sexta-feira, 26 de julho de 2024

Mais papel


Papel


No verão volto ao jornal em papel. É realmente outra coisa. No entanto, desde ontem que tenho estas duas páginas entaladas, ainda para mais porque foram escritas por Sofia Lorena. É impressão minha ou são o enésimo exemplo do processo de normalização do genocídio em curso na Palestina, tratando o seu responsável principal com uma neutralidade tão inadmissível quanto impossível neste contexto? E que dizer do tratamento dado ao principal apoiante do genocídio, Biden? O imperialismo norte-americano e o colonialismo sionista gozam de boa imprensa.

4º Pedalada | O Ensino da Economia


Como se ensina hoje a Economia nas universidades? Quais as relações entre o ensino da Economia, a reprodução do paradigma dominante e a reprodução das desigualdades no capitalismo? Que espaços de alternativa e pluralismo subsistem e vão surgindo? Qual tem sido o papel dos estudantes na reivindicação da mudança?

Para debater estas e outras questões relacionadas com o ensino da Economia, o quarto episódio do Pedalada junta Ana Costa (professora do ICSTE e presidente da Associação Portugesa de Economia Política), Guilherme Rodrigues (economista e coautor do substack República dos Pijamas), José Reis (professor da FEUC e coordenador do Observatório das Crises e Alternativas), Sandra Monteiro (diretora do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa) e Alexandre Abreu (professor do ISEG e coautor do Ladrões de Bicicletas).

Como habitualmente, na plataforma MyGIGpt, onde podem aceder aos episódios anteriores.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Por uma esquerda nacionalista


«Que máis ten que pasar para que Europa deixe de ser comparsa dos Estados Unidos, da OTAN e do estado criminal de Israel? Nós sabemos que estamos no lado correcto da historia e hoxe desde aquí queremos dicirlle ao pobo palestino que non están sos, que teñen toda a nosa solidariedade e apoio, que Palestina Vencerá e será libre do río até o mar.» 

«Sinto un gran orgullo de ser desta terra. Un orgullo que medra cando penso nas mulleres deste país, que se algo fixeron sempre foi saír adiante nas circunstancias máis difíciles, sen renderse nunca. Desde Rosalía, ás mulleres das irmandades da fala, e as que loitaron contra o franquismo. Desde as cigarreiras da Coruña, ás traballadoras de Pontesa e todas e cada unha das que hoxe seguen loitando pola igualdade e o feminismo. Sodes un exemplo e unha inspiración para min.» 

«Fronte a unhas forzas estatais que venden o país, os galegos e as galegas poden confiar no BNG. Xa o demostramos con ENCE, con Nunca Máis, coa mina de Corcoesto e de Touro, co boom eólico depredador e volvemos demostralo con ALTRI. Imos parar esta bomba ambiental no corazón do País: ALTRI Nom!»

«Nós somos unha forza nacionalista. E como dicía Bautista Álvarez, o nacionalismo, non precisa de adxectivos. Porque “O nacionalismo, mesmo aquel que non busca a transformación radical do sistema, é progresista, por espetar un ferrete no riles do imperialismo. É de esquerdas, por transferir ao traballo o poder dos monopolios. É democrático, por devolverlle ao pobo os privilexios que lle usurparon.”» 

Excertos do discurso de Ana Pontón no dia da pátria galega, que hoje se comemora (o último excerto é de 2023, na realidade). É a líder do Bloco Nacionalista Galego, que obteve um terço dos votos nas últimas eleições galegas. Não cumpro a regra da tradução do blogue, porque é a nossa língua irmã. Costumo dizer, meio a sério, meio a brincar, que as esquerdas portuguesas devem ir à Galiza em visitas de estudo. 

O anti-imperialismo é aí potente porque é nacionalista, o ecologismo é aí potente porque é nacionalista, o feminismo é aí potente porque é nacionalista; a esquerda é aí potente e plebeia porque é nacionalista, porque está enraizada nas melhores tradições irredentes nacionais, porque tem orgulho na sua nação ativamente imaginada e desejada do ponto de vista político, reconhecendo o mesmo direito às outras nações e daí o internacionalismo mais intenso. O antifascismo mais intenso também passa por aqui, em modo contrafogo.

O drama é que grande parte da intelectualidade lusa que se diz de esquerda é hoje incapaz de pensar assim e daí o desfasamento com sentimentos populares enraizados e por boas razões. Acha que ser progressista é ser de nenhures, ou seja, do centro imperialista.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Haja noção em tempos financeiros


Recentemente, Diogo Vasconcelos chamou a atenção para as “performances públicas de ‘domínio’ das tricas e das mais irrelevantes personagens da política americana” por parte da nossa “dispensável” elite, considerando que tal “ser ainda hoje fonte de capital social é só sinal do quão bimba e colonizada é.” 

Há anos que não sigo regularmente as mediocridades que pululam pela televisão, até porque deixei de ter televisão em 2022, um ato básico de higiene (vejo filmes e séries no computador). Ganha-se mais em ler a imprensa financeira internacional dirigida a uma burguesia com menos tempo para outra ideologia que não seja a de tomar o que existe por racional. 

Por exemplo, já perdi a conta ao número de vezes que no Financial Times se fala da decisiva política dos grandes doadores em campanhas eleitorais cada vez mais caras, sobretudo depois do Supremo Tribunal de classe ter decretado que não há qualquer limite à transformação do capital em poder político. Os EUA são legalmente uma plutocracia e dali não vem nada de bom para a ação coletiva. 

Sim, ao contrário de certa “esquerda”, seduzida pelo federalismo, pela NATO e por outras tralhas ideológicas, o poder imperial dos EUA continua a ser a maior ameaça aos povos de todo o mundo, incluindo à maioria do povo norte-americano. 

Este povo é também subjugado pelo complexo militar-industrial-penal, o que impede que se separe a política interna da política externa, como faz alguma esquerda apostada em ofuscar a cumplicidade ativa de Biden no genocídio do povo palestiniano pelo Estado terrorista de Israel. É um sistema onde de resto passam por radicais de esquerda propostas que por cá são defendidas pelos liberais até dizer chega, como o seguro universal de saúde. 

Haja noção em tempos financeiros.

terça-feira, 23 de julho de 2024

A miséria moral da direita está de volta

Nos últimos anos, a pobreza mais extrema tem vindo a diminuir em Portugal, passando a respetiva taxa de 7% para 5% entre 2018 e 2023. Na Região Autónoma dos Açores, porém, e após uma redução até 2021 (de 14% para 9%), a privação material e social severa tem vindo a aumentar, atingindo os 12% em 2023, sem que tal se traduza num aumento correlativo da percentagem de beneficiários de prestações de desemprego e de prestações de RSI no total da população. Isto é, o acentuar da pobreza não tem sido acompanhado pelo reforço dos apoios sociais.


É neste contexto que a maioria de direita na Assembleia Regional do arquipélago aprovou, na semana passada, um Projeto de Resolução do Chega que altera os critérios de acesso às creches gratuitas, atirando para o fim das listas de espera os filhos de pais desempregados ou que estejam a receber prestações sociais. A Resolução foi aprovada com os votos do Chega e do PSD, CDS-PP e PPM (partidos da coligação de Governo), beneficiando ainda da abstenção da Iniciativa Liberal (IL). PS, BE e PAN votaram contra.

Dada a insuficiência de oferta de lugares em creche (de outro modo o critério seria dispensável), mandaria o bom senso e o mais elementar sentido de justiça social, que a prioridade de acesso às creches gratuitas tivesse por base os rendimentos das famílias. Mas a pulsão moralista da direita face a desempregados (assente no preconceito torpe de que o são por vontade própria) e face a pobres (no pressuposto demagógico de que o são porque preferem viver de subsídios), fala mais alto, unindo o espectro que vai do Chega ao PSD, passando pela IL.

À semelhança da direita dos tempos da troika, cujas políticas provocaram um aumento do desemprego sem precedentes, em nome de um mirífico «empobrecimento competitivo» que iria fazer disparar a economia, e que procedeu a cortes nas prestações sociais, a maioria de direita que hoje governa os Açores parece apostada na persistência da pobreza, secundarizando o direito à educação das camadas desfavorecidas da população, como se não soubesse, desde logo, que o risco de pobreza aumenta com o desemprego e os baixos níveis de escolaridade. Vá, depois venham lá queixar-se, com total desplante, que o elevador social não está a funcionar.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Uma história da presente política económica


A política económica deste governo é a versão periférica, 13.0, da Reaganomics. Com este governo não se negoceia. Este governo tem de ser combatido nos planos social, político e ideológico, sem separações artificiais, antes com fusões espontâneas. A espontaneidade tem sempre de ser organizacionalmente cultivada, como sabemos da leitura atenta de Hayek. 

Dado que a lógica é a mesma, talvez valha a pena recuperar, pela enésima vez, a formulação do economista social-democrata John Kenneth Galbraith (1908-2006), feita na origem, em 1982, sobre a Reaganomics 1.0: “Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos”.

Dois anos depois do falecimento do pai, James Kenneth Galbraith publicou The Predator State: How Conservatives Abandoned the Free Market and Why Liberals Should Too. Um liberal é a versão born in the USA de um social-democrata na Europa. Neste livro, o economista social-democrata defendeu que a Reaganomics 1.0 conciliou a redistribuição regressiva de rendimentos com algum crescimento económico, graças aos maiores défices orçamentais da história dos EUA, o que apodou de “keynesianismo para ricos”. 

Os défices foram o resultado da baixa de impostos aos mais ricos e do reforço do investimento no complexo-militar-industrial (o chamado keynesianismo militar) e no complexo prisional racializado, que viu o número de presos explodir desde aí (o chamado keynesianismo penal). 

Tratou-se de usar o Estado, que retinha e retém amplos poderes, para restabelecer a autoridade plena dos negócios privados, eliminando os poderes compensatórios, dos sindicatos a formas de regulação contrárias à lógica das forças de mercado, que o mais eficaz e justo “keynesianismo progressista” tinha criado. 

A contrarrevolução conservadora beneficiou de uma condição político-ideológica nova dos anos 1980 em diante: “o keynesianismo progressista perdeu força política quando o marxismo deixou de ser ameaçador”. Quem me lê sabe que esta é uma hipótese que reputo de fundamental para compreender a história deste nosso sombrio presente. 

Em 2024, nesta periferia acorrentada ao euro e às suas regras orçamentais, haverá apenas redistribuição regressiva do rendimento. Não é keynesiano quem quer, mas sim quem pode.

E nada acontece


«O primado da lei é o que mantém a nossa União coesa. Estas palavras são suas, senhora Von Der Leyen. Assim sendo, porque é que, aos seus olhos, algumas pessoas são mais iguais perante a lei do que outras? Porque é que os Direitos Humanos são aplicados em alguns conflitos mas noutros não? Porque é que as vidas dos palestinianos não são dignas dos mesmos Direitos Humanos, da mesma lei internacional, da mesma humanidade? Estamos a testemunhar o genocídio mais bem documentado da História e mesmo assim não há quaisquer consequências para Israel.
Quando declarou que a Europa está com Israel, quando se colocou ombro com ombro com Netanyahu, deu luz verde a este genocídio. A duplicidade de critérios, a forma hipócrita com que reage ao conflito na Ucrânia, em comparação com Gaza, gerou danos à União Europeia no cenário internacional. Não há sanções nem suspensão das trocas comerciais. Na verdade, o dinheiro e o armamento europeu continuam a dirigir-se para Israel. 40 mil civis mortos, crianças queimadas vivas nas suas tendas, e mesmo assim nenhumas consequências
».

Lynn Boylan, deputada irlandesa ao Parlamento Europeu

domingo, 21 de julho de 2024

Uma estranha distribuição

Ainda sobre os resultados dos exames, a fraude dos rankings na comparação entre o ensino público e o privado e as poucas boas análises que se vão fazendo nesta matéria - e que contrastam com as habituais parangonas preguiçosas - vale a pena regressar ao texto de Diogo Camilo (Rádio Renascença) a que já se fez referência aqui.

Se dúvidas houvesse em relação à inflação de notas no privado - cuja diferença face ao público quase desaparece quando se comparam as médias internas com os resultados dos exames (passando-se de uma diferença de 2,2 valores para 1,0) - a distribuição claramente anómala das classificações internas dos alunos do privado deveria ser suficiente, logo à partida, para dissipar tais dúvidas.


Não é expectável, de facto, que a distribuição do número de alunos nas classificações internas (0 a 20), seja a de um contínuo crescente (ensino privado) e não a tendência para uma concentração em valores intermédios (ensino público). De facto, se no privado a moda corresponde à classificação de 20 (a que é obtida mais vezes, por 21% dos alunos), no público é de 17 (com apenas 6% a atingir a nota máxima). Nas três melhores notas (18 a 20), o ensino privado concentra 57% dos seus alunos, mais do dobro dos alunos da escola pública com essas classificações (25%).

Diferenças que se desfazem, como referido, quando todos os alunos são submetidos à mesma prova (exames nacionais), evidenciando a vantagem artificial de partida dos alunos do privado, mas que não deixa ter peso na classificação final de conclusão do ensino secundário, com reflexos, por exemplo, no acesso ao ensino superior. E mesmo que, mais tarde, venha a demonstrar-se que a escola pública prepara melhor os alunos para a universidade. Até desse ponto de vista, e para lá da intolerável iniquidade, os ganhos do privado são só aparentes.

Um raio de luz indireta


Ontem, pela manhã, fiz uma viagem longa e aproveitei para ouvir na rádio o Hotel Califórnia, programa de música onde pontifica a memória de elefante de Júlio Isidro. Houve boas histórias e uma pérola musical romântica: a versão de Alice Caymmi, acabada de lançar, da canção El Amor.

sábado, 20 de julho de 2024

Repita-se


Ninguém é tão ignorante ou ingénuo ao ponto de achar que as centenas de milhões de euros que a CUF investiu no capitalismo da doença, vendendo a participação na Brisa e tudo, não teriam implicações na economia política de um setor que pela sua natureza depende sempre de decisões do Governo, agora descaradamente o Governo da CUF e quejandos. 

Ninguém é tão ignorante ou ingénuo ao ponto de achar que as centenas de milhões de euros que a CUF investiu no capitalismo da doença, vendendo a participação na Brisa e tudo, não passarão por aumentar ainda mais a parte do financiamento público aos “privados” no Orçamento do Estado (já é cerca de metade), parte de um processo mais geral de parasitagem do SNS, incluindo dos seus profissionais e da sua rica informação. 

Ninguém é tão ignorante ou ingénuo ao ponto de achar que as centenas de milhões de euros que a CUF investiu no capitalismo da doença, vendendo a participação na Brisa e tudo, não se deveram à consciência clara de que este setor oferece superlucros, dadas as assimetrias de poder e de conhecimento entre quem vende e quem compra, dada a possibilidade de contar com um Governo que se comporta como a teoria marxista mais simples prevê. 

Ninguém é tão ignorante ou ingénuo ao ponto de achar que as centenas de milhões de euros que a CUF investiu no capitalismo da doença, vendendo a participação na Brisa e tudo, não implicariam uma campanha mediática bem orquestrada e paga para agigantar os problemas no SNS até estar eleito este seu Governo. 

Ninguém é tão ignorante ou ingénuo ao ponto de achar que as centenas de milhões de euros que a CUF investiu no capitalismo da doença, vendendo a participação na Brisa e tudo, não implicariam toda uma superestrutura (ou será infraestrutura?) ideológica, das universidades aos jornais, passando por stink-tanks. Sim, comprar ideólogos neoliberais tem-se revelado um bom investimento. 

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Lealdade em democracia


No debate do Estado da Nação, o Primeiro-Ministro Luís Montenegro tem esta frase notável: «Até ao dia que aprovarem uma moção de censura a este governo, as oposições, além do seu trabalho político, têm dever de lealdade com os portugueses de nos deixarem governar». A tradução é simples: ou me derrubam ou me deixam fazer exatamente tudo o que eu quero, mesmo quando o meu governo é minoritário.

Deve ser a isto que chama, com uma bizarra noção de democracia, o «dever de lealdade» da oposição, parecendo não entender duas coisas. Desde logo, que a lealdade democrática de cada partido é, em primeira instância, para com os seus eleitores e o programa político que os mesmos sufragaram. Depois, que não dispõe de uma maioria parlamentar que lhe permita fazer tudo o que quer, como se a tivesse, sem ter que negociar nem ter que ceder.

Mas que esperar de quem, também no debate de ontem, ainda acusa o PS, quase dez anos depois, de ter sido «o maior usurpador de uma herança política (...), a herança de um caminho que estava na direção certa e que os senhores interromperam» (sic), por ter encontrado, na configuração parlamentar saída das eleições de 2015, uma solução política que lhe permitiu governar? Sobre a cultura democrática de Luís Montenegro estamos, de facto, conversados.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Siempre


A festa do Primeiro de Maio português é um marco na História da dignidade humana. Aconteça o que acontecer no futuro, acontecimentos como os que se viveram nesse dia na capital de Portugal são a prova do esforço feito ao longo de milhares de anos para que o ‘macaco nu’ se vestisse com o manto da respeitabilidade conquistada à custa de muito sacrifício. Foi uma festa de solidariedade, que teve ainda a virtude de transformar em algo concreto e exemplar essa velha e prostituída abstração chamada liberdade.

Manuel Vásquez Montalbán, 13 de maio de 1974

Obrigado, Rita Luís, pela seleção, organização, tradução e informativa introdução. O resultado, também graças a mais uma bela capa de Vera Tavares, é um magnífico livro da Tinta da China. É realmente um gosto poder ler as crónicas, escritas entre 14 de março de 1974 e 29 de dezembro de 1975, do meu escritor e ensaísta favorito sobre a nossa revolução democrática e nacional.

Lembro-me de um Domingo de 2003. Comprei o Público numa banca perto dos pastéis de Belém e li a notícia da sua súbita morte em Banguecoque. Fazia sol, mas tudo ficou negro e amargo. Um camarada de tantas horas de leitura e de bem regadas e alimentadas discussões imaginárias tinha súbita e precocemente morrido.

Assassinato no comité central foi o primeiro livro que li dele, creio que foi o primeiro da série do icónico detetive Pepe Carvalho a ser lançado entre nós, e o último, até ontem, tinha sido o ensaio histórico sobre Dolores Ibárruri, Passionaria y los siete enanitos, que não está editado entre nós. O meu romance favorito é O Pianista, sublime história de amor e de memória. Recentemente, ofereci ao meu filho a adaptação, sob a forma de novela gráfica, de Os Mares do Sul.

Montalbán vive, porque o continuamos a ler. Siempre.

terça-feira, 16 de julho de 2024

O governo da AD também escolhe que sectores quer apoiar

Parece haver em Portugal quem acredite que a diferença entre esquerda e direita, no que às políticas económicas diz respeito, está na existência ou não de intervenções selectivas. Segundo esta visão, a esquerda defenderia a intervenção do Estado em actividades específicas, enquanto a direita veria essa intervenção como uma distorção indesejável dos mecanismos de mercado. Esta suposta clivagem política, se existisse de facto, seria uma bizarria portuguesa. Na verdade, a tese não cola sequer com a realidade nacional.

Quem acha que o actual Governo português diverge do anterior por uma atitude menos selectiva quanto às medidas de política económica adoptadas deveria olhar com atenção para o recente programa “Acelerar a Economia”. Das 60 medidas anunciadas pelo ministro da tutela, 24 são dedicadas aos sectores do turismo e do mar. Concorde-se ou não com a escolha das prioridades, 40% do “pacote para a economia” apresentado há dias corresponde assim a medidas dirigidas a duas áreas específicas. Se analisarmos com cuidado, as medidas em causa não só privilegiam os sectores referidos, como tendem a beneficiar mais uns tipos de actividades e empresas do que outros, ainda que todas ligadas ao mar e ao turismo. Isto chama-se selectividade.

Entre as medidas para a economia anunciadas pelo Governo, há também uma dedicada à “Indústria 2045”. Na verdade, não é ainda uma medida, mas a intenção declarada de definir “uma estratégia nacional para a reindustrialização sustentável” e “um plano de acção da política industrial nacional para os próximos 20 anos”. Para que não restem dúvidas sobre a selectividade inerente a este plano, o Governo acrescenta que a desejada “reindustrialização permitirá consolidar a espinha dorsal da economia portuguesa tornando-a mais competitiva”, “substituindo importações e acoplando ainda uma série de serviços agregados de alto valor acrescentado”. Mais uma vez, é o Governo a fazer escolhas.

Haverá sempre uma minoria de fundamentalistas de mercado para defender que o papel do Estado é sair da frente e deixar os mercados funcionar – como se os ditos mercados não fossem um conjunto de agentes com poder assimétrico, que defendem os seus interesses, os quais podem estar mais ou menos alinhados com o bem-estar geral. Quem não pertence àquela seita não deve perder tempo a discutir se o Estado deve ou não intervir – mais relevante é debater que objectivos devem ser prosseguidos e qual a melhor forma de o fazer.

(Excerto do meu artigo no Público desta 2ª feira.)

A alegada vantagem do ensino privado é bastante inflacionada

No meio das habituais parangonas dos rankings, a sentenciar de forma fraudulenta que o ensino privado tem um desempenho superior ao das escolas públicas (sem exigir dados sobre o perfil socioeconómico dos seus alunos, que permitam dar suporte a essa comparação), surgem análises substantivas, com qualidade, que vão para lá da ordenação simplista dos resultados das escolas. É o caso de um artigo assinado por Diogo Camilo (Rádio Renascença), dedicado à inflação de notas e que vale mesmo a pena ler na íntegra.

Comparando as médias internas (classificações no final do ano) com os resultados nos exames, o jornalista constata que a redução é mais expressiva no ensino privado (-4,8 valores) do que no ensino público (-3,6 valores). Quando os alunos dos dois subsistemas são sujeitos à mesma prova (exame nacional), a vantagem de partida do privado, em termos de resultados, diminui substancialmente, passando de 2,2 para 1,0 valores. O que, considerando o facto de os privados captarem em regra melhores alunos (desde logo os que podem pagar), esvazia a tese da sua vantagem comparativa.


Não surpreende por isso que «as dez escolas com maiores diferenças entre notas de exames e média interna» sejam privadas, tendo a diferença de valores, no universo dos colégios, aumentado face ao ano passado (de -4,2 para os referidos -4,8). Ao que acresce o facto de a inflação de notas ser «superior a 5 valores em quase todas as disciplinas», ao contrário do que sucede no ensino público, onde «nenhuma disciplina chegou aos 4 valores de discrepância».

Significa isto que há uma vantagem induzida do ensino privado, com reflexos no acesso ao ensino superior, por exemplo, que não decorre, por isso - e ao contrário do que é propalado -, de um alegado melhor desempenho das escolas deste subsistema. Uma vantagem artificial, portanto, que de resto é confirmada a posteriori por estudos que demonstram que «os alunos das privadas têm piores notas no ensino superior».

Num comentário aos recentes resultados, o agora secretário de Estado Alexandre Homem-Cristo referiu que os rankings são uma «mais-valia», uma «ferramenta útil» para perceber o que pode ser melhorado, em sintonia com a opinião, igualmente favorável, do seu ministro. Pois bem, tem aqui matéria objetiva para pensar e agir, nas suas novas responsabilidades de governante. Até porque não se trata de uma simples questão de «melhorias», mas antes de uma gravíssima situação de inaceitável iniquidade. E não venham depois dizer que o elevador social não funciona.

domingo, 14 de julho de 2024

Do twitter para o blogue


Não se conhece a autoria do imponente cartaz que enquadra, com a gigantesca foto do ministro da tutela, o evento em que participou, para assinalar o 35º aniversário da Federação Académica do Porto. Mas sabe-se que o Ministério da Educação, Ciência e Inovação escolheu este enquadramento para dar nota da sessão nas suas redes sociais.

Tempo, tempos


Viva o 14 de julho de 1789, hoje feriado revolucionário em França. Há uma semana, milhares de pessoas estavam imensamente expectantes e logo ficaram imensamente felizes. Algumas choraram, assim que foram conhecidas as primeiras projeções à boca das urnas nas eleições francesas. Estavam reunidas na praça da Batalha de Estalinegrado, em Paris, quartel-general dos insubmissos que fizeram frente. 

Em França não se esqueceu que a Batalha de Estalinegrado decidiu a Segunda Guerra Mundial, que o sacrifício do povo soviético deu o contributo decisivo, livrando-nos de grande parte da “escumalha fascista”. O povo português continuou a tarefa, do outro lado do continente, quase três décadas depois. 


Há duas ou três semanas, vi um episódio de um banal documentário norte-americano sobre a Segunda Guerra Mundial. Lá se falava de Estalinegrado, como se tivesse sido menos importante do que o desembarque na Normandia, mas dando a palavra a uma veterana da batalha. De lágrimas nos olhos, esta cidadã sublinhou o patriotismo soviético. 

Na passada segunda-feira, vi uma foto do meu historiador favorito. Eric Hobsbawm (1917-2012), aos 19 anos, estava em Paris, a apoiar a Frente Popular, num desfile. Tinha fugido da Alemanha para Inglaterra, com a tomada do poder pelos nazifascistas. 


Em Tempos Interessantes, a sua autobiografia, publicada em 2002, este marxista dizia pertencer “à era da unidade antifascista e da Frente Popular”, que “continua a determinar o meu pensamento estratégico em política”. Aí alertou de forma presciente: 

“Dez anos depois do fim da União Soviética, é possível que o medo tenha voltado (...) Graças ao enfraquecimento da social-democracia e à desintegração do comunismo, o perigo vem dos inimigos da razão; fundamentalistas religiosos, etnotribais e xenófobos, entre eles os herdeiros do fascismo (...) O mundo ainda se arrependerá de, perante a alternativa formulada por Rosa Luxemburgo – o socialismo ou a barbárie –, ter preterido o socialismo.” 

Estamos sempre a tempo do socialismo, incluindo contra a barbárie que vem dos EUA.

sábado, 13 de julho de 2024

Gramscianos


Não podemos aceitar a falsa antinomia – colocada e utilizada pela própria ditadura – entre nacionalismo e democracia. Não se trata de contrapor medidas liberalizantes, a um suposto nacional-estatismo de fundo autoritário, mas sim de opor um autêntico nacionalismo democrático e popular às manobras demagógicas e “patrioteiras” de um fascismo objetivamente entreguista. 

No ano em que nasci, 1977, Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) fazia, a partir do Brasil, uma distinção com validade para lá desse grande país. Coutinho foi talvez o principal gramsciano brasileiro – coeditor dos vários volumes dos Cadernos do Cárcere, integralmente traduzidos no Brasil, e autor de pelo menos uma clarificadora introdução à vida e pensamento de Gramsci, disponível em pdf numa das suas primeiras edições (tem tido várias). 

Hoje em dia, uma parte da intelectualidade de esquerda gosta muito de mobilizar Antonio Gramsci (1891-1937). Foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano e morreu nas prisões do fascismo, não sem antes legar à posteridade os tais cadernos e tantos outros escritos anteriores. 

Provavelmente influenciados por alguns usos e abusos a que o pobre Gramsci tem sido submetido na academia, julgo que muitos, sobretudo deste lado do Atlântico, tendem a ignorar uma das principais mensagens dos seus escritos: é preciso encontrar os sinais deixados pelos subalternos nas peculiares e contraditórias tradições nacionais. 

Trata-se de uma condição político-cultural necessária para criar uma vontade geral nacional-popular hegemónica, capaz de saltar das sempre parciais lutas económicas para o plano mais abrangente da liderança ético-política, criadora de uma nova ordem, de uma sociedade regulada de cariz socialista. 

Hegemonia é em Gramsci a articulação entre coerção minimizada e consenso maximizado, uma congruência entre as sempre interligadas relações sociais de produção e superestruturas político-ideológicas, digamos. 

E é para a mudança progressiva, mas radical, que serve o “novo príncipe”, o intelectual coletivo, o Partido, segundo o particularmente atento leitor de Maquiavel. Tudo tem de ser pensado e organizado no fluxo da história: leninismo para guerra de posição, para lá de Outubro, no fundo. 

Aprende-se isto lendo Gramsci, ajudado pelos seus principais intérpretes. Álvaro Cunhal também escrevia como Coutinho deste lado do Atlântico. O historiador João Arsénio Nunes já sublinhou o momento gramsciano no seu pensamento desde a juventude. Desculpem, mas recuámos tanto nesta área. 

Entretanto, o discreto, mas consistente, trabalho de Carlos Carujo, intelectual do Bloco de Esquerda, é incontornável para pensar com Gramsci em Portugal, até porque coordenou a mais recente edição dos Cadernos do Cárcere escolhidos, embora não sublinhe tanto esta dimensão nacional-popular, creio. E a enciclopédia Einaudi, que está tão bem traduzida, tem um volume sobre política, onde pontificam excelentes textos gramscianos italianos.

Aprender sempre, mas sempre.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Uma fraude mediaticamente instituída


As paragonas repetem, uma vez mais, o registo habitual, de aparente supremacia do ensino privado, redutoramente medido através da simples ordenação dos resultados dos exames, sem considerar o perfil socioeconómico dos alunos. Porque, uma vez mais, a generalidade dos jornais, rádios e televisões se dispõe a publicar as notas das escolas privadas sem que estas forneçam - ao contrário das públicas - informação de contexto dos seus alunos (escolaridade dos pais, idade face ao ano escolar que frequentam e ação social escolar). Por mais que se saiba que estas são as variáveis com maior capacidade explicativa das médias obtidas nos exames pelas escolas.

Que os privados possam escolher os seus alunos, selecionando logo à partida os que apresentam perfis e classificações favoráveis à obtenção de bons lugares nos rankings, é coisa que não inquieta os órgãos de comunicação social que decidem elaborá-los e publicá-los sem dispor da referida informação de contexto, essencial para calibrar esses mesmos resultados. Um exercício fraudulento portanto, de pura desinformação, que está mais que instituído.

Lanchar e conversar


A vitória da Nova Frente Popular (NFP) na segunda volta das eleições francesas de 7 de Julho veio mostrar que é possível rejeitar o espartilho político-mediático que gostaria que os povos passassem a escolher apenas entre a direita neoliberal e a extrema-direita neoliberal, conservadora e xenófoba. 

O primeiro lugar obtido pela coligação das esquerdas não impediu, ainda assim, que o partido de extrema-direita Reunião Nacional (RN) voltasse a ser o mais votado em França, conseguindo até o seu melhor resultado de sempre. Não impediu também que as direitas, perante o desafio de constituição de um governo sem maioria, se apressem a apresentar como «impossíveis» ou «perigosas para a economia» as propostas vertidas no programa com que a coligação das esquerdas se apresentou a eleições. 

Numa altura em que as forças da direita e da extrema-direita neoliberais estão em crescimento, como pode constituir-se um bloco social e político que volte a tornar as esquerdas maioritárias? E com que propostas, em particular no quadro dos limites impostos pela União Europeia a qualquer governação de esquerda que queira investir no Estado social e nos serviços públicos, com políticas de igualdade e de salários dignos, no quadro de uma transição ecológica justa? 

Convidamos todos os nossos leitores a participar neste debate. A recepção será feita a partir das 18h00, seguindo-se um lanche ajantarado antes de começar a tertúlia com os nossos convidados.

Podem inscrever-se aqui.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Cem dias de menos liberdade


Para assinalar os 100 dias de Governo, a AD fez mais um powerpoint. Entre medidas que não passam de intenções, referências aos múltiplos powerpoints divulgados todas as semanas e o anúncio de medidas que já estavam em curso como se fossem da iniciativa do atual governo, chega-se à página 10 do documento. E eis que parece que, para assinalar a data, ofereceram um slide da apresentação à Iniciativa Liberal. É que nem a referência ao stink-tank, faltou, no título do slide. Para que não restassem quaisquer dúvidas.

Unir os pontos


1.
Tiago Dores ficou conhecido e ganhou muito dinheiro, graças ao talento de Ricardo Araújo Pereira. Tem assinado uns artigos de “humor” no Observador. Popularizou a racista tese da grande substituição, ingrediente central do fascismo nos dias de hoje. Da cultura neoliberal reacionária ao fascismo, expediente sempre à mão, é só um pulinho. E é para consolidar esta cultura de ódio à esquerda que existe o Observador, um perdócio financiado, tal como o menos liberdade, pelo milionário Luís Amaral. 

2. Mário Ferreira dedica-se diretamente ao capitalismo intensamente explorador e ambientalmente predador, detendo uma empresa de cruzeiros. Para limpar a imagem e garantir poder político-ideológico, Ferreira controla a TVI e a CNN. Esta última organizou uma conferência, perdão, uma summit, sobre mobilidade sustentável e convidou, que surpresa, Mário Ferreira, especialista em ir ao espaço num falo. Os cruzeiros, covidários altamente poluentes para gente rica, movem-se. Vejo-os no Douro. 

3. Paula Amorim substituiu a família Espírito Santo na Comporta. Não brincam aos pobrezinhos nos complexos imobiliários de luxo entretanto construídos. Através da Amorim Luxury, esta herdeira do capitalismo fóssil (Galp) tornou-se a encarnação do porno-riquismo - do consumo conspícuo na era das desigualdades pornográficas -, plantando notícias e crónicas a seu belo prazer na comunicação social. De vez em quando, comete-se uma ou outra “gafe” reveladora, como quando o seu marido e sócio garantiu, em 2018, que “não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados”. O objetivo deve ter sido alcançado, entretanto.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Carta

Os últimos ganhos militares da Rússia na região de Donetsk (Dossiê, 5 de julho) reforçam a necessidade de uma solução negociada para a guerra na Ucrânia. Os EUA e os seus aliados apoiam o principal objetivo de guerra da Ucrânia, que é o regresso às fronteiras de 2014, ou seja, a expulsão da Rússia da Crimeia e do Donbass. Mas todos os analistas informados concordam que, a menos que haja uma escalada séria da guerra, o resultado mais provável será a continuação do impasse no terreno, com uma hipótese não negligenciável de vitória russa. 


Esta conclusão aponta para o facto de ser desejável, ou mesmo urgente, uma paz negociada, sobretudo para bem da própria Ucrânia. A relutância do Ocidente oficial em aceitar uma paz negociada assenta na crença de que tudo o que não seja uma vitória completa da Ucrânia permitiria a Putin “safar-se

Mas isto ignora o resultado, de longe, mais importante da guerra até agora: o facto de a Ucrânia ter lutado pela sua independência e tê-la conquistado - tal como a Finlândia fez em 1939-40. Algumas concessões territoriais parecem ser um pequeno preço a pagar pela realidade, e não pela aparência, da independência. 

Se uma paz baseada mais ou menos na atual divisão de forças na Ucrânia é inevitável, é imoral não a tentar agora. 

Washington deveria iniciar conversações com Moscovo sobre um novo pacto de segurança que salvaguarde os legítimos interesses de segurança tanto da Ucrânia como da Rússia. O anúncio destas conversações deveria ser imediatamente seguido de um cessar-fogo limitado no tempo na Ucrânia. O cessar-fogo permitiria aos dirigentes russos e ucranianos negociar de forma realista e construtiva. 

Exortamos os líderes mundiais a iniciar ou apoiar uma iniciativa deste género. Quanto mais tempo durar a guerra, mais território a Ucrânia tenderá a perder e mais aumentará a pressão para uma escalada até ao nível nuclear. Quanto mais cedo a paz for negociada, mais vidas serão salvas, mais cedo se iniciará a reconstrução da Ucrânia e mais rapidamente o mundo poderá ser retirado do precipício muito perigoso em que se encontra atualmente. 

Subscrito, entre outros, por:

Lord Skidelsky 
Professor Emérito de Economia Política, Universidade de Warwick 

Sir Anthony Brenton 
Embaixador britânico na Rússia (2004-2008) 

Anatol Lieven 

Jack Matlock 
Embaixador dos EUA na URSS (1987-1991) 

*Minha tradução. Artigo original acedível aqui

terça-feira, 9 de julho de 2024

Lutter


Sophie Binet, secretária-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT), declarou em entrevista: “A Nova Frente Popular tem o dever de ser bem-sucedida, não pode trair, nem dececionar”. Para isso, a mobilização laboral é realmente crucial. 

Em 1936, depois da vitória eleitoral da Frente Popular, ocorreram greves maciças durante várias semanas. Estas garantiram conquistas que nem sequer estavam previstas no necessariamente moderado programa eleitoral, como as famosas férias pagas. Foram aprovadas pela Assembleia Nacional quase por unanimidade, incluindo por um bloco burguês amedrontado, como sublinhou Serge Halimi na sua história das experiências de poder da esquerda francesa no século XX. 

O “muro do dinheiro” parecia poder ser derrubado. “Antes Hitler que Blum”, disseram os vende-pátrias da altura. Não perdoaram o patriotismo antifascista e a ousadia laboral. Apesar dos seus desencontros e contradições, as esquerdas tentaram. Nada é concedido, tudo é conquistado; na urna e na rua. E nada está garantido. 

Diagnósticos errados esbarram na realidade

O Eurostat divulgou, na passada sexta-feira, os dados do Índice de Preços da Habitação (IPH) para o primeiro trimestre de 2024. Para quem, de há uns tempos a esta parte, vislumbrava sinais de que a crise habitacional tinha atingindo o seu pico - na convicção latente de que o mercado, deixado à sua conta, acaba por funcionar - os resultados devem ter causado surpresa. Após uma quebra entre 2022 e 2023, que apenas se verificou nos valores da aquisição (tendo os preços do arrendamento continuado a subir), parece confirmar-se uma nova tendência de aumento do IPH.


Deve sublinhar-se, aliás, que nem todos os países registaram descidas dos preços no período em que o índice desceu no conjunto da UE, entre o primeiro trimestre de 2022 e o trimestre homólogo de 2023. Pelo contrário, nesse período apenas 10 Estados membros (em 26, dado que não existem valores para a Grécia) assistiram a uma redução dos seus valores. E apenas 2 países, a Alemanha e o Luxemburgo, têm quebras consecutivas desde o primeiro trimestre de 2022 até ao trimestre homólogo de 2024. Em contrapartida, são 6 os países, entre os quais Portugal, que nunca registaram nenhum movimento de descida neste período. Ou seja, mesmo antes desta nova tendência de subida era exagerado falar em fim de crise.

O problema é que, de facto, a crise habitacional que afeta a generalidade dos países europeus não resulta de uma mera «falta de casas», como errada e insistentemente se afirma, mas antes da presença de novas procuras. Isto é, de investimentos no imobiliário que encaram as habitações como meros ativos financeiros, competindo em termos de procura com as famílias e estando estas em desvantagem comparativa. O que significa, portanto, que se a apetência destes investimentos se mantiver, bem podem ser construídas muitas casas (bem para lá dos rácios entre alojamentos e famílias), que as mesmas continuarão a ser absorvidas, sem que os preços desçam. Na ausência de medidas robustas de regulação, a crise de habitação tem por isso tudo para se manter, enquanto a especulação estiver para aí virada.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Depois interrogam-se muito porque cresce a extrema-direita

A Nova Frente Popular prometeu baixar a idade da reforma, indexar os salários à inflação, aumentando-os previamente em 10%, e rejeitar o pacto de estabilidade orçamental.

Em face desta terrível possibilidade, antes da primeira volta, segundo o Financial Times, as “empresas francesas assustaram-se e cortejaram Marine Le Pen”.

Agora, na segunda volta, parece que, diz-nos a Bloomberg, “[e]nquanto toda a gente esperava para ver se o partido de extrema-direita de Marine Le Pen iria obter a maioria na segunda volta das eleições francesas, um choque muito maior chegou: a vitória da esquerda”.

Choque e, acrescento eu, pavor. De ‘toda a gente’, claro está.

Assim sendo e em resultado, também segundo a Bloomberg, “[c]om os investidores a confrontar-se com um governo minoritário generoso do ponto de vista orçamental, ou com dois anos de impasse, (…) o euro caiu”.

Caiu, digamos, alegadamente.


Alemanha já deixou claras as suas ordens; o BCE obedece e manipula, como de costume, na calada, com a sua inação premeditada e golpista, mas os mercados não estão a ajudar. Uma maçada. 

A propósito de tudo isto, o que nos diz Ana Catarina Mendes, que já foi tudo no Partido Socialista e agora é vice-presidente portuguesa dos autodenominados ’progressistas’ no parlamento europeu, formação política que aprovou, rejubilando, a recente reforma das distópicas regras orçamentais, aquela reforma que acentua a subordinação orçamental do país e assenta no uso de metodologias antidemocráticas porque secretas?

O que os franceses pediram esta noite não foi que elegêssemos um extremo contra outro extremo”.

E é isto. Depois interrogam-se muito porque cresce a extrema-direita. Esquecem tudo e não aprendem nada.

Isto, sem mais nem menos

«A Nova Frente Popular venceu as eleições em França. A extrema-direita foi claramente derrotada. “A França merece melhor do que uma alternativa entre o neoliberalismo e o fascismo”, como disse Olivier Faure, secretário-geral do Partido Socialista francês. Felicito a esquerda francesa e a sua unidade por este extraordinário resultado. A melhor barreira contra a extrema-direita está na defesa e aprofundamento do Estado Social. Unida, a esquerda venceu a extrema-direita nas urnas, agora terá de a vencer na governação e nas políticas públicas.»

Pedro Nuno Santos (no twitter)

domingo, 7 de julho de 2024

Merci beaucoup, Jean-Luc


Viva a França das grandes mobilizações sociais – dos coletes amarelos à luta para travar as contrarreformas neoliberais no campo da segurança social ou das relações laborais. Sem estas, não teria havido frente.

Viva a França da Frente Popular, a que na altura certa soube que só as esquerdas barram a extrema-direita e o extremo-centro macronista, cujas políticas neoliberais alimentaram Le Pen.

Viva a França de Mélenchon, o que melhor tem sabido interpretar o espírito insubmisso, nunca permitindo que a bandeira nacional pertença aos fascistas, era o que mais faltava, ainda para mais no país que pioneiramente proclamou: a soberania reside na nação, ou seja, no povo.

Por todos os que fizeram frente, merci beaucoup, Jean-Luc.

sábado, 6 de julho de 2024

O complexo de vira-lata dos vende-pátrias


Luís Montenegro participou numa conferência da Business Roundtable Portugal (BRP), que teve lugar há uns dias na inevitável Nova School of Business & Economics. O inglês misturado com o português revela o “complexo de vira-lata”, como dizem os brasileiros. 

Montenegro debitou umas inanidades fiscais, destinadas sempre a transferir rendimentos de baixo para cima na pirâmide social, nacional e internacional, mas ineficazes de qualquer outro ponto de vista. 

É para isto que o capital que é grande faz estes investimentos intelectuais e políticos, como tentei antecipar em artigo, escrito aquando do lançamento da BRP. 

Entretanto, o Governo alardeia uma entrevista do tão incompetente quanto neoliberal ministro das Finanças ao Financial Times (FT). Reparai apenas no detalhe do iPhone, com a notícia na app do FT, coroando simbolicamente a política dos vende-pátrias.

Adenda. Carlos Moreira da Silva é o Presidente da BRP. Quem é? É um capitalista financeiro e um dos maiores financiadores do stink-tank menos liberdade (iniciativa liberal) e do observador (direita que diz chega). Está tudo ligado e é tudo brutalmente claro e direto nesta forma de economia política.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Ridiculamente antidemocrático


Os efeitos ridiculamente antidemocráticos do sistema eleitoral britânico estão à vista: um partido com pouco mais de um terço dos votos tem praticamente dois terços dos lugares. O pior do blairismo – “o meu maior triunfo”, disse Thatcher – tomou o poder e promete ser a alternância sem alternativa. A extrema-direita em ascensão agradecerá ainda mais. 

No meio de um desastre político-ideológico sem fim, Corbyn, o melhor Primeiro-Ministro que o Reino Unido nunca teve, foi eleito, conjuntamente com um punhado de outros defensores da Palestina. Ficámos também a saber que os trabalhistas de Starmer tiveram menos votos do que os trabalhistas de Corbyn em 2017 e em 2019. Fraco consolo. 

Escrevi o seguinte em 2019: a tragédia do indispensável Jeremy Corbyn foi a de ter sido sempre fiel à tradição eurocéptica, radicalmente democrática, do melhor trabalhismo britânico até ter sido arrastado pelos europeístas para uma posição inconsistente, que incluiu a defesa de um segundo referendo, quando havia que respeitar a vontade nacional-popular no Brexit, como de resto se tinha feito na eleição de 2017. 

Sim, sempre defendi que o Brexit, com claro conteúdo de classe, era uma oportunidade, a intensificação da democracia era uma oportunidade. Infelizmente, foi desperdiçada pelo melhor da social-democracia. Pelo menos, a Grã-Bretanha está agora mais unida, com o colapso do intragável nacionalismo escocês, e a unificação irlandesa é mais provável.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

3º Pedalada | Macron 2017 = Le Pen 2024?


O reforço da extrema-direita, que se aproxima do poder, é um dos resultados salientes das eleições francesas; estas confirmam que o extremo-centro liberal abre o caminho aos novos rostos do fascismo, mas também assinalam a existência de uma resistência de esquerda. 

Este é o ponto de partida para um debate sobre a situação francesa e os seus impactos além-fronteiras. 

Pedalada, no seu 3º episódio, com um painel composto por Cristina Semblano, economista e professora universitária a viver atualmente em Paris, João Murta, economista e professor universitário e João Rodrigues, coautor deste blogue, economista e também professor universitário e moderação de Paulo Coimbra, economista e também coautor deste blogue. 

A lata de Moedas

Depois de votar sistematicamente contra a prorrogação da suspensão de novos registos de Alojamento Local; de defender autorizações excepcionais para novas unidades; de criticar um estudo que evidenciou o impacto desta modalidade de ocupação turística nos preços da habitação para fins residenciais; de se juntar aos protestos contra medidas de reforço das restrições ao arrendamento de curto prazo de habitações a turistas, aprovadas pelo Governo anterior; e de, já há menos tempo, como também se assinala oportunamente aqui, votar contra uma moção da oposição, a pedir ao atual Governo que não revogue as limitações ao Alojamento Local, Carlos Moedas diz ter sido «o único presidente da Câmara, até agora, que travou o Alojamento Local». É preciso ter topete.


Para quem considera, pelas palavras, atos e omissões que realmente contam, que o Alojamento Local não é um problema em Lisboa, valerá a pena recordar duas coisas. Por um lado, que a capital tem rácios de unidades de AL no total de alojamentos e de habitantes bem acima de cidades como Nova Iorque. Por outro, e sem precedente histórico, que Lisboa perdeu cerca de 3 mil casas na última década, uma quebra que não teria ocorrido se o número de unidades de Alojamento Local existente em 2021 estivesse afeto à função residencial, como se procurou demonstrar aqui.

Azul para todos


No verão da minha infância os dias eram sempre quentes e longos. Era o tempo do campismo, dos grelhadores, da pele macia e brilhante, da praia que se estendia até ao cair da noite, das noites infindáveis sem ruído e que, ainda assim, traziam o som da vida nas árvores, nas gargalhadas e nas bolas que batiam livres sobre o asfalto. Era o tempo das sestas e das festas a cheirar a sardinhas e a farturas no meio das vilas e das cidades onde todos tinham lugar. (...) Creio que já o disse por aqui por mais de uma vez, mas não me cansarei de o repetir: não regresso ao verão da minha infância por nostalgia, mas pela esperança de voltar a ver um país em que o ar é de todos, em que não é preciso entrar em propriedade privada para ver as estrelas ou sentir o mar nos dedos dos pés.

Assim começa e acaba mais uma crónica de Jorge C.. A excelência não é função da visibilidade.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Dividir

Este título e esta foto têm por intenção (ou, pelo menos, por efeito) alimentar a desinformação e o preconceito, já que todos os trabalhadores nas mesmas circunstâncias, independentemente da sua origem, têm a mesma dispensa.

Podemos, neste contexto, usar uma certa tradição da economia política radical norte-americana para ir mais longe. De facto, o capital pode alimentar, através dos seus aparelhos ideológicos, a xenofobia e o racismo, já que estes servem um capitalismo sem pressão salarial: tentar dividir a classe trabalhadora para reinar sem freios e contrapesos, no fundo.

Entretanto, em artigo no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, já tinha alertado: tal como outros «perdócios» nesta área, o ECO serve de eco patronal.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Poligrafar o polígrafo


Na versão inicial da publicação, a 21 de junho, o Polígrafo não tinha dúvidas: a frase proferida por Paulo Núncio na AR, segundo a qual «os socialistas já levaram o país três vezes à bancarrota», correspondia à verdade. Três dias depois, a 24 de junho, e muito provavelmente na sequência de reparos feitos pelos leitores, o Polígrafo corrige, reconhecendo «que um dos pedidos de assistência financeira do Estado Português, em 1983, não pode ser entendido como responsabilidade direta ou causado pelos “socialistas”», uma vez que esse pedido surge «na sequência de três anos de governação da Aliança Democrática». A frase de Paulo Núncio passa assim, e bem - no respeito pela verdade de factos que é suposto o Polígrafo assegurar -, de verdadeira a falsa.

Sucede, porém, que ainda há uma outra correção importante a fazer. A ideia de que foi o então governo socialista que levou o país a recorrer a uma assistência financeira em 2011, longe de ser inevitável, também não colhe, sendo impressionante como esta narrativa - que procura ofuscar a responsabilidade do sistema financeiro pela crise, convertendo-a, em termos de perceção pública, em crise das dívidas soberanas, para legitimar a austeridade -, suportada desde o início na comunicação social por um friso monolítico de economistas dispensados de contraditório, ainda persiste no espaço público.

De facto, como se procurou demonstrar por exemplo neste livro, a crise desencadeada em 2008 com o colapso do subprime nos Estados Unidos assumiu um impacto global, com particular intensidade numa Zona Euro disfuncional, obrigando os Estados a socorrer a banca e a conter os impactos da crise financeira na economia. E se num primeiro momento a Comissão Europeia aprovou um plano orientado para «evitar uma espiral de recessão e apoiar a atividade económica e o emprego», acabaria por impor a adoção de políticas de austeridade (como se a responsabilidade da crise fosse dos Estados), que apenas agravaram os problemas. Que isto ainda não seja hoje claro e cristalino é de facto espantoso. Como é espantoso que se continue a usar o termo bancarrota para descrever as finanças públicas de um Estado, como se este fosse uma empresa. Não é. Pode soberanamente decidir do seu destino em quaisquer circunstâncias. Existe para durar.

Serviço


Depois de prometer uma redução da semana de trabalho indolor nas primeiras 20 páginas e de nos aborrecer durante outras 160, Pedro Gomes assassina, sem cerimónias, a sua proposta. No final fica apenas uma obra que faz um desserviço a quem luta e lutou por condições dignas de trabalho (...) Ao ler o livro, fica claro que devemos olhar para Gomes como um veículo de medidas como a redução de salários, aumento da idade da reforma e aumento do horário diário - não de transformar a sexta-feira no novo sábado. 

Excerto de uma útil recensão na República dos Pijamas a mais um armadilha intelectual e política em que alguma esquerda caiu. 

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Comunidade de destino democrático


“Espírito coletivo”, “memória coletiva”, “comunidade”: estas e outras palavras surgiram em testemunhos, ouvidos hoje na Antena 1, a propósito do falecimento de Fausto Bordalo Dias e para sublinhar os seus contributos musicais vivos. Ontem, faleceu o pintor Manuel Cargaleiro, o que “pintou a luz e viveu a cor” até ao fim. E as mesmas palavras podem ter surgido. 

Uma comunidade de destino democrático também foi, é e será forjada, reinventada, pelos seus melhores artistas. Contra a autoflagelação, que só dá munições aos inimigos da democratização da cultura e da cultura democrática, há fortes razões para amar os que amaram este país e as suas potencialidades, deixando rastos para outros, numa cadeia do tempo sem fim.

domingo, 30 de junho de 2024

Fazer da exceção a regra


Lembrei-me de uma passagem de um dos meus livros preferidos do saudoso Eduardo Galeano – De Pernas para o Ar. A Escola do Mundo às Avessas. A Antígona bem que o poderia reeditar, dado o número de livros de Galeano que já tem, e bem traduzidos, no seu primoroso catálogo. 

Norte versus sul, dominante versus dominado, elite versus povo, direita versus esquerda. São poucos os lugares onde há igualdade de condições, dado que predomina um sistema de relações sociais e internacionais brutalmente injusto. É preciso lutar pela expansão dos lugares de igualdade, fazer da exceção a regra.

sábado, 29 de junho de 2024

Dramatizar

Roubado a Vítor S.

A desdramatização daquilo que é dramático é uma modalidade nacional. Escrever deve servir para o contrário: dramatizar problemas para que outros sintam a energia que é precisa para os resolver.

As crónicas de Carmo Afonso no Público muitas vezes valiam por uma frase, um parágrafo, que ia à essência das coisas. Guardei vários como este. 

As crónicas de Carmo Afonso muitas vezes valiam por conseguirmos ver uma pessoa a pensar, como se estivéssemos ao seu lado, na sua cabeça, em frente ao computador. 

As crónicas de Carmo Afonso muitas vezes valiam pela coragem rara de afrontar poderes estabelecidos, com nomes e tudo. 

As crónicas de Carmo Afonso muitas vezes valiam por nos dar vontade de responder, dado que as discordâncias entre camaradas, no melhor e mais amplo sentido, são as que permitem aprofundar uma ideia. 

Vou sentir falta das crónicas de Carmo Afonso. 

O Público tem muitas explicações a dar. Na sua ausência, ficamos por enquanto pela mais simples.

Adenda. Para substituir uma advogada firmemente ancorada à esquerda, o Público escolhe Pedro Adão e Silva, um sociólogo do centro-centro-centro-esquerda. João Miguel Tavares, liberal até dizer chega, alternará com um social-liberal. Assim se aprofunda a deriva para a direita na opinião.   

O saldo demográfico do trabalho

À semelhança do saldo demográfico propriamente dito, que traduz o balanço dos fatores que determinam a evolução da população (nascimentos e óbitos, emigração e imigração), pode ser feito um exercício nos mesmos moldes, aplicado às entradas e saídas na idade ativa (considerando os 16 anos como ano de entrada e os 66 anos como ano após a saída).

No caso português, e refletindo o envelhecimento da população, este exercício permite constatar, desde logo, uma inversão de saldo, que passa a negativo a partir de 2011, em parte impulsionada por uma aceleração das saídas a partir de 2008, com a redução das entradas, no quadro temporal considerado (1970-2023), nos primeiros anos da década de noventa.


Podem aliás considerar-se três períodos neste processo de redução progressiva da população em idade ativa, aferida pelas entradas e saídas. Até 1992, sensivelmente, o saldo é claramente positivo, atingindo um valor médio de 85 mil residentes em idade ativa por ano. Entre 1992 e 2011, o volume de entradas começa a decair (de forma mais pronunciada até 2003), com as saídas a revelar uma tendência contínua de aumento. Neste período, e até 2011, o saldo médio mantém-se positivo, mas desce para cerca de 26 mil por ano. E desde 2011, como referido, passa a negativo (com a média anual a rondar os -15 mil), atingindo-se um valor próximo de -34 mil em 2023.

Este padrão de evolução, em linha com a realidade europeia, é não só importante para perceber a magnitude do problema, mas também para o debate atual, desde logo em torno da questão migratória e em relação à capacidade para assegurar, a par de outras áreas, o funcionamento dos serviços públicos (de educação e saúde, entre outros domínios da administração). Reconhecendo que a situação atual dificilmente se poderá inverter sem o contributo migratório - que deve ser tratado assegurando a dignidade do trabalho, dos salários e a capacidade de acolhimento e integração - importa também que as diferentes políticas, a começar pela política macroeconómica, não descurem a questão demográfica e do bem-estar.

É que, de facto, a corrida para o fundo nos rendimentos e na redução dos direitos laborais, a desprotecção social, iniquidade e deterioração dos serviços públicos, e a incapacidade de oferecer condições de vida e perspetivas de futuro, em suma, não permitem certamente que a situação atual se possa inverter. Tanto mais quanto, na realidade, PIB's há muitos.