria de esperar, a redução de impostos no setor (do IVA ao IMI, passando pelo IMT), a opção por novos modelos de construção, a colocação de devolutos no mercado ou a utilização de terrenos vazios, a par da reabilitação, foram colocadas em cima da mesa.

Como pano de fundo, nas intervenções citadas pelo Expresso, o pressuposto adquirido, e não questionado, de que a questão se resume à falta de casas, sendo apenas necessário construir mais e mais rapidamente. Ou seja, referências ao papel central das novas procuras especulativas na génese e agravamento da crise e à necessidade de formas de regulação que as travem, aparentemente nenhumas. Tudo se resume, uma vez mais, à simples escassez de oferta, por mais que o número de famílias e de alojamentos quase não se tenha alterado na última década. Continuamos nisto.

Sendo certo que os oradores no debate, como Ricardo Guimarães (Confidencial Imobiliário) e António Ramalho (ex-CEO do Novo Banco) assinalam a redução do volume de transações nos últimos anos (de cerca de 44 mil para 21 mil entre 2021 e 2023), associando essa redução à subida das taxas de juro - e constatam, igualmente, que os preços continuam a subir (não sendo acompanhados pelos rendimentos) - não retiram dai, contudo, as devidas ilações.


De facto, e ao contrário da tendência para que à diminuição das transações corresponda uma redução dos preços da habitação, como sucede até 2018, observa-se a partir de então, e sobretudo após 2021, que a quebra nas transações não impediu a subida dos preços, atingindo estes em 2024 os seus valores mais elevados. O que sugere, de forma clara, a presença de novas formas de procura solvente de natureza especulativa, internas e externas, que no limite poderão absorver toda a nova construção, por mais que os seus preços baixem e sem que o custo dos alojamentos se altere.

A insistência numa leitura simplista da crise da habitação, resumindo-a a uma mera falta de casas, que ignora o papel das novas procuras e a necessidade de as regular (com o atual governo a agravar a situação, nos recuos que já fez nesta matéria), faz assim lembrar a história de alguém que procurava a chave de casa à noite junto a um candeeiro, não por achar que aí a tinha perdido, mas antes porque o lugar onde suspeitava tê-la deixado cair não estava iluminado.

sábado, 19 de outubro de 2024

Comparar, olhar, ver, navegar


Lembro-me regularmente do historiador José Medeiros Ferreira (1942-2014), um antifascista que foi dos mais argutos e críticos representantes da elite nacional na democracia. Para tomar o pulso ao declínio desta elite, é só comparar este socialista com os pigmeus intelectuais e políticos que dominam hoje a política externa do bloco central, dentro e fora da academia. 

Estes últimos, tal como os economistas dominantes – as duas áreas mais policiadas de ciências sempre sociais e políticas –, consideram que a melhor política externa é a ausência de política externa nacional, ou seja, a submissão ao eixo Washington-Berlim, no caso das relações internacionais, e ao eixo Bruxelas-Frankfurt, no caso da política económica. Como dizia Medeiros Ferreira, são bons alunos de maus, péssimos, mestres. Aqui estamos, estagnados e cada vez mais submissos. Neste longo interregno surgem todo o tipo de monstros, alimentados pela ação e abstenção da social-democracia rendida ao euro-liberalismo. 

Olhar e ver. Ao invés da busca de soluções diplomáticas, eventualmente aceitando uma reconfiguração territorial da Ucrânia, em linha com o precedente por si aberto nos Balcãs, a UE apostou tudo na guerra, sobretudo depois que esta foi agigantada com a condenável invasão russa. Entretanto, as contraproducentes sanções encareceram uma parte da energia a uma parte do continente. A UE, vassala da NATO, ou seja, dos EUA, aceitou alimentar uma catástrofe militar e humanitária, cada dia mais perigosa e que irá terminar com as tais concessões territoriais em zona de maioria russa, num quadro de eventual neutralidade da Ucrânia, se tudo correr pelo melhor, na ausência de um conflito generalizado entre potências nucleares. E, não, a economia russa não está a sofrer, pelo contrário, já que se adaptou, com o uso de todos os instrumentos de política económica imagináveis e por imaginar. E, não, a Rússia não está isolada, como será atestado pela cimeira dos BRICS em Moscovo, com Xi, Modi ou Lula. 

Olhar e ver. Os EUA estão relaxados, porque são mais do que autossuficientes energeticamente, têm para vender, mas nunca para dar, têm a UE na mão e quase um continente, mais um oceano, a separá-los do enredo no leste europeu, no qual testam armas, ajudando os lucros de um complexo militar-industrial gigantesco. Este financia toda a propaganda de tanques ideológicos, jornalistas, académicos, campanhas políticas, tudo o que for necessário. Ajudaram a criar o enredo ucraniano, com a expansão da NATO para leste, para lá das responsabilidades russas e das do cada dia mais forte setor nazifascista ucraniano. No fundo, tudo isto é parte do trágico fim da URSS, uma catástrofe sem fim.

Olhar e ver. Em flagrante contradição com a posição sobre a invasão da Ucrânia (ou talvez não), a UE, pela voz da sinistra Presidente da Comissão Europeia, apoia o genocídio na Palestina, perpetrado pelo Estado colonial sionista. Há aqui uma indesmentível e racista linha de cor, que combina bem com a história sombria da integração europeia, de recorte colonial e neocolonial, já bem escalpelizada. Aos palestinianos ninguém dá armas, só a Israel.

Olhar e ver. A UE, depois do interlúdio pandémico, voltou à sua essência austeritária desde Maastricht, a sua fundação, agora com controlo antidemocrático da despesa, como tem assinalado Paulo Coimbra, quase sozinho nesta tarefa crucial. Tudo é ainda pior, com a aposta na corrida armamentista, como também advogado num relatório de que já ninguém se lembra, mas que Vicente Ferreira escalpelizou como ninguém. Esta corrida é mais um dos muitos pretextos para futuros cortes nos Estados sociais; os pigmeus da economia e das relações internacionais do bloco central já o disseram. 

Sim, excelentes alunos de maus mestres, piores a cada ano que passa. 

Num dos seus últimos livros - Não há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)dita da Integração Europeia - Medeiros Ferreira lembra que o seu amigo Vítor Cunha Rego lhe tinha pedido, pouco antes de morrer, para fazer soar a campainha quando fosse a hora de sairmos. Afinal de contas, tinha sido Medeiros Ferreira a fazer o pedido de adesão à então CEE, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Constitucional, em 1977, o ano em que nasci. Medeiros Ferreira nunca se sentiu preparado para o fazer, mas a questão passou-lhe reconhecidamente pela cabeça. Tem de continuar a passar pelas cabeças que estão vivas e que recusam este declínio. 

Mais vale uma jangada de pedra, realmente, sem mapas cor-de-rosa, obviamente, numa integração de geometria mais variável, sem esta amarra monetária, por exemplo. Este retângulo e dois arquipélagos bastam. E há muito mar, para ir e voltar.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Não podemos mesmo desviar os olhos


Tenho à minha frente o raio-x do crânio de uma criança pequena. Vê-se nitidamente uma bala. Apontada para baixo em direção à nuca. Sinto uma náusea. Acabei de deixar os meus filhos na escola e, enquanto bebo um café, vejo as imagens partilhadas com o The New York Times por uma médica, chamada Mimi Syed, que trabalhou em Gaza entre 8 de agosto e 5 de setembro. É fisicamente doloroso ler os relatos compilados para o jornal por um outro médico, Feroze Sidhwa, sobre o que se passa nos hospitais da Palestina. Mas não posso desviar os olhos. Não podemos desviar os olhos (...) 
Hoje, são os filhos de Gaza com as cabeças desfeitas por balas. Amanhã serão os nossos. Estamos a abrir o caminho para isso.

Início e fim da última crónica da jornalista Margarida Davim na Visão. Leiam o que está no meio, por favor. É muito importante ainda haver jornalistas com coragem para escrever assim sobre o genocídio perpetrado pelo Estado colonial israelita na Palestina. Haja humanismo, rigor e memória histórica, incluindo sobre o previsível e desgraçado efeito boomerang na história europeia. 
 

Pedalada - Pôr a economia a crescer... para quem?

Nos últimos meses, o desempenho económico da Europa tem motivado um intenso debate. A estagnação do investimento no continente e as perspetivas de recessão na Alemanha contrastam com o crescimento dos EUA e da China e com o seu avanço nas tecnologias de ponta. Um relatório publicado recentemente por Mario Draghi (ex-presidente do Banco Central Europeu) defende uma intervenção mais seletiva dos Estados europeus na promoção de setores estratégicos – uma espécie de regresso da política industrial. Mas há mais dúvidas do que certezas neste processo. Onde é que devemos concentrar esforços? Precisamos de mais dívida conjunta para financiar investimentos? Onde entra a transição justa? E que papel é que será destinado a Portugal na divisão de tarefas?

Este é o ponto de partida para mais um episódio do “Pedalada”, o vodcast do Ladrões de Bicicletas em parceria com a plataforma MyGig.

Quatro recapitulações sem ausência de luz


1. 
No longo interregno surgem monstros políticos. Os monstros liberais e fascistas estão mais à solta, desde o anúncio abstencionista, sem violência, por parte do PS, com a correspondente abertura de uma viragem ainda mais para a direita no panorama nacional. Chega e IL têm razões para festejar. Durante dois anos serão oposição, fictícia, mas oposição.

2. Os monstros alimentam-se da oposição ao que designam por sistema, invariavelmente considerado socialista e/ou corrupto, eles que são financiados pelas frações mais reacionárias do sistema que realmente existe, o capitalista, cada dia mais antidemocrático. 

3. A política de direita está inscrita nas estruturas austeritárias da integração europeia que nos submete e da qual Chega e IL não prescindem. Afinal de contas, são alimentados pela impotência democrática. Por sua vez, quem apoia os termos inscritos em estruturas destinadas a fazer com que a mera social-democracia de recorte keynesiano pareça radical, acaba a viabilizar Montenegro e companhia, ou seja, um país a ser sucateado por entreguistas; pobre país, pobre povo. 

4. Sem alguma desintegração, sem a luta pela reconquista de soberania no campo da política económica, nada feito, confirma-se pela enésima vez. Este é o horizonte estratégico, o que autoriza flexibilidade tática. Já se sabia, mas às vezes até apetece esquecer a escala do desafio. Não há atalhos. Somos poucos ainda. O tempo é de resistir e de organizar a potência plebeia, a alternativa que existe realmente, sem ilusões, mas com esperança: “o futuro é negro, mas na própria negrura não há ausência de luz”.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Curiosidades da economia política europeia


É curioso que Vital Moreira subscreva o social-liberal Enrico Letta, num diagnóstico ainda mais curioso: «Se não atuarmos, a UE acabará a discutir se queremos ser uma colónia chinesa ou norte-americana». 

Então, os EUA, que lideram a NATO, pilar absolutamente essencial do Consenso de Bruxelas, estão apostados em “colonizar” a UE? Como pode ser? Será que já todos sabem que as questões económicas estão inevitavelmente entrelaçadas com as questões políticas, incluindo militares? 

E onde fica o ordoliberalismo no meio disto, com as suas distinções tão claras quanto ideológicas? Vale toda a ideologia para justificar a aposta no brutal reforço do complexo industrial-militar das grandes potências da UE, outra razão para erodir os Estados sociais? 

Tantas questões. 

Já não compreendo nada da elite do poder na UE ou então ainda a compreendo demasiado bem, já nem sei. E começo a temer (ou será a saudar?) que esta já não compreenda nada do mundo... 

E também não compreendo, agora mesmo, como se pode colocar a República Popular da China, que tem uma abordagem fundamentalmente pacifica às relações internacionais, no mesmo saco do país que lidera o sistema imperialista e que mais sanções, agressões, guerras e estatocídios tem no seu currículo, por exemplo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

OE 2025: Estado máximo para poucos

Hoje em dia as grandes empresas têm benefícios fiscais para contratar trabalhadores, têm benefícios fiscais para aumentar os salários dos trabalhadores, têm benefícios fiscais para desenvolver ciência e investigação, têm benefícios fiscais para capitalizar, tem benefícios fiscais para recapitalizar empresas. No fundo, eles estão sempre disponíveis para fazer o que é preciso, o que é suposto uma empresa privada fazer, desde que haja contrapartidas do Estado. Isso não é Estado mínimo. Isto é Estado máximo, mas convertido num instrumento de favorecimento dos grupos económicos e financeiros (Vasco Cardoso, Comissão Política do PCP). 


A despesa, ou seja, a quantidade de recursos que o nosso país produz e pode usar de acordo com a sua discricionariedade, passou a ser definida inteiramente em Bruxelas. É o simulacro, o logro, o desrespeito pela assembleia da República e pelos portugueses (Paulo Coimbra, economista). 

Eu tenho uma opinião desfavorável da redução da taxa de IRC. Com raríssimas exceções, esta medida junta-nos a um grande grupo de países subdesenvolvidos que utiliza o receituário simplista que, ao invés de contribuir para o desenvolvimento, contribui para o seu atraso (Ricardo Cabral, economista). 

A própria expressão carga fiscal já é um viés. Despesa, rendimento e produtos são os 3 lados da mesma coisa. Eu tanto posso dizer, a carga fiscal é de 40%, como dizer o estado contribuiu para 40% do produto. As palavras são um instrumento de poder (João Carlos Graça, Sociólogo). 

Nesta discussão sobre as questões da fiscalidade, aquilo a que nós temos assistido é um conjunto de deturpações. (...) Aquilo que se verifica é que a haver uma relação, a relação é inversa daquela que nos tentam colocar (Tiago Cunha, economista). 

Nós temos uma lógica dos sucessivos governos em Portugal que consiste na ideia de que a economia portuguesa irá crescer se conseguimos fazer uma política permanentemente restritiva da atividade económica. (...) uma segunda dimensão que é o que no jargão oficial se chama flexibilização da economia, e que tipicamente tem a ver com a desregulamentação do mercado de trabalho, (...) o país vai naturalmente, transformar-se e crescer. Mas nós vamos com 25 anos disto. Isto ainda não produziu muitos resultados e não é difícil perceber por que é que isto não produz muitos resultados (Ricardo Paes Mamede, economista).

O problema do investimento é dos problemas mais graves que nós temos em Portugal; nem tem sido suficiente para compensar o chamado consumo do capital fixo (Eugénio Rosa, economista). 

Acima, excertos do debate sobre Orçamento do Estado num evento promovido pelo PCP. 

Ideologia zumbi


Starmer descende político-ideologicamente do milionário e criminoso de guerra Blair, declarado por Thatcher como o “meu maior triunfo”. 

A Terceira Via, qual zumbi ideológico, sobrevive por aí, na social-democracia neoliberalizada, de silêncios e cumplicidades genocidas, de austeritarismo, privatizações, reduções de direitos laborais e logo sociais e parcerias público-privadas sem fim. 

Lembrai-vos de quem abriu serviços públicos a privados, de quem criou serviços geridos por privados, dos cuidados às cantinas, de quem abria garrafas de champanhe por cada privatização que fazia, de quem cortou alegremente na segurança social, ao mesmo tempo que aumentava direitos patronais e correlativamente reduzia os laborais.

No PS, os da Terceira Via andam por aí, na imprensa e na televisão, às vezes tão sonsos, tão cobardes: de Pedro Adão e Silva a Vieira da Silva, passando por Fernando Medina ou Sérgio Sousa Pinto. São os que querem acabar a tarefa de diluição da social-democracia no caldo do extremo-centro, abstendo-se, uma vez mais, de combater a política de direita. Pudera, já tinha sido assim com a troika.

Os social-democratas alemães também mostram o caminho, em aliança com os verdes e os liberais: apoio incondicional ao genocídio na Palestina e à guerra sem fim na Europa e incapacidade socioeconómica, reforçando por tantas vias a extrema-direita. Por cá, nesta periferia europeia, é tudo de facto pior, por causa da subordinação ao eixo Bruxelas-Berlim, por sua vez cada dia mais vassalo de Washington.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Quem ganha com o OE 2025?

 

Além da redução do IRC, há outros benefícios para as empresas que não têm tido tanto destaque: a isenção de TSU e IRS nos prémios de desempenho e a majoração da despesa das empresas com seguros de saúde privados. O problema destas medidas é maior do que pode parecer.

Com a isenção de TSU e IRS dos prémios, as empresas vão poder decidir pagar uma fração maior da remuneração dos trabalhadores por esta via em vez de a incluir no aumento salarial dos trabalhadores (que beneficiariam dos descontos para a Segurança Social). 

As contribuições para a Segurança Social não são apenas um custo. São rendimento dos trabalhadores, que se pode considerar salário indireto. São o que garante que todos possamos beneficiar de proteção na doença, na parentalidade e de uma pensão de reforma. 

Com esta medida, as empresas evitam pagar uma parte das contribuições e impostos que teriam de pagar se aumentassem os salários dos trabalhadores no valor equivalente. É uma boa forma de descapitalizar a Segurança Social para depois se dizer que o sistema é insustentável.

Em relação à majoração de 20% no IRC dos gastos com seguros de saúde, é uma transferência de rendimentos do SNS para o privado: o Estado abdica de receita com que se financia o serviço público para favorecer a contratualização de seguros privados. Sem surpresa, a proposta já foi aplaudida pelas seguradoras: “A Associação Portuguesa de Seguradores considera muito positiva a medida que prevê a majoração em 20% em sede de IRC dos custos com seguros de saúde dos trabalhadores e seus agregados”. 

Serve de pouco olhar para os valores orçamentados para a saúde quando se sabe que quase metade das verbas já vão para o privado (através de serviços externalizados e de medicamentos) e quando o governo cria novos mecanismos fiscais para incentivar o recurso aos privados. Sobretudo tendo em conta que, ao incentivar o recurso à saúde privada, se dá às seguradoras a oportunidade de aumentar os preços dos seguros.

Ambição era só mesmo a de ganhar eleições, certo?


1. Em artigo no ECO a 15 de fevereiro, Miranda Sarmento - então líder parlamentar do PSD e hoje ministro das Finanças da AD - acusava o PS de ter desistido de Portugal, por apresentar «um programa vago e sem ambição, com níveis medíocres de crescimento». As previsões do Partido Socialista apontavam para que em 2028 se atingisse um crescimento do PIB a rondar os 2,0%, em linha com as previsões do FMI e do Conselho de Finanças Públicas (CFP).

2. Para Sarmento, porém, Portugal não estava condenado ao «marasmo, estagnação e rota de empobrecimento» que o PS tinha para oferecer. Graças ao prodigioso programa da AD, a economia portuguesa passaria a registar um crescimento fulgurante, com o PIB a atingir os 3,4% em 2028, valor que apenas seria superado pela Roménia, Hungria e Malta, as únicas economias à escala europeia para as quais o FMI previa níveis de crescimento acima de 3,3%.

3. E como chegou o governo a uma estimativa de crescimento de 3,4% em 2028? Aparentemente de uma forma tão expedita quanto manhosa: terá somado «todas as medidas do lado da despesa», associadas aos inúmeros compromissos que assumiu no seu programa eleitoral, juntando o excedente desejado e pondo depois «o país a crescer o que fosse preciso» para as contas darem certo, como assinalou, em tempo útil, Mariana Vieira da Silva.

4. A receita era portanto simples: bastava reduzir impostos - como se estes fossem o grande estrangulamento para as empresas e as famílias - e libertar a economia da asfixia fiscal do Estado. Uma vez liberta, floresceria como nunca e passaria até a gerar mais receita. «Um programa miraculoso», como oportunamente Ricardo Paes Mamede denunciou, que iria permitir o melhor de todos os mundos: descer impostos, aumentar a despesa e pagar a dívida.

5. Agora pasmem. Passadas as eleições, e estando a preparar o seu primeiro OE, o governo não só inscreve um crescimento em 2025 de 2,1% (abaixo dos 2,5% previstos no programa eleitoral), como estima - de acordo com o plano orçamental que a AD tem de entregar em Bruxelas - um crescimento inferior a 2% em 2028. Ou seja, abaixo do valor previsto no programa eleitoral do PS, o tal que era «vago e sem ambição, com níveis medíocres de crescimento».

Do colonialismo sionista


Como sublinhou o historiador Zachary Foster, que divulgou esta publicidade, assume-se, nos anos 1920, o projeto colonizador sionista, quando ainda era aceitável entre a elite ocidental fazer a apologia direta do colonialismo. O Estado israelita é colonialista e violento desde a origem. 

De facto, e como argumentou o historiador israelita Ilan Pappé em Dez Mitos sobre Israel, “tal como sucedeu com todos os movimentos de colonialismo de povoamento anteriores”, a conquista de território palestiniano implicou uma “lógica de aniquilação e de desumanização”. Implica essa lógica. É história presente, do presente.

Como assinalou Suleiman Ahmed, “14 de outubro de 2024: quando queimar vivos seres humanos foi considerado autodefesa”. Foi ontem e fica para a história do genocídio, perpetrado pelo colonialismo sionista, com apoio do imperialismo e dos seus vassalos da UE, parte de um sistema que tem uma forma de capitalismo como sua base material. A mentira está inscrita no coração ideológico do sistema, sendo vital para a sua reprodução.

Sim, o anticolonialismo e o anti-imperialismo são parte da cultura humanista radical, a que vai à raiz, a que não prescinde de nenhuma forma de luta, a que sabe que a verdade tem potencial revolucionário. 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Em memória, haja memória


Com mordacidade, Branko Milanovic, um importante economista da desigualdade, cada dia mais heterodoxo, resumiu bem aquilo em que se tornou o programa científico dos três “Prémios Nobel” da Economia de hoje, capitaneados por Daron Acemoglu: “páginas da Wikipédia com regressões”. 

De facto, o que é novo – modelizações neoclássicas para chegar às mais triviais conclusões institucionalistas liberais – não tem grande validade e o que tem validade – relações de poder na economia e seu quadro institucional – não tem grande novidade, tendo sido já rigorosamente analisado nas tradições marxista e institucionalista original. 

Por exemplo, quando Daron Acemoglu perora sobre o que determina o progresso nas condições de vida das classes trabalhadoras – “não foi nenhuma lei económica, mas sim as lutas sociais dos de baixo, em que sindicatos, políticos progressistas e instituições melhoradas desempenharam um papel central” –, divido-me, para ser franco. 

Uma parte de mim, diz: olha, dado o seu poder, ainda bem que há economistas convencionais do MIT a reconhecer a realidade institucional do capitalismo histórico e os fatores do progresso humano. Outra parte, diz: é pá, é preciso topete, tantos economistas e outros cientistas sociais que já concluíram isso e muito mais e há tanto tempo, tendo sido apoucados ou desconsiderados. Há análises inconvenientes para o poder económico e se há ciência próxima do poder económico...

Na mais policiada e mais endinheirada das ciências sociais, há currículos que foram censurados e purgados de tradições inteiras de pensamento (até ficar quase nada que jeito tenha), carreiras que foram prejudicadas, perseguições que foram montadas, contratações que foram vedadas ou financiamentos que foram negados a economistas por dizerem estas e outras verdades, resultado do seu trabalho sério. É toda uma história altamente politizada e em vários continentes. E não acabou. 

A economia convencional chega lá, aqui e ali, mas com décadas de atraso e com tantos custos sociais pelo meio. Tem havido, nas últimas décadas, mais regressão do que progresso nesta influente ciência, tão corrompida e tão corruptora - cada vez mais dinheiro e demasiado peso do interesse próprio egoísta. E o progresso deve-se sobretudo ao trabalho persistente nas margens, muitas vezes em genuíno diálogo com outras disciplinas, como acontece na economia das desigualdades, um dos vários raios de luz. Os factos são brutos e imiscuem-se, quebrando barreira protetoras.

Entretanto, na história das ideias económicas há já algum tempo que se sabe para que projeto ideológico serviu o Prémio em memória de Alfred Nobel instituído pelo Banco Central da Suécia (os bancos centrais são muito importantes nesta história trágica), sobretudo a partir dos turbulentos anos 1970, em que as exceções confirmaram a regra: chamou-se neoliberalismo e não é um slogan.

Adenda. Por falar da inevitável politização na mais ideológica das ciências sociais, estes economistas estão bastante preocupados “com o crescente poder económico da China”, que pode “ameaçar a estabilidade global e os interesses dos EUA”. Não há coincidências.   

Enganem os jovens a ver se eles deixam

No discurso do Governo e de muitos comentadores, os efeitos da medida [IRS Jovem] são explicados de forma simples, em dois passos: primeiro, a redução do IRS leva ao aumento do salário líquido dos jovens trabalhadores; segundo, com um maior rendimento disponível, os jovens vão ter menos incentivos para emigrar. Esta explicação é intuitiva, mas as coisas são menos simples do que parecem. 

Embora incida sobre os rendimentos individuais, o IRS (tal como as contribuições para a Segurança Social) representa antes de mais um custo para os empregadores. Quando quer recrutar alguém, para o mesmo nível de salário líquido, uma empresa terá de suportar mais despesas quanto mais elevadas forem as taxas de imposto sobre os rendimentos singulares. Assim, o efeito directo de uma descida do IRS é a redução dos custos totais que as empresas suportam – e não um aumento do rendimento líquido dos trabalhadores. 

Aquilo que as empresas fazem com a redução dos custos que daí decorre pode variar muito: algumas reduzem os preços, esperando com isso conquistar uma maior quota de mercado, caso tenham capacidade produtiva por utilizar; outras aumentam os salários, na expectativa de conseguirem atrair e reter os trabalhadores mais capazes [sejam jovens ou não]; podem também contratar mais pessoal sem alterar as remunerações, se isso lhes permitir produzir mais e lucrar com esse aumento da produção; em alternativa, a maior disponibilidade de recursos poderá ser canalizada para a aquisição de equipamentos ou o pagamento de dívidas passadas (principalmente em empresas com maiores restrições de liquidez); algumas empresas, simplesmente, usam por inteiro a descida do IRS para distribuir lucros aos proprietários. 

O problema do IRS Jovem não é apenas ser ineficaz, para a esmagadora maioria dos jovens portugueses, nos objectivos que se propõe atingir. São também os elevados custos que acarreta, sob a forma de despesa fiscal: de acordo com a proposta de Orçamento do Estado apresentada pelo Governo, o IRS Jovem vai custar aos cofres públicos, só em 2025, perto de 800 milhões de euros – mais do que os recursos destinados a toda a rede de educação pré-escolar existente (e ainda incompleta) em Portugal, ou que os investimentos previstos no parque público de habitação. Com os recursos que assim se perdem seria possível fazer bem mais e melhor para responder às dificuldades que os jovens enfrentam no nosso país. Talvez não rendesse tantos votos, mas faria mais a diferença. 

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.


domingo, 13 de outubro de 2024

Como se o blogue fosse um diário


Coimbra, 13 de outubro de 2024 

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de excepção’ em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como a nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de excepção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. 

Walter Benjamin, “Sobre o Conceito da História” [1940], in O Anjo da História, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017, p. 13. 

São onze horas de uma manhã luminosa de domingo e sento-me num banco, à sombra de uma magnólia, no Jardim Botânico, um dos mais bonitos jardins que conheço, talvez mesmo o mais bonito. Apesar do cuidado e de alguns melhoramentos, os efeitos do furacão Leslie, de 2018, ainda se veem aqui e ali, dada a austeridade perpétua. 

Estou à sombra, às onzes horas, de calções e t-shirt. Durante a hora e meia que aqui estou, passa por mim um grupo de turistas norte-americanos - “look at the magnolias”, gritaram, com aquele entusiasmo uniformizado. Também passam franceses, italianos e espanhóis. 

Não arrefeço, levanto-me simplesmente porque tenho fome. As alterações climáticas são reais, o capitaloceno é real. 

Parece que estamos num eterno Portugal dos Pequenitos, cada vez dependente de uma especialização turística insustentável e que nos menoriza produtivamente, reduzidos ao estatuto de semicolónia, com uma elite compradora, sem qualquer préstimo. 

Acabei de ler A Travessia de Benjamin, romance histórico, da autoria do norte-americano Jay Parini, sobre Walter Benjamin. Desde que li o ensaio “sobre o conceito de história” que ando no rasto deste marxista, alemão e judeu. Li o ensaio com a ajuda de Michel Löwy e do seu método “talmúdico”. 

O romance, entretanto, transporta-nos para o tempo sombrio que foi o de Benjamin e para os contextos macro e micro históricos que culminam na sua trágica morte na fronteira franco-espanhola, em 1940. 

Infelizmente, o Benjamin de Parini parece ser, aqui e ali, inverosimilmente liberal ou estranhamente apolítico, como se estivesse nos EUA na década de 1990, em flagrante contraste com algumas das citações que marcam cada capítulo. Benjamim é aí visto na primeira pessoa e revisto por pessoas que com ele privaram, uma escolha que resulta para arquitetar imaginativamente alguém que, pelos vistos, era algo esquivo e muito indeciso. 

Benjamin assumiu uma leitura original do “materialismo histórico”, fórmula que este crítico radical da civilização capitalista e das suas barbáries usa. Ele sabia que “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer”. E o inimigo venceu, foi derrotado e venceu de novo, mas não de forma irremediável. Isso não existe, mesmo que os escombros se amontoem quando o anjo é arrastado e olha de frente, para trás, de costas voltadas para o futuro. 

À tarde anotarei estas e outras “ocorrências”, como aconselha Miguel Esteves Cardoso, algumas mais científicas, espero; jantarei e conversarei com o meu filho; e, mais à noite, começarei a ler as Teses ao Congresso do Partido com que simpatizo e com que empatizo. 

Haja esperança, apesar de tudo. E luta, certamente.

OE 2025: entre o simulacro e o logro, o teto de que não se fala

O Conselho das Finanças Públicas (CFP) publicou antes de ontem o seu parecer sobre as Previsões macroeconómicas subjacentes ao Plano Estrutural-Orçamental Nacional de Médio Prazo para 2025-2028 (POEN-MP), apresentado pelo XXIV Governo Constitucional na XVI Legislatura. 
 
A necessidade deste plano decorre do regulamento 2024/1263, uma das peças centrais do recentemente (mal) reformado quadro de governação económica da UE. 

Segundo este regulamento, os governos nacionais são obrigados a apresentar à Comissão Europeia um POEN-MP onde assumam aceitar despesas líquidas que respeitem um teto previamente imposto ao país, com total discricionariedade e opacidade, por aquela mesma Comissão Europeia, respaldada no Conselho Europeu. 


Trata-se, pois, essencialmente, de um cerimonial de efetiva subordinação política e certificação notarial, em que a Comissão exige aos governos nacionais um documento que contenha um compromisso da aceitação da sua imposição em matéria orçamental.

No parecer acima referido, o CFP vem agora afirmar que não conhece “os pressupostos necessários ao cálculo da trajetória das despesas líquidas, uma vez que não foram facultados ao CFP os pressupostos metodológicos utilizados no cálculo do compromisso da trajetória das despesas líquidas que constará no POEN-MP. O CFP também não teve acesso a essa trajetória, nem à trajetória de referência”. 

Estamos nisto. Esta discussão orçamental não passa de um simulacro mal orquestrado e a votação do OE 2025, decidido este no essencial pela Comissão e pelo Conselho, não será mais que um logro. 

Este novo quadro de governação económica da UE tem aqui sido contestado praticamente desde que viu a luz nascer e a denúncia da displicência e do secretismo antidemocrático da Comissão intensificou-se já no início de Agosto passado, momento em que escrevemos os dois parágrafos seguintes. 

Repare-se que a Comissão Europeia, guardiã mor desta distopia que transforma o país numa quase colónia, está na fase de fingir que negoceia com o governo e ainda nem sequer nos informou quanto do nosso dinheiro, afinal, nos autoriza a usar

De resto, se é certo que, quando a encenação acabar, saberemos, finalmente, que orçamento nos foi autorizado, não o é menos que nunca saberemos que pressupostos usou para chegar ao ditame. É segredo. Por design. De facto, por que razão havia de se permitir o escrutínio democrático das arbitrárias imposições de uma instituição supranacional com legitimidade indireta e viés neoliberal se podemos escudar-nos na ideia, obviamente enganosa, de que se trata de pressupostos técnicos para os quais não há alternativa?

Finalizando e sintetizando o texto de hoje, três considerações e duas perguntas. 

Os protagonistas do simulacro de discussão orçamental em curso desqualificam-se como atores políticos quando fingem que podem decidir o que já foi decido por Bruxelas; o parlamento, desprovido da capacidade para decidir em matéria orçamental, foi despromovido para um estatuto semelhante ao de uma assembleia municipal; e o CFF, impedido de fazer o seu trabalho por uma Comissão que, para evitar o escrutínio, se recusa a fornecer-lhe os pressupostos que usa para chegar às conclusões que nos impõe, torna-se redundante.

Seguramente que o povo que aqui vive e trabalha merece mais que isto. 

Assim se reforça, de uma penada legislativa, com mais um passo gigante, mas furtivo, em direção à integração federal, o estatuto de semicolónia do país, transformando a relação de Lisboa com Bruxelas/Frankfurt, no que à política orçamental diz respeito, numa relação semelhante à que anteriormente a Vidigueira tinha com Lisboa. 

Alguém imagina a direita alemã a permitir contribuições necessariamente muito avultadas para um orçamento federal? E alguém imagina um orçamento federal sem uma perda total da soberania democrática nacional?

Alguém se lembra de um debate público digno do nome acerca desta transferência de soberania do parlamento de Portugal para instituições supranacionais?