terça-feira, 8 de outubro de 2024

Para lá do liberalismo


“Os vinte contributos reunidos no livro não esgotam o mapeamento do progressismo”, afiançam as coordenadoras. Tenho dificuldade em compreender o que leva pessoas que se dizem radicalmente de esquerda a dinamizar e participar num livro que junta, no meio de gente de facto progressista, liberais apoiantes da troika e do atual governo e/ou do genocídio perpetrado por Israel. Sistematizando, esta dificuldade assenta em quatro razões. 

Em primeiro lugar, o livro em causa reage diretamente a um outro livro coletivo, abertamente reacionário, deixando inadvertidamente que seja este último a fixar a linha de fronteira do debate, assim puxado para a direita, como se estivéssemos intelectualmente em plena França macronista. 

Em segundo lugar, um livro coletivo deste calibre é muito diferente do excelente, até porque consistente, manifesto de João Costa. Nada lhe acrescenta. 

Em terceiro lugar, o livro tem logicamente muito menos espaço do que o que seria recomendável neste contexto para os temas do feminismo socialista, os da reprodução social e sua repartição, os das relações laborais e suas formas de exploração, etc. Lembro, entretanto, que a troika foi a maior adversária recente das famílias da classe trabalhadora em toda a sua diversidade. E que as regras europeias austeritárias o continuam a ser. 

Em quarto lugar, o livro permite que figuras nada recomendáveis, objetiva e/ou subjetivamente de direita, estejam sempre em pé e possam passar por progressistas, em modo “neoliberalismo progressista” versus “neoliberalismo reacionário” (mais uma útil dicotomia da autoria de Nancy Fraser), como se o primeiro tivesse alguma coisa que ver com o progresso, um truque de colonizador em que algumas destas “personalidades” de resto se especializaram. A esquerda não sobrevive com esta complacência em relação a elas. 

Não, por uma vez não me apetece mencionar nomes, estão na capa, andam por aí, com todo o mediatismo, com todo o capital. Apetece-me antes lembrar Amílcar Cabral: “não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem”. 


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Grazie mille, Francesca Albanese


O amplo auditório da FEUC estava cheio e transbordou com a jurista internacional, a relatora rigorosa, a profunda conhecedora de teoria crítica e de história. 

Não se ouviu uma mosca durante a hora em que falou, e tão bem que falou, com os conceitos tão bem definidos – genocídio, por exemplo – e com tanta e desgraçada evidência sobre a “crise da humanidade, ao invés de uma mera crise humanitária”; falou como se deve falar, com a consciência, com o corpo todo, ancorada na melhor filosofia da ciência, onde factos e valores estão entrelaçados, embora possam ser, aqui e ali, distinguidos. 

Falou dos abismos morais do colonialismo e do racismo que lhe está associado, da desvalorização das vidas palestinianas, deixando entrever o imperialismo e o capitalismo que lhes subjaz; falou de “cobardias institucionalizadas” e de esperanças políticas libertadoras. Nunca se desiste: “não nos podemos dar ao luxo da desesperança”. 

Não me lembro de ter respirado durante uma hora. Voltei a lembrar-me de respirar quando lhe coloquei duas questões, creio. Há muito que não assistia a uma palestra assim. O povo palestiniano não podia ter melhor, mais carismática, aliada nas Nações Unidas. O mundo não colapsou ainda, porque existem rebeldes competentes assim, em muitos lados, idealmente agindo de forma concertada. 

Não, a história não começou há um ano; os crimes do colonialismo sionista começaram muito antes. 

Grazie mille, Francesca Albanese.

Adenda. Hoje ficámos a saber: “Navio com bandeira portuguesa com explosivos para Israel impedido de entrar em Malta. Decisão surge depois de Francesca Albanese, relatora da ONU, ter pedido acção ao Governo maltês.”

O atual governo está agravar a crise de habitação

A AD não vai resolver, nem sequer mitigar, a profunda crise habitacional que Portugal atravessa. Antes a vai agravar, tornando a habitação ainda menos acessível face aos rendimentos das famílias. Como assinalámos aqui, o aumento do preço das casas no 2º trimestre de 2024, face ao trimestre anterior, foi «apenas» o mais elevado desde que há dados disponíveis (2009). Com a agravante de esta subida inverter, de forma abrupta, a tendência de diminuição do ritmo de aumento de preços a que se estava a assistir desde o 2º trimestre de 2023.

O que se constata agora, com os recentes dados divulgados pelo Eurostat, é que Portugal teve a segunda maior subida (3,9%) de preços da União Europeia, sendo apenas antecedido pela Croácia (4,3%) e encontrando-se muito acima do valor registado à escala da UE (1,9%). Isto quando, sublinhe-se, a variação trimestral anterior foi a mesma no nosso país e na UE (0,6%), em resultado de uma aproximação progressiva de Portugal à média dos 27.


Com uma franqueza provavelmente inadvertida (que SIC tentou dissimular), a ministra da Juventude já tinha alertado para o facto de as medidas do governo, e sobretudo os incentivos à procura solvente, poderem vir a aumentar o preço das casas. De facto, como já assinalado por vários agentes do setor, a «mudança de uma política mais restritiva», como a que foi levada a cabo pelo governo anterior, para uma orientação liberalizante, assente em incentivos e na dinamização do mercado, «fez com que tanto compradores como promotores estivessem mais ativos». Bastaram os compromissos programáticos do governo, e o simples anúncio de medidas, para «mexer com o mercado».

Não se espere, portanto, que a situação melhore ou que não piore mais. Tal como no caso da saúde, onde a mudança de políticas começa igualmente a tornar-se evidente - sobretudo com o reforço da transferência de recursos públicos para o setor privado - também no caso da habitação as dificuldades que já existiam têm tudo para se agravar.

domingo, 6 de outubro de 2024

Um jornal que faz perguntas radicais


Perante mais uma desolação cinza e negra de muitos milhares de hectares, desta vez em Setembro, um refrão proprietário ecoou nas televisões, acompanhado de uma exigência: os donos dos terrenos não têm a obrigação de os limpar se estes não gerarem rendimento adequado, pelo que o Estado deve subsidiar os proprietários florestais. Afinal de contas, os proprietários gerariam benefícios para o conjunto da comunidade, o que os economistas convencionais chamam de «externalidades positivas». 

Na realidade, os donos de terrenos rústicos florestais têm a obrigação legal de os limpar regularmente. É, entre outras, a contrapartida pelos múltiplos custos em que a comunidade política incorre para lhes garantir a criação e protecção do direito de propriedade privada. É necessário reconhecer que as acções e as omissões proprietárias têm implicações, tantas vezes negativas, sobre o que é dos outros, sejam indivíduos ou colectivos. 

Na União Europeia, não há outro país onde a propriedade privada da floresta seja tão prevalecente. Por todo este país de propriedade privada esmagadora e tantas vezes pulverizada, multiplicam-se histórias de quem tem os terrenos limpos, lado a lado com o desmazelo e a irresponsabilidade proprietária. Tudo o que fazemos com o que é nosso tem implicações sobre o que é dos outros, sejam bens materiais ou imateriais, digamos: saúde, segurança, tranquilidade. 

A propriedade é sempre uma relação social, politicamente determinada. E, por exemplo, uma coisa é plantar e cuidar de floresta autóctone, outra coisa é plantar milhares e milhares de hectares de eucalipto no quadro de um capitalismo verde-negro, totalmente desadequado na época das alterações climáticas. Este capitalismo é demasiado tolerado por um Estado com capacidades e conhecimentos brutalmente enfraquecidos nesta área, graças à destruição de serviços florestais pelos processos de neoliberalização em livre curso desde o cavaquismo. 

 A Constituição da República Portuguesa prevê o direito de propriedade privada, mas subordina-o ao interesse geral e incrusta-o num feixe de direitos e deveres económicos e sociais que o transcendem e limitam, até pela existência de outros direitos de propriedade, pública ou cooperativa, no quadro de uma economia mista, condição material mínima para a subordinação do poder económico ao político. 

Apesar disso, quem se deixe intoxicar pela comunicação social dominante, ficará convencido de que ser proprietário é só ter direitos, cada vez mais direitos, com nulas obrigações, com nulo reconhecimento de qualquer função social; ou melhor, com todos os deveres a serem transferidos para o Estado e, assim, socializados. A ideologia proprietária televisionada afiança falsamente que o que é de todos não é de ninguém, o que significaria que poderíamos retorquir: será que os deveres que são de todos, sem os quais de resto não existiria propriedade privada, não são de ninguém? 

As televisões ditas privadas usam e abusam de um bem público licenciado pelo Estado — o espectro hertziano terrestre destinado à radiodifusão —, furtando-se aos seus deveres de formar e informar, sem que haja qualquer consequência: claramente, a ideologia dominante é a dos seus proprietários, num capitalismo televisivo sem freios e contrapesos, até pelo enfraquecimento do poder dos jornalistas. Sim, por todo o lado, as relações de propriedade são relações de poder.

Entre as várias funções sociais do Le Monde diplomatique — edição portuguesa, e da cooperativa cultural que o edita, está a de contestar a ideologia proprietária que gostaria de impedir perguntas radicais: quem se apropria do quê e porquê e, correlativamente, quem tem liberdade e quem a ela está vulneravelmente exposto? Um jornal pode colocar estas perguntas livremente também graças à forma de propriedade cooperativa que o organiza e responsabiliza. 

O resto do artigo sobre desordens proprietárias pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de outubro. Coube-me a responsabilidade de substituir Sandra Monteiro no editorial da edição portuguesa. Assinai, apoiai este projeto cooperativo.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

OE 2025: Encontrando o dinheiro para pagar o que podemos fazer

O documentário Finding the Money, uma viagem pela Teoria Monetária Moderna (MMT), está finalmente acessível ao grande público. Se decidirem usar o vosso tempo para assistir, julgo que, com forte probabilidade, o darão por bem empregue. O trailer pode ser visualizado aqui.

(Valiam o que o imperador dissesse que valiam)

A meu ver trata-se de uma peça muitíssima informativa, sobretudo num período em que o país está embrenhado num simulacro de debate orçamental (a Comissão Europeia continua sem nos dizer, afinal, quanto do nosso dinheiro podemos usar) que, respaldado no ordenamento europeu, errada e tragicamente, se conforma com a austeridade permanente que nos é imposta e não admite escrutínio.

Um debate orçamental dogmático e enviesado que exclui liminarmente a opção do défice (mesmo se este for compatível com a redução da dívida pública), num contexto histórico de lucros da banca, imorais e politicamente produzidos, a pedir para serem tributados, insuficiente procura agregada, despesa pública, em % do PIB, em Portugal muitíssimo inferior à média da EU, previsão de crescimento medíocre (1,9%) e fortíssima erosão da capacidade do Estado português para assegurar as funções que lhe estão constitucionalmente consagradas, o que mina a Democracia.

O documentário está repleto de ideias potencialmente surpreendentes como, por exemplo, aquela segundo a qual Estados monetariamente soberanos criam dinheiro do nada quando fazem despesas de consumo e/ou de investimento, ou aquela outra que descreve como, no uso de licença Estatal para o efeito, os bancos privados criam dinheiro do nada quando concedem crédito e, para finalizar esta seleção, aquela que, a partir da evidência que as receitas de uns são as despesas de outros, constata que superávites públicos significam, necessariamente, défices privados.

A quem interessar, alguns destes assuntos e conceitos foram também aqui tratados.

Ideias que, a meu ver, podem ser mesmo muito úteis para a compreensão dos constrangimentos reais, falsos e autoimpostos que as finanças públicas enfrentam. Ideias que, simultaneamente, ajudam a compreender que, de facto, não sendo um país soberano economicamente equiparável a uma família, tudo o que pode fazer pode pagar.

Temos Estado a mais na economia?

Mais factos (acessíveis no Eurostat): em Portugal, o Estado gasta menos que a média da Zona Euro na generalidade das áreas, da saúde à educação, passando pela proteção social, habitação ou proteção ambiental. A despesa pública total é inferior à média da Zona Euro em 6,1 pontos percentuais do PIB.

Vencerá


Anteontem, contra hábitos, usos e costumes arreigados, cheguei meia hora atrasado, devido a uma arguição de tese. Estava a partir, com o habitual atraso militante. Chovia. Partimos de uma rotunda na Fernão de Magalhães e desfilámos até à Praça 8 de Maio. 

Não eramos assim tantos, mas gosto de pensar que fomos bons. Gritámos a plenos pulmões: Paz Sim! Apartheid Não! 

Na praça, chovia ainda mais. Debaixo de um chapéu, um militante pela Palestina leu um breve discurso. A certa altura, a mudar de página, as folhas já estavam coladas, mas, com esforço, conseguiu descolar e acabar como a circunstância impunha. 

Qual é o impacto desta manifestação pela Palestina em Coimbra? Passámos por pessoas, que nos viram e ouviram, com interesse e simpatia, pareceu-me; só um “carrão” apitou, impaciente. Quem sabe qual é o impacto do que fazemos individual e coletivamente? Confiemos na obliquidade, em interpelar, em colocar pessoas a pensar, diz-me o instinto desenvolvido a ensinar e a aprender, como todos. 

Em Coimbra, deu-se o tiro de partida para uma jornada nacional de solidariedade com a Palestina, com manifestações por todo o retângulo, de Faro a Viana do Castelo, culminando em Lisboa, no dia 12 de outubro. 

O importante é fazer a coisa certa, no momento certo. E não arriscámos nada: não fomos presos, não nos bateram. Pelo contrário, a polícia garantiu o nosso direito constitucional. Encarnámos os melhores valores da Constituição (número 2 do Artigo 7.º, por exemplo): 

“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.” 

E outros, noutros lugares distantes, manifestam-se e arriscam muito. Na Palestina, arrisca-se tudo, simplesmente por, e para, existir. Outros, também por cá, manifestaram-se e arriscaram muito, alguns tudo, agindo em prol de si e dos outros, durante décadas a fio. 

Em prol de si, sim, age-se sempre por interesses próprios, o que varia, crucialmente, é aquilo que interessa a cada indivíduo e isso faz toda a diferença moral do mundo. Os outros têm de nos interessar, os compromissos coletivos têm de nos interessar. Sim, temos um dever de fidelidade a uma história, a várias, com h e H, na realidade, de fidelidade às suas verdades. 

Sabemos que não estamos sós, somos parte de um vasto movimento internacionalista de solidariedade com o povo palestiniano, alvo do Estado colonialista e da sua pulsão genocida. Sim, Estado, que isto está para lá do governo sionista de turno, diz-nos a História, diz-nos o combate contra amnésias tão convenientes, mesmo entre a elite que se julga progressista no Portugal dos pequenitos, numa UE pequenita. 

 E, não, não terminámos numa bela praça, molhados, num café bonito, a beber chá quente, numa conversa sem início e sem fim, convencidos de que a praça é nossa. 

Palestina vencerá.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pensar, existir

O que resta de uma universidade em Gaza

O CES tem, ao longo do tempo, promovido a reflexão sobre a situação na Palestina. Numa altura em que todas as universidades de Gaza foram destruídas ou severamente danificadas, e tendo em consideração os princípios e a missão deste centro de investigação, propomos contribuir para o esforço global de paz e justiça na região. A comunidade académica tem o dever particular de promover a justiça e a igualdade.

É neste contexto que decidimos suspender todas as formas de cooperação científica, enquanto forma necessária e não-violenta de encorajar a mudança política e social, exercendo influência e pressão sobre o Estado israelita. Esta suspensão, que se aplica a instituições e não a indivíduos, incide sobre colaborações no âmbito de projetos de investigação, conferências e eventos científicos, candidaturas a financiamento, publicações e projetos de intercâmbio, existentes e futuras, até ao fim da invasão e da ocupação militar em Gaza. 

O CES continuará a dinamizar um debate informado sobre esta matéria, reiterando o exercício da liberdade de expressão e o repúdio por quaisquer formas de antisemitismo e islamofobia, bem como qualquer outro comportamento de ódio.

Vale a pena ler o resto. Bem sei que esta consequente tomada de posição peca por ser algo tardia, mas depressa e bem não há quem. E fomos a primeira instituição universitária portuguesa a alinhar com boas e consequentes práticas internacionalistas, com muitas outras universidades e centros de investigação estrangeiros. Já basta de silêncios cobardes.

Sim, tenho orgulho no CES e nos seus valores. São os mesmos que as atuais direção e presidência do científico reafirmam todos os dias e por isso merecem o meu apoio e admiração, fazendo, por exemplo, do CES a instituição universitária nacional a lidar de forma mais séria e profunda com “indícios de ‘padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia’”. 

Haja coragem e fidelidade à verdade.

Luís Moita, Francesca Albanese

 

Esta conferência, proferida por Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para a situação dos Direitos Humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, é promovida pelo Núcleo de Relações Internacionais da FEUC, e é a atividade inaugural da recém-criada Cátedra Luís Moita em Paz e Relações Internacionais. Insere-se igualmente nas celebrações dos 20 anos do Programa de Doutoramento em Relações Internacionais – Política Internacional e Resolução de Conflitos (FEUC/CES).

Esta apresentação adquire uma relevância acrescida face à atual crise humanitária e de direitos humanos na região, desencadeada pela incursão militar israelita na Faixa de Gaza em resposta ao ataque terrorista realizado pelo Hamas em território israelita. O evento proporcionará uma reflexão crucial sobre a importância dos direitos humanos e do direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário, num momento em que estes princípios são abertamente questionados no cenário global.

Hoje, a intrépida Francesca Albanese, que encarna o serviço público internacional da ONU no seu melhor, estará em Lisboa, no CCB, numa sessão coorganizado pelo Le Monde diplomatique - edição portuguesa. Amanhã, estará em Coimbra, na minha faculdade. Aí, o saudoso Luís Moita vive nos estudos e lutas da paz.
  

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

OE 2025: nem a mentiras novas temos direito


Ao contrário do que afirma o patrão dos patrões, Armindo Monteiro, repetindo em coro uma falsidade propagandeada, entre outros, por Joaquim Sarmento e Luís Montenegro, o milagre consiste justamente em não distribuir o que se cria, afirmar despudorada e moralisticamente o inverso e não ser confrontado com a mentira.


“Prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros, combinando isso com uma política orçamental pró-cíclica [de austeridade], o que teve como efeito líquido enfraquecer a nossa procura interna e minar o nosso modelo social” admitia, em Abril passado, apesar das suas pesadas responsabilidades neste assunto, Mario Draghi

Atente-se, pois, na disparidade de avaliações e no discurso serôdio que acompanha a prática preguiçosa e gananciosa dos patrões portugueses e no desplante do governo que, com total desrespeito pelos factos, lhes dá respaldo.

Não esquecer a linha


O conceito de linha de cor (color line) foi popularizado por W. E. B. Du Bois na viragem do século XIX para o século XX, tendo por referência o racismo entranhado na economia política dos EUA e para lá dela: “o problema do século XX é o da linha de cor” em todo os continentes.

Existe, de facto, uma linha de cor nas relações internacionais, em geral, e na forma desumanizadora como a comunicação social dominante ainda hoje reporta as vítimas de conflitos, para lá da cada vez mais estreita “comunidade internacional” e da sua discricionária “ordem baseada em regras”, em particular. 

Sim, também é de racismo banalizado que se trata: uma vítima civil israelita vale muito mais do que uma vítima palestiniana ou libanesa na comunicação social dominante. 10, 20, 30, 40 vezes mais? Mais vale estar vagamente certo: muito mais. Há menos histórias e nomes, função da cor de pele e da classe. Era assim aquando do Apartheid, é assim no colonialismo sionista e na sua forma de Apartheid. 
 
Os movimentos de resistência e de libertação do lado errado da linha de cor são sempre apodados de terroristas e isto quando a esmagadora maioria do mundo, corretamente, nunca os tratou assim. 

Infelizmente, uma grande parte da esquerda europeia foi colonizada por esta visão distorcida do mundo, deixando de atentar nesta forma de racismo internacional ululante, com tantos e tão negativos impactos, incluindo no número de pessoas em fuga. 

Os custos de se ter esquecido o imperialismo e a sua economia política internacional são elevados, como descobri há mais de uma década, graças, entre outros, a dois economistas de apelido Patnaik, propagando-se, por exemplo, ilusões europeístas: “A invisibilidade do imperialismo hoje em dia não é sintoma do seu desaparecimento, mas sim do seu poder.” 

Hoje, o imperialismo está à vista de todos. Talvez o seu poder esteja já a diminuir. Haja esperança no aniversário de ontem.

E, sim, quem não quiser falar de imperialismo, de sistema imperialista, e da forma de capitalismo que lhe subjaz, deve calar-se sobre racismo.

A Constituição é antifascista, anti-imperialista e anticolonialista


“O Governo português condena liminarmente os ataques do Irão a Israel e à sua população civil. O Irão deve cessar imediatamente as hostilidades.” O dúplice e imoral Governo português não condenou liminarmente o genocídio em curso na Palestina e os ataques de Israel ao Líbano e à sua população civil. 

Tal como a UE, o Governo português continua alinhado com o colonialismo sionista e com o imperialismo, ao arrepio do que é indicado na Constituição da República Portuguesa (número 2 do Artigo 7.º, por exemplo) e que o Presidente não cumpre e não faz cumprir: 

“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares”.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Mentira e verdade


Comparai o Público com o El Pais: um mente, o outro diz a verdade. É de invasão que se trata, claro. Em Espanha estão mais avançados no que a esta questão diz respeito. Afinal de contas, reconhecem o Estado da Palestina, por exemplo.

O Público tem uma história tenebrosa no internacional, graças à prolongada influência de ideólogas como Teresa de Sousa. É como se estivesse no livro de estilo, junto à palavra liberal: quando a invasão é apoiada pelo imperialismo, quando se dá no quadro do sistema imperialista, não é invasão. E muito menos quando se trata do genocida colonialismo sionista, o que não existiria sem o apoio maciço dos EUA (e da UE, já agora; numa posição subalterna, é certo).  

Adenda. E, atenção, não é que o liberal El Pais seja exemplo para o que quer que seja também, mas pelo menos usa a palavra que se impõe neste contexto e que separa o jornalismo da propaganda.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Entre a esperança e o abismo


Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para a situação dos Direitos Humanos nos Territórios Palestinianos ocupados desde 1967, estará no dia 3 de Outubro, quinta-feira, às 18h30, no CCB, em Lisboa, para falar sobre o tema «Palestina e Direito Internacional: Entre a Esperança e o Abismo». Numa altura em que a violência genocida do governo de Benjamin Netanyahu alastra de Gaza e da Cisjordânia ao território libanês, ameaçando toda a região, há razões para temer que as repetidas violações do direito internacional e humanitário, em vez de conduzir a um cessar-fogo, estejam a adquirir proporções cada vez mais graves. O apartheid israelita é parte de um processo de substituição e expansão territorial, contado em mais de 40 000 mortos. Neste contexto internacional, e perante uma degradação das coberturas mediáticas, o posicionamento do governo de Portugal merece reflexão e o escrutínio dos cidadãos.


Aqui e agora


Muitos milhares manifestaram-se anteontem por todo o país, em nome do acesso a uma casa decente para viver, um preceito inscrito na Constituição da República Portuguesa. 

A nova questão da habitação exige ver e superar as conexões que fazem uma forma de economia política neoliberal periférica: quem não quer falar de turistificação sem limites, deve calar-se sobre habitação acessível. 

Felizmente, quem esteve na rua viu e deu a ver as conexões, com toda a irreverência nacional-popular. A mortífera sabedoria económica convencional, a ideologia liberal dos ricos, já não consegue ofuscar o óbvio ululante, aqui e agora.

domingo, 29 de setembro de 2024

Flash de economia política


Anteontem, a procurar na internet imagens da Business Roundtable Portugal, deparei-me com um cartaz que anunciava uma charla de Paula Amorim sobre sucesso, o topete habitual. Paula Amorim encarna o capital fóssil (Andreas Malm) e de herdeiros (Thomas Piketty), duas categorias que circulam internacionalmente e que são muito relevantes na presente e desgraçada economia política nacional. 

Paula Amorim também encarna o porno-riquismo, termo que cunhei há uns anos para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa: serve para assinalar o consumo conspícuo na era das desigualdades pornográficas e foi pensado indutivamente a partir da Amorim Luxury. Para quem quer seguir estes temas, revistas como a Flash! são úteis, já agora. 

sábado, 28 de setembro de 2024

Lutar, argumentar, lutar


Até logo, por todo o país. Entretanto, há argumentos casa para viver desenvolvidos pelos Ladrões, em especial por Ana Cordeiro Santos e por Nuno Serra, por escrito ou oralmente

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Encontro Anual de Economia Política


Já estamos perto do final do prazo, mas ainda têm até à próxima segunda-feira (30 de setembro) para enviar propostas de comunicações ao 8º Encontro Anual de Economia Política, que decorrerá em Coimbra entre 30 de janeiro e 1 de fevereiro de 2025. O tema do Encontro será, desta feita, Economia Política para uma Vida Justa: Desafios Teóricos e Práticos.

Tal como é dito na página do Encontro, trata-se do principal evento nacional em que se reúnem “todos/as aqueles/as que, a partir das mais diversas áreas disciplinares e abordagens, entendem os fenómenos económicos como sendo eminentemente configurados por fatores de ordem social, política, filosófica, jurídica, cultural, tecnológica e ecológica e devendo ser estudados nos seus contextos institucionais, históricos e geográficos”.

Mais informações e formulário para envio de propostas aqui.

Políticas erradas agravam a crise

O Expresso dá hoje nota de que os «preços das casas nunca subiram tanto como no 2º trimestre». De facto, tal como já tinha sido assinalado aqui, trata-se não só do maior aumento trimestral desde que há dados (2009), como se assiste a uma inversão da tendência de redução do ritmo de aumentos, que vinha a registar-se desde o segundo trimestre de 2023. Ao que acresce, ainda, como demonstra também o semanário, a descolagem crescente dos preços da habitação face aos rendimentos das famílias, desde 2014.


Deste artigo do Expresso, a ler na íntegra, é possível retirar duas ou três notas importantes, que vale a pena reter.

Por um lado, a subida registada, que ocorre nos primeiros três meses do governo de Luís Montenegro, não reflete ainda medidas como a isenção de IMT e Imposto de Selo (nem a garantia pública a partir de hoje em vigor), na compra da primeira casa por jovens até aos 35 anos. Contudo, como refere Rafael Ascenso (Porta da Frente), o simples anúncio destas medidas «veio mexer com o mercado», considerando que «a mudança de uma política mais restritiva, como a anterior, para esta, fez com que tanto compradores como promotores estivessem mais ativos».

Na mesma linha, outros agentes imobiliários ouvidos pelo Expresso constataram um aumento da procura e de preços na sequência do anúncio das medidas, traçando o seu perfil: «pessoas que não estariam abrangidas pela medida e investidores que se posicionaram no mercado antecipando um novo boom na procura por parte dos jovens», acrescentando que «de forma geral, o aumento de preços quase anula o desconto nos impostos decretado pelo Governo para os jovens».

Ora, tendo estas e outras medidas do governo (nos retrocessos ao nível do Alojamento Local, por exemplo) um efeito contraproducente, é de facto expectável que os preços continuem a subir. Isso mesmo assinala Ricardo Amaro, economista na Oxford Economics, ao Expresso: «ao facilitarem o acesso ao crédito por parte de jovens e reduzirem os custos extra associados a uma compra», trazendo «mais compradores para o mercado» e aumentando «o valor que alguns estão disponíveis a pagar», estas medidas «não baixarão os preços».

As políticas e os seus sinais contam. O retrocesso do atual governo de direita em matéria de habitação, em sintonia programática, aliás, com a IL e o Chega, não só não resolverá, como agravará, a crise habitacional que o país atravessa.

Vira-latista, entreguista, mandonista


Business Roundtable, business schools, CEO talks, summits, meetings: a conversa peçonhenta que aí decorre é, na maior parte das vezes, em português, mas o inglês polvilhado serve para exibir a “internacionalização”.  

Igualmente importante é o uso do inglês, misturado com o português, compondo “palavras” novas, usadas nas redes e na TV para que não se compreenda nada, exceto a suposta sofisticação do emissor direitista: wokismo, que já foi colocado como louquismo numa maravilhosa legenda da RTP, quando falava o trol que dirige a IL, nas cerimónias dos cinquenta anos do 25 de abril na AR; whataboutismo, ouvido recentemente num programa medíocre, daqueles que não dá para ver mais do que cinco minutos. 

É uma elite periférica e que se imagina no centro, algures entre Washington e Bruxelas. Este centro está, felizmente, a deixar de o ser; vivemos as dores deste processo. Mas a elite não dá para mais do que isto. O importante é mesmo cultivar o porno-riquismo e o capitalismo de herdeiros, vender o património público a pataco, emborcar drinks de fim de tarde e ir para casa escrever odes ao genocídio e à terceira guerra mundial, em modo guerreiro de sofá.

É uma elite vira-latitsta, entreguista, mandonista. O português do Brasil tem termos tão expressivos e que deveriam ser de uso corrente por cá. Isto, sim, seria internacionalização. Diz que é a época da brasileirização do mundo, afinal de contas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

E agora?


Tirando a segunda-feira, ler a última página do Público tornou-se um exercício politicamente penoso, dada a oscilação entre o extremo-centro e a extrema-direita paroquiais: o internacional praticamente não é abordado hoje em dia. Sim, não se escreve sobre o genocídio na Palestina ou a destruição do Líbano, naturalmente. O colonialismo sionista e o imperialismo norte-americano, sem esquecer a previsível vassalagem da UE, são uma maçada.

No domingo, Adão e Silva falou do risco de “governos crescentemente impotentes a sucederem-se uns aos outros” em Portugal, mas nem por um segundo pensou na óbvia, mas inconveniente, fonte material dessa impotência: a perda de instrumentos de política económica, dada a integração europeia realmente existente.

Para quem gosta tanto de falar de instituições, estranha-se o silêncio atual sobre um quadro institucional em que, por exemplo, a banca em Portugal recebeu milhares de milhões de euros de uma instituição sem controlo democrático chamada BCE, ao mesmo tempo que muitas famílias foram brutalmente oneradas. Sim, o principal preço no capitalismo, a taxa de juro, é diretamente político, mas não é democraticamente definido, como todos temos a obrigação de saber.

Diria que isto, só um exemplo entre tantos, não faz bem à qualidade da democracia, mas que sei eu? E o pior é que sei que Adão e Silva até intui isto. Li o suficiente dos seus escritos da altura da crise da zona euro. O bloco central, que agigantaria a extrema-direita, vale bem esta desmemória? Parece que sim, já que ontem, em modo terceira via zumbi, declarou querer mais discricionariedade capitalista, vulgo mecenato, na cultura e em modo consensual. 

Este foi o ministro que procurou naturalizar a precariedade na cultura, pelo que é natural que defenda os chamados incentivos aos privados, modo aparentemente neutral de ofuscar ideologicamente o que está em jogo nesta opção de política pública: subsidiar as preferências dos ricos, a ainda maior mercadorização de uma cultura orçamentalmente menorizada.

Diz que isto é a social-democracia, só que não.
 

Amanhã, o regresso do planeamento


Um excerto do livro para abrir o apetite.

Sábado, 28 de setembro: Casas para viver


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Ninguém estranha?...


... a ausência de notícias, e dos diretos das televisões, dia após dia à porta das escolas, sobre a falta de professores, no ano letivo em curso? Ninguém estranha um silêncio que se torna ainda mais ensurdecedor quando é o próprio ministro a reconhecer, sem admitir que a situação se agravou, que há neste momento «mais de 200 mil alunos» sem aulas? Quando eram quase 100 mil no ano passado, segundo o próprio Luís Montenegro?

Não haverá um jornalista que pergunte a Fernando Alexandre - aproveitando por exemplo o contexto de uma entrevista - se a ambição e exigência que assumiu em junho, ao apresentar o powerpoint do seu plano, era tributária do desconhecimento da realidade ou, apenas, da tentação, a que cedeu, de alinhar com a ideia de que bastaria mudar de governo para que tudo se resolvesse?

E que significam, afinal, estes mais de 200 mil alunos referidos pelo ministro, depois da engenharia opaca e criativa com que empolou (quadriplicando) os alunos sem aulas no início do ano letivo anterior? São alunos sem aulas só a uma disciplina ou a mais disciplinas? É desde o início do ano ou também em «algum momento» de setembro, como disse o ministério? Incluem baixas por doença, mesmo as de curta duração, ou refletem apenas o que está em causa, a falta de professores? Também contabilizam «furos»? Não sabemos, pois deixámos de conseguir perceber.

Adenda: Não é verdade, ao contrário do que disse o ministro Fernando Alexandre na tentativa de resposta a João Costa (que denunciou a inflação de valores, de cerca de 71 mil para 324 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina no início do ano letivo de 2023), que a diferença se deve a não haver «uma única maneira de medir», acrescentando que «o ex-ministro da Educação escolheu o número que preferiu». Sucede, contudo, que além de a diferença ser abíssal, quando Fernando Alexandre referiu os 324 mil alunos na apresentação do «Plano +Aulas +Sucesso», estava mesmo a referir-se a «alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina».

OE 2025: a vaca fria e o elefante amoroso

A alegada discussão do Orçamento de Estado para 2020 está a acontecer num clima crescentemente dramatizado. 

Enquanto o governo faz reuniões secretas com uns e alardeia reuniões com outros, enterrado em jogos tácitos que escondem o gato mas lhe deixam o rabo de fora, rasga as vestes e troca acusações com o Partido Socialista, Marcelo ameaça (baixinho) com uma crise política. 

Os colunistas do extremo-centro, com espaço de jornal para preencher e, avaliando a partir da amostra, pouco de substantivo para, sobre este assunto, dizer e muito de politicamente relevante para ignorar, escrevem o seu enésimo texto contra a ‘polarização’ enquanto sugerem que aprovar o orçamento é a única política responsável. Dizem-nos implicitamente que não há alternativa: aprovação ou bulgarização.


Impávidos e aparentemente serenos, todos estes atores políticos discutem a aprovação, ou não, do orçamento de estado para 2025 como se o conhecessem. 

Acontece, porém, que a comunicação social, embora numa notícia em que se confunde imposição com negociação, volta a informar-nos que a Comissão Europeia ainda não esclareceu quanto do nosso dinheiro podemos, afinal, usar; parece que só o saberemos numa “data mais próxima da apresentação da proposta do Orçamento do Estado, agendada para 10 de Outubro”. 

Não há, pois, como não voltar à vaca fria. Sendo que um orçamento trata necessariamente de receitas e despesas, não se conhecendo estas últimas, o que dizer, permanecendo urbano, de toda esta animação política, chamemos-lhes assim por decoro, para além de constatar que o simulacro de discussão orçamental em que o país está atolado está cada vez mais animado? 

A 7 de agosto último, a propósito dos lucros da banca privada, obscenos e politicamente fabricados, que geram prejuízos nos bancos centrais e que são suportados pelo erário público, escrevia neste blogue que, “aqui no retângulo, numa versão requentada do que já está a suceder no Reino Unido, é só esperar pelo simulacro de discussão que vão oferecer-nos a propósito do próximo orçamento de Estado. Muito previsivelmente, seremos informados que andámos novamente a viver acima das nossas possibilidades”. 

E, sem qualquer surpresa, aí está: “Mesmo sem novas medidas, a variação da despesa pública líquida - o indicador de referência das novas regras orçamentais europeias - deverá ficar nos próximos anos acima do crescimento potencial previsto para a economia portuguesa. Um resultado que, alerta o Conselho das Finanças Públicas (CFP), limita fortemente a margem disponível para a adoção nos próximos OE de novas medidas sem que seja garantida uma compensação”, sintetiza o Público

E com isto chegamos ao elefante amoroso, o olimpicamente ignorado paquiderme no meio da sala, ou seja, à política monetária ao serviço do capital financeiro que, dado o seu injustificado e desnecessário impacto negativo nas contas públicas, podia e devia ser revertida no âmbito de uma discussão orçamental que não fosse, de facto, um ritual vazio que apouca a democracia.

Obrigar a banca privada a maiores reservas ou acabar com a remuneração da sua parte excedentária e/ou taxar os seus lucros injustificados constituiria uma das formas mais apropriadas de garantir a compensação que o CFP diz (erradamente) ser necessária mas que de facto só o é no contexto de regras de governação económica opacas e sem fundamento económico e com um fortíssimo viés neoliberal. 

Não o esqueçamos: não só, “[e]m média, as consolidações orçamentais não reduzem os rácios da dívida em relação ao PIB”, como, em 2023, a despesa pública total em percentagem do PIB de Portugal foi 7,7 pontos percentuais inferior à da zona Euro.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Drinks até dizer chega


Os liberais até dizer chega estiveram representados no drink de fim de tarde para homenagear um embaixador de Israel em Portugal que devia ter sido expulso a seu tempo. São apoiantes do genocídio, mas ninguém na dócil comunicação social os confronta. 

Através de Diogo Faro, fiquei a saber que a maior entusiasta do genocídio perpetrado pelo colonialismo sionista na Palestina, Helena Ferro Gouveia, presença assídua na tal embaixada, foi oradora no “campus da liberdade”. O que lhes falta em humanismo, sobra-lhes em coerência.

É uma iniciativa do menos liberdade, stink tank da IL para a luta ideológica e para contornar a lei de financiamento dos partidos, recebendo centenas de milhares de euros anualmente de milionários. Um pinochetista-videlista da Comissão Executiva da IL veio garantir que não há qualquer ligação entre este partido de extrema-direita e o tal stink tank, mais uma mentira fascista


Entretanto, este padrão de apoio é coerente com a história dominante do liberalismo clássico realmente existente: imperialista, colonialista e racista no longo século XIX e em parte do breve século XX, como assinalou Domenico Losurdo, ou não fosse a ideologia para naturalizar uma forma de capitalismo particularmente exploradora e opressora. 

No breve século XX, figuras gradas do neoliberalismo, por sua vez, detestaram tanto o grande levantamento anticolonial que estiveram disponíveis, por exemplo, para apoiar o Apartheid, como assinalou Quinn Slobodian

Sim, a melhor história da economia política é crescentemente crítica destes liberais até dizer chega.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

E porque mudou o título da notícia?

Quando se tentam recuperar as declarações da ministra da Juventude e Modernização numa entrevista à SIC Notícias a 1 de agosto, na qual Margarida Balseiro Lopes reconhece que os apoios aos jovens (os que podem) na compra de habitação poderiam fazer subir o preço das casas, constata-se que o título da notícia foi entretanto alterado (tal como o texto da ligação para a mesma, como se pode comprovar aqui).

De facto, onde antes se lia «Governo admite que apoio à Habitação Jovem tenha "efeito marginal" e faça subir ainda mais o preço das casas», passou a ler-se «Compra de casa: apoios a jovens "não são bala de prata" mas "um primeiro sinal", diz ministra».


O que terá levado à alteração do título (sem notificação, à data de hoje, das razões dessa alteração)? A franqueza inoportuna, para o governo, da ministra Balseiro Lopes? Um critério jornalístico que atribui maior relevância à noção (óbvia) de que não há uma medida única para resolver a crise? Não sabemos. O que sabemos é que se registou, no segundo trimestre do ano, a maior subida trimestral do preço das casas desde que há dados disponíveis (2009).

Tal não traduzirá apenas, seguramente, o «efeito marginal» das medidas orientadas para os jovens. Mas pode muito bem refletir o início do efeito cumulativo de vários «efeitos marginais», associados à inversão das políticas para o setor, por um governo que aposta no mercado para superar a crise, promovendo lógicas de desregulação e de subsidiação, com previsíveis efeitos contraproducentes.

Relatório Draghi: competitividade para quem?

 

Há duas semanas, foi apresentado o relatório sobre o Futuro da Competitividade Europeia, elaborado por Mario Draghi, ex-presidente do BCE e ex-primeiro-ministro italiano. Motivado pelo facto de a economia europeia estar a ficar para trás face aos EUA e à China, Draghi apresentou um documento extenso em que analisa a origem dos problemas e discute soluções para o futuro.

O relatório tem o mérito de apresentar um diagnóstico acertado: boa parte dos problemas que a economia europeia atravessa devem-se à falta de investimento. A estagnação do investimento e da produtividade na UE, ao contrário dos outros dois blocos, reflete-se na falta de competitividade das economias europeias.


Draghi também parece ter poucas ilusões sobre a forma como os EUA e a China alcançaram um desempenho económico mais robusto. “A competição chinesa está a intensificar-se em setores como as tecnologias limpas e os carros elétricos, impulsionada por uma combinação potente de política industrial e subsídios massivos, inovação rápida, controlo de matérias primas e capacidade de produção à escala de um continente […] As estratégias industriais de hoje – como se vê nos EUA e na China – combinam múltiplas políticas, desde políticas orçamentais para encorajar a produção até políticas comerciais para penalizar comportamentos anti-competitivos e políticas externas para assegurar cadeias de abastecimento”. No caso da China, é difícil ignorar o facto de o sucesso económico ter acontecido com base em políticas que contrariaram o consenso liberal, desde o investimento público massivo nas infraestruturas do país à promoção de setores considerados prioritários (através de medidas protecionistas e de acesso a crédito), além do Estado não ter abdicado do controlo de setores estratégicos.

O relatório de Draghi não ignora nem subestima o papel do Estado neste processo: além de afirmar que “o setor privado será incapaz de suportar a fatia de leão do financiamento do investimento [necessário] sem apoio do setor público”, avança que o “financiamento conjunto do investimento em bens públicos europeus, como inovações radicais, será necessário”. Ao todo, Draghi estima que os países da UE precisem de aumentar o investimento anual em 800 mil milhões de euros, algo em torno dos 4,4% a 4,7% do PIB da região, o que seria “inédito de um ponto de vista histórico”.

O plano foi recebido com pouco entusiasmo pelos países mais ricos. Na Alemanha, o ministro das Finanças anunciou no próprio dia que o país “não vai concordar com isto”. Nos Países Baixos, o governo também não se mostra recetivo à emissão de dívida conjunta. O ceticismo sobre a possibilidade de avançar com estas ideias estende-se aos jornais de referência, com base na ideia de que os países mais ricos não quereriam “pagar” aos restantes a maior parte do investimento. No entanto, como se discute em seguida, há razões para pensar que os países mais fortes seriam os principais beneficiados. 

Notícias do The Economist e do Politico.

De onde veio a estagnação europeia?

Tendo em conta que o ponto de partida do relatório é o declínio do investimento público e privado na União Europeia, é importante começar por analisar as causas para esse declínio. Draghi menciona a fragilidade do mercado de capitais europeu (por oposição ao dos EUA) e a existência de barreiras regulatórias em alguns setores, mas acaba por não se referir a um aspeto decisivo: as regras orçamentais europeias, que definem limites à despesa e investimento dos Estados.

As regras orçamentais colocaram fortes restrições ao investimento público dos países, ao mesmo tempo que as regras de concorrência no mercado único, que limitam de forma significativa os apoios públicos às empresas e as compras públicas – que, como alguns estudos têm demonstrado, são um instrumento eficaz na promoção da inovação e do crescimento –, impediram os Estados de selecionar setores prioritários e promover a inovação.

A quebra do investimento público é visível em quase todos os países e acentua-se a partir da crise financeira de 2007-08 e da estratégia de austeridade que foi adotada. O investimento privado também foi afetado, já que depende fundamentalmente da procura agregada: as empresas investem em função da procura que esperam vir a encontram no mercado para os seus bens e serviços. Ao contrário dos EUA, que responderam à crise financeira com uma política orçamental expansionista e recuperaram mais rapidamente, a opção dos países da UE pela austeridade traduziu-se numa “política de estagnação”.

Esta opção também tem impactos na produtividade. A produtividade é uma variável endógena, que tende a crescer em períodos de expansão e a cair em períodos de recessão. Há alguns fatores que ajudam a explicar essa tendência: por um lado, boa parte dos setores beneficia de economias crescentes à escala, o que significa que, nessas empresas, um aumento da procura e um reforço da capacidade produtiva (ou seja, um aumento do número de trabalhadores e de equipamentos utilizados) gera um aumento proporcionalmente superior da produção; por outro lado, o crescimento dos salários reais (que tipicamente ocorre em períodos de expansão) incentiva as empresas a inovar para se manterem competitivas e responderem à procura crescente. O primeiro fator é conhecido como o efeito Kaldor-Verdoorn e o segundo como o efeito Marx/Hicks. Alguns estudos empíricos, como este ou estes, sugerem que esses efeitos se verificam nas economias europeias e que a estagnação da procura e dos salários teve um impacto negativo na produtividade.

Se, no caso da estagnação salarial, esse efeito também parece ter ocorrido nos EUA, o caso europeu foi agravado pela austeridade e pela forte restrição do investimento e dos apoios públicos. É difícil falar das atuais necessidades de investimento, no qual o setor público terá de financiar a “fatia de leão”, sem mencionar as regras orçamentais.

O próprio Draghi reconheceu há um par de meses que “prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros – e, combinada com uma política orçamental pró-cíclica, o resultado líquido foi o de enfraquecer a nossa procura interna”. As regras orçamentais, que voltaram a entrar em vigor este ano, não só exigem um esforço significativo de consolidação orçamental à maioria dos países como representam um obstáculo aos investimentos considerados necessários pela própria UE para promover a transição energética.

Competitividade para quem?

A emissão de dívida conjunta poderia ser vista como uma forma de contornar a contradição entre as propostas de Draghi e as regras orçamentais em vigor. Mas isso leva-nos à segunda grande omissão do relatório: as diferenças estruturais entre as economias do centro e das periferias da UE. Não é possível analisar a economia europeia sem compreender a divergência entre o centro (liderado pela Alemanha) e a periferia do Sul (Itália, Espanha, Portugal e Grécia) e os fatores estruturais que a explicam.

A divergência prende-se com os diferentes modelos de crescimento que os países seguiram desde o processo de integração europeia. Os países do centro, com mais capacidade produtiva e maior peso da indústria, cresceram com base nas exportações, favorecidas pela adesão a uma moeda (Euro) subvalorizada face ao que seria expectável para as suas economias. 

Para os países do Sul, a adesão ao Euro trouxe uma moeda sobrevalorizada que tornou mais caras (e, por isso, menos atrativas) as exportações para o resto do mundo. As entradas da China na Organização Mundial do Comércio e dos países de Leste na UE contribuíram para esta tendência, uma vez que se tornou cada vez mais difícil competir com países com salários muito baixos. Nessa altura, a Alemanha não só não se mostrou preocupada com a competição chinesa, como beneficiou do acesso a produtos mais baratos.

Os países da periferia do Sul foram os principais prejudicados, tendo perdido terreno nas exportações e registado níveis crescentes de endividamento externo. Após a crise de 2007-08, a UE apostou na desvalorização interna e na redução dos custos do trabalho – leia-se, salários – como estratégia competitiva. Enquanto a China começava a investir de forma massiva em novas tecnologias, como os painéis solares ou os carros elétricos, em vez de países como Portugal aproveitarem o potencial de produção de energias renováveis, o plano seguido foi o de prosseguir a “vantagem comparativa” do turismo e acentuar a especialização neste setor, caracterizado por baixo potencial de inovação e de ganhos de produtividade e assente em baixos salários.

Sem uma discussão abrangente sobre a melhor forma de orientar os investimentos para promover a convergência entre os países, corremos o risco de que a emissão de dívida conjunta sirva essencialmente para financiar apoios às empresas atualmente mais desenvolvidas e capazes de concorrer nos mercados internacionais, o que beneficia essencialmente os países que já são mais desenvolvidos à partida e deixa as economias do Sul cada vez mais dependentes de setores como o turismo, acentuando um padrão de especialização que tem contribuído para o seu empobrecimento.

Onde entra o interesse coletivo?

Para alavancar a inovação na UE, Draghi argumenta que é necessário reduzir a regulação existente e aprofundar o mercado único europeu, embora oscile entre a defesa das regras anti-monopólio e a necessidade de facilitar as fusões de empresas em setores como o das telecomunicações. Além disso, ao longo do relatório, a discussão centra-se essencialmente na canalização de fundos públicos para as empresas. Neste sentido, o relatório de Draghi parece aproximar-se da abordagem que a economista Daniela Gabor classifica como “de-risking”: os Estados assumem boa parte dos custos e dos riscos do investimento em setores de interesse estratégico, mas a propriedade e gestão ficam nas mãos dos privados, que colhem os lucros. Como outro autor deste blog (Nuno Teles) escreveu sobre esta tendência recente, "assistimos hoje à emergência de um modelo de intervenção alicerçado em incentivos ao capital privado, com poucos ou nenhuns mecanismos de controlo e disciplina".

Os interesses privados não só não estão necessariamente alinhados com as prioridades coletivas como podem entrar em conflito com estas. Em relação à descarbonização da economia, Draghi defende que se deve acelerar a mineração de lítio e menciona especificamente o potencial de Portugal nesta área, mas não discute os impactos ambientais da mineração e os possíveis problemas associados, desde o uso intensivo de recursos como a água à degradação do solo, dos ecossistemas e da qualidade de vida das comunidades. O debate sobre a descarbonização dos transportes merece que se discutam alternativas (potencialmente menos apelativas do ponto de vista comercial), como a redução progressiva do uso de automóveis individuais através da promoção de uma boa rede de transportes públicos.

Os planos para a extração de lítio de Covas do Barroso têm sido contestados pela população

Além disso, o relatório diz muito pouco sobre o papel dos trabalhadores neste processo e não inclui propostas sobre a articulação da estratégia industrial com a qualidade do emprego criado nem sobre a definição de condicionalidades sociais nos apoios públicos – isto é, critérios (sobre a evolução salarial, a negociação coletiva, a prevenção de acidentes no trabalho, etc.) que as empresas têm de cumprir para receber apoios do Estado. O que não é propriamente surpreendente quando se sabe que, na elaboração deste plano, Draghi consultou mais de 60 associações empresariais e apenas 1 (!) sindicato. Não se promove uma transição climática justa sem um processo de decisão verdadeiramente democrático e participativo.

Apesar dos problemas referidos, há aspetos que merecem ser tidos em conta no relatório de Draghi. O facto de reconhecer que “hoje, a competitividade é menos sobre os custos relativos de trabalho e mais sobre o conhecimento e as competências da força de trabalho” contradiz o consenso liberal que tem vigorado na política económica europeia. Valia a pena acrescentar que a competitividade também é menos sobre impostos e mais sobre qualidade das infraestruturas e acesso a recursos em cada país. O desenvolvimento depende muito mais do investimento público numa rede ferroviária abrangente e na promoção das qualificações da população do que da redução de uns pontos percentuais na taxa de IRC, contrariando o discurso que se tornou dominante em Portugal.

No entanto, o relatório centra-se mais na disputa de segmentos dos mercados internacionais e na capacidade do capital europeu face aos seus concorrentes norte-americanos e chineses e menos no tipo de economia que se pretende construir. Uma política industrial que preserva verdadeiramente o interesse coletivo não se resume a uma mera redução de riscos para o setor privado. O planeamento público e a participação ativa do Estado em setores estratégicos da economia são condições necessárias para garantir que se socializam não apenas os riscos, mas também os benefícios dos investimentos necessários.