Quem tenha recentemente circulado de carro por uma rotunda pode ter reparado, durante mais tempo do que é seguro, num outdoor: um martelo em relevo e um muro com a inscrição, exclusivamente em inglês, «we need education» (necessitamos de educação). A alusão irónica aos Pink Floyd era clara para uma certa geração, com um certo perfil socioeducativo e com os filhos em casa há demasiado tempo. Para que não houvesse dúvidas, a Iniciativa Liberal (IL) inscreveu ao lado do muro, com letras mais pequenas: «Cada escola fechada é um muro erguido. Abram as escolas».
sexta-feira, 9 de abril de 2021
A liberdade a sério está para lá do liberalismo
Quem tenha recentemente circulado de carro por uma rotunda pode ter reparado, durante mais tempo do que é seguro, num outdoor: um martelo em relevo e um muro com a inscrição, exclusivamente em inglês, «we need education» (necessitamos de educação). A alusão irónica aos Pink Floyd era clara para uma certa geração, com um certo perfil socioeducativo e com os filhos em casa há demasiado tempo. Para que não houvesse dúvidas, a Iniciativa Liberal (IL) inscreveu ao lado do muro, com letras mais pequenas: «Cada escola fechada é um muro erguido. Abram as escolas».
Justiça e ambição
quinta-feira, 8 de abril de 2021
quarta-feira, 7 de abril de 2021
Todo um programa, em forma de notícia
No âmbito de um ciclo de debates sobre o Programa Nacional de Reformas, organizado pelo Expresso e a Deloitte, a jornalista Joana Nunes Mateus dava nota, a 30 de março, de que o próximo seria «dedicado à emergente fileira da saúde», acrescentando que «o mote para a discussão é se o PRR não terá público e passado a mais. E privado e futuro a menos». Ou seja, balizando à partida os termos do debate: o público é passado e o futuro da saúde está no privado. Assim, sem pestanejar, num vício de pensamento que não é novo, muito colado à ideia de «reformas estruturais» (que são sempre de direita, lembrem-se) e de «modernização = privado», mesmo depois de se ter tornado evidente o papel decisivo do SNS e o comportamento deplorável da saúde privada na gestão da pandemia.
Com um embrulho tão sugestivo, a prenda não fica atrás. Em peça do dia anterior, o Expresso referia-se aos oradores. Para além das presenças institucionais do Secretário de Estado da Saúde e do Bastonário da Ordem dos Médicos, participariam Joaquim Cunha (diretor executivo do Health Cluster Portugal, que lamenta que «o PRR tem por de mais a parte pública e por de menos a parte das empresas e da economia real»), Carlos Cruz (partner e Life Sciences & Health Care leader da Deloitte, que lamenta que as verbas do PRR «para a resiliência do Serviço Nacional de Saúde vão financiar iniciativas que estavam pensadas e adiadas há anos e anos», em vez de apontar para «reformas transformacionais») e Nelson Fontainhas (partner da Deloitte). Ou seja, sem um debatente que pudesse ser associado à defesa do SNS e do papel direto do Estado na saúde, entre os muitos nomes possíveis. Mas há quem não veja nisto todo um programa e prefira pensar que se trata apenas de uma debate...
Dez anos de resgate. Resgate de quem?
terça-feira, 6 de abril de 2021
Surdez
Os deputados estão a atingir o limite da paciência no convívio com a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho. E isso vem de todos os quadrantes.
Na sessão desta manhã, os deputados do Bloco já não conseguiram esconder a sua dificuldades em lidar com a sua surdez. Basta acompanhar a sessão e ver o momento (1h22m) em que os deputados Isabel Pires e José Soeiro (BE) puseram as mãos na cabeça, ainda que não tenham arrancado cabelos. Já a intervenção inicial do José Soeiro foi feita de pedidos repetidos de informação que não veio e que voltou a não ser dado pela ministra, nem sequer referido na resposta.
A deputada Diana Ferreira (PCP), a quem a ministra chamou Diana Fernandes, insistiu - como o tinha feito o Bloco - no acesso a informação estatística que não é divulgada pela ministra. Criticou que o Governo se recuse a aceitar apoios que deveriam estar a ser dados a trabalhadores que são tidos como independentes, mas que na realidade,na maior dos casos, são falsos independentes. Bruno Dias (PCP) falou da diferença de acesso aos fundos entre as micro e as grandes empresas, da "banda estreita" que é dada às micro e pequenas empresas, concedidos pela ordem de chegada do pedido, ao invés da "banda larga" para as grandes empresas, para quem não houve limitação de apoios pelo momento de chegadado pedido. Mas convém ouvir a resposta do ministro da Economia aos deputados do PCP para perceber por que é que os apoios não chegam ao terreno... (1h42m). Apesar do PCP ser muito discreto neste tipo de apreciações, começam a ser compreensíveis a irritação da deputada Diana Ferreira, que, sem expressar o que quer que seja - além de uma voz menos calma - diz algo do género: "Não vale a pena, não vale a pena..."
Disse o deputado João Almeida (CDS) (1h55m): "O Parlamento não alterou nenhuma forma de cálculo. O Parlamento não alterou nenhuma forma de cálculo. Posso dizer dez vezes, senhora ministra". E tal como outros deputados, voltaram a frisar que a medida não se aplica a beneficiários contributivos, que a medida não se aplica a beneficiários contributivos, ao contrário do que disse a ministra em conferência de imprensa.
E já nem falo do PSD que convocou a sessão.
Algo terá de ser feito. Os deputados passaram já a fase em que fingiam não ver que a ministra não respondia ao que perguntavam e desculpavam o seu disco riscado. Agora, começam a perder o filtro sobre o que pensam e sentem. A próxima fase pode ser estranha do ponto de vista da tradição parlamentar...
Repito: algo deve ser feito, algo deve ser feito, algo deve ser feito, algo deve ser feito, algo deve ser feito...
Dez anos de golpe
“Assinalam-se esta terça-feira dez anos do pedido de resgate português. Foi no dia 6 de abril de 2011 que José Sócrates, pressionado pelo seu ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, comunicou aos portugueses a decisão que há muito se temia”.
Carlos Moedas era um buraco
Declarações do ex-secretário adjunto do primeiro-ministro dos XIX e XX Governo coordenado por Passos Coelho, à comissão parlamentar de inquérito sobre o BES, transmitidas pela televisão pública. Carlos Moedas foi chamado pelo PS para explicar uma conversa com Ricardo Salgado, responsável pelo BES/GES.
- Eu recebi estas pessoas? Recebi. Elas transmiram-me preocupação [para que interviesse junto da Caixa Geral de Depósitos para que fosse dado ao BES algum tipo de crédito]? Transmitiram. Era minha função ouvi-los? Era. Era a minha função no Governo fazer alguma coisa sobre isso? Não era.
Mas se não era sua função "fazer alguma coisa" sobre as preocupações de Ricardo Salgado, por que razão era sua função ouvi-lo?
Talvez Carlos Moedas tivesse desempenhado aquela função que teve o buraco na terra da velha lenda do príncipe de orelhas de burro. O certo é que, no final e à custa de uma tardia, atrapalhada e custosa intervenção pública para viabilizar uma célere saída limpa, tudo correu de feição para a instituição financeira apadrinhada pelo BCE como o principal banco ibérico - o Banco Santander - que se tornou o principal banco privado em Portugal. E veremos o que irá acontecer ao Novo Banco.
Taxa mínima de imposto: uma pedra na engrenagem dos paraísos fiscais?
Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, confirmou ontem o que já se antecipava há alguns dias: o país vai voltar à mesa de negociações da OCDE para defender uma taxa mínima de imposto sobre as empresas a nível global. Depois de Trump ter cortado o diálogo no final do seu mandato, a administração de Biden parece querer avançar com mudanças no sistema de tributação internacional. Além da definição de um limite mínimo, a ideia passa por adotar um método de cálculo uniformizado país-a-país para travar o desvio de fundos para regimes mais favoráveis.
Yellen explicou que pretende "chegar a um acordo sobre uma taxa mínima de imposto sobre as empresas, o que poderá acabar com a corrida para o fundo" na tributação empresarial, área em que, nas últimas décadas, se tem assistido a uma progressiva redução das taxas de imposto efetivas. Já Jake Sullivan, conselheiro para a Segurança Nacional dos EUA, disse que "uma parte central da nossa estratégia de segurança nacional é a competitividade nacional: criar empregos e aumentar os salários a nível interno, e não incentivar os paraísos fiscais". Na verdade, a corrida para o fundo tem sido alimentada por uma visão enganadora da competitividade nacional que assenta na ideia da "concorrência fiscal" entre os países. Na prática, esta ideia favorece a criação de regimes especializados em captar receita fiscal devida noutras paragens e coloca pressão sobre os restantes. O resultado é o que se pode ver no gráfico ao lado: ao longo das últimas décadas, as grandes empresas têm pago taxas de imposto cada vez mais baixas.Em 2017, dois investigadores do Fundo Monetário Internacional (FMI), Philip Lane e Gian Milesi-Ferretti, olharam para os fluxos internacionais de capital e procuraram perceber quais eram as principais tendências dos últimos anos. O foco do estudo era o Investimento Direto Estrangeiro (IDE), o tipo de fluxo normalmente considerado preferível pelos países que o recebem, por estar associado a investimentos de longo prazo e transferência de tecnologia e conhecimento do exterior, o que o torna mais estável do que os investimentos de carteira. Mas o cenário encontrado pelos autores foi bastante diferente: grande parte dos fluxos de IDE constitui investimento “fantasma” movido por engenharia financeira, sem relação com atividades produtivas nos locais onde o dinheiro é colocado. Como explicação para esta tendência, apontaram a "complexidade da estrutura organizacional de empresas multinacionais", que lhes permite desviar fundos para offshores onde pagam menos (ou nenhuns) impostos.
Um estudo mais recente do FMI e da Universidade de Copenhaga confirma-o: mais de 1/3 dos fluxos de investimento estrangeiro “passa por empresas fantasma vazias” sem “atividade empresarial real”. O objetivo deste tipo de movimentos é pagar o mínimo possível em impostos. E isso tem sido possível devido a um sistema de tributação obsoleto, que permite às multinacionais alterar a sua sede para países onde as taxas efetivas de imposto são mais baixas. Gabriel Zucman, Thomas Torslov e Ludwig Wier estimaram que os EUA e as principais economias da Europa perdem entre 14% e 28% da receita fiscal das empresas devido às práticas de transferência de lucros para outras jurisdições. Conclusão: menos financiamento dos serviços públicos ou mais impostos para o resto da sociedade.Apesar de ainda não ser conhecido o desenho final da proposta, a criação de uma taxa mínima global pode ser um passo importante. A menos que o valor definido seja demasiado pequeno, a definição de um mínimo de tributação contribui para pôr um travão na corrida para o fundo, evitar a drenagem de recursos públicos e forçar as multinacionais a pagar os impostos que devem. Uma coisa é certa: a pandemia pode ser o contexto ideal para um debate sério sobre o papel da política fiscal no combate às desigualdades que se têm acentuado. Diz-se que não se deve desperdiçar uma boa crise.
A liberdade é um luxo?
Paula Amorim é a pessoa mais rica de Portugal e um rosto de um certo capitalismo: de herdeiros, fóssil, rentista fundiário, desigual e promotor do consumo conspícuo para uma elite global, idealmente sempre em movimento, contando com cumplicidades políticas em múltiplas escalas, dada a cada vez mais fácil transmutação do dinheiro concentrado em poder mediático e político.
segunda-feira, 5 de abril de 2021
Diálogos esperançosos de economia política
O ciclo de conferências-debate "Economistas políticos(as) – diálogos esperançosos em tempos sombrios" é uma organização da secção temática de Filosofia e História da Economia Política e do Núcleo da Região Centro, da Associação Portuguesa de Economia Política, em parceria com o Centro de Estudos Sociais. O evento pretende colocar em debate, ao longo de seis meses, temas centrais da contemporaneidade, na área da Economia Política, a partir da obra de autores/as de referência.
domingo, 4 de abril de 2021
sábado, 3 de abril de 2021
Boa caminhada
sexta-feira, 2 de abril de 2021
A paz, o pão, educação, saúde… habitação
De facto, sobretudo em países do sul europeu, como Portugal, a habitação constitui, há muito, o parente pobre, ou o pilar ausente, de um Estado Social tardio. Ao contrário do que sucedeu no pós-25 de Abril nas áreas da saúde, educação, e mesmo segurança social (Serviço Nacional de Saúde, Escola Pública e sistema público de pensões), a promoção direta de habitação nunca permitiu constituir um verdadeiro setor público de alojamento, capaz de assegurar a resposta às carências mais prementes (segundo o IHRU, cerca de 26 mil famílias vivem em condições de habitação indignas) e contribuir para a regulação do mercado, propenso a lógicas especulativas que, entre outras dinâmicas, se agravaram com o processo de financeirização da habitação.
Curiosamente, observa-se ainda a tendência para que os países que registam menores níveis de promoção habitacional pública direta, nos últimos anos, sejam também os que detém um parque habitacional público de menor dimensão, como demonstra o caso português, mas também o de Espanha, Grécia, Luxemburgo e mesmo Itália, entre outros. Ao contrário, portanto, de países da UE15 como a Holanda, Áustria, Dinamarca, ou a Finlândia, com um setor público de oferta habitacional e níveis de promoção direta de alojamentos acima da média europeia. O que sugere que sistemas de provisão pública menos recentes e mais consolidados, que instituíram de facto a habitação como responsabilidade social do Estado, detém uma capacidade de resposta mais constante e, por isso, melhor preparada para enfrentar crises de acesso ao alojamento.
É também por isso que a Nova Geração de Políticas de Habitação, e em particular as medidas orientadas para um claro reforço do parque habitacional público português, como o Primeiro Direito ou o programa de Arrendamento Público Acessível, ambos apoiados pelo PRR, poderão materializar nos próximos anos uma importante rutura com as políticas de habitação seguida nas últimas décadas, marcadas pela intervenção através do mercado e, nomeadamente, pelos incentivos no acesso ao crédito para aquisição de casa própria, vertente incontornável do processo de endividamento da economia portuguesa.
quinta-feira, 1 de abril de 2021
A história da "lei-travão" e a desconfiança dos deputados
Comentários feitos ao meu post anterior e a troca de argumentos levaram-me a procurar mais elementos, o que eu devia ter feito logo à partida.
Quis perceber o que estava na cabeça dos deputados que aprovaram a "lei-travão" na Constituição de 1976. O texto que se segue é a transcrição das actas da sessão realizada no dia 10 de Março de 1976, quando se discutiu esse artigo. Como se verá, talvez se deva recuar ainda mais no tempo, porque a norma já existia na Constituição de 1933 e mesmo ao tempo da 1ª República. Na sua carne - como se verá - está presente uma desconfiança clara dos deputados sobre... os deputados - mas não de todos os políticos... - e da sua demagogia, a qual os levaria a aprovar despesas públicas ou decidir sobre impostos sem olhar às consequências. Algo que atravessa toda a teoria neoliberal e que impregna as regras orçamentais vigentes.
O deputado então independente Mota Pinto levanta precisamente essa questão:
«Com isto pode-se travar a demagogia.» Eu aceito que isso seja efectivamente uma consequência possível deste preceito, mas eu pergunto: estamos a fazer a democracia e a instituir uma Assembleia dos Deputados já à partida com tanto medo da demagogia? O problema que se põe e o que pode, na verdade, ser prejudicial à correcta ordenação da administração é a aprovação das disposições. Mas o que está aqui em causa é uma privação de iniciativa. Sem dúvida, assim se impedem as pessoas de tomar iniciativas demagógicas. Eu pergunto se a melhor maneira de combater a demagogia será pôr uma mordaça aos demagogos.
Risos.
A demagogia situar-se-á apenas na Assembleia dos Deputados? Também o Governo não poderá fazer demagogia? E os partidos, fora dos parlamentos, não poderão prometer mundos e fundos?
Dado a extensão da transcrição, permitam-me sublinhar algumas passagens apenas para chamar a atenção da leitura, não para evitar a leituras das restantes passagens. Estava em discussão o seguinte artigo:
ARTIGO 56.º (Iniciativa legislativa)
1 - A iniciativa da lei compete aos Deputados e ao Governo.
2 - Os Deputados não podem apresentar projectos de lei ou propostas de alteração que envolvam directamente aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado criadas por leis anteriores.
3 - Os projectos e as propostas de lei definitivamente rejeitados não poderão ser renovados na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia dos Deputados.
4 - Os projectos e as propostas de lei não votados na sessão legislativa em que foram apresentados não carecem de ser renovados nas sessões legislativas seguintes, salvo termo de legislatura, dissolução da Assembleia e, quanto às propostas de lei, demissão do Governo.
O Sr. Presidente: - Está em debate. Mais ninguém pede a palavra?
Pausa.
O Sr. Deputado Jorge Miranda.
E que futuro?
Os países com uma estrutura económica baseada nos serviços, com um peso elevado do sector do turismo e com uma reduzida margem de manobra orçamental são aqueles que mais se arriscam, no rescaldo da pandemia, a sofrer danos mais permanentes nas suas economias, que prejudicam o seu ritmo de crescimento no médio prazo. O alerta é do Fundo Monetário Internacional (FMI).
quarta-feira, 31 de março de 2021
Querido diário - "Lei travão": as tristes costas em que Costa se apoia
Fala-se muito da "regra-travão", mas já nos esquecemos quando isso foi discutido.
Há pouco mais de nove anos, em Março de 2012, Passos Coelho queria fazer "revoluções tranquilas", numa segunda vaga do ideário neoliberal.
A primeira fora desempenhada com duas maiorias absolutas de Cavaco Silva, mas com a ajuda dos socialistas, dada cirúrgicamente por Vítor Constâncio, secretário-geral do PS, ao fazer o PS aceitar rever a Constituição em 1989, no sentido de eliminar a irreversabilidades das nacionalizações. A partir daí, iniciou-se um vasto programa de privatizações, com o objectivo - falhado - de criar grupos económicos nacionais. Cavaco Silva acabaria mesmo a queixar-se nas suas memórias políticas dos empresários nacionais, que preferiram vender os activos a grupos estrangeiros. Um deles, foi o próprio Champalimaud a quem Cavaco Silva e Braga de Macedo deram secretamente - repito: deram! - 10 milhões de contos (qualquer coisa actualmente como 90 milhões de euros!) e a quem permitiram comprar sem ter gasto um tostão (dando como garantia as acções adquiridas). Passado o período de carência, Champalimaud vendeu as suas participações no sistema financeiro nacional que acabaram nas mãos dos donos do Banco Santander. As mais-valias serviram para criar a Fundação Champalimaud.
Passada essa fase e vivendo-se já sob o manto institucional da moeda única, uma das reformas em vista visava garantir e institucionalizar a austeridade orçamental, esvaziando a função democrática dos parlamentos e governos nacionais. E mais uma vez é essa a função do PSD: seduzir os socialistas, imbuídos que estão de uma lógica cegamente europeísta.
Escrevia Maria José Oliveira a 27/3/2012, no Público:
Só há duas soluções para a chamada “regra de ouro” – a cláusula-travão ao défice que consta do tratado intergovernamental de reforço e convergência económica da zona euro – vir a ser aplicada em Portugal. Ou é inscrita na Constituição, exigindo a aprovação de uma maioria de dois terços no Parlamento. Ou é realizado um acordo de cavalheiros entre PSD, CDS e PS para que a norma seja incluída na Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) e para que não seja permitida qualquer alteração por uma maioria simples. A breve prazo são estas as suas opções que terão de ser tomadas pelos partidos que suportam o Governo e pelo PS. Isto porque o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, que consagra a adopção de uma regra de equilíbrio orçamental e a possibilidade de sanções pecuniárias em caso de défice excessivo, deu entrada no Parlamento na sexta-feira e hoje a conferência de líderes deverá agendar o debate para 12 de Abril. No dia seguinte, os deputados votam este tratado europeu e, caso seja aprovado, será remetido para o Presidente da República, a quem caberá ratificar ou não o documento.
No passado domingo, no encerramento do 34.o Congresso do PSD, Passos Coelho defendeu que a consagração da regra de ouro deve ser feita “de forma o mais dourada possível”, tendo de seguida desafiado o PS a dar “força constitucional” à norma.
“Espero que o PS seja sensível à ideia de que a regra que queremos adoptar, se não estiver na Constituição, mas na Lei de Enquadramento Orçamental [LEO], possa ter força constitucional”, disse o primeiro-ministro. A “força constitucional” sublinhada pelo primeiro- ministro pode implicar alterações na própria LEO, uma vez que esta lei exige apenas uma maioria simples (e não uma maioria qualificada) para realizar mudanças.
Assim, se os três partidos acordarem que a regra fica inscrita na LEO e que só pode ser alterada com uma maioria de dois terços, terá necessariamente de ser feita uma revisão da Constituição, mesmo que pontual. Isso mesmo foi já destacado por Passos, quando, em Dezembro, no Parlamento, notou que será necessário “mexer” na Constituição para atribuir à LEO um valor reforçado. Tal como explicou ao PÚBLICO, o constitucionalista Tiago Duarte, “não há leis de valor paraconstitucional” em Portugal e o valor reforçado da LEO traduz-se apenas no seu conteúdo, que pode ser alterado ou revogado por uma maioria simples. Por isso mesmo, o PSD defende que a regra de ouro deve “ficar imune” a quaisquer alterações por um partido, afirma Tiago Duarte. O constitucionalista aponta ainda o “equívoco” da direcção do PS nesta matéria, sobretudo quando defende que a regra de ouro deve apenas ficar na LEO, porque esta é uma lei de valor reforçado. “A LEO é de valor reforçado apenas no seu conteúdo e somente porque as leis dos orçamentos têm de lhe obedecer”, esclarece Tiago Duarte.
Ontem, questionado sobre o assunto, o líder do PS, António José Seguro, repetiu o erro. E acrescentou outro, ao dizer que a LEO exige “uma maioria absoluta de votos”: “Todos os orçamentos do Estado devem obediência à LEO e nesse sentido é uma lei que exige uma maioria absoluta de votos”, afirmou. Contudo, Seguro acabou por especificar que o PS não aceita que o limite ao défice venha a ser regulamentado “com uma maioria de dois terços”. Rejeitou pois a possibilidade de ser feita uma revisão constitucional para alterar a LEO. “Por que razão essa regra de ouro deveria exigir dois terços?”, questionou ontem. Em Dezembro, num debate quinzenal, Passos respondeu a essa pergunta: “[Para evitar] o arbítrio de qualquer executivo.”
Crónica de uma ferroada anunciada
O autor desta newsletter do Expresso é o autor de um extenso livro de biografia de Marcelo Rebelo de Sousa. E é a prova de que, afinal, todos - exceptuando os ingénuos - esperavam que a natureza do escorpião viesse ao de cima. Não seria no primeiro mandato - "quer-se dizer", ele bem tentou por diversas vezes, vidé no caso dos incêndios, da Lei de Bases da Saúde, etc... - mas que no segundo mandato seria de vez. Ele estava mesmo desejoso de começar o circo. E acabou por apalhaçar a sua função.
Quem o diz são diversos constitucionalistas, desta vez curiosamente todos de acordo. Dizem eles: se o presidente da República tinha dúvidas - e concordam com as suas dúvidas face à regra-travão - então deveria tê-la colocado ao Tribunal Constitucional. Mas Marcelo não quis suscitar o julgamento da constitucionalidade da medida: quis criar um factor de crise política. E um factor ideal porque apareceu envolto numa medida necessária em tempo de crise profunda, o que lhe traria respaldo político da oposição, retirando apoio social ao Governo, deixando-o em maus lençóis.
A prova dessa vontade está na crónica da jornalista do Público que costuma doer-se com as dores de Marcelo. Diz ela na página 2 da edição de 30/3:
O primeiro-ministro não escondeu o incómodo com que recebeu a explicação do Presidente da República para promulgar três leis de alargamento de apoios sociais extraordinários em tempo de pandemia, aprovadas pela oposição em bloco (coligação negativa) no Parlamento. E se antes da decisão presidencial tinha armado a sua intenção de pedir ao Tribunal Constitucional (TC) que procedesse à fiscalização sucessiva da constitucionalidade, agora adia essa decisão para depois de “meditar” sobre o assunto.
Assim, o presidente - no seu ponto de vista - viabilizou uma norma que achava ser inconstitucional porque preferiu criar um conflito político. E conseguiu. António Costa anunciou esta tarde que vai pedir a fiscalização do Tribunal Constitucional. Costa alegou que não era justo que a verba disponível no OE fosse usada até ser esgotada, podendo deixar beneficiários sem apoio.
Mas resta saber se o Governo vai gastá-la com a transferência para o Novo Banco, porque se for esse o caso, deixará todos os beneficiários descalços em benefício de um Fundo abutre.
A estranha aliança entre os "progressistas desempoeirados da academia" e a direita troglodita
Luís Aguiar-Conraria (sem surpresa) e Susana Peralta (com maior surpresa) decidiram partilhar um artigo do Observador, da autoria da autoria de Jorge Fernandes, transcrito aqui, que dá eco à tese de que Francisco Louçã e, por extensão, toda a esquerda à esquerda do PS, é negacionista do estalinismo. A tese é logicamente ridícula, porquanto parte dessa esquerda se construiu na crítica a essas mesmas experiências. Mas é fácil perceber esta tentativa da direita de eliminar o socialismo como alternativa democrática. Abaixo reproduzo o comentário que deixei no mural de Susana Peralta:
Por partes, que este tema está tão impregnado de falácias que enjoa. Mesmo que tomemos como bons os relatos históricos do Holodomor que a direita reclama, na linha de uma historiografia longe de consensual, há uma diferença substantiva entre uma política da liderança soviética que quis vergar setores da sua população como instrumento político, levando a situações de escassez a pontos de se ter praticado canibalismo, e a ideia de que os “comunistas comem criancinhas” como consequência de serem comunistas. Esta última ideia foi propalada pelos setores conservadores da sociedade portuguesa durante o Estado Novo e depois, pelos altares deste país, para evitar discutir alternativas para uma sociedade e explicar às pessoas que os comunistas eram muito maus, não gostavam de Deus e faziam coisas horríveis. Ligar uma coisa à outra é demagogia barata, que é o que a deputada municipal do PPM fez.
Segundo ponto: em termos estritamente lógicos, há uma diferença entre os atos cometidos por figuras em nome de ideias, mas cujos atos não decorrem diretamente dessas ideias, e atos que decorrem diretamente dos conceitos que defendem. Conceitos e ideias com séculos ou milénios de história têm mais propensão, por mera probabilidade, de terem sido capturados por pessoas com más intenções e ambições de poder. Exemplo: ninguém diz que um católico é a favor de queimar mulheres por serem bruxas e, no entanto, a igreja católica queimou hereges durante séculos. Por que motivo ninguém diz isto? Bom, porque em nenhum lado nas escrituras diz: ”amai e queimai o próximo”. É por isso que equiparar o nazismo e o comunismo é ridículo. O nazismo tem, na sua génese, uma ideia de segregação racial e religiosa que envolve cometer atrocidades contra minorias. Não foram homens que manipularam as ideias: seguiram-na apenas. O socialismo (e o comunismo) partem da ideia de que a igualdade jurídica entre os homens, como na sociedade liberal, não é suficiente. E apenas a igualdade no acesso aos meios de produção porá fim ao antagonismo entre classes e à injustiça económica e social que a partir dela se reproduz a partir da sociedade. Há aqui alguma tentativa de chacinar alguém? Não.
Finalmente, toda esta discussão é tanto mais ridícula quanto se faz contra setores que fizeram o seu percurso na esquerda a denunciar a distorção soviética de socialismo, em particular o estalinismo. Para estes setores, onde Louçã como trotskista obviamente se insere, mas também um vasto conjunto da esquerda à esquerda do PS, não há socialismo sem liberdade. Como diziam uns autocolantes da Política XXI, aquando da sua criação, o nosso socialismo tem “democracia sem fim”. É ridículo achar que alguém com um passado trotskista vem a público tentar branquear o estalinismo. Logicamente ridículo. Estes setores da esquerda têm dedicado muitos anos da sua história a apontar os erros do socialismo do partido único e de que como ele leva ao triunfo de apparatchiks e à morte de verdadeiros revolucionários. Os primeiros membros do comité central bolchevique que o digam, pois poucos sobraram depois dos Processos de Moscovo.
O que a direita quer fazer não é justiça na história. O que a direita está a fazer é a instrumentalizar uma tragédia humana para a colar ao conceito de socialismo e comunismo e neutralizar estas opções como legítimas no espaço público.
É deturpação tosca. E é surpreendente como pessoas alegadamente progressistas contribuem para o pagode.
terça-feira, 30 de março de 2021
Não há inevitabilidades
A crónica de ontem de Rui Tavares executa uma tripla revisão ideológica da história, em nome do europeísmo, tomando como pretexto o canal do Suez. É obra.
Quem pesa mais?
Dúvida: se as medidas sociais aprovadas pela oposição no Parlamento estão, segundo o Governo, sujeitas à lei-travão e por isso são inconstitucionais, mais o serão então as centenas de milhões de euros a transferir para o Fundo de Resolução para transferir para o Novo Banco (NB) por conta daquele contrato assinado por Mário Centeno, já que o próprio Parlamento nem sequer previu qualquer rubrica no Orçamento de Estado para 2021.
Mas escreve Sérgio Aníbal hoje no Público:
Apesar de, no Orçamento do Estado (OE) para 2021, não ter cado prevista qualquer injecção de verbas no Novo Banco por parte do Fundo de Resolução e a maioria dos deputados ter deixado claro que quer que a matéria seja outra vez sujeita a voto, as regras orçamentais em vigor dão a possibilidade ao Governo de avançar com essa operação sem ter de pedir nova autorização à Assembleia da República (AR). Alterações semelhantes ao OE já foram aliás realizadas em anos anteriores. (...) Agora, para concretizar esta despesa do Fundo de Resolução — que é uma entidade incluída no perímetro das Administrações Públicas e, portanto, conta para o défice — será sempre preciso proceder a uma alteração do OE. E a expectativa dos partidos à esquerda e à direita do Governo, reforçada com uma proposta de resolução posterior, era a de que qualquer injecção tivesse, depois de conhecidas as auditorias ao Novo Banco, de ser novamente votada na AR, numa espécie de orçamento rectificativo. No entanto, este tipo de alteração ao Orçamento é uma das que, segundo os critérios definidos na legislação nacional, pode ser realizada directamente pelo Governo, não exigindo uma aprovação do Parlamento. A Lei de Enquadramento Orçamental define que as alterações que não impliquem aumentos da despesa total da administração central ou de cada programa (geralmente correspondente a um ministério), que não aumentem os compromissos do Estado ou que não façam ultrapassar os limites de endividamento do Estado, podem ser feitas pelo Governo, através de decreto-lei. Na prática, cada ministério tem um limite global de despesa que tem de cumprir, mas dentro desse limite pode passar verbas de umas rubricas para outras. As despesas inscritas no OE são tectos, que geralmente não são alcançados. E existem ainda verbas específicas a cargo do Ministério das Finanças, como a dotação provisional, que podem ser encaminhadas para cada um dos ministérios reforçando os limites de despesa a que estão obrigados. Neste caso, aquilo que João Leão terá de fazer é reafectar verbas previstas para outros fins e reforçar a despesa que é permitida ao Fundo de Resolução para injectar dinheiro no Novo Banco.
Ora, deve ser por isso que António Costa se apegou rapidamente à formulação "criativa" de Marcelo Rebelo de Sousa para adiar qualquer decisão sobre o que fazer à promulgação das medidas de apoio social. A intempestativa verve de que iria remeter o diploma para a fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional passou rapidamente a um sorriso contrafeito com o gesto de Marcelo Rebelo de Sousa que, por acaso, acaba por ir ao encontro do Governo de não fazer ondas no caso Novo Banco.
E é assim que medidas sociais são trocadas por negócio que nunca deveria ter existido, porque até sairia bem mais barato ter nacionalizado o NB. Com essa transferência - pedida para fazer face à declaração de prejuízos recorde em 2020, o Estado terá já injectado no NB (sem garantias reais de o reaver) cerca de 3,6 mil milhões de euros da almofada de 3,89 mil milhões de euros, criada pelo contrato de venda ao Lone Star para fazer face a eventuais situações inesperadas de imparidades ou más avaliações de carteiras de crédito, mas que na verdade foram condições instituídas para ser usadas pelo comprador, como o denunciou no Parlamento o ex-vice-governador do Banco de Portugal João Costa Pinto.
Tendo o Estado injectado mais de 10 mil milhões de euros desde a criação do NB, consumida a almofada e delapidadas carteiras de crédito vendidas ao desbarato resta ao Lone Star passar o banco a patacas. E por isso se anuncia já que, a partir de agora, o NB passará a dar lucros. Veremos se não vai parar ao Banco Santander, eleito pelo BCE como herdeiro do sistema financeiro ibérico, no seu esforço de concentração bancária europeia, sob a alegada preocupação de facilitar a supervisão bancária.
E entretanto, há milhares de pessoas que andam a passar mal com a pandemia...
segunda-feira, 29 de março de 2021
Querido diário - não está a resultar, mas temos de continuar...
Vivia-se o final de Março de 2012 e tudo parecia ainda ser possível.
“Está-nos a sair do lombo, está-nos a sair da pele. O que tem custado a Portugal cumprir estes objectivos”, disse, notando que “é preciso lutar todos os dias para chegar onde é preciso”. E essa luta significará medidas além do que está inscrito no memorando de entendimento com a troika. “Temos de ser mais ambiciosos e essas mudanças são indispensáveis”, alertou, elencando de forma concisa as reformas estruturais que o Governo quer realizar. “Estamos a fazer uma revolução tranquila”, sustentou. Depois dos avisos e das palavras de apelo à “resistência” dos portugueses, Passos passou aos recados para os “adversários” do PSD. Começando por notar que “não está na inscrição genética do PSD adiar o que é difícil, falsear a história e fazer propaganda”, lembrou: “Aqueles que nos acusam de estarmos empenhados em cumprir o programa de austeridade esquecem-se por que é que esse programa é necessário”. E aproveitou para avisar o PS que o Governo, apesar de não atacar insistentemente o Executivo anterior, “tem memória e os portugueses também têm”.
Mas nada foi como o previsto. A austeridade agravou a recessão e muito. O Governo perdeu o pé. Em Setembro de 2012, Vítor Gaspar lembrara-se naquela maravilhosa medida de tirar 7% aos salários dos trabalhadores para dar, na quase totalidade, às empresas, lucrando a Segurança Social ainda com uns 0,25% desses salários. Era a crise da TSU. O país encheu as ruas em protesto. E o PSD nunca mais se endireitou nas sondagens. O TC questionou as medidas de corte no funcionalismo. E Vitor Gaspar armou-se em justiceiro e fez aprovar o enorme aumento de impostos. Até o CDS abanou dessa vez... E voltaria a abanar quando, logo no início de 2013, o Paulo Portas tinha aquela tarefa mínima de elaborar a reforma do Estado e só conseguiu escrever uma página A4 e mal. De tal forma mal, que o reforma estrutural essencial para todos os governos de direita, aquele com que se faz campanhas eleitorais, morreria mesmo ali. Já Durão Barroso borregara nela também em 2001. Mas ninguém aprende com a História, porque, de tempos em tempos, dá sempre ânimo a um povo de direita questionar a dimensão do Estado. E depois foi aquela 7ª avaliação que matou todo o ânimo
Os "números no ar" de António Costa sobre o investimento público
Na sexta-feira passada, António Costa disse que é "fundamental reforçar o investimento público" no país. O Primeiro-Ministro sublinhou que "nestes momentos de crise e dificuldade, é altura de apostar em fazer o que ainda está por fazer, o que ainda não foi feito". Embora tenha reconhecido que, nos últimos 5 anos, se fez um "esforço para pôr as contas públicas em ordem", Costa garantiu que o fez "sem sacrificar o aumento do investimento público", assegurando que o que o Governo tem apresentado neste campo "não são números no ar, é obra concreta".
(Os dados utilizados são da base de dados AMECO, da Comissão Europeia, e podem ser consultados aqui).
Ligações
A moeda também é um símbolo da soberania do Estado, servindo para sublinhar uma cadeia do tempo, feita de renovadas memórias de um passado que é portador, também pela mudança, de futuro. A nova nota de cinquenta libras expressa valores, homenageando Alan Turing, um dos pais da computação, perseguido e punido pelo Estado britânico pela sua homossexualidade. E nunca se esqueçam da informação que consta de cada dólar: “confiança” e “esta nota tem curso legal para dívidas públicas e privadas”. A soberania monetária é uma condição necessária, mas não suficiente, claro, para a confiança no poder de Estado.
domingo, 28 de março de 2021
sexta-feira, 26 de março de 2021
Os herdeiros da troika
quinta-feira, 25 de março de 2021
Quando tudo se compra e vende...
As irresponsabilidades do governo em relação à EDP não podem ser desligadas de um ciclo de privatizações cada vez mais danoso para a autoridade de um Estado democrático: as raízes da grande corrupção estão aqui.
Os neoliberais que andam por aí na comunicação social a suspirar por Passos Coelho não têm qualquer autoridade ético-política neste e noutros casos, até porque fingem que a propriedade não conta para a autoridade do Estado. Hoje, temos todos a obrigação de saber que a propriedade pública de sectores estratégicos é parte das fundações materiais de um Estado capaz, incluindo do ponto de vista fiscal, particularmente nesta periferia.
terça-feira, 23 de março de 2021
Querido diário - Não havia necessidade...
Há cerca de nove anos, os sindicatos filiados na CGTP decretaram a oitava greve geral.
O país estava a ir-se pelo cano. O emprego estava em queda e havia já um milhão de portugueses no desemprego oficial (19% da população activa), sendo que o número efectivo de desempregados atingiu nessa altura cerca de 1,5 milhões. As receitas fiscais caíam a pique degradando ainda mais os planos previstos para a consolidação das contas públicas. E o Governo planeava então um pacote laboral que viria a aprovar em Agosto de 2012 (e que se mantém ainda hoje na quase totalidade).
Pois, perante essa realidade, a direita é capaz de produzir os mais estranhos julgamentos políticos, ainda por cima totalmente erróneos, como é o caso da afirmação feita por Jaime Nogueira Pinto, assinalada com um círculo. Na sua opinião, apesar do nível desmesuradamente explosivo de desemprego e aflição, não havia motivos para uma greve geral:
"Não me parece que num tempo em que de facto não há nada para ninguém faça muito sentido uma greve geral", disse ele
A direita tende sempre a amalgamar tudo para que se esqueça o carácter de classe das suas políticas de austeridade. Esquece-se que as políticas aprovadas não eram dirigidas "a todos", mas pesavam sobremaneira nas pessoas de mais baixos rendimentos (por isso a pobreza - e a pobreza laboral - se agravou nessa altura), e eram sobretudo direccionadas para os trabalhadores. Fosse do sector público - com cortes nos vencimentos e provocando uma depuração no sevriço público - quer no sector privado, em que se quis provocar uma transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas. Supostamente porque os empresários são pessoas que sabem melhor gerir os rendimentos... dos trabalhadores.
Foram os trabalhadores que perderam feriados e foram obrigados a trabalhar nesses dias. Forem eles que sendo obrigados a trabalhar nesse dias passaram a receber metade do que recebiam antes. Foram eles que trabalhando aos domingos passaram mesmo a receber menos do que num dia normal. Foram eles que viram cortadas a metade as remunerações por trabalho suplementar. Foram eles que viram eliminado o descanso após trabalho suplementar, vendo-se obrigados a trabalhar nesse período de descanso. Foram eles que viram os seus horários e os limites impostos há um século à jornada de trabalho (8 horas) a serem desarticulados com os bancos de horas. Foram eles que viram cortadas em dois terços as compensações por despedimento. Foram eles que viram cortado a metade a duração do subsídio de desemprego e o seu montante. Foram eles que viram as portarias de extensão ser enfiadas na gaveta como forma impedir que contratos colectivos - em maré de ser caducados desde 2003 - ainda exercessem alguma cobertura em empresas. Foram eles que se viram a ser contratados com formas cada vez mais difusas de contrato de trabalho (mascarados de contratos de prestações de serviços, para que fossem chamados agora, não de trabalhadores, mas de colaboradores), firmados por sucessivas entidades e afastando-se cada vez mais o "dono da obra" da responsabilização pelo trabalhador contratado e criando-se unma cascata de subcomissões de intermediação que delapida a retribuição salarial. Foram eles que viram os governos dar cada vez mais relevo às agências de trabalho temporário, a ponto de a renovação dos contratos de trabalho dito temporário puderem ser feitas durante... 6 anos! Foram eles que viram os contratos a prazo - que por lei servem para cobrir picois de actividade - puderem ser renovados por três anos, alegando-se que era melhor isso do que estar no desemprego. Etc., etc. E para culminar o "enorme aumento de impostos" em IRS em 2013 - um IRS que, como se sabe, é sobretudo pago por salários e pensões - em vez dos cortes de despesa pública em funcionalismo não autorizados pelo Tribunal Constitutucional e por "vingança" da recusa popular em aceitar o aumento da TSU dos trabalhadores como forma directa de financiar as empresas.
Em compensação, foram os mais endinheirados que o Governo Passos Coelho achou por bem, em 2012, dar meios para branquear dinheiros fraudulentamente saídos do país. Fê-lo pela mão do secretário de Estado do CDS Paulo Núncio, através do chamado regime excepcional de regularização tributária em que, tal como já tinha acontecido nos governos Sócrates (em 2005 e 2010) se regularizava os dinheiros fraudulentamente saídos do país, mediante uma pequena comissão, sem necessidade de repatriação dos capitais, protegendo-os de qualquer acusação pelo Ministério Público e sem que vissem o seu IRS corrigido pelo acréscimo de rendimento declarado! Em 2012, "branqueou-se" mais de 3,5 mil milhões de euros!
Não, não houve qualquer política de classe com Governo Passos Coelho.
segunda-feira, 22 de março de 2021
"Estupidezes" vitalícias
A ideia pode ser tão idiota como esta: um dia, em Maastricht uns tantos senhores - entre eles Cavaco Silva, nem que fosse por interposta pessoa de Jorge Braga de Macedo ou Vítor Gaspar que negociaram a ideia - enfiaram uma banana no ouvido em nome de um projecto monetário europeu. Mas quando lhes perguntaram porque não a tiravam - afinal, não fazia sentido, a banana não cabia no ouvido e, mesmo se coubesse, iria fazer mal à saúde de quem tentasse - responderam que não a podiam tirar porque os mercados financeiros iriam reagir negativamente...
A regra de Maastricht - de que os todos os Estados integrantes da zona euro devem ter um défice público de 3% do PIB e uma dívida de 60% - é estúpida. Já se sabia em 1992, mas foi mantida durante 30 anos por forma a manter a trela apertada por parte de certos desses Estados.
Para os fanáticos da austeridade, que a cavalgam como forma de defender um Estado Social mínimo com entrega das suas funções à provisão privada, convém ler esta entrevista de Xavier Debrun, um dos membros do Conselho Orçamental Europeu (COE), organismo criado para gerir a política orçamental na zona euro.
Nomeadamente esta passagem:
"- A regra de 3% para o défice deve desaparecer?
- Pessoalmente, penso que é uma regra que não faz sentido. Em Setembro de 1999, quando se escreveram os tratados em Maastricht, os 3% para o défice e os 60% para a dívida eram essencialmente a média existente na altura e pensava-se que era um bom nível para estar. Depois, alguns economistas na Comissão Europeia decidiram racionalizar estas metas e calcularam que um país que tivesse um défice de 3% para sempre e a economia crescesse 3% ao ano em termos reais, com 2% de inflação, acabaria por caminhar para uma dívida de 60%. Claro que hoje, se se fizesse o mesmo exercício, com um crescimento real anual dificilmente muito maior que 1%, o défice de 3% para sempre conduziria a uma dívida de 100%, não 60%. É por isso que é sempre melhor não pôr números específicos numa regra orçamental. É uma má ideia porque as circunstâncias mudam, as taxas de juro podem mudar, o crescimento potencial da economia também. Pessoalmente, eu não me fixaria nem nos 3% nem nos 60% para todos os países. Acredito que a referência aos 3% se mantenha no sistema, mas já não faz sentido estarmos presos a estes números. "
Não é que as soluções defendidas na entrevista sejam uma nova garantia de sanidade. Aliás,
mantêm-se fortes constrangimentos à soberania nacional, nomeadamente ao defender-se a imposição de um
tecto de despesa pública o qual condicionaria o nível da fiscalidade a aplicar. Mas é a prova de que, de 30 em 30 anos e
depois de centenas de milhões de vidas estragadas, a União Europeia pensa... para
evitar a degradação da vida social e, com ela, sempre o receio de revoluções na rua e a novos exits. Afinal, a Comuna de Paris não foi assim há tanto tempo. Não me referia aos Gillets Jaunes mas para os mais imediatistas até que pode ser um bom sinal dos tempos...