quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Vale tudo no amor e na guerra (de classes)



Como prometido num poste anterior, eis a versão definitiva do importante e esclarecedor texto de Alan Stoleroff sobre a luta justa dos estivadores portugueses, que requer todo o nosso apoio e solidariedade - começando já hoje à tarde.

All’s fair in love and (class) war

Em consonância com a conhecida expressão inglesa, no amor e na guerra vale tudo e, sobretudo, quando se trata de guerra de classes. E é disso que se trata na crise em curso, uma guerra de classes de grande envergadura. Em Portugal, neste momento, esta guerra tem várias frentes. Todas possuem importância na ofensiva do capital e dos seus gestores políticos neoliberais e todas têm importância para a defesa dos direitos da população trabalhadora pelos sindicatos. Contudo, está em curso uma batalha específica que pode determinar o curso da guerra – o conflito em torno da flexibilização do trabalho portuário e a greve dos estivadores.
O governo e o patronato estão a jogar com a ignorância e a indiferença da população para efectuar grandes transformações na operação dos portos mas, no Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, uma associação que beneficia de uma sindicalização de quase 100% nos portos incluídos no seu âmbito, encontraram um obstáculo aos seus planos. Este sindicato está convicto de que o Acordo para o Mercado de Trabalho Portuário celebrado pelas Associações dos Operadores, a UGT e a Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores Portuários, bem como a legislação subsequente produzida pelo governo, visam a desregulação de normas estabelecidas para o seu trabalho e o funcionamento dos portos, um esvaziamento dos legítimos direitos conquistados pelos trabalhadores portuários, despedimentos em larga escala, um incremento da precariedade e redução do emprego dos trabalhadores cobertos pela contratação colectiva. 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Aguentam?


Fernando Ulrich: “O país aguenta mais austeridade?... Ai aguenta, aguenta”. O presidente executivo do BPI, Fernando Ulrich, afirmou esta terça-feira que o país tem de aguentar mais austeridade e mostrou-se “chocado” com “pessoas com responsabilidade” que querem levar Portugal para a situação da Grécia (…) [Ulrich] deu assim exemplos da situação da Grécia, em que o desemprego “já está em 23,8%” e chegará aos 25,4% no próximo ano. Apesar disso, “os gregos estão vivos, protestam com um bocadinho de mais veemência do que nós, partem umas montras, mas eles estão lá, estão vivos”. (Lusa)  

O poder em toda a sua arrogância e miopia. A nossa elite financeira em todo o seu autismo e egoísmo sociais leva-nos, graças à austeridade que apoia, para a situação da Grécia, aguentando-se até ver nesse processo, dada a sua capacidade para continuar transferir os custos por si gerados para o conjunto da comunidade, entre capitalização, garantida pelo empréstimo da troika a um Estado que faz de tudo para não se tornar accionista, socialização do fardo dos fundos de pensões ou acção prestável do BCE. O “estão vivos” é todo um programa. Estão convencidos que escapam à austeridade depressiva, graças à condução externa da política económica, e que conseguem evitar ou, na pior das hipóteses, adiar a reestruturação da dívida pública até já estarem em condições para aguentar o embate. Pode ser que se enganem e que seja Ulrich que tenha de aguentar a necessária nacionalização da banca que se segue à reestruturação da dívida e a tudo o que virá antes e depois de um processo levado a cabo por um governo que defenda os interesses da maioria dos que aqui vivem e que tenha apoio popular. Pode ser.

Hoje: Debate sobre o Orçamento de Estado 2013

No âmbito da petição promovida pelo Congresso Democrático das Alternativas, realiza-se hoje em Lisboa, no Hotel Mundial (metro Martim Moniz), a partir das 21.00h, o debate público: "Orçamento 2013: Rejeição e Alternativas".

Intervenções iniciais de António Carlos Santos (Professor universitário e especialista em direito fiscal), José Castro Caldas (Economista e investigador), José Guilherme Gusmão (Economista e ex-deputado) e Pedro Delgado Alves (Jurista e deputado). A moderação do debate estará a cargo de Ana Costa (Economista e investigadora).

Asfixiar o futuro

Não é difícil pensar como imaginam Portugal, daqui a dez anos, Gaspar e Santos Pereira: um país cuja competitividade assenta nos baixos salários e na completa desregulamentação laboral, sustidos pela pressão de um desemprego a dois dígitos e pela pulverização do Estado Social. Ou seja, um país que apenas consegue atrair investidores oportunistas e empreendedores medíocres, que só sabem competir através do esmagamento do factor trabalho; um país que desvaloriza a qualificação dos recursos humanos, a partir de uma estratégia que está, por natureza, condenada ao fracasso: quem «compete por baixo» fica sempre em situação de vulnerabilidade.

É nesta linha (para além do trágico sugadouro de recursos que constitui o eterno ajustamento orçamental) que se compreende o inequívoco desinvestimento na ciência e no ensino superior, dois dos domínios em que a tese das «gorduras» não convence absolutamente ninguém. Na proposta do OE para 2013, a dotação das universidades sofre um corte de 57 milhões face a 2012 (cerca de 10%), que acresce aos 200 milhões perdidos desde 2005. Nos politécnicos, a redução das transferências orçamentais ronda os 24 milhões de euros. Como sempre, prevê-se que as perdas sejam compensadas à custa do aumento de receitas próprias (em que se incluem as propinas) e - avisam as instituições já exauridas - à custa da não renovação de contratos a docentes, da supressão de «cadeiras» ou da redução, ainda mais pronunciada do que até aqui, de gastos correntes.

Na semana passada, chegou às mãos do ministro Nuno Crato a carta aberta «sem ciência não há futuro», que reuniu desde Julho mais de três mil assinaturas. Nela se reafirma a degradação das condições de investigação em Portugal, nomeadamente os consecutivos atrasos nos vencimentos, no reembolso do pagamento do Seguro Social Voluntário, a permanente precariedade contratual e os cortes nos apoios à investigação. Entretanto, a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, face aos «atrasos sistemáticos da FCT» no pagamento de bolsas de investigação, decidiu suspender o adiantamento de encargos relativos a projectos, colocando muitos investigadores em situação dramática.

A visão de futuro que nos reserva a governação da maioria de direita prepara-se no presente e traduzir-se-à, se não for detida a tempo, num claro regresso ao passado.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Petição pela rejeição do Orçamento de Estado de 2013

«Exmo. Senhor Presidente da República
Exmos. Senhores Deputados da Assembleia da República

Os signatários apelam à vossa responsabilidade política e institucional perante o país e perante todos os cidadãos, para que seja rejeitada a proposta de Orçamento de Estado para 2013 apresentada pelo Governo. A sua aprovação constituiria certamente um mal maior para o país e os portugueses comparativamente com as consequências da sua rejeição.
Esta proposta de OE, já contestada pela opinião pública e pela grande maioria dos especialistas, significa o prosseguimento e agravamento do caminho para uma austeridade ainda mais recessiva, com mais desemprego, mais destruição da economia, mais empobrecimento, mais desigualdade social e menos justiça fiscal. Em nome dos credores, rouba o futuro e a esperança ao país e aos portugueses. Ofende princípios constitucionais relevantes, designadamente o princípio da confiança (dimensão importante do princípio democrático), os direitos do trabalho, os direitos sociais e a progressividade e equidade fiscais.
Aos Deputados, apelamos para que rejeitem esta proposta governamental de Orçamento de Estado, assumindo plenamente a vossa condição de representantes eleitos do povo e de todo o País, que é superior a quaisquer outras fidelidades ou compromissos;
Ao Presidente da República, na qualidade de supremo representante da República, garante da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, obrigado a respeitar e a fazer cumprir a Constituição, apelamos a que exerça o seu direito de veto sobre este Orçamento de Estado, no caso de ele ter aprovação parlamentar ou, no mínimo, que o submeta, no exercício das suas competências, à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional.»

A petição, promovida pelo Congresso Democrático das Alternativas a 22 de Outubro de 2013 - e que conta neste momento com cerca de 9000 assinaturas - pode ser subscrita aqui até 30 de Novembro, data em que será entregue aos seus destinatários: os Deputados eleitos à Assembleia da República e o Presidente da República. Amanhã, as assinaturas já recolhidas serão entregues aos Grupos Parlamentares com assento na Assembleia da República. Subscrevam e divulguem junto dos vossos contactos.

O ladrão errou

Publiquei ontem um poste que remetia para um texto de Alan Stoleroff sobre a luta dos estivadores no contexto do ataque em curso aos seus direitos laborais. Sucede que se tratava de uma versão ainda provisória do texto, motivo pelo qual optei por retirar o poste. O texto voltará a ser aqui publicado quando a versão final estiver pronta.
Entretanto, tal como assinalado pela leitora Ivone Santos, também a escolha do título do poste pela minha parte foi infeliz, uma vez que se prestava ele próprio a conotações anti-sindicais - ainda que a minha intenção não fosse essa, mas sim remeter para o carácter vil do ataque em curso e para a cumplicidade "amarela" de uma organização sindical minoritária envolvida no processo.
As minhas desculpas aos leitores.

Choques


Quem tenha lido a Doutrina do Choque de Naomi Klein, um bom livro de divulgação sobre o neoliberalismo, tem instrumentos que podem permitir compreender a lógica do momento de “refundação”, bizarra expressão, proposta por Passos Coelho. Não se trata obviamente de mudar o programa da troika, muito pelo contrario, já que se trata antes de usar o desastre, neste caso fabricado pela própria austeridade e pelas reformas regressivas já adoptadas, graças à troika, como nova oportunidade para procurar ir até às últimas consequências, ao âmago das funções do Estado social, onde ainda há para pilhar. O colete-de-forças monetário que é o euro ou a sua expressão institucional periférica que é a troika garantem os choques que forem necessários para alcançar tal objectivo. O desemprego de massas é um meio decisivo, já que não há nada de decente que sobreviva neste contexto, só o capitalismo de desastre.

Já antes de Passos, as cínicas declarações de Vítor Gaspar confirmaram pela enésima vez o objectivo principal, mobilizando a relutância fiscal das classes de maiores rendimentos e usando esta chocante estrutura para determinar as escolhas sociais. Gaspar é o mais perigoso membro do governo. Combina a identificação com os interesses colectivos do capital financeiro nacional e internacional, imbricados pelo euro, com uma obstinação ideológica impar, resultado da síntese do consenso neoliberal que se foi tornando hegemónico a partir dos anos oitenta entre Washington, Bruxelas ou Frankfurt e que foi inscrito no euro. O negocismo de Relvas ou as palas ideológicas de Álvaro não se comparam à síntese de Gaspar. Junte-se um perfil muito peculiar, descrito por Filipe Nunes, e temos um Gaspar em luta contra as realidades da maioria dos que aqui vivem, contra um mundo que insiste em mostrar a enorme diferença que pode existir entre resultados intelectuais e vitórias políticas.

O défice é uma variável endógena? Os multiplicadores orçamentais, no contexto português, a estarem fora do novo intervalo do FMI estão acima e nunca abaixo dado o contexto? As privatizações apenas reforçam o perfil de especialização dos grupos económicos nos não-transaccionáveis, na captura de rendas, como se verá com a ANA? O regresso aos ‘mercados’ é uma fraude monstruosa, parte da captura pelos bancos a que se chama bancarrotocracia e que Pedro Lains tem captado em algumas das suas dimensões? O euro a que dedicou uma vida é um fracasso colossal para um país cuja taxa de desemprego é o dobro do máximo histórico antes da moeda única? A evolução desemprego não cessa de “surpreender” Gaspar?

Pouco importam as respostas. É típico da ideologia de Gaspar furtar-se publicamente ao confronto com a realidade, mas ao mesmo tempo tenho a certeza que Gaspar conhece bem os mecanismos, a economia política do programa que está a aplicar. A violência desmedida deste é proporcional à natureza das transformações ambicionadas. As coisas aqui são mesmo como são, mas convém que não se faça demasiado alarde disso. Por isso, é um dos intelectuais principais da versão portuguesa do capitalismo de desastre. Com esta gente no poder a democracia está sempre em risco. Sempre. Não é por acaso que um dos que pediu a troika e que não se arrepende, Fernando Ulrich, fala, reparem na inversão, em risco de ditadura do Tribunal Constitucional. Gente perigosa, mesmo muito perigosa, tem muito poder nesta economia política.

As maratonas de Gaspar


Que julga ter já percorrido dois terços da prova, quando mais não fez do que correr em sentido contrário, indiferente a todos os sinais da realidade.

sábado, 27 de outubro de 2012

Leonard Cohen: Anthem


Ring the bells that still can ring. Forget your perfect offering
There is a crack, a crack in everythnig. That's how the light gets in
We ask for signs. The signs were sent. The birth betrayed. The marriage spent
The widoowhood of every single government. Signs for all to see

Doze milhões de euros

É o valor estimado dos encargos que o Estado tem mantido com o programa cheque-dentista, a cujo acesso o Ministério da Saúde decidiu agora privar as crianças e jovens com 7, 10 e 13 anos. E corresponde, no seu montante, à generosa, inesperada e excedente oferenda financeira aos colégios privados, feita pelo Ministério da Educação no início deste ano. São escolhas senhores: o dinheiro que servia para prevenir e tratar problemas dentários de milhares de crianças e jovens é poupado para custear o luxo, ilusório, da frequência de escolas privadas por filhos das classes alta e média-alta.

Ensino privado: nem melhor, nem mais barato (I)

Este ano, a informação dos resultados dos exames do ensino básico e secundário - que permitem estabelecer os famosos «rankings de escolas» - trouxe uma novidade digna de registo: pela primeira vez, para além das classificações médias obtidas pelos alunos, o Ministério da Educação disponibilizou informação relativa ao contexto sócio-económico (nomeadamente as habilitações e profissões dos pais e a percentagem de alunos, por estabelecimento de ensino, que recorrem a apoios da Acção Social escolar).

Estes elementos são indispensáveis para analisar, com um mínimo de seriedade, os resultados obtidos pelas escolas, obrigando a situá-las (e a interpretar o seu desempenho) no contexto em que se inserem. Isto é, trata-se de informação que permite concluir que há escolas cuja posição favorável que ocupam nos «rankings» resulta, apenas, do facto de serem dominantemente frequentadas por alunos com um estatuto sócio-económico acima da média. Ou concluir que há escolas que, apesar da sua baixa classificação, desenvolvem um trabalho notável em meios sócio-económicos menos favorecidos. Os indicadores de contexto familiar dos alunos (entre outros que seria igualmente desejável apurar) são, de facto, cruciais para poder avaliar - de forma credível - o desempenho dos diferentes estabelecimentos de ensino.

Mas, pasme-se, apenas as escolas do ensino público forneceram estes dados, relativos às habilitações e profissões dos pais ou, indirectamente, à sua situação económica (através da existência, ou não, de apoios da Acção Social escolar). Os estabelecimentos de ensino privado limitaram-se, portanto, a enviar para o Ministério as classificações médias obtidas em exame, o que impede qualquer exercício de ponderação com os indicadores de contexto.

Sabendo, como sabemos, que as escolas privadas são - na larga maioria dos casos - frequentadas por alunos de elevado estatuto sócio-económico, pode legitimamente pensar-se que estas instituições têm interesse em furtar-se à disponibilização da informação que os estabelecimentos de ensino público facultaram. A sobrevivência do fantasioso «mito da primazia do ensino privado» a isso, naturalmente, obriga.

NOTA: O gráfico aqui ao lado foi elaborado pelo Público, na sua edição de 13 de Outubro. Corresponde à ordenação decrescente das classificações obtidas pelas escolas de ensino básico, em que a vermelho se encontram as privadas e a laranja as públicas. Não é descabido supor, com grande segurança, que se fosse possível ordenar os resultados anulando as diferenças de contexto entre as escolas aquela mancha ali no topo (que concentra os privados) desapareceria. Por uma questão de rigor e credibilidade, o Ministério da Educação deve pois obrigar-se a assegurar que, no próximo ano, os estabelecimentos de ensino privado fornecem exactamente a mesma informação que é coligida no ensino público. É o mínimo, como bem saberá o ministro Nuno Crato.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Agora escolha

Com avanços e recuos, o governo mantém a intenção de cortar nos subsídios de desemprego mais baixos e no rendimento social de inserção, prosseguindo a obra de desmantelamento social que está inscrita em programas de ajustamento no quadro de sistemas monetários rígidos e em última instância incompatíveis com a democracia. Trata-se, no fundo, da austeridade realmente existente depois da fraude eleitoral das gorduras. Trata-se do mesmo governo que criou um assistencialista plano de emergência social tão emergente que ficou reduzido a dois milhões de euros executados este ano (em 200 milhões previstos). As políticas para pobres são sempre pobres políticas e mais ainda neste contexto. Mota Soares, em resposta às críticas, mandou dizer ao Negócios “que apresentou alternativas que facilitem o regresso mercado de trabalho”. Realmente só apresentou uma: é o vai trabalhar, malandro, já várias vezes ensaiado nas políticas públicas. Trata-se sempre de aumentar a desprotecção social, num contexto de desemprego de massas, para tentar multiplicar as chamadas transacções desesperadas, tornando a força de trabalho numa mercadoria cada vez mais barata e descartável, por um lado, e condenado sectores inteiros à dependência da frágil e ineficaz caridade, garantindo que não se gasta tudo em vinho, por outro. Realmente, pior do que ser explorado só mesmo não o ser: trata-se da utopia liberal das novas “leis dos pobres” com toda a violência de estruturas que só consentem estas escolhas não consentidas. Não se habituem.

Leituras

«O défice de 2012 sem medidas extraordinárias seria de 6% do PIB. Mas o mau desempenho da economia e o acréscimo da dívida elevaram-no para 7,7%. Como o Governo se comprometeu a reduzi-lo para 4,5% em 2013, houve que financiar os 3,2% restantes. E assim nasceu o plano de austeridade mais violento de que há memória em Portugal: entre mais receitas (impostos) e menos despesas (despedimentos e cortes nos salários e nas prestações sociais) o Governo propõe-se usurpar-nos €5.338 milhões. Deve ter enlouquecido. Sucede que esta loucura tem custos, que o Governo não deveria ignorar. E nem sequer vou recorrer aos famosos multiplicadores do FMI, onde os “sábios” se atropelam uns aos outros. Limito-me a olhar para os cortes brutais a que vai ser submetida a procura interna, entre consumo e investimento: com aquela machadada de €5.338 milhões, é óbvio que a economia vai bater no fundo. Ou seja, quando o Governo afirma que a recessão em 2013 será de apenas 1% do PIB só pode estar a brincar connosco. Mas não tem graça nenhuma.»

Daniel Amaral, em «OE/3013: a ruptura»

«O mais grave é o que se anuncia para 2013. Mais uma vez, o Governo elabora um orçamento que assenta num cenário macroeconómico fantasioso, em valores para o desemprego subestimados e numa expectativa para a receita inflacionada. A fórmula vai falhar e não estamos perante uma repetição do otimismo irrealista que caracterizou a política orçamental do passado recente, já entrámos no domínio da relação alucinada com a realidade. (...) Ninguém no seu perfeito juízo pode acreditar que uma austeridade sem paralelo provocará uma recessão de 1% do PIB e trará apenas mais 80 mil desempregados. (...) O Ministro Vítor Gaspar falou esta semana num “conjunto de incertezas” que ameaça a execução orçamental. Infelizmente estamos perante um conjunto de certezas: o orçamento não tem credibilidade, tem uma componente de alucinação, é incumprível e empurrará o país para uma espiral recessiva.»

Pedro Adão e Silva, em «Um exercício alucinado»

«A escolha que o actual Governo faz, de sobrepor o pagamento da dívida a todas as suas outras obrigações - garantir mínimos de protecção social a pessoas em situação de extrema fragilidade, conservar para as gerações futuras o património público de que é fiel depositário, respeitar a Constituição que jurou defender - é uma escolha ideológica, que sobrepõe os desejos de uns poucos aos direitos da maioria. Esta escolha, plasmada no Orçamento ontem apresentado pelo Governo, pode ser criticada em termos económicos, porque está a destruir a estrutura produtiva do país e porque desperdiça competências e talentos em cuja formação a comunidade investiu fortemente na última geração. Pode ser criticada em termos políticos, porque está a destruir a confiança na democracia. Pode ser criticada do ponto de vista da sua legitimidade democrática, pois esta política nunca foi sufragada. Pode ser criticada em termos jurídicos, porque esta política faz tábua rasa de leis fundamentais da República. Mas, para além de todas as outras críticas possíveis, e acima de tudo, ela é moralmente inadmissível.»

José Vítor Malheiros, em «A política imoral e a redução das escolhas»

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Pretextos

No quadro do memorando da troika e do seu governo todos os fracassos da politica económica de austeridade são pretextos para atrofiar a esfera pública, para reduzir a margem de manobra do país, como bem sublinha Octávio Teixeira: “O objectivo será o de dar alguns meses para, mostrando o desastre que eles próprios provocaram, ludibriarem que a resolução do problema do défice passa pela substancial redução das funções do Estado. O que ‘justificaria’ a privatização de mais empresas e maiores reduções salariais e despedimentos, mas também o desmantelamento dos serviços públicos de saúde, educação e Segurança Social, a espinha dorsal de um Estado social. Desde sempre o propósito nuclear deste Governo.”

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Petição pela rejeição do Orçamento de Estado de 2013


«Dando cumprimento ao mandato que lhe foi atribuído pelo Congresso Democrático das Alternativas, a Comissão Organizadora reuniu no dia 21 de Outubro de 2012 em Lisboa para discutir as formas de concretização da agenda aprovada no Congresso, tendo presente a evolução da situação social e política do país.

A proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2013 apresentada pelo Governo a 15 de Outubro constitui o facto a destacar na evolução social e política recente. A Comissão Organizadora do Congresso afirma a natureza profundamente injusta e contraproducente da proposta de OE. Esta proposta agrava a recessão, aumenta o desemprego, avoluma o défice e a dívida pública, destrói a sociedade e desbarata a economia, agrava as desigualdades e ultrapassa os limites absolutos da capacidade de sofrimento do povo, põe em causa os mais elementares princípios constitucionais, incluindo o da existência de um Estado Social digno e capaz de servir a coesão social e o funcionamento da economia.

Algumas vozes que, no passado recente, se revelaram tolerantes ou mesmo defensores da austeridade recessiva, exprimem agora oposição à proposta de OE, defendendo as virtudes de um “ajustamento orçamental alternativo” assente na redução da despesa pública. Na realidade, tal ajustamento teria de incidir necessariamente sobre os salários e/ou o emprego da função pública e sobre as prestações sociais. A consequência de cortes nestas rubricas, onde 70% da despesa pública está concentrada, seria a degradação acelerada dos serviços públicos, o colapso do Sistema Nacional de Saúde, da Escola Pública e dos sistemas de pensões e de proteção social. Os cortes na despesa, por representarem quebra do rendimento disponível da maioria das famílias, teriam não só o mesmo efeito recessivo inscrito na atual proposta de OE, como teriam um efeito regressivo desastroso. Somariam a uma quebra direta do rendimento disponível dos funcionários públicos, dos pensionistas e dos desempregados, uma quebra indireta do rendimento disponível da maioria das famílias, com menores recursos, cujo bem-estar mais depende da provisão pública de serviços.

Na realidade, não há verdadeira alternativa à proposta de OE que não passe pela redução da única despesa que pode ser cortada sem efeitos recessivos e com benefício na libertação de recursos para o investimento e a criação de emprego: os juros da dívida pública. É, pois, pela denúncia do Memorando e pela renegociação da dívida que passa qualquer verdadeira alternativa à proposta de OE para 2013. É nisto que consistem as razões do Congresso Democrática das Alternativas, expressas na Declaração aprovada em 5 de outubro (disponível aqui).

É cada vez mais claro que o Memorando e a sua execução são o problema crucial da nossa depressão e que a renegociação da dívida e dos seus encargos é não só a mais urgente das alternativas, como uma necessidade premente. É a isso que cabe dar voz, reafirmando-o como um dos pontos fortes das convergências mais importantes conseguidas no Congresso.

Assim, em consonância com a Declaração aprovada no dia 5 de outubro, a Comissão Organizadora do Congresso Democrático das Alternativas decidiu lançar uma iniciativa cidadã de rejeição da proposta de Orçamento de Estado para 2013, sob a forma de uma petição pública.

A recolha de assinaturas irá decorrer durante todo o processo de discussão da proposta de OE na Assembleia da República, o qual, de acordo com os calendários previstos, terá a sua conclusão no final do mês de Novembro (depois de concluída a apreciação na especialidade) com a votação final e global.»

A petição pode ser lida e subscrita aqui

Apela-se a todos para que subscrevam esta petição e que colaborem na sua divulgação.

Despesa pública e OE-2013



O meu artigo de opinião de hoje no Diário Económico:

O debate sobre a despesa pública está há muito inquinado por dois grandes erros de percepção.

O primeiro corresponde à imagem da administração pública como um conjunto de repartições onde nada se faz de útil, quando maioritariamente é constituído pelo conjunto de pessoas e estruturas (como escolas e centros de saúde) que asseguram muitas das funções que permitem que vivamos numa sociedade minimamente decente. O segundo erro de percepção diz respeito à distinção entre a qualidade e o volume da despesa. A melhoria da qualidade da despesa deve ser uma preocupação de todos, sobretudo a partir de uma verdadeira posição de esquerda, tendo em conta a forma como a despesa pública tem crescentemente vindo a ser determinada pela promiscuidade entre os poderes político, económico e financeiro (como ilustrado pelos casos mais flagrantes das PPP, do BPN ou da privatização de monopólios naturais). Porém, a preocupação com a qualidade da despesa não deve levar à conclusão errada segundo a qual o volume total da mesma - e sobretudo o défice - devem ser cortados de qualquer forma e em qualquer momento.

O Orçamento de Estado para 2013 consegue o pior em todas estas frentes: é profundamente pro-cíclico (tendo em conta a carga fiscal brutal e o saldo primário visado, no contexto de uma gravíssima crise económica e social) e afecta a qualidade da despesa da pior forma (sacrificando ben públicos essenciais para o desenvolvimento e bem-estar). Onde cortar, então? Naturalmente, no mais inútil dos ministérios: o ministério do serviço da dívida. Tem um orçamento superior à Saúde e à Educação, corresponde à sangria de recursos do país numa altura crítica (aprofundando por isso a recessão) e tem como única função adiar uma reestruturação que todos sabemos já ser inevitável, dada a relação entre o volume da dívida, os juros reais e o (de)crescimento a que estamos condenados por esta via. Teria consequências? Sim. Será inevitável mais cedo ou mais tarde? Sim. Seria preferível fazê-lo já? Certamente.

Errata

Em virtude de uma colossal confusão de datas, dirigia-vos ontem aqui um convite para o lançamento do livro «Economia e Interdisciplinaridade(s)» (depois de Coimbra, há cerca de quinze dias), que teria lugar hoje em Lisboa, na livraria Almedina do Saldanha, às 19.00h. O lançamento, na verdade, será daqui a um mês, a 23 de Novembro. Devo-vos, obviamente, um pedido de desculpas pelo erro.

O servilismo paranóico de Camilo Lourenço

Num artigo recentemente publicado no Negócios, «A paranóia à volta da emigração», o inenarrável Camilo Lourenço tentou «desdramatizar» o caso de Pedro Marques, um enfermeiro português que se viu obrigado a emigrar e trabalhar em Northampton (Inglaterra), tendo escrito uma carta de despedida a Cavaco Silva, na qual afirmava sentir-se «expulso do seu próprio país».

«Piegas» é o que, no fundo, Camilo Lourenço tenta dissimuladamente chamar a Pedro Marques, argumentando que a sua história tem «três problemas»: «1- a procura incessante, pela Imprensa (latu sensu) do elemento "drama", em detrimento do elemento racional da história. 2- a secundarização de elementos importantes: Pedro Marques tem qualificações procuradas em Inglaterra, país que lhe oferece, como o próprio admitiu, boas perspectivas de carreira. 3- o foco no "imediatismo": alguém questionou Pedro Marques sobre se trabalhar no estrangeiro não ia melhorar a sua formação?».

Sucede que esta narrativa cínica de Camilo Lourenço têm vários problemas, entre eles:
1- Emigrar não foi uma escolha de Pedro Marques: o jovem enfermeiro português pretendia, legitimamente, ficar e trabalhar no seu país, que sente a escorraçá-lo (não perceber o drama pessoal, familiar e social subjacente a uma situação destas é, por si só, revelador da fina sensibilidade de Camilo Lourenço);
2- A emigração forçada de Pedro Marques não é propriamente um caso exótico: em 2011, entre 100 a 120 mil portugueses terão sido compelidos a procurar trabalho no estrangeiro (cerca de 2% da população activa, para que se tenha uma ideia), estando a aumentar as situações de emigração ilegal e precária, bem como a emigração para fora da União Europeia (em condições, muitas vezes, ainda mais desfavoráveis);
3- Estas formas de emigração compulsiva não são propriamente um Programa Erasmus, nem correspondem a uma política pública de intercâmbio e formação de profissionais qualificados: não significam uma «melhoria da formação» na larga maioria das situações, nem se sabe à partida quantos dos que agora partem vão regressar (por organizarem as suas vidas lá fora e por não verem perspectivas de emprego em Portugal no curto e médio prazo);
4- A sangria a que estamos a assistir, motivada pelo desespero e resultante de uma austeridade criminosa e ignorante, é tudo menos racional: o investimento público efectuado na formação de quadros superiores converte-se assim em puro desperdício, em dinheiro deitado à rua. Ou melhor, aproveitado por outros que - sem qualquer esforço financeiro - beneficiam do resultado dos impostos pagos pelos contribuintes portugueses (para usar o linguajar de que tanto gostam estes liberais de pacotilha), tendo em vista o desenvolvimento económico e social do país.

Só por servilismo sem escrúpulos (e populismo oportunista) se compreende pois que alguém - como Camilo Lourenço - possa interpretar o que se está a passar em Portugal, em termos migratórios (recorde-se que até há bem pouco tempo tínhamos um saldo positivo entre saídas e entradas), como uma simples «paranóia à volta da emigração».

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Não aprenderam nada com a História



Excerto de um artigo de Martin Wolf no FT (Lições da História sobre dívida pública; minha tradução):

O Reino Unido emergiu da primeira guerra mundial com uma dívida pública de 140% do Produto Interno Bruto e os preços tinham mais do que duplicado relativamente ao nível anterior à guerra. O governo decidiu então regressar ao padrão ouro mantendo a paridade anterior à guerra, o que fez em 1925, e pagar a dívida pública para preservar a sua credibilidade. Aqui estava um país à medida do Tea Party.

Para alcançar os seus objectivos, o Reino Unido implementou políticas, orçamental e monetária, contraccionistas. O excedente orçamental primário (sem contar com o pagamento de juros) foi mantido perto dos 7% do PIB durante os anos 20. (…) Entretanto, em 1920 o Banco de Inglaterra aumentou a taxa de juro para 7%. O objectivo era apoiar o regresso à paridade anterior à guerra. Com a consequente deflação, as taxas de juro reais tornaram-se extraordinariamente elevadas. Foi desta forma que os loucos hipócritas das classes dominantes da Grã-Bretanha saudaram os sobreviventes da guerra infernal.

Então como é que funcionou este compromisso com a fome orçamental e a necrofilia monetária? Mal. Em 1938 o produto real estava pouco acima do nível de 1918, com um crescimento médio anual de 0,5%. Isto não era apenas o resultado da Depressão. Em 1928 o produto real também era inferior ao de 1918. As exportações eram persistentemente frágeis e o desemprego persistentemente elevado. Um elevado desemprego era o mecanismo destinado a fazer baixar os salários nominais e reais. A finalidade era partir a espinha aos sindicatos. Estas políticas deram origem à greve geral de 1926. Elas espalharam uma amargura que se prolongou por décadas após a segunda grande guerra.

Independentemente dos seus enormes custos económicos e sociais, estas políticas falharam segundo os seus próprios critérios. Para o seu bem, o país abandonou o padrão ouro em 1931. Pior, a dívida pública não baixou. Em 1930 tinha atingido 170% do PIB. Em 1933 alcançou os 190% do PIB.

domingo, 21 de outubro de 2012

Poortugal?

Se as elites centrais precisam de colocar adjectivos antes ou depois de aceitar o que já é óbvio há vários anos que o façam, sobretudo se isso acelerar a tomada de consciência da situação: Cadilhe defende “renegociação honrada” da dívida. Serão cada vez mais, claro. Pensando melhor há um grande problema, que aliás nos mostra que as palavras nunca são neutras: a constatação de Cadilhe é acompanhada pela ideia de que a reestruturação da dívida, em si mesma muito variada nas suas formas, tem de ser feita no quadro mais vasto de uma reestruturação regressiva e recessiva das funções de um Estado que não é soberano. Os credores ajudarão, liderando o processo. Serve isto para relembrar algo que a declaração do Congresso Democrático das Alternativas nos indica: a reestruturação da dívida, envolvendo necessariamente prazos, juros e montantes, tem de estar inscrita num processo negocial mais vasto, que se inicia com a denúncia do memorando e que tem por objectivo ajudar a mudar o enquadramento europeu, única forma de internamente poderem ser adoptadas políticas públicas que evitem que o país se torne num imenso Poortugal.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sem margem de manobra?



O meu artigo de ontem no jornal i:

A proposta de Orçamento do Estado para 2013 foi apresentada ao país pelo ministro das Finanças acompanhada de um comentário dirigido aos seus críticos: “Portugal não tem margem de manobra.” Ou seja, apesar do evidente fracasso da política de austeridade na Grécia, em Portugal e na Irlanda (neste caso, menos comentado), ainda assim temos de executar uma política que provou ser ineficaz. Dizem-nos que não há qualquer margem de manobra, mesmo que um dos membros da troika, o FMI, já tenha reconhecido que a política económica imposta a estes países é errada. O discurso do bom aluno acaba de ser enterrado, mas é espantoso que a política se mantenha.

Estamos pois num beco (aparentemente) sem saída. Entrámos numa espiral de desastre para a qual um núcleo restrito de economistas portugueses desde o início alertou, em flagrante contraste com o comentário entusiasta de muitos outros a quem foi dado grande protagonismo mediático, tendo como pano de fundo o silêncio das nossas faculdades de economia que, salvo honrosas excepções a título pessoal, guardaram um silêncio bem revelador da hegemonia do pensamento neoliberal na formação dos nossos doutorados. Vendo o barco a afundar, um ou outro vêm agora admitir que a austeridade deveria ter sido mais suave, em linha com o discurso do Partido Socialista. A mudança vem tarde e com pés de barro porque, ainda assim, persistem no paradigma teórico que gerou este desastre. Primeiro, porque continuam a admitir que o equilíbrio das contas públicas é, em si mesmo, virtuoso. Segundo, porque entendem que o relançamento da economia só pode fazer-se com medidas de apoio à oferta. Terceiro, porque, para eles, a UE acabará por salvar o euro e libertar-nos (a tempo) da austeridade. Tendo banido Keynes dos seus programas de doutoramento, é natural que o quadro conceptual destes académicos se sinta ameaçado e, na defensiva, se adapte apenas marginalmente perante a imensa crise da procura que apadrinharam.

Em 2011, os portugueses deram a este governo o benefício da dúvida. No fundo, os portugueses precisavam de tempo para perceber os contornos do problema em que estavam metidos. Hoje, é com profunda apreensão, mesmo com alguma raiva, que estão a deixar cair uma ilusão, a de que a moeda única nos traria uma integração europeia feliz, prosperidade para todos e alargamento dos direitos sociais. Para muitos cidadãos, talvez mesmo para a maioria, hoje é evidente que a saída para esta dramática crise só pode ser política e passa pela denúncia de um contrato que, segundo uma das partes contratantes, consagra um grave erro de política económica.

À medida que a denúncia do Memorando vai sendo percebida como a única saída que nos resta, o debate público sobre as implicações de tal decisão tornar-se-á incontrolável. Mais tarde ou mais cedo, as televisões vão ser obrigadas a levantar a censura a que têm sujeitado esta opção. As redes sociais estão a minar-lhes o terreno e a descredibilizar o seu comentário económico, pelo que o recuo acabará por acontecer. A partir daí, vamos ver a histeria dos apóstolos do euro, de direita ou de esquerda, para quem o desastre em que estamos lançados será sempre preferível ao abandono da moeda única. Veremos então que, apenas por razões ideológicas, os arautos de um imaginário “euro bom” preferem o desemprego de massa, por tempo indefinido, a uma inflação transitória causada pela desvalorização de uma nova moeda. Veremos então quem prefere manter o país no desespero e esperar por uma UE com orçamento federal, mesmo sabendo que a Alemanha nunca estará disponível para partilhar dívidas ou submeter o seu sistema bancário e o seu orçamento a uma tutela federal. E, veremos também, como evitam discutir o nosso endividamento externo porque sabem que tal desequilíbrio não pode ser resolvido sem recurso à política cambial, além de outras. Nesse dia, tornar-se-á visível a grande margem de manobra de que dispõem os países com moeda própria e banco central.

Destruição destrutiva


«Os senhores deixaram a este país, este ano, um buraco orçamental de três ponto cinco mil milhões de euros, inteiramente causados pelos efeitos recessivos das vossas políticas. Não foi do orçamento de há dois anos, nem de há três, nem de há quatro, nem do 25 de Abril. (...) Foi o vosso orçamento, foi a vossa escolha. Uma escolha que falhou... Falhou em tudo. Falhou no emprego, falhou nas falências e falhou nos próprios objectivos do défice. Falhou em tudo! E, após este falhanço, o que o governo tem para dizer ao país é: "porque falhámos, voltamos a repetir". (...) É uma loucura e uma insanidade que não vai resultar. O senhor ministro das Finanças e este governo falam de uma transformação estrutural. Não há transformação estrutural. Nem há uma coisa que alguns liberais gostam, que é a destruição criativa. Há apenas e só uma destruição destrutiva, que é o que os senhores ministros e este governo estão a deixar ao país».

(Intervenção de João Galamba, a ver na íntegra, ontem na Assembleia da República).

Tempestade, Dr. Borges?

«Não se muda de timoneiro a meio da tempestade», sobretudo quando ele é «muito bom», diz António Borges, que saiu entretanto em defesa de Vítor Gaspar. De uma penada, espeta uma faca nas costas de Passos Coelho e, de caminho, tropeça na sua própria sombra: o processo de ajustamento, que ainda há dois meses estava a correr tão bem, «melhor do que se pensava», «digam o que disserem», corresponde afinal a uma tempestade.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A estocada final no «modelo social europeu»

O alerta chega pelo Henrique Sousa. A Comissão Europeia prepara-se - através de uma «Proposta de Directiva» - para desferir o derradeiro golpe no modelo social europeu, propondo mecanismos, na esfera dos contratos públicos, tendentes à liberalização e privatização dos serviços estatais de educação, saúde e segurança social.

Mais concretamente, no seu Anexo XVI (o diabo está, como diz o Henrique, nos detalhes), a proposta aponta as suas baterias para os «serviços de saúde e serviços sociais; serviços administrativos nas áreas da educação, da saúde e da cultura; serviços relacionados com a segurança social obrigatória e serviços relacionados com as prestações sociais». Trata-se de lançar a derradeira ofensiva ao pote, de modo particularmente incisivo no que concerne aos fundos da segurança social, aprofundando a regressão civilizacional que o desmantelamento do Estado Social comporta e convertendo «a União Europeia num espaço económico e político inteiramente comandado pelos mercados financeiros e por um ultraliberalismo suicidário».

Sabemo-lo cada vez melhor. A conversa das «dívidas soberanas», dos «ajustamentos», do «viver acima das possibilidades», das «reformas estruturais», do «Estado ineficiente» - de tudo o que, afinal, dá corpo à vaga austeritária que fracassa em toda a parte - é apenas o Cavalo de Troia que esconde as verdadeiras ambições da direita neoliberal europeia: entregar aos mercados e ao capital financeiro (os verdadeiros responsáveis pela crise) os apetitosos recursos dos sistemas nacionais de política social e, de caminho, cumprir o velho sonho de despedaçar o modelo social europeu, conseguindo na secretaria as vitórias negadas pela democracia.

Esta proposta é, aliás, bem ilustrativa das disfunções democráticas que corroem a União Europeia. Quantos dos partidos da direita candidatos ao parlamento europeu, que elegeram indirectamente a Comissão, terão inscrito de forma explícita nos seus programas eleitorais esta intenção de privatizar e liberalizar serviços públicos, particularmente no que concerne aos sistemas e recursos da Segurança Social?

Não vale a pena salvar o euro


Enquanto decorre mais uma cimeira para salvar o euro, recordo um artigo de Marc Weisbrot (Julho 2011, minha tradução) com o título: Por que não vale a pena salvar o euro.

Dado que o que se pretende com toda esta desgraça é salvar o euro, vale a pena interrogarmo-nos se vale a pena salvar o euro. E vale a pena colocar esta questão do ponto de vista da maioria dos europeus que vivem do seu trabalho, ou seja, de um ponto de vista progressista.

Frequentemente invoca-se que a União Monetária, agora com 17 países, deve ser mantida em nome do projecto europeu. (...) Mas isto confunde a União Monetária, a Eurozona, com a União Europeia. A Dinamarca, Suécia e o Reino Unido, por exemplo, fazem parte da União Europeia mas não da União Monetária. Não há nenhuma razão que impeça o projecto europeu de ter continuidade, e a União Europeia de prosperar, sem o euro.

E há boas razões para esperar que isso possa acontecer. O problema reside no facto de a União Monetária, ao contrário da União Europeia em si mesma, ser um projecto de direita sem margem para dúvidas. Se tal não era claro desde o início, deveria ser dolorosamente claro agora (...)

Alguns economistas e observadores políticos argumentam que a Eurozona precisa de uma união orçamental, com maior coordenação das políticas orçamentais, para que possa funcionar. Porém, as políticas orçamentais de direita são contraproducentes, como estamos a observar, mesmo que fossem melhor coordenadas. Outros economistas - incluindo eu próprio - argumentaram que as grandes diferenças de produtividade entre as economias participantes colocam sérias dificuldades ao funcionamento de uma união monetária. Mas, mesmo que estas dificuldades pudessem ser ultrapassadas, a Eurozona não valeria o esforço porque é um projecto de direita. (...)

Ao que parece, uma boa parte das esquerdas europeias não entende a natureza de direita das instituições, autoridades e, em particular, das políticas macroeconómicas que estão a enfrentar na Eurozona. Isto faz parte do problema mais amplo que é a falta de compreensão por parte dos cidadãos das políticas macroeconómicas à escala internacional, as quais permitiram que bancos centrais de direita tenham executado políticas destrutivas, por vezes com governos de esquerda. Estes erros, acompanhados da falta de escrutínio democrático, poderiam ajudar a explicar o paradoxo de hoje a Europa ter políticas macroeconómicas mais à direita do que nos EUA, apesar de ter sindicatos mais fortes e outra base institucional para apoiar uma política económica mais progressista.

Pelo jornalismo, pela democracia

«A crise que abala a maioria dos órgãos de informação em Portugal pode parecer aos mais desprevenidos uma mera questão laboral ou mesmo empresarial. Trata-se, contudo, de um problema mais largo e mais profundo, e que, ao afectar um sector estratégico, se reflecte de forma negativa e preocupante na organização da sociedade democrática.
O jornalismo não se resume à produção de notícias e muito menos à reprodução de informações que chegam à redacção. Assenta na verificação e na validação da informação, na atribuição de relevância às fontes e acontecimentos, na fiscalização dos diferentes poderes e na oferta de uma pluralidade de olhares e de pontos de vista que dêem aos cidadãos um conhecimento informado do que é do interesse público, estimulem o debate e o confronto de ideias e permitam a multiplicidade de escolhas que caracteriza as democracias. O exercício destas funções centrais exige competências, recursos, tempo e condições de independência e de autonomia dos jornalistas. E não se pode fazer sem jornalistas ou com redacções reduzidas à sua ínfima expressão.
As lutas a que assistimos num sector afectado por despedimentos colectivos, cortes nos orçamentos de funcionamento e precarização profissional extravasa, pois, fronteiras corporativas.
Sendo global, a crise do sector exige um empenhamento de todos – empresários, profissionais, Estado, cidadãos - na descoberta de soluções.
A redução de efectivos, a precariedade profissional e o desinvestimento nas redacções podem parecer uma solução no curto prazo, mas não vão garantir a sobrevivência das empresas jornalísticas. Conduzem, pelo contrário, a uma perda de rigor, de qualidade e de fiabilidade, que terá como consequência, numa espiral recessiva de cidadania, a desinformação da sociedade, a falta de exigência cívica e um enfraquecimento da democracia.
Porque existe uma componente de serviço público em todo o exercício do jornalismo, privado ou público;
Porque este último, por maioria de razão, não pode ser transformado, como faz a proposta do Governo para o OE de 2013, numa “repartição de activos em função da especialização de diversas áreas de negócios” por parte do “accionista Estado”;
Porque o jornalismo não é apenas mais um serviço entre os muitos que o mercado nos oferece;
Porque o jornalismo é um serviço que está no coração da democracia;
Porque a crise dos média e as medidas erradas e perigosas com que vem sendo combatida ocorrem num tempo de aguda crise nacional, que torna mais imperiosa ainda a função da imprensa;
Porque o jornalismo é um património colectivo;
Os subscritores entendem que a luta das redacções e dos jornalistas, hoje, é uma luta de todos nós, cidadãos.
Por isso nela nos envolvemos.
Por isso manifestamos a nossa solidariedade activa com todos os que, na imprensa escrita e online, na rádio e na televisão, lutando pelo direito à dignidade profissional contra a degradação das condições de trabalho, lutam por um jornalismo independente, plural, exigente e de qualidade, esteio de uma sociedade livre e democrática.
Por isso desafiamos todos os cidadãos a empenhar-se nesta defesa de uma imprensa livre e de qualidade e a colocar os seus esforços e a sua imaginação ao serviço da sua sustentabilidade.»

Proponentes:
Adelino Gomes – Jornalista * Agostinho Leite - Lusa * Alexandre Manuel - Jornalista e Professor Universitário * Alfredo Maia - JN (Presidente do Sindicato de Jornalistas) * Ana Cáceres Monteiro - Media Capital * Ana Goulart - Seara Nova * Ana Romeu - RTP * Ana Sofia Fonseca - Expresso * Anabela Fino - Avante * António Granado - RTP; Professor Universitário * António Navarro - Lusa * António Louçã - RTP * Avelino Rodrigues - Jornalista * Camilo Azevedo - RTP * Carla Baptista - Jornalista freelancer e Professora Universitária * Catarina Almeida Pereira - Jornal de Negócios * Cecília Malheiro - Lusa * Cesário Borga - Jornalista * Cristina Margato - Expresso * Cristina Martins - Expresso * Daniel Ricardo - Visão * Diana Andringa - Jornalista * Diana Ramos - Correio da Manhã * Elisabete Miranda - Jornal de Negócios * Fernando Correia - Jornalista e Professor Universitário * Filipa Subtil - Professora Universitária * Filipe Silveira - SIC * Filomena Lança - Jornal de Negócios * Francisco Bélard - Jornalista * Frederico Pinheiro - SOL * Hermínia Saraiva - Diário Económico * João Carvalho Pina - Kameraphoto * João d’Espiney - Público * João Paulo Vieira - Visão * Joaquim Fidalgo - Jornalista e Professor Universitário * Joaquim Furtado - Jornalista * Jorge Araújo - Expresso * José Luís Garcia - Docente e Investigador (ICS-Lisboa) * José Luiz Fernandes - Casa da Imprensa * J.-M. Nobre Correia - Professor Universitário * José M. Paquete de Oliveira - Docente, cronista, ex-provedor do telespectador (RTP) * José Manuel Rosendo - RDP * José Mário Silva - Jornalista freelancer * José Milhazes - SIC / Lusa (Moscovo) * José Rebelo - Professor Universitário e ex-jornalista * José Rodrigues – Correio da Manhã * José Vítor Malheiros - Cronista, consultor * Leonete Botelho - Público * Liliana Pacheco - Jornalista (investigadora) * Luciana Liederfard - Expresso * Luís Andrade Sá - Lusa (Delegação de Moçambique) * Luís Reis Ribeiro - DN/Dinheiro Vivo * Luísa Meireles - Expresso * Manuel Esteves - Jornal de Negócios * Manuel Menezes - RTP * Margarida Metelo - RTP * Margarida Pinto - Lusa * Maria de Deus Rodrigues - Lusa * Maria Flor Pedroso - RDP * Maria Júlia Fernandes - RTP * Mário Nicolau - Revista C * Martins Morim - A Bola * Miguel Marujo - DN * Miguel Sousa Pinto - Lusa * Mónica Santos - O Jogo * Nuno Aguiar - Jornal de Negócios * Nuno Martins - Lusa * Nuno Pêgas - Lusa * Oscar Mascarenhas - Jornalista * Patrícia Fonseca - Visão * Paulo Pena - Visão * Pedro Caldeira Rodrigues - Lusa * Pedro Manuel Coutinho Diniz de Sousa - Professor Universitário * Pedro Pinheiro - TSF * Pedro Rosa Mendes - Jornalista e escritor * Pedro Sousa Pereira - Lusa * Raquel Martins - Público * Ricardo Alexandre - Antena 1 * Rosária Rato - Lusa * Rui Cardoso Martins - Jornalista e escritor * Rui Nunes - Lusa * Rui Peres Jorge - Jornal de Negócios * Sandra Monteiro - Le Monde diplomatique (edição portuguesa) * Sara Meireles - Docente Universitária e Investigadora * Sofia Branco - Lusa * Susana Venceslau - Lusa * Tiago Dias - Lusa * Tiago Petinga - Lusa * Tomás Quental - Lusa * Vítor Costa - Lusa.

Este é apenas o primeiro passo duma iniciativa que pretende ser mais ampla.
Nos próximos dias todos os jornalistas, bem como todos os cidadãos vão ser convidados a assinar e a participar.
Pelo jornalismo, Pela democracia.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Horizonte?

João Ferreira do Amaral, em declarações ao Público, toca num ponto a que também já aqui aludi e que quero enfatizar: este OE vai ser uma “tragédia nacional”, com impacto negativo no PIB entre 2,8% e 5,3%, usando os multiplicadores orçamentais do FMI, como fazem Sérgio Aníbal e Ana Rita Faria do Público, mas o governo não está muito preocupado que “a austeridade não resulte, porque depois diz que não pode aumentar mais os impostos e avança para um corte [de resto já em curso], nas funções do Estado.”

Esta é a engenharia política em curso, dado que a retórica das gorduras, a que aludia Álvaro antes das eleições, por exemplo, é uma fraude e que os cortes atingem já e atingirão muito mais os órgãos vitais do Estado social. A austeridade sempre recessiva e regressiva é um horizonte, um pretexto para permitir, enquanto estivermos neste enquadramento europeu, escavacar a segurança social, o serviço nacional de saúde ou a escola pública, erodindo as bases sociais dos serviços públicos, entre as quais está o trabalho organizado, cuja fragilização, pela redução dos direitos laborais e pelo desemprego de massas, é indisfarçável, apesar da relevante mobilização sindical na rua.

Derrotas atrás de derrotas e com mais derrotas pelo meio. Será garantidamente assim enquanto permanecermos enquadrados pelo memorando e pelas instituições que o garantem, por muito que possam mudar as fórmulas políticas internas que suportam governos de desgaste cada vez mais rápido, por muito que ganhem protagonismo os que ainda conservam prestígio entre as elites centrais, como é o caso de Silva Peneda. A questão não é individual, é de programa, das forças sociais que o suportam e da estrutura europeia que garante a sua manutenção. A esquerda que não percebe isto só pode ter o tristíssimo destino do PASOK e da esquerda democrática grega (DIMAR), enredados numa coligação que condena o povo grego, abdicando de tudo o que justifica a existência de partidos que façam qualquer coisa de esquerda, qualquer coisa civilizada, qualquer coisa…

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Leituras

«O número de previsões persistentemente falhadas abrange um inquietante leque de matérias: PIB, receita, execução orçamental, retoma económica, etc. Como é possível ter confiança? (...) Justa ou injustamente, o rosto desta política orçamental é Vítor Gaspar. Levou salários, levou pensões, levou compreensão, levou optimismo, levou esperança no futuro».

Luís Reis, em «E tudo o Vítor levou»

«Vítor Gaspar escolheu um caminho perigoso que vai esfrangalhar a classe média e levar milhares de portugueses à miséria. E mesmo sabendo que está a perder, Vítor Gaspar continua a jogar e a fazer 'bluff', fazendo de conta que está a ganhar. Não tem um único trunfo, mas é incapaz de pestanejar. O ministro das Finanças parece um jogador de Sudoku que se enganou a colocar um número mas que vai continuar a jogar para nos provar que não se enganou, mesmo sabendo que as contas no final nunca vão bater certo».

Pedro Sousa Carvalho, em «Vítor Gaspar anda a jogar Sudoku com as contas públicas»

«O ciclo vicioso está criado e não saímos dele sem negociar. O meu ponto é que mais vale agora, com o crédito de cinco avaliações positivas, do que quando a situação económica e social piorar. Se o governo perder a sua base social de apoio, de pouco nos servirão os repetidos elogios internacionais. As últimas semanas permitem perceber que estamos perto do limite. É essencial que as pessoas continuem a confiar que o governo, inclusive o ministro das Finanças, está do seu lado e não do lado dos credores».

Paulo Lopes Marcelo, em «Como se diz negociar em inglês?»

Três textos de opinião do Diário Económico de hoje (que cita ainda Karl Popper: «Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos»).

As consequências de Gaspar

O que disse Gaspar ontem? Destaco cinco ideias:

1. Não há margem de manobra. Devia antes ter dito que o governo não está disposto a conquistar margem de manobra porque não quer apouquentar os credores, servindo a palavra credibilidade, mil vezes repetida, para encobrir este facto altamente penalizador para a maioria dos que aqui vivem.

2. Não entraremos numa espiral recessiva. Ninguém pode acreditar, à luz do que tem acontecido e que até o FMI agora reconhece, que uma austeridade sem precedentes, cifrada em 3,2% do PIB, causará uma recessão de apenas 1% e um aumento do número de desempregados de oitenta mil, um aumento que o governo descreve como de “curto-prazo” no relatório do OE, vejam bem, estando a contar com o milagre das exportações, alimentadas significativamente pela esperada desvalorização do euro, e com o pensamento mágico segundo o qual uma economia que já caiu tanto não pode cair muito mais.

3. O esforço é equitativo entre trabalho e capital. O Público escreve hoje em letras garrafais a verdade: “trabalhadores e pensionistas vão pagar 70% do défice”, sem contar com os efeitos no lado da despesa, que atingem desproporcionalmente as classes trabalhadoras.

4. Trata-se de um OE que pretende reduzir desigualdades em sede de IRS. É verdade que no relatório do OE está um gráfico enganador que mostra que quem recebe mais vai pagar mais em termos absolutos, mas, como afirma o sempre atento João Ramos de Almeida no Público, são as famílias de menores rendimentos que pagam impostos que sentem um maior agravamento do IRS em termos de aumento percentual, sendo por isso relativamente mais afectadas em termos da machadada que levam no seu rendimento, e que o fardo vai sendo mais ligeiro quando subimos na pirâmide social, o que, claro, “nunca poderá diminuir a desigualdade social”: do menor número de escalões à sobretaxa igual para todos, passando pela situação de favor para certo tipo de rendimentos sujeitos ao privilégio das “taxas liberatórias”, os mecanismos regressivos em sede de IRS são claros e temos de lhes juntar os mecanismos regressivos em sede de “despesa”, com a fragilização dos mais potentes mecanismos redistributivos que são os serviços públicos e muitas prestações sociais.

5. Está a devolver ao país o que o país lhe deu. Gostei da lógica da reciprocidade, da dádiva e contra-dádiva, invocada por Gaspar, um elemento a ter em conta na defesa da ética do serviço público, uma justificação, juntamente com a urgência em reduzir as desigualdades invocada também por Gaspar, para remover o mais rapidamente possível um governo que também é uma ameaça letal à economia moral do Estado social, da reciprocidade à “moralidade fiscal”…

As ligações do sufoco

Nos tempos mais recentes, os orçamentos foram sobretudo avaliados pelas injustiças relativas que apresentavam ou pelos desequilíbrios variados que introduziam. E foram muitos e graves. Mas o OE para 2013 é o orçamento da injustiça absoluta e do efeito sufocante geral (…) Os caminhos cruéis também são caminhos. Já há muita gente a perceber que o sufoco se resolve por uma denúncia do memorando e por uma renegociação corajosa de uma dívida ingerível. E que isso é urgente. Talvez haja economia e sociedade depois disso. 

José Reis, O não-OE: teoria geral do sufoco, Público  

O Orçamento tem um responsável técnico, o ministro das Finanças, e um responsável político, o primeiro-ministro. Concentremo-nos no primeiro. Quem é ele? De onde vem? A resposta tem de passar pela análise das ligações do ministro das Finanças ao sector financeiro. Olhemos para o primeiro-ministro e atendamos a quem beneficia directamente com a alternativa que ele escolheu.

Pedro Lains, A terceira máscara, Público

A imagem foi roubada a um blogue que fotografa um país arruinado...

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Debater o Euro à esquerda



O Passa Palavra publicou ontem um texto que expõe um conjunto de argumentos de esquerda para recusar a saída do euro como estratégia política. Trata-se de um texto longo, sério e sistemático, que merece bem ser debatido, ainda que na minha opinião incorra nalguns erros e falácias, alguns dos quais não inocentes. Seguem-se alguns comentários sob a forma de pontos (que aliás é também a forma adoptada no texto do Passa Palavra) – uns em resposta directa ao que é dito nesse texto, outros relativamente a questões mais gerais mas por ele suscitados.

1. O estímulo às exportações é apresentado neste texto como sendo o alfa e o ómega das propostas de saída do Euro, incluindo as propostas de esquerda nesse sentido (entre as quais presumo que se incluam as que têm sido defendidas por alguns dos autores deste blogue, eu próprio incluído). Isso permite construir um tigre de papel contra o qual é possível argumentar que “aqueles que pretendem abandonar o euro pouco parecem importar-se com (…o facto dos…) financiamentos e créditos externos ficarem mais caros”; que quem defende a saída do euro “indica só as vantagens” e não as desvantagens da saída; e que os defensores da saída do euro “se esquecem de considerar (…) que uma moeda desvalorizada encarece as importações”. 

2. Ora, este tigre de papel simplesmente não existe. Em primeiro lugar, as desvantagens “económicas” da saída do euro (por oposição às questões mais estritamente "políticas" - chamemos-lhes assim para simplificar, reconhecida que é, por todos neste debate, a unidade do político e do económico) têm sido amplamente reconhecidas e referidas pelos proponentes de esquerda desta estratégia. Isso inclui tanto as desvantagens referidas no texto do Passa Palavra (encarecimento das importações e do financiamento externo) como outras que aí não são referidas (como a questão crucial da turbulência gerada no período de transição e das suas consequências). Em segundo lugar, e mais importante, o estímulo às exportações (ou, de forma mais correcta, a substituição do mecanismo de correcção dos desequilíbrios externos) não é sequer o objectivo principal, mas apenas um dos objectivos. O objectivo principal e mais geral é, isso sim, inverter a evolução da relação de forças entre o trabalho e o capital no contexto europeu, através daquela que se considera ser a melhor forma de o fazer, dadas as características, consideradas intrínsecas e irreformáveis, da arquitectura financeira europeia. Isto faz toda a diferença – e voltarei a esta questão mais abaixo. De qualquer forma, construir um tigre de papel que representa erroneamente a posição do adversário no debate é um mau princípio e contribui negativamente para os objectivos que o debate deve servir.

2. Da mesma forma, o recorrente recurso ao epíteto de “nacionalista” para qualificar as propostas que à esquerda têm sido feitas neste sentido é outra estratégia argumentativa condenável e desonesta. Tem tanto de “nacionalista” defender a saída da zona Euro como defender a saída da NATO . Trata-se de considerar que são estruturas irreformáveis que consagram e constrangem institucionalmente relações sociais e, em particular, relações de classe. Defender a saída da zona Euro ou da NATO não tem (ou não tem necessariamente) nada de nacionalista: a perspectiva é de classe e os objectivos são plenamente internacionalistas –  o que difere é a avaliação das vantagens e desvantagens de diferentes estratégias. Logo, como nota prévia adicional, importa sublinhar mais uma vez que todos ganharíamos com o fim do recurso a este tipo de estratégia argumentativa falaciosa, frequentemente utilizada no contexto deste debate, que aliás tende a reflectir a falta de melhores argumentos.

3. Dito isto, comecemos então por discutir a questão das consequências mais estritamente “económicas" da saída do Euro. Como já referi, o objectivo a este nível não é um mero “estímulo das exportações” à custa das quotas de mercado de outros países, mas sim a correcção dos desequilíbrios estruturais que a pertença à zona Euro tem acarretado em virtude das suas características intrínsecas. Esses desequilíbrios incluem com certeza o avolumar do défice externo (que depois se transmutou em dívida pública), mas também incluem a  evolução recente do padrão de especialização da economia portuguesa, que na era do Euro se tem caracterizado pelo afluxo do capital aos sectores mais rentistas e protegidos da concorrência externa. Para isso obviamnte contribuiu sobremaneira a integração do poder económico, financeiro e político (através das privatizações de monopólios naturais, das PPPs, do regime de (des)orientação do crédito, etc), mas as condições estruturais criadas pelo Euro tiveram também um papel central (através da conjugação do declínio da competitividade externa em virtude da sobrevalorização cambial implícita com o acesso facilitado ao financiamento centro-europeu a taxas de juro muito mais baixas). Ora, a pertença a uma zona monetária nestas condições (sem mecanismos de transferência orçamental compensatórios e, para mais, com uma taxa de câmbio face ao exterior da zona Euro acomodatícia dos interesses do capital financeiro centro-europeu) condena a periferia da zona Euro a um processo inexorável de declínio terminal, análogo ao declínio das regiões mais pobres e periféricas do interior de Portugal (que apesar de tudo até têm contado com transferências orçamentais relativamente mais substanciais, o que não tem obstado ao seu declínio).

4. Por isso, no que se refere estritamente à questão cambial, o objectivo não é simplesmente “aumentar as exportações”, mas sim permitir que os fluxos económicos e financeiros entre Portugal e o resto do mundo deixem de ter lugar em condições determinadas por uma relação cambial fixa, sobredeterminada pelos interesses do capital centro-europeu e tendente a agravar as distorções do padrão de especialização das periferias, passando antes a reflectir a co-evolução da produtividade e a desincentivar, nas periferias, a concentração do processo de acumulação nos sectores rentistas e protegidos da concorrência externa. Naturalmente, a desvalorização do “novo escudo” implicaria o aumento do custo do financiamento externo, o encarecimento das importações e a perda de poder aquisitivo face ao exterior – mas os autores deste texto, e os de outras críticas anteriores que têm sido feitas na mesma linha, esquecem-se, por sua vez, de assinalar que: i) o encarecimento relativo das importações (face às exportações) e do crédito externo são necessários para evitar o avolumar da dívida externa, que é precisamente uma das raízes principais da situação em que se encontram a economia e a sociedade portuguesas; e ii) a perda de poder aquisitivo face ao exterior afectaria todos os rendimentos, incluindo lucros, juros, rendas, etc., e não apenas os salários (como recorrente e falaciosamente tem sido sugerido por vários dos meus “opositores” neste debate). O que importa sublinhar é que, nas circunstâncias actuais, todos os ajustamentos são e serão feitos à custa da compressão salarial, única variável de ajustamento permitida pela arquitectura da zona Euro; num cenário de saída e desvalorização, o ajustamento afectaria transversalmente o poder aquisitivo externo dos rendimentos do trabalho e do capital.

5. Os autores deste texto referem-se depois, de forma algo confusa, ao grau de intensidade tecnológica das exportações portuguesas para argumentar que a saída+desvalorização não teriam a capacidade de corrigir os desequilíbrios externos, dado que o problema das exportações radica no perfil de especialização. Outros têm argumentado que não se vislumbram empresas e empresários susceptíveis de aumentar o volume de produção de modo a responder aos ganhos de competitividade induzidos por uma eventual desvalorização. Ora, é certo que o problema de fundo das exportações portuguesas é um problema de padrão de especialização, claro está; mas isso não impede que a desvalorização tenha efeitos sensíveis e imediatos, como aliás tem sido sobejamente provado pela evolução recente das exportações portuguesas – que, ao contrário do que o governo tem pretendido sugerir, não tem reflectido qualquer sucesso ao nível do efeito-competitividade da compressão salarial em curso mas sim a relativa (e relativamente excepcional) depreciação do Euro face ao resto do mundo ocorrida nos tempos mais recentes (tal como demonstrado pelo facto do aumento recente das exportações portuguesas dirigir-se ao exterior da zona Euro e não ao seu interior). Penso que esta "experiência natural" recente deveria ter já permitido que ultrapassássemos a discussão em torno deste ponto – as exportações e as importações respondem efectivamente à taxa de câmbio, independentemente dos segmentos das cadeias de valor ocupados pelas diferentes economias.

6. Em todo o caso, em termos “estritamente económicos” e como já referi, o objectivo da recuperação da autonomia monetária não é estimular as exportações à custa do vizinho, mas sim permitir que um outro mecanismo que não a compressão salarial funcione como variável de ajustamento face à co-evolução das economias, corrigindo os desequilíbrios de forma automática e menos lesiva dos trabalhadores e classes populares. Esse mecanismo é a taxa de câmbio – e tem a vantagem óbvia, face à alternativa, de não incidir exclusivamente sobre o trabalho mas sim transversalmente sobre os rendimentos do trabalho e do capital. Simultaneamente, constitui um incentivo ao descentramento das estratégias de acumulação dos monopólios naturais rentistas e protegidos da concorrência externa em que esta mesma acumulação tem vindo crescentemente a assentar.

7. Ainda no que se refere ao lado “económico” da questão, referem os autores que a desvalorização do poder aquisitivo externo das poupanças afectaria sobretudo os pequenos e médios capitalistas e os trabalhadores, pois são os que menos capazes são de transferirem as suas poupanças para o exterior. Quanto a isso, importa dizer que, como é evidente, qualquer estratégia de saída teria de envolver o estabelecimento de controlos de capitais. Mais do que isso, porém, é estranho que uma proposta de esquerda como a destes autores tenha como umas das suas preocupações centrais proteger as poupanças em detrimento dos rendimentos presentes, nomeadamente os rendimentos presentes do trabalho: é que, como será evidente para todos, a inflação (seja por que via for) tende a penalizar sobretudo o capital e as classes dominantes, que detêm obviamente uma parte proporcionalmente mais substancial das poupanças. Não é certamente por acaso que o controlo da inflação é o objectivo estatutário único do BCE, reflectindo o predomínio dos interesses rentistas. é evidente que a redenominação das poupanças em “novos escudos” envolveria uma perda real de poder aquisitivo dessas mesmas poupanças, mas: i) trata-se de uma perda de poder aquisitivo que fundamentalmente teria lugar face ao exterior, não a nível interno (excepto pela via indirecta da incorporação dos custos intermédios externos, sendo em todo o caso errado referir que uma hipotética desvalorização de 20% implicaria uma perda de poder de compra em 20%); ii) essa perda de poder aquisitivo reflectiria e implicaria desvantagem relativa para os detentores de poupanças face aos beneficiários de rendimentos presentes, mas a correspondência tendencial entre estes dois grupos, por um lado, e os pólos da relação capital-trabalho, por outro, é óbvia; iii) no contexto do processo de saída (e de nacionalização da banca, pelo menos parcial, que essa saída necessariamente envolveria), seria certamente possível (pois é uma questão política) ao Estado proteger os pequenos aforradores (impondo taxas de conversão dos depósitos diferenciadas, por exemplo); e (iv) em qualquer dos casos, esse seria um dos preços a pagar pela possibilidade de readopção de políticas económicas mais favoráveis ao trabalho e à inversão do declínio.

8. Um outro aspecto, ainda “económico”, não referido pelos autores deste texto, mas que outros críticos têm referido e com razão, é o da turbulência transitória gerada por uma eventual saída. Embora conheçamos precedentes históricos como o caso da Argentina (que inverteu o declínio económico e encetou um processo de crescimento sustentado e com redução da desigualdade apenas um (1) semestre após a desindexação da sua moeda face ao dólar), é verdade que a saída de Portugal da zona Euro teria implicações qualitativamente diferentes, pelo que o precedente não é perfeito. A bem da honestidade intelectual e política que tem de guiar este debate, reconheço prontamente que esse é um dos factores de incerteza que aqui estão em causa. Simplesmente, não conhecemos com rigor quais as possíveis consequências de curto prazo de um processo deste tipo, incluindo em termos de eventual ‘overshooting’ da taxa de câmbio e ataques especulativos associados, ou ainda da gestão do acesso no curto prazo ao aprovisionamento de bens alimentares e energéticos. É uma questão da maior relevância, certamente, e um domínio em que é necessária mais investigaçao, mais reflexão e mais debate. Devemos reconhecê-lo. Mas devemos também reconhecer que sabemos qual  é a alternativa actualmente em cima da mesa: o processo em curso de “ajustamento” permanente e sem fim à custa dos salários directos e indirectos, temperado, para os mais optimistas, por um horizonte longínquo de contra-movimento eficaz à escala europeia;

9. Comecei este texto sublinhando que a substituição da compressão salarial pelo ajustamento cambial como mecanismo de ajustamento face aos desequilíbrios induzidos pela co-evolução da economia portuguesa face ao resto do mundo é um objectivo importante em si mesmo, mas não é o fundamental. O fundamental é outra coisa: o desmantelamento de um colete-de-forças institucional que inscreve na pedra relações de classe profundamente desequilibradas em favor do capital e em detrimento do trabalho. A recuperação da autonomia monetária em Portugal e noutros países implicaria recolocar em cima da mesa questões que, no contexto da União Europeia, estão constitucionalmente vedadas: nomeadamente, a possibilidade de financiamento monetário dos défices públicos sem a agiota intermediação bancária actualmente imposta; ou a possibilidade de adopção de uma conjugação de políticas monetária e fiscal/orçamental que tenha como objectivo o pleno emprego e não apenas o controlo da inflação. Um novo Banco de Portugal que recuperasse a autonomia monetária teria de definir estatutoriamente este tipo de questões, que neste momento estão constitucionalmente blindadas  à escala europeia - e essa definição teria lugar no contexto de debates políticos nacionais em que a esfera do possível seria, indubitavelmente, mais alargada. Não suponho irracionalmente que tudo seria um mar de rosas e que, no contexto desse confronto, as pretensões dos trabalhadores e classes populares seriam magicamente atendidas. O que sei é que a esfera do possível seria mais alargada do que actualmente o é (e, a meu ver, inevitavelmente continuará a ser) à escala europeia; e também sei que teria lugar num contexto em que a hegemonia do discurso neoliberal que legitimou aspectos como a independência dos bancos centrais ou o controlo da inflação como objectivo único ou primordial sofreu já uma muito forte erosão – o que seria certamente favorável à adopção de regras menos exclusivamente favoráveis aos interesses do capital e, em particular, do capital financeiro.

10. Mais do que trocar acusações pueris de parte a parte, de “nacionalismo”, por um lado, ou “cumplicidade com o capital centro-europeu”, por outro, importa por isso reconhecer que o fundamental do debate é em torno de estratégia política. De uma forma geral, divergimos na avaliação das vantagens e desvantagens de diferentes estratégias, não nos objectivos ou alinhamentos de classe. Seria importante que isso fosse reconhecido e ficasse assente. Ora, é precisamente a esse nível, mais estritamente político, que reconheço mais valor aos argumentos do texto do Passa Palavra: em termos simplificados, em que espero que os autores se revejam minimamente, a tese veiculada é que a opção de saída do Euro, na medida em que provocaria perturbações e turbulência concentradas no tempo, seria mais favorável ao reforço da extrema-direita do que um cenário de declínio gradual (ainda que, a meu ver, sem fim). É uma tese defensável, mas apenas uma tese – faltam os argumentos que a sustentem. “Não há nada mais parecido com um fascista do que um burguês assustado”, escrevia há dias o Pedro Feijó citando Brecht, e essa é sem dúvida uma frase muito acertada – mas quais são os motivos que levam a crer que os temores da pequena burguesia e a susceptibilidade da classe trabalhadora à “falsa consciência” são maiores no contexto de um processo de convulsão súbito com um horizonte de recuperação à vista do que num contexto de declínio cumulativo em que não se vislumbre qualquer esperança? Recorrendo à analogia histórica, com todas as limitações que isso envolve, é muitas vezes referido que a ascensão do nazismo decorreu, como factor causal preponderante, da hiperinflação alemã; acontece é que isso não é verdade: a ascensão do nazismo ocorreu no contexto da imposição de políticas deflacionistas e austeritárias, não da convulsão hiperinflacionista que as antecedeu e legitimou.

11. Finalmente, como referi no artigo que escrevi no Le Monde Diplomatique deste mês, a ameaça do default  e da recuperação da autonomia monetária é a única arma negocial das periferias europeias. Renunciar incondicionalmente a essa possibilidade implica, implicitamente, aceitar o caminho da condicionalidade externa e do declínio das periferias sem fundo e sem fim (ou até que o contra-movimento se torne suficientemente robusto e eficaz). De que outro modo pretendem os opositores da estratégia de saída forçar os interesses representados na troika a aceitar a manutenção do financiamento da economia portuguesa num contexto de denúncia do memorando? Ou será que nem pretendem denunciar o memorando? Obviamente, não acredito que seja esse o caso (que não pretendam denunciar o memorando) – acho é que há uma incongruência flagrante e tacticamente desastrosa em pretender, simultaneamente, denunciar o memorando, libertar a economia e a sociedade portuguesas dos constrangimentos do endividamento e condicionalidade externos e, ao mesmo tempo, rejeitar à partida aquela que é a única arma negocial susceptível da obtenção de cedências mesmo se o objectivo for aquilo que, para mim, é em todo o caso profundamente irrealista: a obtenção gradualista de cedências que permitam chegar ao “Euro bom”.    

11. Resumindo tudo isto num conjunto reduzido de teses:
i) o debate à esquerda sobre o Euro e sobre a saída como estratégia tem de continuar e vai necessariamente continuar, pois é aí que, em última instância, radica uma parte muito substancial dos constrangimentos que pendem neste momento sobre os trabalhadores e classes populares europeus, nomeadamente nas periferias;
ii) de uma vez por todas, esse debate deve dispensar o recurso demagógico a epítetos como “nacionalista”, que apenas retiram clareza, dignidade e seriedade ao debate;
iii) a proposta de esquerda da saída como estratégia não tem como objectivo único ou sequer principal o “estímulo às exportações”, mas sim a recolocação no centro da luta política de questões que, neste momento e à escala europeia, estão determinadas e blindadas de um modo que favorece inexoravelmente o capital, sobretudo o capital financeiro, e o centro em detrimento da periferia;
(iv) relativamente à “gestão” dos desequilíbrios externos, o que está em causa é a escolha entre um mecanismo (compressão salarial, i.e. austeridade sem fim) e outro (ajustamento cambial), em que o segundo é relativamente menos lesivo dos interesses do trabalho e relativamente mais lesivo dos interesses do capital;
(v) importa que, de uma vez por todas e por uma questão de honestidade intelectual e política, se deixe de referir que a perda de poder de compra face ao exterior provocada pela eventual saída e desvalorização afectaria única ou principalmente os salários, quando na verdade afectaria transversalmente todos os rendimentos e é a alternativa a um mecanismo de ajustamento que, como já comprovado, assenta, esse sim, quase exclusivamente na compressão salarial;
(vi) importa também reconhecer que, pelo menos para já, desconhecemos com qualquer tipo de rigor os efeitos económicos e políticos da turbulência induzida no curto prazo por uma eventual saída;
(vii) finalmente, falta também uma discussão política mais séria, mais profunda e mais fundamentada em torno das implicações mais estritamente políticas de uma e outra opção, nomeadamente no que toca ao risco da ascensão da extrema-direita;
(viii) ou seja, o debate deveria reconhecer que a escolha estratégica é entre: a) a tentativa de reconquista e reforma das instituições que regulam o Euro e o seu funcionamento, implicando a hipótese segundo a qual a consolidação a nível europeu de um bloco social de base popular suficientemente poderoso para esse efeito é possível num período de tempo razoável (antes do declínio terminal e da espoliação generalizados) e permitindo aceitar a continuação dos retrocessos das periferias e das classes populares até lá; ou, em alternativa, b) a consideração que essa consolidação, reconquista e reforma não são possíveis em tempo útil, pelo que a melhor estratégia passa pela saída, apesar dos seus custos, mas certamente abrindo caminho a formas futuras de cooperação internacionalista a todos os níveis, incluindo o da integração monetária, desde que em moldes favoráveis às pessoas e não ao capital;
(ix) ambas as opções estratégicas envolvem incerteza: a opção da permanência, no que diz respeito aos tempos e possibilidades de sucesso da consolidação de uma resposta popular europeia efectiva; a opção da saída, no que diz respeito à magnitude da turbulência de curto prazo e às suas consequências; ambas as opções, no que diz respeito à maior ou menor propensão para a emergência de reacções políticas adversas, especialmente no que se refere ao risco de reforço da extrema-direita. Se assim é, é nestes pontos que o debate deveria desejavelmente incidir – não no retorno recorrente a falácias ou argumentos já falsificados.
(x) independentemente de tudo isto, no contexto da táctica política actual, é um erro colossal por parte da esquerda aplicar-se com tamanho denodo na rejeição da única arma negocial relevante que pode permitir “suavizar” a austeridade sem fim e mitigar os retrocessos dos trabalhadores e classes populares actualmente em curso. No mínimo, tem de servir como ameaça – rejeitar esta possibilidade à partida é dar um tiro no pé em termos dos interesses de classe que se pretende defender.

Prossiga então o debate em torno do que nos divide - e prossigam então todas as lutas em torno do muito que nos une.