sobre o Futuro da Competitividade Europeia, elaborado por Mario Draghi, ex-presidente do BCE e ex-primeiro-ministro italiano. Motivado pelo facto de a economia europeia estar a ficar para trás face aos EUA e à China, Draghi apresentou um documento extenso em que analisa a origem dos problemas e discute soluções para o futuro.
O relatório tem o mérito de apresentar um diagnóstico acertado: boa parte dos problemas que a economia europeia atravessa devem-se à falta de investimento. A estagnação do investimento e da produtividade na UE, ao contrário dos outros dois blocos, reflete-se na falta de competitividade das economias europeias.
Draghi também parece ter poucas ilusões sobre a forma como os EUA e a China alcançaram um desempenho económico mais robusto. “A competição chinesa está a intensificar-se em setores como as tecnologias limpas e os carros elétricos, impulsionada por uma combinação potente de política industrial e subsídios massivos, inovação rápida, controlo de matérias primas e capacidade de produção à escala de um continente […] As estratégias industriais de hoje – como se vê nos EUA e na China – combinam múltiplas políticas, desde políticas orçamentais para encorajar a produção até políticas comerciais para penalizar comportamentos anti-competitivos e políticas externas para assegurar cadeias de abastecimento”. No
caso da China, é difícil ignorar o facto de o sucesso económico ter acontecido com base em políticas que contrariaram o consenso liberal, desde o investimento público massivo nas infraestruturas do país à promoção de setores considerados prioritários (através de medidas protecionistas e de acesso a crédito), além do Estado não ter abdicado do controlo de setores estratégicos.
O relatório de Draghi não ignora nem subestima o papel do Estado neste processo: além de afirmar que “o setor privado será incapaz de suportar a fatia de leão do financiamento do investimento [necessário] sem apoio do setor público”, avança que o “financiamento conjunto do investimento em bens públicos europeus, como inovações radicais, será necessário”. Ao todo, Draghi estima que os países da UE precisem de aumentar o investimento anual em 800 mil milhões de euros, algo em torno dos 4,4% a 4,7% do PIB da região, o que seria “inédito de um ponto de vista histórico”.
O plano foi recebido com pouco entusiasmo pelos países mais ricos. Na Alemanha, o ministro das Finanças
anunciou no próprio dia que o país “não vai concordar com isto”. Nos Países Baixos, o governo também
não se mostra recetivo à emissão de dívida conjunta. O ceticismo sobre a possibilidade de avançar com estas ideias estende-se aos jornais de referência, com base na ideia de que os países mais ricos não quereriam “pagar” aos restantes a maior parte do investimento. No entanto, como se discute em seguida, há razões para pensar que os países mais fortes seriam os principais beneficiados.
De onde veio a estagnação europeia?
Tendo em conta que o ponto de partida do relatório é o declínio do investimento público e privado na União Europeia, é importante começar por analisar as causas para esse declínio. Draghi menciona a fragilidade do mercado de capitais europeu (por oposição ao dos EUA) e a existência de barreiras regulatórias em alguns setores, mas acaba por não se referir a um aspeto decisivo: as regras orçamentais europeias, que definem limites à despesa e investimento dos Estados.
As regras orçamentais colocaram fortes restrições ao investimento público dos países, ao mesmo tempo que as regras de concorrência no mercado único, que limitam de forma significativa os apoios públicos às empresas e as compras públicas – que, como alguns estudos têm demonstrado, são um instrumento eficaz na promoção da
inovação e do
crescimento –, impediram os Estados de selecionar setores prioritários e promover a inovação.
A quebra do investimento público é visível em quase todos os países e acentua-se a partir da crise financeira de 2007-08 e da estratégia de austeridade que foi adotada. O investimento privado também foi afetado, já que depende fundamentalmente da procura agregada: as empresas investem em função da procura que esperam vir a encontram no mercado para os seus bens e serviços. Ao contrário dos EUA, que responderam à crise financeira com uma política orçamental expansionista e recuperaram mais rapidamente, a opção dos países da UE pela austeridade traduziu-se numa “
política de estagnação”.
Esta opção também tem impactos na produtividade. A produtividade é uma variável endógena, que tende a crescer em períodos de expansão e a cair em períodos de recessão. Há alguns fatores que ajudam a explicar essa tendência: por um lado, boa parte dos setores beneficia de economias crescentes à escala, o que significa que, nessas empresas, um aumento da procura e um reforço da capacidade produtiva (ou seja, um aumento do número de trabalhadores e de equipamentos utilizados) gera um aumento proporcionalmente superior da produção; por outro lado, o crescimento dos salários reais (que tipicamente ocorre em períodos de expansão) incentiva as empresas a inovar para se manterem competitivas e responderem à procura crescente. O primeiro fator é conhecido como o efeito Kaldor-Verdoorn e o segundo como o efeito Marx/Hicks. Alguns estudos empíricos, como
este ou
estes, sugerem que esses efeitos se verificam nas economias europeias e que a estagnação da procura e dos salários teve um impacto negativo na produtividade.
Se, no caso da estagnação salarial, esse efeito também parece ter
ocorrido nos EUA, o caso europeu foi agravado pela austeridade e pela forte restrição do investimento e dos apoios públicos. É difícil falar das atuais necessidades de investimento, no qual o setor público terá de financiar a “fatia de leão”, sem mencionar as regras orçamentais.
O próprio Draghi
reconheceu há um par de meses que “prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros – e, combinada com uma política orçamental pró-cíclica, o resultado líquido foi o de enfraquecer a nossa procura interna”. As regras orçamentais, que voltaram a entrar em vigor este ano, não só exigem um
esforço significativo de consolidação orçamental à maioria dos países como representam um
obstáculo aos investimentos considerados necessários pela própria UE para promover a transição energética.
Competitividade para quem?
A emissão de dívida conjunta poderia ser vista como uma forma de contornar a contradição entre as propostas de Draghi e as regras orçamentais em vigor. Mas isso leva-nos à segunda grande omissão do relatório: as diferenças estruturais entre as economias do centro e das periferias da UE. Não é possível analisar a economia europeia sem compreender a
divergência entre o centro (liderado pela Alemanha) e a periferia do Sul (Itália, Espanha, Portugal e Grécia) e os fatores estruturais que a explicam.
A divergência prende-se com os diferentes modelos de crescimento que os países seguiram desde o processo de integração europeia. Os países do centro, com mais capacidade produtiva e maior peso da indústria, cresceram com base nas exportações, favorecidas pela adesão a uma moeda (Euro) subvalorizada face ao que seria expectável para as suas economias.
Para os países do Sul, a adesão ao Euro trouxe uma moeda sobrevalorizada que tornou mais caras (e, por isso, menos atrativas) as exportações para o resto do mundo. As entradas da China na Organização Mundial do Comércio e dos países de Leste na UE contribuíram para esta tendência, uma vez que se tornou cada vez mais difícil competir com países com salários muito baixos. Nessa altura, a Alemanha não só não se mostrou preocupada com a competição chinesa, como beneficiou do acesso a produtos mais baratos.
Os países da periferia do Sul foram os principais prejudicados, tendo perdido terreno nas exportações e registado níveis crescentes de endividamento externo. Após a crise de 2007-08, a UE apostou na desvalorização interna e na redução dos custos do trabalho – leia-se, salários – como estratégia competitiva. Enquanto a China começava a investir de forma massiva em novas tecnologias, como os painéis solares ou os carros elétricos, em vez de países como Portugal aproveitarem o potencial de produção de energias renováveis, o plano seguido foi o de prosseguir a “vantagem comparativa” do turismo e acentuar a especialização neste setor, caracterizado por baixo potencial de inovação e de ganhos de produtividade e assente em baixos salários.
Sem uma discussão abrangente sobre a melhor forma de orientar os investimentos para promover a convergência entre os países, corremos o risco de que a emissão de dívida conjunta sirva essencialmente para financiar apoios às empresas atualmente mais desenvolvidas e capazes de concorrer nos mercados internacionais, o que beneficia essencialmente os países que já são mais desenvolvidos à partida e deixa as economias do Sul cada vez mais dependentes de setores como o turismo, acentuando um padrão de especialização que tem contribuído para o seu empobrecimento.
Onde entra o interesse coletivo?
Para alavancar a inovação na UE, Draghi argumenta que é necessário reduzir a regulação existente e aprofundar o mercado único europeu, embora oscile entre a defesa das regras anti-monopólio e a necessidade de facilitar as fusões de empresas em setores como o das telecomunicações. Além disso, ao longo do relatório, a discussão centra-se essencialmente na canalização de fundos públicos para as empresas. Neste sentido, o relatório de Draghi parece aproximar-se da abordagem que a economista Daniela Gabor
classifica como “
de-risking”: os Estados assumem boa parte dos custos e dos riscos do investimento em setores de interesse estratégico, mas a propriedade e gestão ficam nas mãos dos privados, que colhem os lucros. Como outro autor deste blog (Nuno Teles)
escreveu sobre esta tendência recente, "assistimos hoje à emergência de um modelo de intervenção alicerçado em incentivos ao capital privado, com poucos ou nenhuns mecanismos de controlo e disciplina".
Os interesses privados não só não estão necessariamente alinhados com as prioridades coletivas como podem entrar em conflito com estas. Em relação à descarbonização da economia, Draghi defende que se deve acelerar a mineração de lítio e menciona especificamente o potencial de Portugal nesta área, mas não discute os
impactos ambientais da mineração e os
possíveis problemas associados, desde o uso intensivo de recursos como a água à degradação do solo, dos ecossistemas e da qualidade de vida das comunidades. O debate sobre a descarbonização dos transportes merece que se discutam alternativas (potencialmente menos apelativas do ponto de vista comercial), como a redução progressiva do uso de automóveis individuais através da promoção de uma boa rede de transportes públicos.
Os planos para a extração de lítio de Covas do Barroso têm sido contestados pela população
Além disso, o relatório diz muito pouco sobre o papel dos trabalhadores neste processo e
não inclui propostas sobre a articulação da estratégia industrial com a qualidade do emprego criado nem sobre a definição de condicionalidades sociais nos apoios públicos – isto é, critérios (sobre a evolução salarial, a negociação coletiva, a prevenção de acidentes no trabalho, etc.) que as empresas têm de cumprir para receber apoios do Estado. O que não é propriamente surpreendente quando se sabe que, na elaboração deste plano, Draghi
consultou mais de 60 associações empresariais e apenas 1 (!) sindicato. Não se promove uma transição climática justa sem um processo de decisão verdadeiramente democrático e participativo.
Apesar dos problemas referidos, há aspetos que merecem ser tidos em conta no relatório de Draghi. O facto de reconhecer que “hoje, a competitividade é menos sobre os custos relativos de trabalho e mais sobre o conhecimento e as competências da força de trabalho” contradiz o consenso liberal que tem vigorado na política económica europeia. Valia a pena acrescentar que a competitividade também é menos sobre impostos e mais sobre qualidade das infraestruturas e acesso a recursos em cada país. O desenvolvimento depende muito mais do investimento público numa rede ferroviária abrangente e na promoção das qualificações da população do que da redução de uns pontos percentuais na taxa de IRC, contrariando o discurso que se tornou dominante em Portugal.
No entanto, o relatório centra-se mais na disputa de segmentos dos mercados internacionais e na capacidade do capital europeu face aos seus concorrentes norte-americanos e chineses e menos no tipo de economia que se pretende construir. Uma política industrial que preserva verdadeiramente o interesse coletivo não se resume a uma mera redução de riscos para o setor privado. O planeamento público e a participação ativa do Estado em setores estratégicos da economia são condições necessárias para garantir que se socializam não apenas os riscos, mas também os benefícios dos investimentos necessários.