O uso apologético e cada vez mais frequente da fórmula democracia liberal por intelectuais públicos de esquerda, que tinham a obrigação de saber mais e melhor, é um dos vários sintomas do retrocesso político-ideológico em curso, ao contrário do que indicam as aparências complacentes, favorecendo a naturalização e aceitação de todas as iniciativas liberais.
Num certo sentido, os liberais ditos clássicos que andam para aí a fazer revisionismo histórico até dizer chega, em modo Fátima Bonifácio ou Nuno Palma, sabem que o liberalismo serve para atrofiar a democracia enquanto aspiração à igual liberdade, sendo mais coerentes por isso. Neste contexto, deixo-vos um excerto de um artigo que escrevi sobre estes temas no número de Abril do Le Monde diplomatique - edição portuguesa:
Para além de atribuir à palavra liberal um prestígio imerecido, os que, à esquerda, usam equivocada e apologeticamente a designação «democracia liberal» para caracterizar a democracia saída da Revolução de Abril, esquecem que o liberalismo histórico sempre foi oligárquico, intrinsecamente desconfiando da participação popular e favorável a um capitalismo desigual, que facilmente desagua em formas autoritárias, particularmente em contexto de crise e nas periferias.
A nossa democracia superou originalmente o liberalismo histórico, porque se propôs suplantar uma forma de capitalismo que não dava resposta às aspirações de liberdades reais para todos, incluindo nos espaços onde se trabalha, tantas vezes furtados a avaliação do que se pode ser e fazer.
Estas origens revolucionárias do nosso regime constitucional democrático, de matriz tão antifascista quanto antiliberal, explicam que, na narrativa liberal, «o socialismo» seja o nome da situação em vigor até aos dias de hoje. A contra-revolução neoliberal nunca teria existido. As intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e às suas imposições liberalizadoras totais no campo económico e financeiro, particularmente no quadro da União Europeia, as privatizações maciças desde o cavaquismo, a adesão ao euro, e a correspondente perda de instrumentos de política económica, nunca terão existido. Enquanto existirem concessões colectivistas no capitalismo português, mesmo que enfraquecidas, da Segurança Social a um mínimo de provisão pública desmercadorizada, esta gente não descansa ideologicamente e daí a insistência convergente da IL e do Chega em projectos de ainda maior descaracterização constitucional.
A ideologia da IL, associando menos Estado a mais liberdade, é duplamente ofuscadora. Em primeiro lugar, os liberais assumem querer um vago «Estado forte», até porque no fundo sabem que não se trata de mais ou de menos Estado, mas de um certo tipo de Estado. Criar mercados para quase tudo, expurgar o capitalismo dos seus elementos sociais-democráticos, dá sempre imenso trabalho político. Na história da economia política, está estabelecida a ligação entre os processos de neoliberalização e a emergência de um Estado penal musculado e de um Estado bombeiro para acudir às crises cada vez mais frequentes. O Chega tem a virtude de ser mais claro do que a IL: repressão para institucionalizar uma certa forma de capitalismo e «guerras culturais» para distrair e alienar. Daí que talvez tenha mais campo para progredir. Juntos desempenham a função de anular a esquerda. A vantagem comparativa da IL reside no facto de o seu discurso entrar bem no topo de uma comunicação social rendida ao liberalismo que promete menos carga fiscal para os ricos e reconhece que os «empreendedores» podem ser mulheres ou oriundos de minorias. Quem comanda redacções proletarizadas e ganha rendimentos avultados gosta de uma ideologia assente na racionalização económica da hierarquia social, no mérito sem discriminações, na relação salarial assente numa «colaboração» mutuamente vantajosa, que disfarça uma precariedade liberticida. Só isso explica o tratamento de favor dado a um candidato presidencial da IL, Tiago Mayan, um fundamentalista que apodou Assunção Cristas de «socialista». Isto de resto alinhado com o truque, fomentado pelo Chega, de ver «marxistas culturais» em todo o lado e isto num país onde a cultura marxista prima pela quase ausência do espaço mediático.
Entretanto, a presença de um Estado forte, indissociável de qualquer forma de capitalismo, permite sempre aos seus defensores responsabilizar o Estado pelo fracasso das suas políticas. O liberalismo é uma utopia com consequências distópicas e que se furta ao real: das alterações climáticas à multiplicação dos serviços de cuidado para tanta gente vulnerável, a presença do poder público actuante para lá do nexo-dinheiro é cada vez mais urgente.
Mas há mais: o liberalismo é ofuscador, porque procura monopolizar uma palavra, liberdade, que não lhe deve pertencer numa sociedade complexa, e que é bem mais do que um somatório de indivíduos, plena de interdependências e de assimetrias. Pedro Nuno Santos, um raro ministro e dirigente socialista, que compreende o perigo do liberalismo, resgatou a palavra liberdade das mãos do deputado único da IL, logo no início de 2020, numa intervenção na Assembleia da República: «A comunidade organiza-se para que todos nós, independentemente da nossa capacidade financeira, sejamos livres. Livres para ter cuidados de saúde com qualidade, livres para ter escola com qualidade, livres para termos uma casa. Livres, isso é que é liberdade. Não é a liberdade de ter o Estado português a financiar negócios privados da educação e da saúde, que é o que o senhor deputado quer. Isso não é liberdade».
De facto, só a acção pública socialista pode libertar os cidadãos da submissão aos mercados, que colocam obstáculos liberticidas no acesso a uma série de bens essenciais, procurando inscrever institucionalmente um princípio distributivo que casa liberdade com justiça social, duas ideias distintas, mas na prática ligadas: de cada um segundo as suas possibilidades a cada um segundo as suas necessidades. A provisão pública e os impostos progressivos são um meio colectivo para a maioria aceder à liberdade por via do acesso a bens e serviços cuja natureza muda para melhor, até porque não há barreiras pecuniárias: de facto, um parque público não é um centro comercial, uma reserva natural não é um jardim zoológico, uma biblioteca pública não é uma livraria, uma escola pública não é uma escola privada e assim sucessivamente. E não é a chamada «tirania das pequenas decisões» individuais pelos mercados que nos pode dar acesso às infra-estruturas públicas, em sentido amplo, e às liberdades que só nelas, e através delas, se podem usufruir, incluindo pela deliberação colectiva na gestão do que é de todos. Aliás, qualquer feixe de liberdades só se alcança colectivamente, também graças a impostos, havendo liberdades que só se usufruem colectivamente, incluindo a liberdade de ser cidadão de um país com capacidade para decidir sobre o seu futuro de forma independente, o que pressupõe o controlo público da moeda e do crédito ou o controlo público de sectores estratégicos. Em mãos privadas, como se vê com a EDP, estes transformam-se em autênticos governos privados, concentrações de poder estrangeiro que colocam em causa a autoridade do grande garante das liberdades, o Estado democrático nacional. E, já agora, o que dizer da liberdade de viver uma vida longa e saudável, num ambiente respirável, com ar limpo, água potável, uma rede de energia sustentável ou transportes públicos acessíveis? Só a acção colectiva liberta.
Para lá dos sistemas de provisão, as formas de liberdade antiliberais têm nas relações laborais, criadoras de tudo o que tem valor e definidoras de tanto do que as pessoas podem ser e fazer no resto das suas vidas, um momento decisivo. A liberdade é aí impossível de distinguir do poder, tendo uma lógica relacional e posicional: as liberdades de uns implicam a exposição de outros a essas liberdades, as liberdades do patrão não são garantidas pelo mesmo tipo de regras, por comparação com as do trabalhador, não são sequer da mesma natureza. O aumento da discricionariedade patronal implica uma redução das liberdades do trabalhador. Ao mesmo tempo, sabemos que as liberdades de quem trabalha estão imbricadas entre tantas outras dimensões, com a luta colectiva pela redução do horário de trabalho, com o que se passa dentro e fora de uma organização potencialmente liberticida, a empresa capitalista, onde os trabalhadores, na ausência de poderes compensatórios, como os sindicatos e comissões de trabalhadores actuantes, são alvo de formas de interferência, em clara violação de noções básicas de liberdade. E não vale a pena valorizar excessivamente o consentimento, que esquece a compulsão, os termos da alternativa, ou a liberdade de se sair, dados os custos e riscos de tal opção, particularmente quando a taxa de desemprego é elevada. A liberdade de mudar de patrão não é a liberdade de trabalhar numa empresa com o mínimo de liberdades democráticas.
Sendo a economia inevitavelmente um sistema regulatório, que exige sempre a mobilização dos poderes públicos, a questão principal é que grupos vêem as suas liberdades aumentadas e que grupos vêem as suas liberdades diminuídas pelas mudanças nas regras do jogo, ou seja, estamos sempre a redistribuir liberdades, sendo que não há uma métrica única, nem as liberdades são do mesmo tipo. Por isso não há «mercados livres». Se depender da IL, mais liberdade é sempre sinónimo de mais liberdade para o patrão, mais liberdade para o especulador, para o rentista fundiário, para os que controlam mais activos, para os que já tinham à partida mais liberdade numa sociedade capitalista. Os que querem mais liberdades para os de cima, à custa de vulnerabilidade para os de baixo, não podem monopolizar essa palavra. Era o que faltava.
Sérgio Godinho sabia do que falava, do ponto de vista histórico-filosófico, quando escreveu a canção inspirado por uma revolução, numa altura em que mais pessoas viam melhor as conexões: «A paz, o pão, habitação / Saúde, educação / Só há liberdade a sério quando houver / Liberdade de mudar e decidir / Quando pertencer ao povo o que o povo produzir».
2 comentários:
Muito bem!
« o liberalismo serve para atrofiar a democracia enquanto aspiração à igual liberdade»
Se entendida a igualdade de todo o cidadão perante a lei como não garantindo 'a democracia enquanto aspiração à igual liberdade' não estaremos a falar de liberdade cívica mas de igualação por acção, não da liberdade, mas da autoridade condicionando a liberdade.
Discutam-se as ideologias que condicionam a autoridade na sua acção de equilibrar poderes, mas preserve-se a liberdade cívica da perversão de sempre a subordinar ao poder, sob pena de dar a corrupção de todos, poderosos e não poderosos, por certa e inevitável.
Num tempo em que a ética tinha lugar na política, era uso falar-se em virtude cívica a par de poder.
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