sábado, 2 de dezembro de 2023

Estado-garantia


Atente-se nos números mais recentes de uma das engenharias financeiras criadas para transferir rendas e controlo para o grande capital e riscos para um Estado despojado de instrumentos decentes de política económica.

As parcerias público-privadas foram popularizadas no início dos anos noventa pelo governo conservador britânico e rapidamente adoptadas em Portugal por PSD e PS, parte de uma neoliberalização do Estado que já tem mais de três décadas. Passos Coelho apodou de Estado-garantia esta forma de Estado totalmente ao serviço da custosa entrada do capital em aéreas tradicionalmente de interesse e controlo públicos. Todo um programa.

Claro que os neoliberais, sempre utópicos nas intenções e distópicos nas consequências, garantem-nos que tal neoliberalização nunca existiu e isto num dos países da UE que, por exemplo, mais privatizou. Sim, não é um slogan.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Cuidado com o crescimento salarial"

 

Nos últimos meses, têm saído várias notícias sobre as tendências de crescimento dos salários em Portugal. No entanto, embora haja aumentos mais expressivos em alguns setores, o salário médio real ainda não recuperou a perda provocada pela inflação. Ou seja, a evolução registada nos últimos dois anos ainda não é suficiente para compensar a perda de poder de compra associada à subida dos preços.

Estes dados ganham relevância face às últimas declarações da presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, que disse que os salários são o "fator-chave que impulsiona a inflação" na Zona Euro, justificando, com isso, a manutenção das taxas de juro elevadas. O discurso não condiz com a realidade da economia portuguesa - nem sobre a evolução dos salários, nem sobre a da taxa de inflação, que tem diminuído de forma consistente. Uma vez mais, a política monetária do BCE não nos serve.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

O estado da doença


Atentem no número e na percentagem, atentem nas cumplicidades orçamentais. Atentem na separação entre financiamento público e provisão crescentemente privada. Atentem então nas iniciativas liberais de construção, inevitavelmente política, do capitalismo da doença. 

É sabido que os capitalismos realmente existentes nunca prescindiram dos Estados. Nem doses cavalares de ideologia obscurecem hoje esta articulação. Isto é particularmente visível na área da saúde, uma das que mais está fadada a crescer por razões demográficas, tecnológicas e por tantas outras: sem Estado não existe o igualitário SNS, mas também não existe o desigual capitalismo da doença que o corrói. 

Como assinalou Isabel Vaz, quando estava no BES-Saúde, melhor negócio só a indústria de armamento. E esta também está em crescimento...

terça-feira, 28 de novembro de 2023

A eleição de Milei na Argentina entusiasmou os liberais. Porque é que isso nos devia preocupar?

 

O resultado das eleições na Argentina tem dado que falar um pouco por todo o mundo. A eleição de Javier Milei, que se descreve como “anarco-liberal”, entusiasmou os investidores internacionais perante a perspetiva de cortes na despesa do Estado (simbolizados pela motosserra que o novo presidente argentino levava para os comícios), vaga de privatizações e pela “terapia de choque” prometida.

A eleição de Milei foi saudada não apenas pela liderança do Chega (porventura animada perante as promessas de reverter a despenalização do aborto, liberalizar da posse de armas ou legalizar um mercado de órgãos humanos), mas também por membros destacados da Iniciativa Liberal, como Tiago Mayan, candidato às últimas eleições presidenciais. Ricardo Arroja, outro ex-candidato da IL, também elogiou, no Público, os principais eixos do seu programa económico: reduzir “o Estado ao papel de árbitro como qualquer liberal tenderá a defender” e “acabar com aquela instituição pública que aos olhos do próprio e de muitos milhões de argentinos personifica o principal mal causado pelo Estado ao país: o Banco Central”.

Para avaliar a eleição de Milei, precisamos de olhar para o rumo que trouxe a economia argentina à situação atual. Arroja apresenta um cenário em que sucessivos governos peronistas teriam combinado “isolacionismo económico com a defesa do movimento laboral e do Estado social” e diz-nos que “décadas de experiência [peronista] resultaram numa economia em declínio”. A história, contudo, é bastante mais complexa.

Entre 2002 e 2012, a Argentina teve um período de crescimento económico robusto e melhoria das condições de vida sob a governação de Néstor e Cristina Kirchner. A taxa de pobreza passou de 65% para 27%. A partir desse período, a inflação começou a aumentar devido a uma combinação de fatores, incluindo a desvalorização da taxa de câmbio, que tornou os produtos importados mais caros e desencadeou um conflito distributivo entre trabalhadores e empresas. A Argentina foi depois liderada por um governo de direita liberal (2015-2019) que não só foi incapaz de conter a inflação – chegou a 50% no final do seu mandato –, como foi responsável por um aumento substancial da dívida pública externa e pelo recurso ao FMI. O país entrou em crise e a taxa de pobreza subiu para os 40%. Após a pandemia, de novo com peronistas no poder, o país continua a ter inflação elevada e a taxa de pobreza continua em torno deste valor.

Face a este cenário, a “terapia de choque” proposta no programa económico de Milei tem dois eixos fundamentais: reduzir drasticamente a despesa pública e promover a “dolarização” da economia argentina – isto é, a substituição da moeda nacional pelo dólar norte-americano. A redução da despesa do Estado é, como explica Arroja, o que “qualquer liberal defende”: cortar nos apoios sociais aos mais grupos mais vulneráveis e privatizar os serviços públicos. Javier Milei, de resto, já explicou que vê a justiça social como uma “aberração”. Este programa está em linha com as recomendações do FMI, que tem influenciado a política económica recente no país. Os resultados são conhecidos: agravamento da pobreza e das desigualdades e redução das perspetivas de desenvolvimento no país.

A dolarização da economia também está longe de ser uma solução sem custos. Substituir a moeda nacional por uma moeda estrangeira – num processo semelhante ao da adesão a uma moeda única, por exemplo – implica que o país deixa de controlar a sua política monetária e que as taxas de juro e de câmbio passam a ser definidas por terceiros (neste caso, os EUA). Como a economia da Argentina é bastante diferente da dos EUA, a política monetária mais adequada para uma pode não ser a mais adequada para a outra. Abdicar da possibilidade de desvalorizar a moeda implica que os desequilíbrios externos só podem ser resolvidos por via da desvalorização interna – isto é, com austeridade e corte dos salários reais para diminuir as importações. Tal como na Zona Euro, a única variável de ajustamento passa a ser o rendimento do trabalho.

Além disso, como a dívida passa a estar denominada em dólares, a única forma do país a pagar é acumulando reservas dessa moeda, o que implica uma pressão para o Estado reduzir ainda mais a despesa e as importações, empurrando o país para uma recessão. Na verdade, uma versão desta proposta já foi tentada na Argentina na década de 1990, quando o banco central fixou o valor do peso argentino em dólares norte-americanos. Esta experiência foi abandonada em 2002, após uma crise profunda que arrasou o país e fez disparar a taxa de pobreza para os tais 65%.

Por cá, Ricardo Arroja defende que a proposta de dolarização teria uma grande vantagem: “acabar-se-ia com a possibilidade de o banco central local se imiscuir na política monetária e gerar inflação. Acabar-se-ia também com a possibilidade de o governo local se imiscuir na formação das taxas de câmbio, cobrando impostos diferenciados sobre exportações de diferentes sectores, assim produzindo múltiplas taxas de câmbio, sem correspondência com o de mercado, que distorcem a economia”.

O jargão aparentemente técnico tem uma tradução simples: acabar-se-ia com a deliberação democrática da política monetária e cambial. Em vez de as decisões sobre as políticas que afetam o dia-a-dia da população argentina serem tomadas pelos governantes eleitos por si, a democracia deixaria de se “imiscuir” nos mercados. Não é novidade que o neoliberalismo convive mal com a deliberação democrática. Isso não significa que não devamos prestar atenção quando os seus proponentes o assumem abertamente.

domingo, 26 de novembro de 2023

Lutar pelo clima não é crime

No dia 13 de novembro, a Greve Climática Estudantil iniciou uma onda de ações nas faculdades de Letras, Psicologia e Belas-Artes da Universidade de Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Coimbra. Tal como na “Primavera das Ocupas” de abril, reivindicaram o fim da utilização de combustíveis fósseis até 2030 e 100% de eletricidade renovável e acessível até 2025. Os protestos pacíficos foram recebidos com repressão e a polícia voltou a entrar na Universidade. 

Ao início da tarde do dia 13, a direção da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa (FPUL) chamou a polícia para retirar estudantes que estavam a bloquear a entrada do auditório. Em apenas dois dias, a polícia apareceu cinco vezes na FPUL. E quais as armas dos subversivos? Perigosas faixas e cartazes onde se podia ler: “sem futuro não há paz”, “a vida acima do lucro”, “o futuro começa hoje” e “transição justa já!”. 

Na mesma noite, a direção da FCSH, a mesma que durante todo o dia não falou com os estudantes que se manifestavam pacificamente (a comunicação foi realizada através de um mediador), chamou a polícia para impedir que estes pernoitassem nas instalações. Foram detidas seis alunas matriculadas naquela faculdade, que passaram a madrugada na esquadra. Estão acusadas de crime de desobediência e vão a julgamento no dia 4 de dezembro. 

O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Diz que é uma espécie de milagre económico

Paul Krugman, economista norte-americano e prémio Nobel da Economia em 2008, veio a Portugal para participar numa conferência organizada pelo Jornal de Negócios. Krugman destacou-se durante a última grande crise financeira, quando criticou frontalmente as medidas de austeridade levadas a cabo por vários governos e instituições internacionais, desafiando o consenso dominante na altura.

Por ter assumido essa posição num contexto em que a esmagadora maioria dos economistas apoiava os programas de austeridade desenhados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e Comissão Europeia, Krugman tornou-se uma referência importante para quem, à esquerda, se opunha à estratégia de empobrecimento de quem trabalha. O economista nunca deixou de se considerar um liberal, mas mesmo assim opôs-se a esta estratégia seguida por governos como o português, procurando desconstruir a ideia de que a solução para a crise passava pelo corte de salários e aumento do desemprego.

As suas últimas declarações apanharam, por isso, muitas pessoas de surpresa. Ao Jornal de Negócios, Paul Krugman classificou a experiência portuguesa como “uma espécie de milagre económico” e disse que é “um pouco misterioso como é que as coisas correram tão bem” a Portugal depois da última crise financeira. Talvez o grande mistério esteja na própria afirmação: se olharmos para os dados da última década, as coisas correram bastante menos bem do que é dito.

O resto do artigo pode ser lido no Setenta e Quatro (acesso livre, sem paywall).

O primeiro dia


terça-feira, 21 de novembro de 2023

O estado a que a política económica do Estado chegou

 

A demissão do primeiro-ministro e a dissolução da Assembleia da República deixaram o país em sobressalto. Na última semana, o debate público tem-se centrado nas suspeitas que recaem sobre a atuação de membros do governo e nas dúvidas sobre a atuação do Ministério Público. Este texto não pretende discutir nenhum desses assuntos. No entanto, é possível fazer uma leitura sobre a economia política da situação em que nos encontramos, que implica olhar para aquilo que menos se tem discutido: o papel da intervenção do Estado na economia.

Ao longo das últimas três décadas, foi-se consolidando entre os partidos que governaram o país o consenso de que o Estado deve reduzir a sua intervenção na economia ao mínimo indispensável, assegurando a provisão de bens públicos mas abstendo-se de intervir ativamente no decurso da atividade económica. A entrada de Portugal na União Europeia e o processo de integração no mercado único trouxeram consigo as regras de concorrência, assentes no mesmo consenso, que restringem fortemente a capacidade de intervenção do Estado na economia e o apoio seletivo a setores considerados estratégicos.

Desde então, Portugal seguiu a receita neoliberal e privatizou as principais empresas do setor da energia (como a EDP, a REN ou a Galp), empresas de transportes (como a Rodoviária Nacional, a Brisa ou a ANA, além da tentativa da TAP), de telecomunicações (PT) e de atividades industriais (CIMPOR, Secil, Portucel, Quimigal, Setenave ou, mais recentemente, a Efacec). O Estado português abdicou de inúmeras empresas produtivas, lucrativas e cuja atividade tem uma dimensão estratégica para a economia nacional, não apenas pela atividade que desenvolvem, como pelo potencial de alavancar o investimento privado a montante e a jusante.

Se olharmos para as grandes privatizações do período da Troika – EDP, REN, ANA e CTT –, justificadas com a suposta necessidade de reduzir a despesa do Estado e angariar receitas para ajudar a pagar a dívida, o cenário é desolador: na maioria dos casos, houve uma redução do investimento na economia nacional, um corte no número de trabalhadores e a canalização de dividendos para os privados, que, só numa década, já encaixaram cerca de metade do que pagaram pelas empresas. O Estado abdicou de empresas lucrativas por um montante que permitiu pagar... apenas 3,3% da dívida pública. O caso mais recente da Efacec, uma empresa com potencial de inovação na área da transição energética que acaba de ser entregue a um fundo alemão, mostra que a prática governativa não mudou assim tanto.

O grande resultado deste processo foi o enfraquecimento do setor público. O Estado abdicou de empresas estratégicas para a definição de uma política energética e de inovação e abraçou um processo de integração europeia que retirou ou restringiu significativamente os instrumentos de política industrial, tendo-se limitado à atribuição de benefícios fiscais que, no caso do IRC, já ascendem a 1637 milhões de euros e cujos critérios e eficácia nem sempre são claros. Pelo caminho, perdeu-se a capacidade administrativa e as competências técnicas necessárias para uma política de planeamento público que permitisse definir objetivos sobre os setores de atividade que devem ser apoiados (com base em critérios como a descarbonização da economia, ou a substituição de importações), requisitos claros sobre a qualidade do emprego criado e a sustentabilidade ambiental dos projetos e normas que garantam que os investimentos têm retorno para o país.

Uma política industrial ativa seria importante para responder a um dos principais desafios que o país enfrenta: a necessidade de mudar o perfil de especialização produtiva da economia e evitar a crescente dependência de setores como o turismo ou o imobiliário, que têm baixo potencial produtivo, incorporam pouco conhecimento e tecnologia e são marcados por baixos salários e precariedade, sendo não apenas responsáveis pela estagnação económica como pela subida galopante dos preços da habitação e, consequentemente, pela perda de poder de compra de boa parte das pessoas que vive no país.

Na ausência de uma estratégia coerente, não surpreende que seja difícil descortinar os objetivos estratégicos de boa parte dos investimentos privados que recebem apoios do Estado – tanto de forma direta, através de benefícios fiscais, como de forma menos direta, através da agilização de procedimentos. Na verdade, entre os Projetos de Interesse Nacional (PIN) que beneficiam da simplificação de processos administrativos, um dos setores que se tem destacado é precisamente o do turismo, o que mostra como a mudança da estrutura produtiva está longe de ser uma prioridade clara na definição do "interesse nacional".

Portugal é hoje o 2º país europeu com menor peso das empresas públicas na economia. O Estado, que sempre desempenhou um papel central no processo de inovação, perdeu boa parte das competências e estruturas necessárias para o planeamento económico. Com níveis historicamente baixos de investimento público e pouca vontade política para o recapacitar, os governos ficaram mais dependentes dos investimentos privados e mais permeáveis aos interesses de quem os promove. Depois de seguirmos à risca as recomendações do consenso liberal, aquilo com que ficámos foi um Estado demasiado vulnerável a interesses privados.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O centro de dados de Sines vale todo este imbróglio?

Para os investidores em grandes centros de dados, Portugal é um destino atractivo. O facto de Portugal ser atractivo para estes investidores não significa, no entanto, que o investimento em causa seja benéfico para o país na mesma proporção. 

Quando anunciou o projecto em 2021, o Governo apresentou-o como “o maior investimento estrangeiro captado pelo país desde a Autoeuropa” — cerca de 3,5 mil milhões de euros. O Governo apontava ainda o “enorme potencial de exportação de serviços” e a alteração das “características do investimento” que tem sido captado para Sines, na direcção da transição digital. Mas estes dados e argumentos valem menos do que aparentam.  

Desde logo, a comparação com a Autoeuropa é desmedida. A empresa alemã de Palmela emprega perto de cinco mil trabalhadores e compra grande parte dos componentes de que necessita a empresas que produzem no país. Também mantém relações próximas com várias outras entidades nacionais (universidades, institutos politécnicos, centros tecnológicos, centros de formação, etc.), contribuindo assim para o desenvolvimento do sistema nacional de inovação.  

O impacto esperado do centro de dados de Sines não tem nada de semelhante — seja ao nível do emprego, do valor acrescentado nacional, do efeito de arrastamento sobre a economia ou do desenvolvimento tecnológico do país. 

O resto do meu artigo pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

A Universidade Neoliberal e os seus Rankings

A universidade neoliberal é uma empresa e, como tal, vive num mercado. Oferece um produto, produzido pelos seus recursos humanos e tem de captar clientes que comprem esse produto. Para isto, tem de apostar no marketing e na "marca" e é particularmente zeloso dessa marca.

Orgulhosamente, não se distinguem de uma empresa de outro setor qualquer. É até estranho que depois se sintam ofendidos ao serem comparados com "fábricas de salsichas" quando o modelo de negócio tanto se aproxima.


A dificuldade do modelo de negócio está no facto de se tratar de um setor bastante concorrencial e, vai daí, o modelo negócio precisa de apostar na diferenciação do produto, em particular, para conseguir captar clientes com maiores rendimentos e assim maximizar as receitas. Como se o negócio das salsichas estivesse saturado e tivessem de procurar a diferenciação com novas linhas gourmet, que para vingar se lançam em concursos internacionais que coloquem um selo de qualidade dado por um júri duvidoso qualquer.

Esta necessidade de diferenciação foi aproveitada por outras empresas que aí viram a oportunidade de negócio de diferenciar as universidades através de rankings. Surgiram assim, e proliferaram como cogumelos os rankings de universidades. Estes rankings avaliam as universidades em diversos parâmetros (produção científica, reputação, prémios, financiamento, internacionalização) que depois usam para gerar um único score que permita ordená-las de acordo com a sua (alegada) qualidade em geral.

As universidades, por todo o mundo, abraçaram este novo produto. Publicitam-no nos seus sites e usam-no sem rodeios nas suas iniciativas de marketing, seguem-se por ele no delinear da estratégia e na gestão da instituição, contratam recursos humanos para seguir os seus resultados. 

Seguindo o modelo, sempre que sai o resultado de um ranking, lá surgem os artigos laudatórios das próprias universidades, orgulhosas com o seu resultado que, dizem, atesta a excelência da investigação, o trabalho desenvolvido ou a superioridade da estratégia da instituição. 

Um exemplo é particularmente elucidativo. 

Saíram recentemente os resultados da edição de 2024 do ranking Times Higher Education (THE2024), um dos mais importantes e reconhecidos a nível mundial. As universidades portuguesas apressaram-se a publicitar os seus resultados como é costume. A UP que lidera o ranking nacional (mas a par da Ulisboa e da UC), apresenta em título: "U.Porto volta a liderar Portugal no ranking da Times Higher Education".

Ao longo das anteriores 4 edições deste mesmo ranking, a Universidade Católica Portuguesa havia sido sucessivamente classificada como a melhor universidade portuguesa. 



Este facto foi sempre apresentado como uma vitória desta universidade. A Reitora afirmava, no ano passado: “o reconhecimento deste prestigiado ranking internacional revela, acima de tudo, a consistência e relevância do trabalho produzido pela comunidade académica da UCP, que tem ao longo dos anos vindo a reforçar a especialização da sua investigação, um dos indicadores mais importantes deste ranking”  e no ano anterior que era “a consistência do trabalho e a qualidade que se reflete mais uma vez no ranking THE.” Já no primeiro ano em que ascenderam ao 1º lugar a nível nacional: "Este resultado demonstra a competitividade da estratégia de I&D da Universidade Católica e também o valor do sistema científico Nacional. Sobretudo trata-se do reconhecimento do trabalho notável da comunidade académica da UCP."

A UCP teve uma subida impressionante na edição de 2020 (do intervalo 601-800 para 351-400) subido pelo menos 200 lugares e no máximo 450. 

Mas, se procurarem por notícias hoje, não existe referencia alguma ao ranking THE2024 no website da UCP.  Na edição de 2024 a UCP surge no intervalo 801-1000, ou seja, desceu pelo menos 400 posições, no máximo 650. A nível nacional passou do 1º para o 8º lugar, no mesmo patamar que a Universidade do Algarve e da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

O que é que aconteceu à UCP de 2023 para 2024? Desapareceu metade da universidade? O trabalho perdeu consistência? A especialização na investigação deixou de funcionar? O que se passou com a estratégia de I&D? Claro que não. Mas para entender a descida temos de entender primeiro a subida.

Ainda em 2019 notei que o excelente resultado da UCP dependia de um único dos 5 critérios onde obtinha resultados extraordinários a nível mundial, quando nos restantes tinha resultados bem abaixo de outras universidades portuguesas, o que se volta a verificar na edição passada, como se pode ver na imagem:



O critério citations valia 30% do resultado total do ranking e era composto, exclusivamente, por um cálculo de total de citações pelo total de publicações na base de dados SCOPUS, como se pode ver na nota metodológica do THE2022. Este critério pretendia, portanto, evidenciar a qualidade da investigação levada a cabo nas instituições. Para termos uma ideia, as melhores universidades a nível mundial neste critério na edição de 2023 eram as seguintes:
  • Arak University of Medical Sciences, do Irão
  • Cankaya University, da Turquia
  • Duy Tan University, do Vietname
  • Golestan University of Medical Sciences, do Irão
  • Jimma University, da Etiópia
  • Qom University of Medical Sciences, do Irão
Assim, de repente, surge-nos como provável que o Irão se tenha vindo a evidenciar como uma superpotência na área das ciências médicas?

A explicação para este fenómeno é fácil. Uma análise básica na base de dados SCOPUS mostra que os artigos mais citados atribuídos à UCP são os ligados ao projeto Global Burden of Disease, um projeto internacional cujas publicações são atribuídas a centenas de autores a nível mundial, com centenas de citações que contavam de igual forma para qualquer instituição de qualquer um desses investigadores.

Uma pesquisa rápida no SCOPUS identifica que todos os 10 artigos mais citados da UCP estão ligados a este projeto, com uma média de 714 autores e 3558 citações cada. Todos os artigos são de 2017 e 2018.

Este problema no ranking THE está identificado há anos, primeiramente relativamente aos projetos relacionados com o CERN cujas publicações eram assinadas por milhares de autores. O THE agiu dividindo as citações por instituição quando as publicações contavam com mais de 1000 autores, mas até 999 autores, cada instituição de cada autor "recebe" a totalidade das citações do artigo.

O resultado da UCP nos últimos anos fica explicado facilmente assim. A uma universidade relativamente pequena e com poucas publicações bastava conseguir incluir um autor neste projeto para aumentar imenso o número de citações e desta forma galopar no ranking. A consistência, a qualidade ou a estratégia não são para aqui chamados. 

A UCP esteve longe de ser a única como já vimos e este problema foi facilmente identificado, até em Portugal, como se pode ver aqui, aqui ou aqui*.

Então o que aconteceu este ano foi que o THE alterou este critério:

A mudança do critério diz mais sobre o absurdo dos rankings do que sobre a UCP. Os critérios são, no fundo, casuais. A atribuição de 15% (ou 20% ou 25%) em vez de 30% a um determinado critério não obedece a nenhuma lógica. A própria escolha dos critérios também é largamente arbitrária e cada ranking universitário escolhe os seus critérios obtendo resultados muito diferentes entre si. E não pensemos que os problemas se resumem ao indicador de citações ou ao próprio THE. Trata-se de um problema geral de todos os rankings e de todas as universidades que os promovem.

Por este tipo de problemas, a Universidade de Utrecht, que tinha ficado em 66º a nível mundial no THE 2023, retirou-se do ranking afirmando: 

É uma coragem que mais universidades deviam ter. A capacidade de tomar essa decisão consciente e fundamentada exige a rejeição do modelo neoliberal de universidade e substituí-lo pela universidade democrática, mais voltada para o conhecimento e para a sociedade e menos para marcas e resultados financeiros. Mas eu rio-me quando quero imaginar as universidades portuguesas a darem origem a este tipo de reflexão. Com o atual Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), o poder concentrado nos reitores, as composições duvidosas dos Conselhos Gerais, os negócios das propinas internacionais e das propinas de pós-graduação, entre tantas outras coisas que mostram o profundo enraizamento do modelo da universidade neoliberal. 

domingo, 19 de novembro de 2023

Da série: O impacto da procura de habitação por estrangeiros é residual

No recente livro da Iniciativa Liberal (IL) sobre a crise de habitação, embrulhado, para disfarçar, em papel +Liberdade, um dos mitos a que se recorre, para sustentar a tese de que o problema se resume à falta de casas, consiste na ideia de que o investimento imobiliário estrangeiro tem (tal como o Alojamento Local), um peso residual, devendo o mesmo, por isso, ser desconsiderado nas razões da génese e do agudizar da crise.

Esta ideia, contudo, não só desvaloriza o aumento significativo, nos últimos anos, da procura imobiliária externa (que representou 94% do total do investimento direto estrangeiro no primeiro semestre de 2023), como negligencia o facto de as procuras especulativas de habitação, nacionais e internacionais, assumirem uma lógica de incidência territorial cumulativa, que desaconselha, portanto, a olhar para cada uma delas de forma isolada.


Mas mesmo cingindo a análise de impacto à compra de casas por estrangeiros, e tomando o caso da Área de Reabilitação Urbana de Lisboa (ARU) como referência, vale a pena reparar nos dados recentes da Confidencial Imobiliário, divulgados pelo Jornal de Negócios. No primeiro semestre de 2023, a aquisição de imóveis de habitação por estrangeiros representou quase 25% do total (770 alojamentos num total de 3 150) e 28% do volume de negócios. E caso se considerem apenas as aquisições por particulares (excluindo as empresas), o peso relativo das compras por estrangeiros passa para quase 33% do total.

Sendo sobretudo nas freguesias do centro histórico que se concentram as compras de habitação por particulares estrangeiros, a Confidencial Imobiliário dá nota, no seu comunicado, que «o interesse dos estrangeiros por freguesias fora do centro histórico da capital tem aumentado», sendo nos territórios «mais afastados», como nos «casos de Benfica e São Domingos de Benfica, Campolide, bem como Alcântara, Areeiro e Alvalade», que «o número de transações internacionais mais cresceu». O que significa, portanto, que a procura externa de alojamentos não só não é residual, ao contrário do que insistentemente afirma a IL, como se está a alastrar a toda a cidade.

sábado, 18 de novembro de 2023

Sindicatos contra o envio de armas para Israel

 

«No dia 31 de outubro, de acordo com uma notícia avançada pela Reuters, os sindicatos belgas do setor dos transportes solicitaram aos seus membros a recusa de manuseamento de equipamentos militares enviados a Israel. Em comunicado conjunto, os sindicatos ACV Puls, BTB, BBTK e ACV-Transcom, afirmaram que os trabalhadores aeroportuários viram carregamentos de armas destinados às operações militares de Israel em Gaza. No seu comunicado, os sindicatos referem o genocídio em curso, a necessidade de travar os ataques a civis e de impedir aumento de vítimas inocentes na Palestina, expressando o seu compromisso pela paz e apelando a um cessar-fogo. [...] Didier Lebbe, presidente da CNE, uma das principais centrais sindicais belgas, afirmou: «Nós não queremos participar num crime de guerra que está em marcha nesta região». O sindicalista esclareceu ainda que os aeroportos belgas são ponto de passagem de armas, provenientes dos Estados Unidos, destinadas ao conflito no Médio Oriente.»


Houve ações semelhantes noutros pontos da Europa: em Inglaterra, sindicalistas e ativistas bloquearam recentemente uma fábrica de armas na região de Kent, e em Barcelona, os membros do sindicato dos estivadores recusaram-se a carregar e descarregar material militar destinado ao conflito na região da Gaza. O motivo é o mesmo: "acabar com todas as formas de complacência com crimes de guerra".

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Marcha pela Palestina, amanhã em Lisboa


Promovida pela Plataforma Unitária de Solidariedade com a Palestina, marcha entre a Praça do Município (concentração às 15h00) e a Assembleia da República.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Alguém se lembra do Acordo de Paris?

 

Do relatório "Production Gap Report 2023", elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente: apesar das promessas de cortar para metade as emissões de gases de efeito de estufa até 2030, os planos governamentais preveem que a produção de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás) atinja mais do dobro do montante que é considerado compatível com as metas climáticas assumidas no Acordo de Paris, acentuando o fosso entre os discursos e as práticas.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Não se iludam


Por mais que Luís Montenegro jure e prometa que não fará qualquer coligação com o Chega e que só governará se ganhar as eleições. De Relvas a Moedas, as pressões para não fechar portas a Ventura já se fazem sentir e tendem a aumentar com a aproximação dos momentos decisivos. Sobre a capacidade de manter compromissos, basta recordar as promessas de Passos Coelho nas legislativas de 2011 e tudo o que se seguiu.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Tudo, em alguns lados, ao mesmo tempo


«Quando confrontados com os efeitos das novas procuras especulativas na subida dos preços da habitação, indissociáveis da "transformação das casas num negócio", como assinalou Sam Tsemberis (criador do modelo Housing First) em entrevista recente ao Diário de Notícias, a direita política e agentes do setor imobiliário e do turismo procuram desvalorizar esses fatores, alegando, de forma sistemática, que os mesmos têm um peso residual. Isto é, que não é nestas novas procuras, associadas ao investimento estrangeiro e ao aumento do Alojamento Local, a par da procura de imóveis na lógica especulativa, que deve ser encontrada a razão de ser da atual crise de habitação.
O (...) problema da tese da "falta de casas", a que se recorre para desvalorizar as novas procuras, de natureza especulativa, que encaram a habitação como um simples "ativo financeiro", é que não atende à incidência territorial cumulativa dos investimentos imobiliários em questão. Isto é, apresenta o peso relativo do Alojamento Local e dos investimentos imobiliários no seu todo, como se a sua incidência fosse homogénea no território. O que está longe de ser assim.
»

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Internacionalista


O enviesamento das direcções editoriais não resulta tanto de uma intenção dissimulada como de uma cegueira sincera. Criticá-las por terem «dois pesos e duas medidas» implicaria lamentar o desvio em relação a uma norma - a da igualdade de tratamento ou da igual dignidade dos seres humanos - que elas já abandonaram há muito tempo. 

Benoît Breville e Pierre Rimbert, Um jornal não alinhado, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Novembro de 2023.

sábado, 4 de novembro de 2023

Terça-feira, em Lisboa


Será lançado o livro de Hugo Mendes e Frederico Pinheiro, «Patos Desalinhados não Voam», editado pela Zigurate. A apresentação está a cargo de Ana Gomes e António Pedro Vasconcelos. A sessão tem lugar no Auditório do Liceu Camões, dia 7, a partir das 18h30.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Dia 8, videoconferência Práxis sobre Segurança Social

«A importância da Segurança Social pode ser assim ilustrada: a taxa de risco de pobreza e exclusão social em Portugal (2022 – Eurostat), de 20,1%, mais do que duplicaria sem pensões e prestações sociais asseguradas pelo sistema público de Segurança Social. O seu orçamento (2024) prevê receitas de 40,6 mil milhões (quase 2/3 provenientes da TSU) e uma despesa de 35,6 mil milhões de euros. Cerca de 62% da despesa será com pensões de velhice, invalidez e sobrevivência. As reservas financeiras do Fundo de Estabilização Financeira devem ser no final do ano 26,7 mil milhões de euros, quase 10% do PIB.
Compreende-se a insistente vontade do capital, dos neoliberais e dos mercados financeiros em submeterem a Segurança Social à lógica do lucro e às incertezas dos mercados. Como também a necessidade de permanente vigilância social para contrariar a tentação dos governos usarem indevidamente o financiamento e as reservas da Segurança Social, de que depende o futuro do sistema e o nosso futuro
».

Debate por videoconferência promovido pela Práxis, que conta com a participação de José Cid Proença, jurista e ex-Director Geral da Segurança Social, com apresentação e comentário de Henrique Sousa, presidente da Mesa da Assembleia Geral da Práxis. As pré-inscrições na sessão podem ser feitas aqui.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Rendição

Se a empresa é estratégica – e é – o Estado não tem condições para ficar com ela? É verdade que a privatização foi decidida há muito, o que não se sabia eram os números da doação.

Ana Sá Lopes coloca a questão certa a propósito da privatização da Efacec. Este P sem S há muito que se rendeu ao neoliberalismo realmente existente: privado é bom, público é mau, exceptuando quando este último é chamado a socializar prejuízos e a reduzir riscos para certas frações do capital. 

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Escalões de IRS: queremos mesmo voltar aos anos 90?


No âmbito da discussão sobre o Orçamento do Estado para 2024, o Instituto +Liberdade - think tank não oficial da Iniciativa Liberal - divulgou um gráfico sobre a evolução dos escalões de IRS em Portugal. Na publicação, pode ler-se que "Portugal tem, atualmente, nove escalões de IRS, o número mais elevado das últimas três décadas", sublinhando que, na década de 1990, o país "tinha apenas quatro escalões de IRS" e que "a taxa máxima se ficava pelos 40%", tendo aumentado após a viragem do século e também durante o programa de ajustamento da Troika. O Instituto sublinha ainda que não houve "alívio fiscal sobre os maiores rendimentos no pós-Troika" e que o número de escalões aumenta a "complexidade do imposto".

Apesar de a complexidade ser um aspeto relevante, não é assim tão difícil encontrar informação sobre as taxas médias aplicadas em cada escalão de rendimento. O cálculo pode complicar-se, sim, com as deduções específicas associadas a diferentes tipos de despesas (tema para outro texto), mas é difícil argumentar que os atuais nove escalões tornam as contas excessivamente complexas. A principal crítica que os liberais apresentam face ao número de escalões de IRS prende-se mesmo com a progressividade do imposto, como, de resto, se percebe pelo foco que o Instituto +Liberdade decidiu colocar na evolução da taxa máxima. No debate político, a IL destacou-se por defender o fim da progressividade, propondo uma taxa plana de 15% para todos os rendimentos do trabalho.

Neste contexto, é preciso perceber para que serve a progressividade do IRS: combater as desigualdades que se verificam na repartição do rendimento. Desse ponto de vista, o IRS português parece ser eficaz: na análise mais recente, levada a cabo com recurso a microdados da Autoridade Tributária, conclui-se que o IRS reduziu em 12% as desigualdades de rendimento. O índice de Gini - que mede a desigualdade de um país e varia entre 0 (igualdade completa) e 1 (desigualdade completa) - passou de cerca de 0,37 durante a década de 1990 para 0,31 em 2019, o que indica que os níveis de desigualdade se reduziram em Portugal ao longo das últimas décadas. Embora não explique tudo, é difícil argumentar que o aumento da progressividade do IRS não desempenhou um papel importante nesta tendência.

Em geral, existe uma relação clara entre a progressividade fiscal e a desigualdade. Um dos estudos mais influentes do economista Thomas Piketty e dos seus co-autores, que analisaram a evolução da progressividade entre 1960 e 2010 em diversas economias, mostra que, nas últimas décadas, os países que mais reduziram a taxa de imposto aplicada aos 1% mais ricos foram aqueles onde a fração do rendimento nacional captada por estes mais aumentou. Por outras palavras, foi nesses países que o 1% do topo passou a arrecadar uma fatia ainda maior do bolo.

Portugal até se destaca pela negativa ao longo desse período, tendo sido um dos países que mais reduziu a tributação sobre os mais ricos. Apesar de a taxa máxima de imposto ter aumentado na última década, o país continua a apresentar níveis de desigualdade de rendimento acima da média da União Europeia.

Além disso, a crescente desigualdade de riqueza - menos sujeita a tributação - e a desigualdade na repartição funcional - isto é, na distribuição do rendimento produzido na economia entre trabalho e capital -, assinaladas recentemente pelo Alexandre Abreu, sugerem que ainda há muito a fazer no combate às desigualdades. É mais um motivo para olharmos com bons olhos para a progressividade fiscal. Complementado pelas transferências sociais, o IRS progressivo é o que tem evitado que o país se torne ainda mais desigual. Voltar à situação dos anos 90 pode ser favorável para os mais ricos, mas não o será para a maioria da pessoas.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Viragem para a direita?


A jornalista Ana Sá Lopes defendeu recentemente que “não é fácil ser-se oposição de direita por estes dias”, ao considerar que o governo do PS se teria apropriado do seu programa em matéria de finanças públicas.

Do continuado sacrifício do investimento em infraestruturas e serviços públicos, desta forma cada vez mais degradados, à aposta na redução de impostos diretos, mais progressivos, acompanhado de reforços dos impostos indiretos, mais regressivos, é caso para dizer: não é fácil ser-se defensor de políticas de esquerda por estes dias.

A aposta em novas privatizações – da TAP à EFACEC –, ou numa política de habitação centrada em transferência de rendimentos para os proprietários, sob a forma de benefícios fiscais, por exemplo, só confirmam a orientação neoliberal geral do atual governo.

O resto do artigo pode ser lido no setenta e quatro.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Da ocupação sufocante


«Num momento crucial como este, é vital ter princípios claros – começando pelo princípio fundamental de respeitar e proteger os civis. Condenei inequivocamente os atos de terror horríveis e sem precedentes de 7 de outubro, perpetrados pelo Hamas em Israel. Nada pode justificar o assassinato, ferimento e rapto deliberados de civis – ou o lançamento de foguetes contra alvos civis. Todos os reféns devem ser tratados com humanidade e libertados imediatamente e sem condições.
(...) É importante reconhecer também que os ataques do Hamas não surgiram do vácuo. O povo palestiniano tem estado sujeito a 56 anos de ocupação sufocante. Viram as suas terras serem continuamente devoradas por colonatos e assoladas pela violência. A sua economia foi sufocada, as suas populações deslocadas e as suas casas demolidas. As esperanças de uma solução política para a sua difícil situação têm vindo a desaparecer. Mas as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas e esses terríveis ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano.
»

Excertos da corajosa intervenção de António Guterres na reunião do Conselho de Segurança que ontem decorreu nas Nações Unidas. Uma intervenção que vale mesmo a pena ler na íntegra (e cuja tradução pode ser consultada em Ler Mais).

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Alguém me explica o que são “contas certas”?

A explicação repetida por António Costa e Fernando Medina para o aforro forçado é que Portugal tem de sair do pódio dos países mais endividados da zona euro, para nos protegermos de futuras instabilidades financeiras. Parecem ignorar que dos oito países da UE que foram sujeitos a programas de resgate em 2010-2012, só dois tinham então rácios da dívida superiores à média da zona euro. Se o objetivo é prevenir a repetição da troika, o governo está a olhar para o alvo errado. 

Se o objetivo é antes garantir a sustentabilidade da dívida pública a prazo (o que é positivo e desejável), para isso não são necessários excedentes orçamentais. Ao contrário do que se pensa, não é preciso ter saldos positivos para reduzir a dívida. Por exemplo, nos últimos 10 anos para os quais existem dados disponíveis no Eurostat, a dívida pública do conjunto dos países da UE desceu, enquanto os saldos orçamentais foram em média 2,6% do PIB (ou seja, houve défices e não excedentes). A explicação não é intuitiva, mas é fácil de compreender: dentro de certos limites, o crescimento anual das economias permite pagar os défices anuais ao mesmo tempo que se abate a dívida. Tendo em conta as previsões de crescimento económico e de taxas de juro para os próximos anos, Portugal continuaria numa trajectória de redução sustentada da dívida pública mesmo que tivesse défices orçamentais na ordem de 1% do PIB. 

A expressão “contas certas” merece um prémio de marketing político, mas é difícil associá-la com rigor às opções orçamentais do governo. O que Costa e Medina estão a fazer com os nossos recursos parece-se cada vez mais com uma pessoa a quem chove em casa mas não faz obras, que está doente mas não vai ao médico e que abdica investir na educação dos filhos, porque tem de encher o mealheiro, não vá alguma coisa acontecer no futuro. Chamar a isto “contas certas” é um pouco absurdo. Mas em termos políticos funciona. 

O resto do meu artigo pode ser lido no site do Público. 

Investimento público: para o ano é que é, não era?

 

A discussão sobre o Orçamento do Estado para 2024, apresentado pelo governo na semana passada, tem-se centrado no lado da receita. A redução dos impostos, com destaque para a diminuição do IRS para os primeiros cinco escalões, foi o tema que mereceu maior destaque na apresentação da proposta pelo governo e nos espaços de comentário. Do lado da despesa, o governo tem colocado ênfase na importância da contenção, tendo em conta o “objetivo essencial [de] redução da dívida pública”, embora não deixe de expressar ambição no que diz respeito ao investimento público, em que promete o melhor registo desde a Troika.

Não é nada de novo. Em 2016, sobre o investimento público, António Costa dizia que “há duas formas de estar na vida, os que ficam à espera que aconteça e os que fazem acontecer”, colocando-se, sem hesitar, do lado dos segundos. Em 2017, o primeiro-ministro prometia aumentar o investimento público em 20% e distribuir fundos por “escolas, centros de saúde, hospitais, instalações de forças de segurança [e] rodovias”. Em 2018, anunciava novamente “um crescimento mais significativo” desta rubrica. Em 2019, garantia que o investimento público era “absolutamente essencial”. Em 2020, já com o país a enfrentar a pandemia, o investimento passara a ser “absolutamente inadiável”. Em 2021, Costa salientou que “nestes momentos de crise, é mesmo a altura de apostar em fazer aquilo que há muito está por fazer” no que toca ao investimento. Já no ano passado, sublinhou a “forte aposta” do governo no investimento público.

Só houve um problema: em todos estes anos, o país registou os níveis de investimento público mais baixos da sua história recente.


Na verdade, na última década, Portugal foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu.


Todos os anos, houve uma enorme diferença entre as promessas feitas pelo governo no início de cada ano e o valor realmente executado no fim. Entre 2017 e 2023, face aos valores orçamentados, ficaram por aplicar 5802 milhões de euros. E isto é se aceitarmos a previsão do próprio governo sobre a execução do investimento neste ano, que também pode não se concretizar.


O que é certo é que isso não acontece por falta de necessidades. No Serviço Nacional de Saúde, o desinvestimento degrada o serviço público e promove a contratação de serviços aos privados. Nos transportes, a falta de investimento tem levado ao encerramento de várias linhas ferroviárias e à supressão sistemática de comboios ou autocarros. Na habitação, o país continua a ter um dos mais reduzidos parques habitacionais públicos da União Europeia, além de falhar na manutenção da pouca habitação social existente. Serve de pouco reduzir impostos se o desinvestimento no Estado Social empurrar as famílias para serviços privados mais caros.

Desta vez, o governo apresenta aquilo que parece ser uma justificação antecipada para o seu registo desapontante neste campo: a criação de um Fundo de Investimentos Estruturantes, supostamente destinado a armazenar dinheiro para financiar investimentos necessários no futuro. O ministério das Finanças até já avança que poderá financiar a construção da linha de alta velocidade (TGV). Não deixa de ser irónico que se refira a este projeto, que vem sendo adiado por sucessivos governos há décadas, ainda para mais num ano em que o investimento na ferrovia já sofreu um corte de 25% face ao valor inicialmente orçamentado. O problema desta opção prende-se precisamente com o eterno adiamento dos investimentos necessários no país, apesar das necessidades evidentes.

O argumento do governo para justificar a estratégia de contenção orçamental é o de que o único caminho que permite reduzir a dívida pública passava, antes, pela eliminação dos défices orçamentais e, agora, pela acumulação de excedentes. Só que há bons motivos para pensarmos que esta é uma estratégia orçamental contraproducente. Isso deve-se ao «efeito multiplicador», isto é, ao impacto que a política orçamental tem no funcionamento da economia. A maioria dos estudos sobre multiplicadores da despesa conclui que estes são superiores a 1: por cada aumento de 1 euro na despesa (e, sobretudo, no investimento) do sector público, o PIB cresce mais do que 1 euro.

O que isto significa é que os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais, por vários motivos. O investimento permite assegurar a provisão de elementos indispensáveis à atividade económica e tem potencial para alavancar o investimento privado, que responde sobretudo ao dinamismo da economia. Além disso, pode ajudar a substituir importações: ao investir em transportes públicos e na eficiência energética dos edifícios, reduz-se o consumo de combustíveis fósseis importados (e as emissões de carbono associadas).

Nesse sentido, a promoção do investimento não só é compatível com a sustentabilidade das contas do Estado, como pode ajudar a reduzir de forma mais sustentada a dívida pública em percentagem do PIB, especialmente num país com necessidades significativas de investimento, como até a OCDE reconheceu recentemente. Já a obsessão do governo com os excedentes orçamentais é uma escolha que sai cara ao país.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Da série: Não há Alojamento Local a mais


«Em setembro de 2023, Nova Iorque começou a aplicar um regulamento que visa acabar com todos os Alojamentos Locais ilegais. A Airbnb apressou-se a reagir, declarando que a iniciativa do governo da cidade representava uma proibição "de facto" do AL na cidade. De sublinhar que, em 8 de outubro, existiam, em Nova Iorque 44,5 mil casas em Airbnb. Comparativamente, Lisboa, na mesma data tinha na plataforma de agregação airDNA 18 mil casas. (...) Estes números são, contudo, subavaliados, porque existem mais operadores, tais como a VRBO e a Booking.com, para além de muitos operadores de menor dimensão e de outros que não estão presentes em nenhuma destas redes. Mas é impossível fazer esta comparação sem ter em conta que Nova Iorque tem 8.804.190 habitantes e 44,5 mil casas em AL mas que Lisboa tem apenas 547.773 habitantes em 323.981 alojamentos e mais de 18 mil AL. Estes números significam que, para Nova Iorque a proporção de casas em AL é de 0,505% enquanto em Lisboa a proporção é de 3,29%. Ou seja: 6,52 vezes mais! (...) A 8 de Outubro existiam no Idealista 12 mil casas em arrendamento: imaginemos que este valor era reforçado com as 18 mil casas em AL na mesma data: que tipo de descida de preços poderíamos esperar de um aumento de 150% no número total de casas disponíveis para arrendamento?»

Excertos do recente artigo de Rui Pedro Martins no Público, «O conflito entre Alojamento Local e a necessidade urgente de habitação em Lisboa e Nova Iorque», a ler na íntegra. Para quem continua a achar que Lisboa não tem Alojamento Local (AL) a mais, ou que esta modalidade de oferta turística não contribui para a redução do acesso à habitação pelas famílias, a comparação com Nova Iorque é esclarecedora.

Quando se pondera o número de unidades de AL (cerca de 45 mil em Nova Iorque e 18 mil em Lisboa) pela população residente e o total de alojamentos nas duas cidades, o resultado é esmagador. Nova Iorque tem cerca de 5 unidades de Alojamento Local por cada mil habitantes e Lisboa 33 (cerca de 7 vezes mais). E na ponderação por mil alojamentos, Nova Iorque tem cerca de 12 unidades de AL e Lisboa 56 (cerca de 5 vezes mais).

Encontrando-se portanto, em termos comparativos, numa posição bem menos preocupante, mas percebendo o impacto que o AL tem na redução da oferta de habitações para fins residenciais, Nova Iorque não prescindiu de adotar mecanismos de regulação mais eficazes, em que, «para se poderem registar, os proprietários não podem colocar em AL uma casa completa». Ou seja, a oferta apenas pode ser criada na residência habitual dos proprietários, impedindo assim a sua transferência para o setor do turismo e a respetiva mudança de uso. Nada para que Carlos Moedas - o autarca que até participa em manifestações de agentes do setor - pareça estar disponível.

sábado, 21 de outubro de 2023

Megafone #14 - Orçamento do Estado para 2024: quem serve o PS?


Megafone #14 - Orçamento do Estado para 2024: quem serve o PS?

Multiplicam-se os problemas estruturais do país. O empobrecimento dos jovens, dos trabalhadores, reformados e pensionistas é visível, mas também igualmente visível é a acumulação de lucros dos grandes grupos económicos. O Governo tinha que tomar uma opção e tomou-a: ficou do lado daqueles que têm ganho com o aumento do custo de vida. Neste episódio do Megafone foram dissecadas as opções reflectidas no OE, as previsões macroeconómicas e a propaganda adjacente, assim como os condicionamentos a que Portugal está sujeito consequentes da submissão à União Europeia e Euro. Para tudo isto contámos com a participação de Duarte Alves, deputado do PCP à Assembleia da República, José Lourenço, economista, e Paulo Coimbra, também economista. 

O IRC em Portugal é mesmo o "2º mais pesado da OCDE"?

Esta semana, o jornal ECO publicou uma notícia em que se lê que, em Portugal, o imposto sobre as empresas é "o segundo mais elevado entre os 38 países da OCDE", citando dados de dois institutos liberais - o Tax Foundation e o +Liberdade - que apontam para a fraca competitividade fiscal do país. O estatuto editorial do ECO diz que o seu objetivo é "contribuir para uma sociedade informada" e "separar o que interessa do que é dispensável" na análise económica. Se fosse verdade, não tentariam induzir-nos em erro sobre o IRC que a maioria das empresas paga em Portugal.

A taxa geral de IRC em Portugal é de 21%. Convém ter em conta que esta taxa já foi substancialmente reduzida ao longo dos últimos 30 anos, como se observa no gráfico ao lado. Para uma empresa atingir a taxa máxima de IRC, teria de ser sujeita não apenas à derrama municipal, que varia entre 0% e 1,5% consoante o município em questão, como também à derrama estadual, que pode ir dos 3% aos 9% e que se aplica apenas a empresas que apresentem um rendimento coletável superior a €1,5 milhões.

Em 2020, a percentagem de empresas portuguesas com rendimento coletável superior a 1,5 milhões de euros - ou seja, a percentagem de empresas que poderia ser alvo da derrama municipal ou estadual - correspondia a... 0,8% das empresas com coleta registada. É por isso que é útil olhar para a taxa efetiva de IRC, que indica o peso do imposto efetivamente pago no rendimento total das empresas quando se consideram os vários benefícios fiscais. Em 2020, a taxa efetiva de IRC foi de 18,4% - pouco mais de metade da taxa máxima.

Apesar de ser difícil (para não dizer impossível) encontrar uma empresa que pague 31,5% de IRC, há quem argumente que a taxa máxima funciona como desincentivo ao investimento. No entanto, há três aspetos que o desmentem. Por um lado, o que os dados da Autoridade Tributária nos dizem é que algumas grandes empresas chegam a pagar menos do que as médias: nos últimos anos, as empresas com volume de negócios entre €1,5 milhões e €75 milhões pagaram taxas médias efetivas inferiores às que tinham volume de negócios inferiores a €1,5 milhões. Por outro lado, o que não falta em Portugal são isenções e benefícios fiscais para as empresas que decidam investir. Por fim, é muito pouco credível que alguma empresa não invista apenas para não pagar uma taxa de imposto ligeiramente superior, sobre rendimentos muito superiores.

Centrar a discussão na taxa máxima de IRC revela falta de rigor ou de seriedade. Até o instituto citado pelo ECO já confirmou, talvez inadvertidamente, que não há qualquer relação entre estas taxas e o rendimento per capita dos países. Na escolha das fontes de informação, também é preciso separar o que interessa do que é dispensável.