quarta-feira, 30 de junho de 2021

Sempre de regresso

A economia keynesiana foi formulada como uma defesa contra o fascismo (...) o keynesianismo também foi formulado para impedir a guerra e permanece uma das grandes ironias trágicas da história intelectual que a catástrofe que Keynes passou duas décadas a tentar evitar tenha sido o acontecimento demonstrativo da viabilidade das suas ideias económicas no palco mundial [por via da economia de guerra com pleno emprego]

Deixo uma pérola de um livro por traduzir cheio delas. É um pensador que está sempre de regresso, como já aqui defendi. Graças ao magnífico trabalho de tradução de Manuel Resende, A Grande Crise e Outros Textos e a Teoria Geral estão disponíveis entre nós há mais ou menos uma década. Há menos tempo, temos os primorosos Ensaios em Persuasão, numa tradução irrepreensível de Ana Sampaio. Se sublinho as traduções tardias é porque em economia política há para aí muita coisa muito mal traduzida. Sugiro que se siga As Consequências Económicas da Paz e este O Preço da Paz, da autoria de Zachary D. Carter, sobre o processo de uma vida plena. As ideias com lastro histórico contam.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Triste e ricamente pobres


Esperava-se que a criação do fórum das grandes empresas nacionais, com o solene título anglófono de Business RoundTable - traduzido à letra plebeia para Mesa Redonda dos Negócios - fosse proporcional ao discernimento e clareza das propostas. Mas não. 

A entrevista da principal figura desse fórum ao jornal Público é, antes, um aproveitamento político para, à pala dos 150 anos de Alfredo da Silva, se guindarem aos seus ombros de pedra certos empresários sem estatura nem ideias que não seja a de receber uns dinheiro do Estado - sob a capa da sua nova função facilitadora - para poderem vender empresas a interesses estrangeiros, empochando a mais-valia, muito provavelmente sem pagar impostos pelas mais-valias. A entrevista começa por ser um elogio ao grupo industrial CUF muito para lá da sua figura primeira: 

"A minha família considera que é importante viver os seus valores, da resiliência, inovação, da exigência e da excelência", afirma Vasco de Mello. 

Longe, ficam as cumplicidades estabelecidas entre o grupo, a sua família e o regime do dito Estado Novo, a forma como o Estado era, nessa altura, facilitador dos interesses de uma minoria de empresários, protegidos pela polícia política e pelas barreiras à entrada de competidores através do condicionamento industrial, cúmplices, reverentes e ao mesmo tempo manietados pelo regime que os legitimava. Como dizia alguém, uma ditadura terrorista do capitalismo monopolista. Veja-se este maravilhoso filme dos arquivos da RTP, sobre a comemoração do centenário da fundação da CUF,  onde - como agora! - se passeia o cortejo político do regime, com a família a receber - talvez com enfado e calor (2m50) - a primeira figura do Estado, sob o olhar frígido de Alfredo da Silva.

 

E veja-se uma das queixas apanhada de forma desgarrada no memorando da Frente Patriótica de Libertação Nacional, dirigido à 51ª Conferência Internacional do Trabalho, a pedir a expulsão dos delegados fascistas, tal como já acontecera na 49ª (junho de 1965) e 50º Conferências (Junho de 1966), para provar como o regime salazarista protegia certos interesses privados e atacava o direito de associação sindical, reprimindo os trabalhadores e comprimindo salários:

Em Novembro de 1966, tiveram lugar "eleições" na CUF, um dos mais importantes monopólios estabelecidos em Portugal e nas colónias; eram assim designados os delegados à C.I.E, comissão criada pela administração e que agrupa os representantes desta e dos trabalhadores. De facto, nesta comissão, apenas os delegados patronais dispõem do direito de se exprimirem livremente. Assim, Daniel Coelho, representante dos trabalhadores, que tinha tomado a sério o seu cargo, foi expulso da empresa, acusado de ter incitado os trabalhadores à greve. As questões relativas a salários não podem ser abordados nas reuniões da C.I.E.: estas questões - diz a administração - não têm qualquer relação com o "bem estar" social dos trabalhadores.

Mas mais interessante na entrevista é a comparação que fica entre a figura do industrial Alfredo da Silva, que representava 5% do PIB nacional, e a do seu bisneto "presidente dos conselhos de administração da José de Mello e da Brisa, e da direcção da Fundação Amélia de Mello". No grupo Mello, a única significativa unidade industrial do grupo é a firma Bondalti (que representou em 2019 cerca de um sétimo dos resultados do grupo). O resto, é serviços de saúde CUF (de onde vieram 40% dos proveitos operacionais em 2019 assentes nos fundos da ADSE) e a gestão de autoestradas pela firma Brisa (43% dos resultados operacionais de 2019), de cujo capital, aliás, o grupo vendeu em 2020 uma parcela de 40% (ficou apenas com 17%!) a um consórcio composto pela APG (gestora do fundo de pensões dos funcionários públicos e do sector da educação da Holanda), o National Pension Service da República da Coreia (supõe-se que seja da Coreia do Sul...!) e o fundo Swiss Life Asset Managers da seguradora suíça do ramo-vida. 

Venere-se o grande industrial, mas lave-se a cara dos empresários vendedores de activos nacionais.  

Sobre o "momento único" que se vive, Vasco de Mello tem poucas ideias.

Conversa para ir ao pote

Na recente apresentação de um livro a defender, de forma velada, a privatização do SNS (lá iremos, num outro post), para pôr o Estado a garantir os lucros do privado, fechando os olhos às práticas de seleção dos doentes que mais lhe conv€nham (despachando os outros para o SNS), Passos Coelho retoma a ladainha das «reformas estruturais», considerando que a da Saúde é ainda «mais prioritária do que a da Segurança Social».

Para que as coisas não pareçam o que são - afinal de contas trata-se novamente de «ir ao pote» - Passos exibe uma profunda indignação com o alegado facto de «a esquerda» estar a «desqualificar desta maneira» o Serviço Nacional de Saúde, contrariando «a direita» que, coitada, está «sempre a tentar salvar a situação e ver se lhe consegue dar sustentabilidade».

Talvez Passos Coelho nunca se tenha apercebido, mas desde 1982 (três anos após a criação do SNS com os votos só da esquerda), apenas o seu Governo, em versão Passos-Portas, inverteu a tendência de investimento no Serviço Nacional de Saúde ao longo dos últimos 40 anos, impondo-lhe cortes na ordem dos 1,3 mil milhões de euros (entre 2011 e 2015), ao mesmo tempo que ia tratando da contratualização com privados. De facto, se a despesa do SNS rondava os 975€ per capita em 2010 (média dos últimos três anos), esse valor cai para 910€ em 2015, recuperando a trajetória de investimento em 2016, para atingir os 1.085€ em 2019. Deve ser a isto que Passos Coelho chama «desqualificação», pela esquerda, do Serviço Nacional de Saúde.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Ainda sobre as «políticas do passado que não funcionaram»

Esta semana, na apresentação da BRP, Cláudia Azevedo sublinhou «a "urgência de rutura" com o atual modelo de ensino nas escolas» e nos cursos profissionais e técnicos, lembrando «que Portugal ocupa a última posição na Europa no que respeita ao número de pessoas com o ensino secundário completo». «Temos de mudar isto e não é com políticas do passado», acrescentou a CEO da SONAE, para quem «as políticas do passado não funcionaram».

Já procurámos chamar aqui à atenção para o progresso notável que o país fez, em menos de duas décadas, na melhoria das qualificações dos portugueses. De facto, se em 2002 apenas cerca de 21% da população com idades entre os 25 e os 64 anos tinha completado o ensino secundário, esse valor passa a rondar os 55% em 2020. Ou seja, a população com ensino secundário mais que duplica, em termos relativos, no período considerado.

Se este avanço torna muito difícil que se diga que «as políticas do passado não funcionaram», essa dificuldade é ainda maior quando se constata que entre 2002 e 2019, à escala da UE28, apenas Malta (que passa de 18% para 56% de população com o ensino secundário) consegue um resultado melhor que o de Portugal. Para «políticas do passado que não funcionaram» convenhamos que não é mesmo nada mau, devendo talvez pensar-se duas vezes antes de falar em «rutura urgente» com as políticas de recuperação do défice de qualificações que têm vindo a ser seguidas.


Assinale-se ainda que, como é natural, são os países com maior défice de escolarização que dispõem de mais margem para progredir (Malta e Portugal, mas também Espanha e Itália, que partem igualmente de patamares menos favoráveis). Mas não se pense que esta questão se coloca relativamente aos países de Leste, que nos habituámos a equiparar - em termos de integração europeia - aos países do sul europeu. Ao contrário do que se possa supor, a maioria destes países já se posicionava, em 2002, acima da média europeia. O que nos diz muito sobre a diferença que faz ter sistemas públicos de educação robustos (e não tardios, como sucede no caso português), de pendor gratuito e universal, para a elevação dos níveis de escolarização.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

A mesa redonda de certos negócios

Em 1972, um grupo de grandes empresas norte-americanas criou a Business Roundtable, um grupo de pressão capitalista, parte de uma reacção política anti-sindical mais vasta, destinada a restaurar as prerrogativas regulatórias do capital, ameaçadas pela militância laboral num contexto de compressão dos lucros, favorecendo igualmente a desregulamentação, a abertura de mercados e a redução dos impostos. O neoliberalismo não se reduz a uma organizada reacção de classe, mas não pode ser compreendido sem esta. 

Meio século mais tarde, o contexto também por cá é outro, mas um grupo de grandes empresas portuguesas imita este modelo norte-americano, que de resto tem traduções europeias há muito, dando-lhe um nome muito português: Business Roundtable Portugal. Mesa redonda dos negócios em Portugal soaria mal, dando a ideia correcta: trata-se agora de levar ainda mais longe a transmutação de poder económico em poder político, de aumentar ainda mais a influência do grande capital à mesa do orçamento e da definição das regras, de resto, e para seu grande sossego, cada vez mais determinadas lá fora. 

Não por acaso, o seu Presidente é Vasco de Mello, um dos principais capitalistas da doença em Portugal, um sector que depende de “um Estado facilitador”, a expressão programática é sua. Se depender desta gente, Portugal irá para um sistema de saúde à americana, injusto e ineficiente, mas que dá muito dinheiro a ganhar. E a saúde é só um exemplo, embora um exemplo que vai pesar cada vez mais no PIB. 

“Desenharemos propostas a pensar em Portugal e não nas empresas dos associados”, afiança o homem- cadeira (chairman) da CUF. Em Portugal e na saúde dos portugueses, claro.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Ignorância ou má fé?

Entre vários comentários no mesmo sentido, circula nas ditas redes sociais um gráfico (à esquerda, na imagem seguinte) que alegadamente regista «o resultado das políticas do governo do PS na área da educação», a partir da ordenação dos países da UE28 segundo a percentagem da população sem o ensino secundário (com Portugal a surgir em último lugar).


Convenientemente, o dito bonequinho não faz qualquer referência ao facto de o nosso país ter feito enormes progressos nesta matéria desde o 25 de Abril e em particular nas últimas duas décadas. Para que se tenha uma ideia (gráfico da direita, na imagem), em 2002 apenas cerca de 21% da população portuguesa com idades entre os 25 e os 64 anos tinha completado o ensino secundário (ou seja cerca de 1 em cada 5). Em 2020 passou-se para um valor de 55% (ou seja, mais de metade). Se a distância face à UE27 rondava os 45 pontos percentuais em 2002, dezoito anos depois passa para uma diferença de apenas 24 pontos percentuais. É muito? É. Mas é uma quebra para quase metade da diferença nos separava da Europa em 2002.

Se desconhecer este avanço na escolarização da população pode ser isso mesmo, ignorância, já a alarvice de associar as «políticas do PS» à situação de desvantagem que persiste só pode ser má fé. De facto, a melhoria da percentagem de população com o ensino secundário foi continua e atravessou diferentes governos, do PS e do PSD, ainda que com diferentes ritmos de progressão. Mesmo quando, pela tesoura de Nuno Crato, e numa lógica de puro desinvestimento, o número de adultos inscritos no ensino secundário sofreu uma quebra de 77% (com a redução de cerca de 96 mil para 22 mil, entre 2011 e 2014).

Adenda: Um dos problemas destas técnicas de manipulação e deturpação é a facilidade com que permitem espalhar ideias falsas e simplistas (ou apenas referir, não por acaso, parte da verdade). A ponto de se ouvirem figuras como Claúdia Azevedo (CEO da Sonae) dizer coisas como: «o que vemos é que as políticas do passado não funcionaram, porque estamos em último [em muitos critérios] a nível europeu», a propósito, justamente, do défice de qualificações que Portugal continua a ter. Sendo certo que há ainda muito caminho por fazer, a sério que as políticas públicas de aumento das qualificações da população portuguesa não têm funcionado?

O direito a estar calado...

Público, 23/6/2021


A ministra proferiu aquela frase, mas a frase tem mais conteúdo. Disse a ministra durante uma conferência a propósito do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho: 

“É inaceitável termos situações de trabalho temporário que duram décadas e é evidente para todos que temos de encontrar formas de garantir que isso não aconteça”. Na sua opinião, a pandemia veio tornar ainda mais evidente a existência de “dois mundos paralelos” no mercado de trabalho, pondo “completamente a descoberto” a situação dos trabalhadores informais e precários, o que requer mecanismos mais fortes de combate à segmentação laboral. 

A ministra do Trabalho deveria ver mais séries policiais. Sobretudo naquela parte em que os polícias detêm um suspeito e lhe dizem:

Tem o direito de permanecer em silêncio e recusar-se a responder a perguntas. Qualquer coisa que diga pode ser usado contra si em tribunal. Tem o direito de consultar o advogado antes de responder à polícia e de ter um advogado presente durante os interrogatórios, agora ou no futuro. 

É que, senhora ministra, tem sido o grupo parlamentar do PS a viabilizar esse permanente uso abusivo da figura legal do "trabalho temporário". Tem sido o grupo parlamentar do PS a chumbar todas as propostas que visam cercear de alguma forma esse uso abusivo. Foi o grupo parlamentar do PS que aprovou em 2019 um pacote supostamente contra a precariedade no trabalho em que se prevê a possibilidade dos contratos de trabalho temporário se renovarem... por seis vezes! Um pacote que, aliás, a senhora ministra tem elogiado nas sessões parlamentares. Tem sido o grupo parlamentar do PS - juntamente com a direita -. que, ao longo das últimas décadas, tem viabilizado esse aborto legal que é o trabalho temporário. Veja lá que foi um ex-dirigente do PS - Vitalino Canas - a pessoa escolhida para provedor - não dos trabalhadores com contratos de trabalho temporário - mas das empresas de trabalho temporário, cuja legalização representou mais um dos passos da privatização de agências de emprego, as quais se mostram sempre tão relutantes, em litígios laborais, em contratar permanentemente um trabalhador que permanentemente execute trabalhos temporários, isso já não falando da relutância da empresa beneficiária do "trabalho temporário" em contratá-lo. É o próprio site do IEFP - que é o organismo público responsável pela política de emprego e formação tutelado pela senhora ministra - que as propagadeia, como às agências privadas de emprego

Se há alguma segmentação no Trabalho - tese bastante polémica e que nem une os especialistas - muito se deve ao papel que o PS tem tido desde 1976 nas questões laborais.

Mas eu percebo-a, senhora ministra. Essa vai ser a linha que o Governo vai propor à oposição de esquerda para melhorar a legislação laboral. De repente, o PS vai acordar para o problema - bem vindo seja! -  e vai encontrar um "culpado" de tudo o que está mal na legislação laboral. E vai ser o trabalho temporário.

Convém lembrar que, ao longo de décadas mas sobretudo nas duas últimas, se ergueu todo um edifício legal - que vai desde a desprotecção do emprego (de que as empresas de trabalho temporário são um dos alicerces, tal como o falso trabalho por conta própria), o embaratecimento do trabalho - seja pela desvalorização do trabalho suplementar, pelo fim do descanso por trabalho sulementar, pela depreciação do valor do trabalho ao prolongá-lo para lá dos limites legais e sem pagamento adequado, pela desarticulação da rede de proteção da contratação colectiva, pelo torpedear dos mínimos legais ao aceitar que a contratação colectiva possa prever normas mais recuadas que a própria lei - o embaratecimento do despedimento, a redução na protecção no desemprego, tudo mantido com os votos do PS e que tem levado a que tenha caído o peso dos salários no produto criado e aumentado a  pobreza entre trabalhadores. A chamada desvalorização interna. 

O problema não é, pois, de "combate à segmentação laboral", mas de fazer desaparecer as condições legais que tornam a precariedade viável e cada vez mais generalizada, num verdadeiro contrato único de trabalho indigno.

Cá estaremos, pois, para ver se que forma é que o PS vai querer rever esse edifício e como vai afrontar as empresas - nomeadamente as da sua anterior área de tutela no Governo (o turismo) - que usam e abusam dessas figuras contratuais e dessa desvalorização salarial. Ou será que vai ser apenas para as estufas alentejanas?

terça-feira, 22 de junho de 2021

Dependência exemplar


O projecto de lei que pretende estender as moratórias de crédito para sectores mais afectados pela crise provocada pela pandemia de covid-19 foi ontem
[sexta-feira] aprovado no Parlamento, em votação final. Mas, apesar dessa aprovação, que contou apenas com a abstenção do PS, o diploma só terá efeitos práticos se a Autoridade Bancária Europeia (EBA, na sigla em inglês) aceitar a extensão das regras que estiveram subjacentes à criação das moratórias, e, até agora, esta entidade não deu qualquer sinal nesse sentido.

O fim das moratórias, como se indica num estudo, é um grande risco. A sucursal de Frankfurt, através do seu governador, sinalizou ontem que está contra a extensão das moratórias. Confirma-se que os mecanismos europeus da dependência sem fim reduzem os efeitos práticos da soberania democrática. 


segunda-feira, 21 de junho de 2021

Querido diário - uma coligação coesa que quer despedir professores


Ainda sobre produtividade e os salários que os Pingo Doce desta vida meteram ao bolso. E mais um desenho.

Ainda acerca da Pordata.


Desta feita, a diferença assinalada pelas barras verticais que medeiam as variáveis produtividade e salários reais representa a componente de salários apropriada pelos Pingo Doce desta vida, numa evolução histórica que é uma excelente ilustração da luta de classes e da vitória (sempre provisória, claro) do capital.

Ou seja, para que a repartição entre capital e trabalho do rendimento gerado pelo país se mantivesse, por exemplo, em 2019, ano da crise pandémica, na proporção de 1999, os salários reais deviam ter crescido 18,8% relativamente a 1999 e não os 3,6% que efetivamente crescerem. A diferença entre estes números representa o valor da expropriação do capital sobre o trabalho. Para não dizer roubo.

Que a Pordata mostre todos os ângulos desta realidade, mas não compare a evolução destas duas variáveis não constitui qualquer surpresa. A fabricação do necessário consentimento assim o obriga e quem paga, manda.

(1ª parte, aqui)

Ainda a produtividade. Agora com desenhos.

A propósito do post do Nuno Serra, deixo-vos quatro parágrafos rápidos e dois desenhos.

Projetando uma das medidas de produtividade mais frequentemente utilizadas, o PIB a preços constantes de mercado por pessoa empregada a tempo inteiro ou equivalente, é fácil de ver que, desde 1995, a produtividade cresceu mais em Portugal do que na Alemanha, no Luxemburgo e do que na média da Zona Euro.


Se acrescentarmos a Irlanda à comparação, o que vemos? Que a evolução da sua produtividade é de tal modo díspar que a projeção gráfica se torna praticamente ininteligível.


Quer isto dizer que os trabalhadores irlandeses se tornaram comparativamente muitíssimo mais produtivos?

Não. Significa, em grande medida, que, em resultado do dumping fiscal promovido por aquele país, empresas como a Google ou Apple fogem aos impostos sediando ali a sua faturação independentemente do lugar onde esta foi efetivamente originada e que, no processo, empolam artificialmente o PIB irlandês, enquanto, simultaneamente, criam pouco ou nenhum emprego.

E o Luxemburgo? Porque caiu ali a produtividade a pique em 2007?

Digamos que o negócio de lavar dinheiro tende a não correr tão bem quando parte dos mafiosos e dos especuladores financeiros internacionais se confronta com a possibilidade do juízo final e todos os recursos até ali sonegados ao controle público tem de retornar aos seus balanços para lhes devolver uma aparência de respeitabilidade e conformidade contabilística.

(2ª parte, aqui)

Alguém explica à Pordata, pela enésima vez, que produtividade não é isto?

Ontem foi Dia Mundial da Produtividade. Para assinalar a data, a Pordata dividiu o valor do PIB pelo total de horas trabalhadas no nosso país concluindo que «em Portugal cada hora de trabalho cria, em média, uma riqueza de 24€». E acrescentou, para contextualizar, que «no Luxemburgo e na Irlanda é mais de 90€». Num segundo post, também no facebook, a base de dados da Fundação Pingo Doce voltou a esses cálculos e concluiu que «a produtividade [em Portugal] está mais longe da média europeia que em 1995». Num terceiro post (tudo leva a crer que passaram o domingo nisto), assinalou que «Portugal é o 22º país da UE com menor produtividade do trabalho por hora (em paridade de poder de compra)».

É verdade que desta vez a Pordata já não responsabilizou o «desempenho dos trabalhadores» pela baixa produtividade, como fez há pouco mais de um mês, para assinalar o 1º de Maio. A ideia, contudo, está lá, intacta: por iliteracia conceptual ou enviesamento ideológico, parece que na Pordata não se sabe (ou se finge não saber), que a produtividade tem muito pouco que ver com o volume de horas trabalhadas e, portanto, dessa forma, com o «fator trabalho» (como dizia o outro).

Dado que a Pordata insiste, nós também. Relembrando que «os países da UE em que se trabalha menos horas por semana são os que têm níveis de produtividade mais elevados» (como assinalou aqui o Vicente Ferreira), e que - para citar o Ricardo Paes Mamede (ver aqui e aqui) - os baixos níveis de produtividade em Portugal se explicam por fatores bem mais relevantes que as horas trabalhadas, incluindo «a qualidade dos equipamentos e das máquinas utilizadas na produção, as fracas competências dos gestores, os baixos salários, os níveis de educação, o tipo de produtos em que nos especializamos, a falta de investimento em I&D», entre outros. Porque «a produtividade é um conceito que remete para a relação entre factores produtivos e valor acrescentado pela produção».

Nada impede que se divida o valor do PIB pelo número de horas trabalhadas. Só que a isso não se chama produtividade, como quer fazer crer a Pordata. Porque eu também posso relacionar o volume de precipitação pela superfície de diferentes países. Mas isso não me habilita a dizer quais são os mais e menos montanhosos.

domingo, 20 de junho de 2021

Querido diário - estratégia consistente


Querido diário - A essência da austeridade

Um dos conceitos mais riscados na esgrima ideológica sobre a austeridade - cortes de despesa pública e aumento de impostos para provocar uma recessão - é o de que foi necessária por causa da crise da dívidas soberanas. Os Estados teriam gastado demais e todos tinham de pagar por isso. No entanto, a realidade é outra. Um euro coxo gera uma correlação entre superávites no centro e défices e dívida na periferia ligadas a estagnação económica. A dívida - pública, mas sobretudo privada - dos países da periferia sempre foi apetecível ao centro pelo seu risco e, consequentemente, pelas suas altas taxas de remuneração. Quando os mercados forçaram níveis de extorsão - sem resposta ou protecção por parte do BCE - e se deu a ruptura, esses créditos tornaram-se tóxicos. Grandes investidores, como  foi o caso de bancos franceses e alemães, ficaram com lixo nas mãos. Solução: 1) os bancos assumirem o prejuízo e o  problema passava a ser  francês e alemão; 2) evitar a reestruturação da dívida dos devedores para que os credores não perdessem dinheiro (Passos Coelho esteve nesse lado, recordam-se? "as dívidas devem ser  pagas"); 3) forçar a "ajuda externa" para que esses créditos privados passassem a ser dívida pública, para que fossem os povos a pagar os investimentos especulativos feitos pela banca francesa e alemã. Para isso se fez ... a austeridade. E toda a direita esteve aí, acusando os portugueses de terem "vivido acima das suas possibilidades"!

Artigo publicado no jornal Público a 17/6/2013

Escutar Francisco

«Se o trabalho é uma relação, então tem que incorporar a dimensão do cuidado. Porque nenhuma relação pode sobreviver sem cuidado. (...) E nesta dimensão do cuidado entram, em primeiro lugar, os trabalhadores. Há uma pergunta que devemos colocar, no quotidiano: como é que uma empresa cuida dos seus trabalhadores?
(...) Recordo aos empresários a sua verdadeira vocação: produzir riqueza ao serviço de todos. (...) Sempre a par do direito à propriedade privada está o princípio mais importante, que a precede: o princípio da subordinação de toda a propriedade privada ao destino universal de todos os bens da Terra. E portanto o direito de todos ao seu uso. Às vezes, quando falamos de propriedade privada, esquecemos que é um direito secundário, que depende deste direito primordial, que é o destino universal dos bens.
»

Da intervenção do Papa Francisco na 109ª Conferência da OIT.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Querido diário - Alguma coisa mudou?


Neoliberalismo duplicado


1.
O Presidente do Tribunal de Contas declarou, do alto da ridícula pose imperial com que se deixou fotografar no Público, que “onde há muito dinheiro público há riscos de corrupção”. O ideal neoliberal é haver pouco, portanto. Não se preocupem que, para lá da propaganda, não há muito. À boleia disto, tem sido todo um programa de entrada do capital privado nos serviços e infraestruturas públicas, que de resto vai continuar. É claro que não passa a barreira do preconceito pensar que onde há muito “dinheiro privado”, muito concentrado, há transmutação do poder económico em poder político, ou seja, corrupção, cujos mecanismos neoliberais são relativamente óbvios há muito anos. 

2. O Governador do Banco que não é de Portugal, correia de transmissão do soberano monetário que está em Frankfurt, Mário Centeno, confirmou a orientação neoliberal que declara irreversíveis as conquistas laborais do patronato ao tempo da troika, agora em nome da “estabilidade”. Os neoliberais são conservadores, mas só depois de vencerem. E venceram, para desgraça de um país onde o excessivo poder patronal assegura a desigualdade estrutural e a estagnação. Na Flórida da Europa, a força de trabalho deve ser uma mercadoria descartável. E não se esqueçam que numa economia monetária de produção quem controla a moeda, controla politicamente muito do que é essencial.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Passos Coelho a pensar nos pobres

 

Entrevista dada, em Setembro de 2012, por Pedro Passos Coelho sobre as vantagens de mexer na TSU. 
 
Foi uns dias depois de querer aumentar a TSU dos trabalhadores de 11% para 18% (cortando os seus salários líquidos em 7%) e reduzir a das empresas de 23,75 para 18%... mas também dois dias antes da manifestação nacional que juntou nas ruas mais de um milhão de portugueses, o que o forçou a recuar na medida.
 
Vale a pena ouvi-la outra vez para julgar o grau de insensibilidade social, de falta de contacto com o mundo das pessoas, de Pedro Passos Coelho:
A medida "não tira aos pobres para dar aos ricos", "julgo que não" é uma experiência laboratorial: é "uma medida necessária", porque "actua a longo prazo sobre a competitividade do país e das empresas, na medida em que coloca, de facto, os custos do trabalho mais baixos em termos permanentes. (...) Esta medida tem um objectivo que não é trivial que é o de dar, a médio e longo prazo, maior competitividade às empresas." (14m).  


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Situação de risco


A moratória de crédito é uma medida excecional de apoio a empresas e famílias que teve o propósito de mitigar os impactos económicos e financeiros da contração da atividade económica decorrente da pandemia. No final de abril de 2021, o montante total de empréstimos abrangidos por moratória era de cerca de 38 mil milhões de euros, correspondendo a cerca de 31% do montante total dos empréstimos bancários, com os empréstimos a empresas a representarem cerca de 61% e a famílias 39% do total destes empréstimos. A moratória de crédito procurou garantir a continuidade do financiamento a empresas e famílias e a prevenção de um eventual incumprimento do crédito resultante da redução da atividade económica através do adiamento temporário do pagamento das prestações (do capital e juros ou apenas do capital) de um empréstimo. 

Como se irá procurar mostrar, o programa de moratórias de crédito teve especial relevância em Portugal comparativamente à generalidade dos países europeus. Este programa e, em menor grau, as linhas de crédito com garantia pública, em conjunto com outras medidas, permitiram escudar temporariamente empresas e famílias dos efeitos mais dramáticos da crise (isto é, insolvências e desemprego), tendo especial relevância em Portugal comparativamente à generalidade dos países europeus. 

O fim das moratórias de crédito em setembro próximo, em simultâneo com o término de outras medidas extraordinárias de mitigação dos efeitos da pandemia, acarreta riscos elevados. Partindo de uma posição financeira já de si frágil tendo em conta o seu elevado nível de endividamento, empresas e famílias acumulam um maior volume de dívida que, num cenário realista de recuperação apenas parcial da atividade económica, não será fácil pagar, e que compromete o setor bancário nacional. 

Na medida em que as empresas e famílias que mais recorreram à moratória do crédito correspondem aos segmentos mais afetados pela pandemia, designadamente empresas e trabalhadores do setor do alojamento e restauração, a recuperação da sua situação financeira dependerá da recuperação da atividade económica destes setores, o que torna a economia de novo dependente de um setor com reduzido valor acrescentado assente em trabalho precário e salários baixos. Assim, as políticas de apoio aos setores mais afetados deverão ser acompanhadas por políticas de estímulo aos setores com maior efeito de arrastamento económico.

Resumo do barómetro das crises do Observatório das Crises e Alternativas do CES - A moratória de crédito a empresas e famílias: alívio presente, riscos financeiros futuros -, escrito em co-autoria com Catarina Frade e Nuno Teles e que foi hoje lançado.

Habitação: bons ventos de Espanha, pântano e distopia em Portugal


Em Espanha, está iminente um acordo entre o PSOE e o Unidas Podemos sobre a lei da habitação que prevê o congelamento de rendas em áreas com maior pressão dos custos habitacionais. Embora o acordo ainda não esteja fechado, a classificação dessas áreas terá por base o aumento das rendas nos anteriores e a sobrecarga dos agregados familiares com custos habitacionais face à média nacional. A lei contará ainda com o importante critério de estabelecer que, nestas áreas, o senhorio terá de ter em conta a renda cobrada ao inquilino anterior para propor a renda ao novo inquilino, sendo que a atualização não pode ultrapassar o índice de inflação. Como é evidente, o fantasma das rendas muito baixas, que coloca em causa a manutenção dos imóveis, há muito que deixou de ser a questão. Agora, trata-se apenas de conter taxas de rentabilidade exorbitantes que colocam em causa o direito à habitação dos cidadãos. 
 
Isto não será a solução para os graves problemas dos custos habitacionais que afetam Espanha e Portugal. Dificilmente o problema poderá ser resolvido sem conter a financeirização da habitação, com o imobiliário a ser cada vez mais transacionado como um ativo à escala internacional, criando um desajustamento entre os preços praticados e os rendimentos locais, e sem a aposta massiva em habitação pública. 
 
Mas é um primeiro passo. Em muitas cidades espanholas, como em Berlim, onde o turismo massificado e a compra de imóveis por agentes financeiros internacionais são massivos, esta é a solução de curto-prazo que permite aliviar a vida das pessoas e pôr termo aos custos habitacionais que as expulsam das suas cidades e impedem os jovens de terem vidas autónomas. 
 
Por cá, pelo contrário, andamos entre o pântano e a distopia. 
 
O pântano porque António Costa (com os característicos assomos de esquerda que acontecem aos primeiros-ministros socialistas antes dos congressos) veio prometer habitação condigna para todos em 2024. É assim como ter a casa a arder e prometer a vinda dos bombeiros dentro de um mês. É óbvio que a oferta pública de habitação não se aumenta no curto-prazo, mas muito mais poderia já ter sido feito. António Costa parece esquecer-se, mas é primeiro-ministro desde 2015, com uma das mais taxas de investimento público da Europa em todos os orçamentos. Já no início do seu mandato isso era evidente e considerar que o problema se resolve apenas no contexto do PRR é tardio. 
 
Soma-se a isto a constatação óbvia de que, ao contrário de Espanha, Portugal não está disposto a fazer nada que trave a subida dos custos da habitação no curto-prazo, através de um programa ambicioso de controlo de rendas. Isso seria colocar em causa os interesses privados no imobiliário e isso é coisa que este governo não está disposto a fazer, preferindo que a crise alastre e o pântano se adense, numa amálgama de população mais velha expulsa das suas casas e de uma geração para quem sair de casa dos pais é um luxo. 
 
E o problema será adensado nos próximos meses. O governo olha a retoma do Turismo com os olhos vidrados de um viciado que aguarda o há muito esperado chuto de heroína, deslumbrado num modelo de desenvolvimento para o qual não vê alternativa, mas nunca menciona alguns dos efeitos externos negativos que deveriam ser óbvios. Designadamente, que as habitações de alojamento local, que se tinham voltado para o aluguer de longo-prazo durante a crise pandémica, vão de novo voltar ao arrendamento de curta duração, retirando oferta para o arrendamento das famílias e colocando uma pressão adicional nas rendas. 
 
No espaço mediático, tudo isto é apresentado de forma distópica, porque apesar do governo não colocar nunca em causa os robustos interesses imobiliários em torno da habitação, a direita insiste na sua tese, ampliada nos meios de comunicação que controla, de que Portugal está à beira de uma ditadura socialista, com vários ministros de “extrema-esquerda”, a começar pelo ministro da habitação e infraestruturas. Usa palavras e conceitos como bolas de sabão, que nada querem dizer e só têm como propósito suscitar o medo e alterar a perceção da realidade. 
 
António Costa considera que o extremo-centro da sua governação é aquilo que conduzirá o seu governo e o Partido Socialista a perpetuarem-se no poder, apostando na absorção do eleitorado mais centrista do PSD e na eterna chantagem sobre os partidos à sua esquerda, a quem à mais leve nota crítica acusa de estarem a fazer um jeito à direita e à extrema-direita. Eu acho que está enganado. A sua indisponibilidade para confrontar interesses para resolver problemas urgentes das populações, como o da habitação, é exatamente o que nos conduzirá ao pântano de descontentamento que franqueará as portas à direita mais radicalizada de sempre da democracia portuguesa.

O fetichismo da disciplina orçamental

Numa curta carta publicada no Financial Times, 142 economistas vêm responder ao artigo de opinião de Schäuble (que referi aqui há uns dias), apelando a uma nova abordagem da Europa relativamente à sua política orçamental. Mais importante que o conteúdo da carta é a lista de signatários e o reconhecimento da importância de prontamente combater a narrativa austeritária que já se prepara por aí. É importante que fique bem claro que a austeridade nunca foi nem será uma inevitabilidade económica, mas sempre uma opção política.

Recomendo também este "fio" do principal autor da referida carta, com links bastante interessantes que reforçam a argumentação.

Segue então a referida carta, traduzida com as minhas limitações...

“Contrariamente ao argumento apresentado por Wolfgang Schäuble, acreditamos que o tecido social da Europa não suportará um regresso às "políticas orçamentais do costume" - as políticas de austeridade falhadas do passado, que transformaram o choque financeiro de 2008 numa prolongada recessão. Precisamos de uma nova abordagem para a política orçamental, começando por reconhecer que défices públicos insuficientes podem causar danos sociais, económicos e ambientais irreversíveis.

Quando o setor privado está a passar por dificuldades, “disciplina orçamental” pode resultar numa queda permanente na procura agregada e na produção, o que reprime desnecessariamente o emprego e o rendimento das famílias, enquanto deixa as gerações futuras em pior situação.

A experiência mais recente de consolidação orçamental europeia falhou nos seus próprios termos, resultando em rácios mais elevados de dívida relativamente ao produto interno bruto, devido às cicatrizes económicas permanentes e associadas reduções das receitas fiscais.

A disciplina orçamental, e não a expansão, amplia o abismo entre ricos e pobres (especialmente numa recessão). Impostos regressivos e cortes profundos de despesa na Europa desmantelaram medidas que apoiam o crescimento equitativo, resultando em níveis mais elevados de pobreza e desigualdade. Cortes no investimento público também prejudicam a “transição justa” e a luta contra o colapso ambiental e podem resultar numa ampla gama de perdas financeiras relacionadas com o meio ambiente.

Uma década de estímulos monetários não convencionais e de metas de inflação não atingidas, claramente não conseguiram aumentar as expectativas de inflação, indicando que as próprias preocupações do autor sobre a inflação são equivocadas. Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, que não está preocupado com possíveis efeitos inflacionários, veio corrigir Schäuble. Philip Lane, economista-chefe do BCE, sugeriu que não há alarme em torno da inflação transitória decorrente de constrangimentos temporários do lado da oferta (em vez dum sobreaquecimento do lado da procura).

Além disso, despesas insuficientes do governo podem aumentar a falência de empresas e levar a menos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, prejudicando o lado da oferta das nossas economias - potencialmente exacerbando as pressões inflacionárias.

A UE passou por uma década de estagnação da procura, com um desempenho bem abaixo do seu potencial produtivo. As forças inflacionárias da década de 1970 não estão já intactas, sobretudo devido ao declínio do poder negocial dos trabalhadores, mudanças demográficas, elevada desigualdade e dívida privada pendente. Sem uma expansão orçamental concertada para aumentar o investimento e proteger os vulneráveis, a procura agregada permanecerá reduzida e os padrões de vida estagnarão.

Em vez de fetichizar a disciplina orçamental, devemos dar prioridade a resultados sociais, económicos e ambientais mais importantes - como criar empregos verdes bem pagos, retirar milhões de pessoas da pobreza e implementar projetos de infraestrutura verde.

Se há uma lição de John Maynard Keynes para Schäuble, esta é ‘cuide-se do emprego e o orçamento cuidará de si mesmo’.”

terça-feira, 15 de junho de 2021

O estalar do verniz em quatro notas

1. José Manuel Fernandes tem pena de não ter ido ao arraial da Iniciativa Liberal (IL), na véspera de Santo António. Segundo o publisher do Observador, o evento «foi a prova de que era possível ter montado arraiais em Lisboa com imaginação e organização». Por «imaginação» presume-se a bela ideia de fazer tiro ao alvo a fotografias de políticos e líderes partidários (com a curiosa exceção de André Ventura), ao melhor estilo de Bolsonaro, surfando a onda fácil do populismo anti-política e anti-políticos. Em termos de «organização», Fernandes deve estar a pensar no sentido de responsabilidade que há em ignorar o parecer desfavorável da DGS face à realização do evento, ou na quase ausência de máscaras e de distanciamento social entre os convivas.

2. Não, não há margem para qualquer comparação com o 1º de Maio, a Festa do Avante ou as celebrações de Fátima, concorde-se ou não com a realização destes eventos em contexto de pandemia. Nestes casos, as entidades promotoras ajustaram responsavelmente com a DGS planos de contingência e respetivas regras para garantir condições de segurança, cumprindo-os com irrepreensível rigor. A IL, porém, deve achar que faz parte de «uma casta de portugueses privilegiados a quem tudo é permitido, uma elite com impunidade de grupo», para citar os próprios, nas críticas a propósito do 1º de Maio de 2020. Ao melhor estilo do Chega, em hipocrisia e coerência (pela falta dela).

3. Para tentar desviar as atenções deste arraial que se formou com o da véspera de Santo António, surge entretanto a notícia de que a «IL quer prisão para políticos com declarações de rendimentos incorretas», dando a entender que se trata de qualquer coisa endémica, exclusiva da «porca da política». Mas não seria má ideia alargar um pouco mais o âmbito da proposta e começar por casa. Talvez assim fosse possível dissipar qualquer estranheza com o facto de Tiago Mayan, candidato presidencial da IL (consultor e proprietário de uma empresa de gestão de alojamentos locais), declarar menos rendimentos que Tino de Rans, calceteiro de profissão e que foi também candidato presidencial.

4. Ao surgir, a Iniciativa Liberal assumiu sem rodeios a defesa do ideário neoliberal (na continuidade do Governo de Passos e Portas), favorecendo as falsas liberdades que os cheques-para-tudo (educação, saúde, transportes, etc.) permitiriam. Agora, parece ter chegado a hora de convergirem com o partido de Ventura, enveredando pelo oportunismo fácil de dar ares de partido anti-sistema. Como alguém dizia, afinal são só os «queques do Chega».


Adenda: Um pequeno detalhe (que não é tão pequeno quanto isso). João Cotrim Figueiredo teve o cuidado - ou melhor, a sonsice - de disparar o seu arco e flecha sobre um manequim sem cara, que envergava uma camisola com o Che Guevara (e que só mais tarde receberia o rosto que lhe estava predestinado, do ministro Pedro Nuno Santos). Não foi portanto propriamente um momento lúdico, espontâneo e inadvertido. Eles sabem o que fazem e identificam bem os seus principais adversários.

Intervalo para publicidade à densidade histórica

Para quem não viu ainda o filme, saiba que vai estar em exibição em Lisboa (de 17 de junho a 7 de julho), Coimbra, Setúbal e Figueira da Foz. Ver aqui

Transcreve-se o texto de anúncio deste marco da cinematografia universal: 

Ladrões de Bicicletas ocupa há sete décadas consecutivas um lugar cimeiro no cânone dos melhores filmes de todos os tempos. Logo na estreia gerou um grande entusiasmo, na Europa, e na América, e André Bazin descrevia-o como uma obra-prima, perfeita e sublime, e afirmava que De Sica era o maior realizador italiano. Amado por Satyajit Ray ou Wes Snderson, o filme que "mudou a vida" de Ken Loach, que "salvou a carreira" de Jia Zhang Ke, Ladrões de Bicicletas, a odisseia de um pai e de um filho pelas ruas de Roma à procura de uma bicicleta roubada, indispensável para o seu trabalho, obra zénite do neo-realismo italiano, tem a grandeza de uma tragédia clássica. Cesare Pavese dizia que o grande cronista de Itália do seu tempo era De Sica. Foi nas ruas, onde filmaria, que o realizador foi procurar os seus intérpretes: Lamberto Maggiorani, o pai, era um operário mecânico ("era necessário que este operário fosse ao mesmo tempo tão perfeito, anónimo e objectivo como a sua bicicleta"), e Enzo Staiola, o filho, descobriu-o entre os mirones. Como uma extraordinária mise em scène, um trabalho rigoroso da escrita e uma concisão comovente, Ladrões de Bicicletas é "cinema no seu estado puro", que nos provoca uma comoção tão forte como há 70 anos. 

Que a comoção nos tome e se comece a transformar o mundo.    

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Como eles gostam (dizendo que não gostam) dos "líderes políticos autoritários"!


Poiares Maduro, no Telejornal da RTP1 de ontem, chamou a atenção para o facto de Portugal estar estagnado há duas décadas: 

O país está praticamente estagnado há 25 anos. Isso significa que temos de fazer alterações estruturais. Há alguma coisa na nossa organização económica e social que não nos permite crescer economicamente e alterar a qualidade de vida dos  portugueses. Isso exige transformações profundas. Por outro lado, do ponto de vista conjuntural, fomos o país que teve a maior queda do PIB da UE. Mas esta conjugação dos factos é difícil paa a gestão dos fundos [da bozooka]. Porquê? Porque aquilo que pode ter mais eficácia no imediato, a atenuar os custos económicos e sociais, pode ser também aquilo que não tem maior capacidade transformadora a médio e longo prazo para a nossa economia, que é fundamental para ultrapassar essa estagnação.    

Aquilo que mais fascina na burguesia nacional é o seu estado mental de permanente capturado por uma lógica que a prejudica nos seus alicerces e a subjuga aos interesses do centro europeu. Esse estado de miopia ideológica é tal que nem se consegue aperceber que, na divisão internacional do trabalho europeu, foi atribuído aos países do sul a função de vender bicas à beira da praia aos cansados trabalhadores do centro da Europa (vulgo turismo). 

Em vez de juntar os pauzinhos do PIB e da queda conjuntural do PIB, será assim tão difícil articular o conjunto da História económica e social dos últimos 40 anos, nomeadamente a cedência que foi feita a um normativo político e institucional marcadamente ideológico, para perceber de onde vem esta estagnação? E para perceber até a queda conjuntural do PIB no último trimestre? 

Quais são, na opinião de Poiares Maduro (e da direita), essas razões estruturais que nos atiram para a estagnação? Quais são as soluções estruturais? 

Poiares Maduro não o disse. A direita nunca diz nada sobre isso,  nem sobre nada...  porque sabe que se o disser, perde as eleições. E por isso mesmo, o mesmo Poiares Maduro aceita queimar as barbas da sua credibilidade por um estudo sem credibilidade, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e até pela manchete do jornal Expresso que o promoveu quando, manipuladoramente anunciou que apenas 37% dos portugueses "rejeitam um líder político autoritário"...  

Por que será que a direita acaba sempre por associar a ditadura com a aplicação de reformas estruturais que acha necessárias, mas que nunca diz quais são? 

P.S. - Já tínhamos Fátima Bonifácio num jornal como o Público (quem o viu...) a branquear soluções não democráticas para a sociedade portuguesa. Agora temos JMT - no mesmo jornal! - muito levianamente, a lavar a cara do Estado Novo, usando um "poderoso" indicador do PIB per capita que nada diz (sobretudo em tempo de emigração histórica por pobreza) e alegando - sem explicar nada, se se tratou de causas internas ou efeitos externos (um dia lá iremos) - que Portugal, durante a ditadura, "convergiu com a Europa em PIB per capita de forma mais eficaz do que em parte substancial da democracia"! Daí ao Chile de Pinochet e dos Chicago Boys, é um saltito... 

Ao que chegámos em despudor! Como o velho "Estado Novo" atrai tanto estes jovens turcos... 

Debater a economia política feminista


O ciclo de conferências-debate "Economistas políticos(as) – diálogos esperançosos em tempos sombrios" é uma organização da secção temática de Filosofia e História da Economia Política e do Núcleo da Região Centro, da Associação Portuguesa de Economia Política, em parceria com o Centro de Estudos Sociais. O evento pretende colocar em debate, ao longo de seis meses, temas centrais da contemporaneidade, na área da Economia Política, a partir da obra de autores/as de referência. Vivemos tempos sombrios, ainda marcados por um afunilamento do debate público, que em muito impede a abordagem crítica de grandes questões: as desigualdades sociais e demográficas, a crise ecológica, a cidadania e a conflitualidade social, os modelos de Estado a adotar. 

 No entanto, urge dar uma nota de esperança, a partir daquilo que tem sido o trabalho realizado e dos debates que têm sacudido o espaço público, com o contributo de cientistas sociais. Este ciclo de webinars, a realizar numa 5ª feira de cada mês, entre março e setembro de 2021, integra um modelo onde, em cada uma das sessões, dois participantes partem do trabalho de duas referências internacionais, do passado e da atualidade, em Economia Política, confrontando ideias e possibilitando um debate aberto a todos os presentes. 

 A quarta sessão, dedicada ao tema "A economia política feminista tem história", remonta às ideias precursoras da defesa dos direitos das mulheres, efetuada por John Stuart Mill (apresentado por Ana Costa), para colocá-las em confronto com a teoria da reprodução social de Lise Vogel (apresentada por Ana Santos).

Ligação zoom aqui.

domingo, 13 de junho de 2021

Afasta-te da liberdade deles


O uso apologético e cada vez mais frequente da fórmula democracia liberal por intelectuais públicos de esquerda, que tinham a obrigação de saber mais e melhor, é um dos vários sintomas do retrocesso político-ideológico em curso, ao contrário do que indicam as aparências complacentes, favorecendo a naturalização e aceitação de todas as iniciativas liberais. 

Num certo sentido, os liberais ditos clássicos que andam para aí a fazer revisionismo histórico até dizer chega, em modo Fátima Bonifácio ou Nuno Palma, sabem que o liberalismo serve para atrofiar a democracia enquanto aspiração à igual liberdade, sendo mais coerentes por isso. Neste contexto, deixo-vos um excerto de um artigo que escrevi sobre estes temas no número de Abril do Le Monde diplomatique - edição portuguesa

Para além de atribuir à palavra liberal um prestígio imerecido, os que, à esquerda, usam equivocada e apologeticamente a designação «democracia liberal» para caracterizar a democracia saída da Revolução de Abril, esquecem que o liberalismo histórico sempre foi oligárquico, intrinsecamente desconfiando da participação popular e favorável a um capitalismo desigual, que facilmente desagua em formas autoritárias, particularmente em contexto de crise e nas periferias. 

A nossa democracia superou originalmente o liberalismo histórico, porque se propôs suplantar uma forma de capitalismo que não dava resposta às aspirações de liberdades reais para todos, incluindo nos espaços onde se trabalha, tantas vezes furtados a avaliação do que se pode ser e fazer. Estas origens revolucionárias do nosso regime constitucional democrático, de matriz tão antifascista quanto antiliberal, explicam que, na narrativa liberal, «o socialismo» seja o nome da situação em vigor até aos dias de hoje. A contra-revolução neoliberal nunca teria existido. As intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e às suas imposições liberalizadoras totais no campo económico e financeiro, particularmente no quadro da União Europeia, as privatizações maciças desde o cavaquismo, a adesão ao euro, e a correspondente perda de instrumentos de política económica, nunca terão existido. Enquanto existirem concessões colectivistas no capitalismo português, mesmo que enfraquecidas, da Segurança Social a um mínimo de provisão pública desmercadorizada, esta gente não descansa ideologicamente e daí a insistência convergente da IL e do Chega em projectos de ainda maior descaracterização constitucional.

Isto


«Chamar a Palma e a Tavares “fascistas” é um erro que, aliás, nunca cometi. Eles são outra coisa. Em 2021, são radicais de direita de uma actual geração, cujas intervenções públicas vivem da defesa de governos “fortes” da TINA, a que chamam “anti-socialistas”, ligados aos interesses económicos, ou da nostalgia de momentos autoritários de forte conteúdo inconstitucional, como aconteceu no Governo troika-Passos-Portas, e tendo como alvo as classes médias “baixas”, aquelas que saíram da pobreza através do Estado, em Portugal como em toda a Europa – daí a sanha contra os funcionários públicos, assente numa concepção neoliberal da economia, na negação de direitos aos trabalhadores. São tradicionalistas quando lhes convém, radicalizados em política, todos despachados em matérias de alguns costumes, mas não quanto aos direitos sociais. Não são genuínos conservadores, acham socialista a doutrina social da Igreja, e o actual Papa um comunista disfarçado, não têm uma mínima empatia com os mais fracos, os excluídos, usam grandes palavras como liberdade para justificar sociedades desiguais e moralmente inaceitáveis por gente que preza a dignidade humana. Se estivessem nos anos 20-30 do século XX, seriam propagandistas do Integralismo Lusitano, mas não camisas azuis do Nacional Sindicalismo, porque isso metia muita rua e podia dar pancada.»

José Pacheco Pereira, Estudem, que vos faz falta (um texto imperdível, sobre mel velho, novas-velhas direitas e filhos da PAF, a ler na íntegra).

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Desfocagem e manipulação de informação?

 

A manchete de hoje do Expresso é feita para vender. E revolta pela manipulação. 

O título é sobre um estudo patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian que segue um questionário europeu, realizado há muitos anos, e desta vez foi da autoria dos académicos Alice Ramos e Pedro Magalhães. O questionário é do mais questionável possível - de enviesado que é - e deveria ser pegado com pinças por jornalistas. Mas no Expresso - como em toda a comunicação social - não há tempo para pensar. 

Primeiro. Um jornal de referência, ainda que encostado à direita, coloca levianamente em manchete - abaixo de um anúncio de praias! - uma formulação tão equívoca como o que se pode ler acima. Pior: na entrada da manchete, sem qualquer explicação do termo "líder político autoritário" (que, como se explicará mais adiante, não aparece no questionário), acrescenta-se: 

"Há 20 anos que rejeição da autocracia [outro conceito não explicado] está a descer. Portugueses entre os mais desconfiados da Europa. Ciganos, toxicodependentes e alcoólicos são os menos desejados como vizinhos. Marcelo alerta para xenofobia".

Não era possível melhor manifesto sound-byte da extrema-direita xenófoba ou do professor Marcelo. Mas revela bem o desnorte em que caiu a direcção editorial do principal jornal do país. Tudo se faz para cavalgar uma onda, mesmo que seja ao arrepio do que devia ser um jornal, produto de jornalistas, salvaguardado por uma Constituição que proíbe taxativamente organizações xenófobas.  

Essa preocupação de gritar mais alto fez com que os jornalistas do Expresso tivessem pegado unicamente em duas perguntas entre dezenas que o estudo tem e escolhessem precisamente esses temas - uma resposta à uma das perguntas sobre o regime político preferido - optando-se pelo sublinhado a um suposto "líder político autoritário" - e outra sobre segregação racial ou religiosa.

Caso se procure a metodologia seguida pelo estudo europeu, encontrar-se-á (ver Master questionary) questões sobre emprego, salários, sobre trabalhar sem receber, sobre o que é importante num emprego, sobre religião (um pouco orientada), segregação racial no trabalho (muito orientada), sobre interesse em política, divisão esquerda/direita (orientada para a neutralidade), polémica indivíduo/Estado (orientada para o indivíduo), desempregado/emprego (muito orientada para forçar o desempregado a aceitar qualquer emprego), sobre o futuro (pergunta idiota orientada para a resposta "mais crescimento"), sobre prioridades políticas (idiota orientada para o combate  à inflação, ordem e dar a palavra "às pessoas"), sobre a importância de sectores sociais (igreja, forças armadas, imprensa, sistema educativo (!), sindicatos...), sobre a democracia, várias e variegadas questões. 

Mas o Expresso escolheu aquelas. 

Segundo, pela notícia não se entende qual foi a exactamente pergunta feita aos inquiridos - e não aos "portugueses", já que se refere a um estudo com 1215 respostas em 3032 lares inquiridos - que permitisse chegar àquela conclusão, montada para ser vendida como pãezinhos (veja-se o eco que teve noutros orgãos de comunicação social). 

E as perguntas são essenciais nos estudos de opinião:  


Quando se chega à página 8 - que não é lida nas bancas  nem nas notas de rodapé das televisões - percebe-se um pouco mais, mas mesmo assim  não se percebe muito. 

Vamos fazer ao contrário. Primeiro, vamos dar-lhe a pergunta - depois de consultada a metodologia que se pode encontrar na internet. Trata-se da pergunta 43. 

Antes, perguntou-se (pergunta 39) sobre o que se considera mais importante entre nove possibilidades, das quais a primeira possível era: "tributar os ricos e sunsidiar os pobres". Depois, perguntou-se (pergunta 40) "Quão importante é para si viver num país governado democraticamente? (pergunta muito orientada porque todos somos democratas). E a seguir perguntou-se (pergunta 41) "quão democraticamente governado é hoje o seu país?" Depois, pergunta-se (pergunta 42) numa escala de 1 a 10, "quão satisfeito está com o sistema político que funciona no seu país presentemente"?

E, finalmente, chega-se à pergunta 43 em que se descreve "vários tipos de sistemas políticos" em que o inquirido é chamado a qualificar entre "muito bom", "bom", "mau" e "muito mau" quatro tipos de regime: 1) "Ter um líder forte que não precisa de se preocupar com o Parlamento e eleições" (Having a strong leader who does not have to bother with parliament and elections, ou seja, já em si, uma frase muito equívoca de múltiplo sentido); 2) "Ter especialistas e não um governo a tomar decisões sobre o que eles melhor para o país"; 3) "Ter o exército a governar o país"; 4) "Ter um sistema político democrático". 

Ora, onde é que no questionário se refere "líder político autoritário"?

Ou seja, como diz Sir Humphrey, os académicos autores do estudo ou os jornalistas desvalorizaram o resto e puxaram pelo assunto que mais lhes interessava - mesmo que menor - , puxaram-no para manchete e colocaram no título um conceito que aparentemente não é usado no questionário, pelo menos, não aparece na metodologia anterior (e se se mudou, essa é que deveria ter sido a notícia). Ora assim sendo, tudo aponta para manipulação de informação. E muito orientada. 


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Foi há uns 35 anos...


... mas esperemos que não volte a acontecer. 

A revisitação do passado tem destas coisas. Como se sabe o que se passou entretanto, relativiza-se o argumentário liberal (ex-neoliberal) pela realidade monstruosa que foi criando em décadas. Ao ler hoje as palavras que se seguem, sente-se a mentira óbvia de que já estavam impregnadas e que - tal como no presente - passaram tão bem. 

Este "passado" passou-se a 31 de Janeiro de 1986. Era Cavaco Silva primeiro-ministro do governo minoritário do PSD e era seu ministro do Trabalho e Segurança Social - por esta ordem - Luís Mira Amaral. O ministro veio ao Parlamento apresentar, com urgência, um pedido de autorização "para rever o regime jurídico da cessação do contrato de trabalho e dos contratos de trabalho a prazo e para estabelecer a disciplina jurídica do trabalho temporário".  

Em que sentido ia a proposta? Pois, o ministro nunca explicou. Mas Mira Amaral estendeu-se por argumentos que dão a entender em que sentido ia: atacar verbalmente a precariedade laboral, para conseguir impor a sua generalização através do despedimento fácil, tudo em nome dos desempregados e dos jovens. Aliás, algo que ecoa - com nuances - em qualquer projecto recente de revisão da legislação laboral - vidé o apresentado por Mário Centeno em 2015, em defesa do contrato único de trabalho, ou o pacote contra a precariedade de 2019, tão aplaudido pelas confederações patronais e aprovado a mata-cavalos pelo CDS e o PSD.

Dizia Mira Amaral: 

Cada dia que passa sem alteração da actual legislação laboral mais dificulta o processo de recuperação do nosso país e mais nos atrasa da Europa em que acabámos de entrar. Com efeito, não pode o Governo manter-se indiferente ou alheio às preocupações sociais e económicas vividas no meio laboral, sob pena de comprometer o rigor de uma política económica e social global e coerente, norteada pelo equilíbrio e ponderação de todos os legítimos interesses da sociedade portuguesa. Matéria tão importante como a que a presente proposta de lei contempla, pautada pela necessidade vital de superação de um bloqueio profundamente inibidor do correcto desenvolvimento sócio-económico não poderá deixar de ser discutida por esta Câmara com a prioridade que a própria natureza do normativo reclama. As preocupações do Governo nesta matéria vão não só no sentido de contribuir para a resolução dos problemas que afectam os trabalhadores empregados, mas também e muito especialmente no sentido de criar as condições que possibilitem a criação de empregos para os desempregados e para muitos milhares de jovens à procura do primeiro emprego.

Nestes 35 anos, muito mais longe se foi neste capítulo e sempre com os mesmos ou parecidos argumentos, aprovados pela direita ou com o PS. Mas os objectivos anunciados nunca foram conseguidos porque os verdadeiros objectivos não eram os anunciados. Nada do que se dizia querer aconteceu. Nem mesmo se criou uma burguesia nacional - uma elite empresarial através do processo de privatizações - como tanto defendia Cavaco Silva. Foi capturada material, financeira e ideologicamente pelos estrangeiros. Ficou apenas a precariedade e a exploração desenfreada. Dos jovens, dos desempregados e de todos os trabalhadores encharcados no fragmentado, desarticulado e inconsistente tecido produtivo nacional.

Esta revisitação tem uma certa patine. Mostram como eram - à luz de hoje - aparentemente ingénuos os discursos que consagraram, com o tempo, a precariedade e o pesadelo laboral dos portugueses. As palavras tinham peso. Ainda se ouvia como sérias as palavras de um Duarte Lima a tecer armas por esse ideário neoliberal. Parecia fazer sentido o que dizia Lopes Cardoso (PS) ao lembrar que o assunto do diploma deveria ser abordado pelos "parceiros sociais". Tinha o peso de uma primeira barricada ouvir um Jerónimo de Sousa a anunciar que "para nós, constitui o início das hostilidades contra os trabalhadores, por parte do governo de Cavaco Silva", ao mesmo tempo que a deputada Odete Santos (PCP) sintetizava  aquilo que o Governo não tinha coragem de assumir: "A urgência do Governo, neste aspecto, é de facto para liberalizar os despedimentos e para permitir que, por qualquer motivo, a entidade patronal despeça o trabalhador pelo facto da própria inaptidão - conceito extraordinariamente vago (...) e que é um conceito que, assim, permite às entidades patronais fazer tudo". Torres Couto (PS), ex-dirigente da UGT, estava do lado certo quando dizia que "todos nós, que não andamos nisto há dois dias, que conhecemos bem as implicações que esta matéria tem induzido na vida social portuguesa". Até um José Manuel Casqueiro (PSD), ex-dirigente da CAP das mocas de Rio Maior, dava o seu  contributo ao  lembrar que "o então Primeiro-Ministro e actual candidato à Presidência da República, Dr. Mário Soares, tinha uma perspectiva completamente diferente" quando "propôs um acordo com as diversas confederações patronais, acordo que - repito - passava pela aceitação do princípio do despedimento, mesmo sem justa causa, estando única e simplesmente em causa a discussão do valor da indemnização"! 

Para quem tenha coragem, tempo e paciência de voltar a este passado tão presente, fica o texto na íntegra.