Riccardo Marchi convoca a autoridade de ter andado a estudar a extrema-direita nacional durante mais de uma década e meia dúzia de pinceladas de ciência política convencional, com o seu cortejo de economicismos, do mercado político à oferta e procura políticas, passando pelos incentivos, para nos servir o que não passa de uma muito mal disfarçada apologia do Chega.
De facto, o livro pouco ou nada acrescenta de relevante ao que na imprensa se tem escrito. Pelo contrário, as melhores reportagens de investigação sobre este partido, por exemplo as de Miguel Carvalho na Visão, são reduzidas ao estatuto de “boatos mediáticos”, parte de uma campanha da imprensa, e substituídas por profusas declarações dos seus dirigentes. Não se passa nada.
Vale de resto tudo para normalizar o Chega, contestando a sua filiação na extrema-direita, secundarizando a questão do seu financiamento ou as suas ligações internacionais. Neste último campo, insiste-se convenientemente no enraizamento e singularidade nacionais do Chega, fruto de múltiplas confluências político-ideológicas. Realmente, não convém dar demasiado destaque às ligações aos evangélicos bolsonaristas ou ao trumpismo nesta fase pandémica.
Dividido em três partes – o líder, o partido e as ideias –, o livro de Marchi garante-nos sem mais que André Ventura “testemunhou a humiliação de ser vítima de assaltos e da subsiodependência” (p. 33); a par do combate ao “politicamente correcto”, esta é uma das razões aduzidas para um discurso que nada teria de racista sobre os ciganos em Loures, a sua oportuna rampa de lançamento. Pelo contrário, Ventura até teria usado um misterioso estudo, que não é referenciado, mas que é aparentemente tomado por bom pelo autor, segundo o qual só 15% dos cidadãos de etnia cigana viveriam do seu trabalho. O resto é racionalidade instrumental e encontro da oferta e da procura. É assim que se faz um líder e que se constrói uma narrativa.
A técnica do livro consiste em tomar por boas as opiniões de dirigentes do Chega, recolhidas em entrevistas, aceitando de tal forma os seus próprios termos, e misturando-os com as opiniões do autor, que o leitor a certa altura já não sabe quem é o emissor: “No tema da educação, denuncia principalmente o marxismo cultural. Aqui, o partido combate a chamada ideologia de género implementada à socapa na escola pública” (p. 94). São muitas as formulações deste tipo da autoria de Marchi.
“Direita anti-sistema”, termos do Chega e do autor, é aliás todo um programa de apologia de um partido que quer assumidamente purificar o único sistema que eu conheço, o capitalista, expurgando-o de concessões colectivistas. Trata-se de procurar enraizar o autoritarismo neoliberal, através de um estilo populista dito triádico.
Diogo Pacheco de Amorim, ideólogo do Chega e antigo membro de uma organização terrorista da extrema-direita, que também não deve ser racista, mas sim de centro-direita, e que vem oferecer aquilo que muitos procuravam, escreveu na página deste partido o seguinte: “Bem-vindos os de todas as raças desde que respeitem a nossa raça (…) Não queremos os qualquer-coisa-Khan que um dia perto do nosso Natal puxam de uma faca e desatam a assassinar pacíficos transeuntes”. Esta citação não vem no livro de Marchi. Ficava mal, certamente, na fotografia.
Pacheco de Amorim que se cuide. Tem concorrentes mais sofisticados no campo da ideologia.
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9 comentários:
Eu sei que ê necessário e mesmo imprescindível ler estas coisas para as desmascarar e denunciar
Mas é precisa uma paciência infinita para suportar este linguarejar vindo das trevas do horror da extrema-direita
A história repete-se, de facto.
A narrativa do ódio aos políticos tradicionais (o discurso do ódio aos negros, aos muçulmanos, aos ciganos, aos judeus, etc é secundária, pois é oportunista; em Portugal, p.e., não faria sentido promover o ódio aos judeus, mas faz sentido promover o ódio aos ciganos) está a ser usada com muito sucesso em muitos países deste mundo (bastará referir Brasil e EUA, mas há mais, muito mais...).
O objetivo ÚNICO é CHEGAr ao poder e por isso a narrativa é feita contra os políticos tradicionais.
É claro que o conceito de PARTIDOS TRADICIONAIS, que agora inclui PPD/PSD e CDS, ficará reduzido ao PS, PCP e BE, assim que os charlatões CHEGArem ao poder (não podemos esquecer que ventura era candidato do PPD/PSD a uma câmara municipal há muito pouco tempo).
Como a maioria absoluta é impossível, o poder teria que ser equacionado numa aliança alargada a todos os partidos de direita: PPD/PSD, CDS, Chega e IL e, imediatamente após a tomada do poder, todos eles passariam a fazer parte do "novo" regime anti esquerda.
A democracia Portuguesa estaria imune a uma deriva autoritária do poder?
Não, nenhuma democracia está!
Sejam felizes.
A questão não tem a ver com uma conquista do poder feita a modos que tradicional
Nem a ver com o “ ódio aos partidos tradicionais”. Isso é só para ficarmos felizes, porque se esconde o que de mais tenebroso há por detrás disto
A deriva autoritária neoliberal como base do regime. A evoluir logo logo para o fascismo se for necessário e a isso interessar a quem lhe está por detrás
Não li o livro, mas a entrevista que Marchi deu ao Público esclareceu-me. Se bem me recordo, quando questionado se o Chega era racista respondeu que não, porque racista é uma Partido que não admite pessoas de outros grupos étnicos no seu seio.
Se o Chega o fizesse, provavelmente haveria razões para o ilegalizar, são demasiados espertos para isso. Depois, como se sabe, não é preciso, basta que o ambiente partidário não seja acolhedor para quem é diferente...
E quando o jornalista que o entrevistou referiu que haveria um negro no PNR (também os havia na União Nacional), ele respondeu que então era o sistema que era racista, porque de outro modo o TC já deveria ter ilegalizado estes Partidos. Imagino o escândalo se porventura tentassem, ai que a liberdade de expressão está em causa em Portugal!
Já o populismo, João Rodrigues, é todo farinha do mesmo saco, triádico ou diádico, sabe? Basta olhar para a incompetência com que lida o combate à pandemia. AMLO não se distingue de Trump ou de Bolsonaro, poderá porventura distinguir-se do paroxismo medievo de um Ortega na Nicarágua, o tal líder que começou por ser um nacionalista progressista que lutava contra a dominação americana. Honra seja feita ao autoritarismo chinês ou vietnamita, que pelo menos não é anti-científico...
Como eu sempre digo, perante tais alternativas, tragam-me já as grilhetas de Bruxelas...
O regime Neoliberal está condenado a degenerar em Fascismo, sempre foi o objectivo. Milton Friedman se escondeu este objectivo, escondeu mal.
É preciso ser muito tosco para não perceber qual é o objectivo do Neoliberalismo...
Obviamente o "Chega" é tão anti-sistema quanto era Salazar!
Deitar para o lixo o Neoliberalismo é combater a extrema direita.
Como é que se combate o Neoliberalismo se um partido de governo de "esquerda" "socialista" é um dos que tem andado há décadas a servir a causa neoliberal?
E vindo de uma editora com a tradição das Edições 70! É o que dá a corrida desenfreada ao lucro por parte dos grandes grupos editoriais, atropelando os princípios que sempre guiaram as chancelas que compraram. Comprei o livro, «assumidamente isento», de boa fé para me deparar com esta vergonha. É gozar com os leitores.
Há algo de assumidamente masoquista nas grilhetas pelas quais Jaime Santos suspira
Se quer vender essa sua característica como” científica” é lá com ele Mas é melhor não ir por aí, que aí rebola para o nível de evangelista papagaio
Mas decididamente faz pena esta submissão de um condenado às grilhetas Ainda por cima a pedir por mais e como justificação apresentar como álibi o Ortega
Estas elites que nos calharam nem coragem tèm para assumir uma posição minimamente vertical
A evolução da extrema-direita é, sobretudo, o reflexo e o resultado natural, da evolução do sistema capitalista, que nesta sua fase de declínio e apodrecimento, lança mão de todas as suas velhas receitas, entre as quais o estrangulamento de qualquer resquício de democracia popular. Essas, como lhes chamei, velhas receitas, variaram, é certo, de modo assinalável ao longo da história multi-secular deste sistema hoje hegemónico. Foi assim que o sistema capitalista viveu e conviveu, note-se, com a escravatura e o colonialismo, com regimes de voto censitário e com o voto universal, com democracias liberais e com o fascismo, com a grande depressão e com Keynes.
A queda do chamado "Bloco de Leste", aportou consigo como mensagem sub-liminar, o apelo à supremacia inquestionável do capitalismo de terceira via. A ideia de fusão dos sistemas, sublinhava mesmo que a capacidade redistributiva do sistema capitalista, havia assumido já uma tal expressão, que era difícil estabelecer diferenças entre capitalismo e socialismo, que assim pareciam, cada vez mais, um só.
Aqui ao lado, na vizinha Espanha, o Prof. Vicenç Navarro debruçou-se sobre a ascensão do "VOX" e sobre as políticas que têm aberto a porta a essa espécie de mergulho no abismo e nas trevas da História. Entre as causas que aponta para esse fenómeno, algumas são especificamente nacionais, mas outras têm demasiadas semelhanças com a nossa própria realidade para não vermos no que ali se diz, um reflexo claro da nossa própria vida e dos perigos que enfrentamos. A despolitização de camadas crescentes da população, com vidas suportadas no crédito, na precariedade e na ilusão do consumo perpétuo e que agora vêm o seu bem-estar duramente posto em causa, quer pelas consequências das consecutivas e cada vez mais intensas e profundas crises do sistema capitalista, quer porque nos corredores do poder e salvo breves hiatos - limitados na sua expressão concreta e com uma duração circunscrita a momentos históricos absolutamente pontuais (2015-2019, foi o mais recente desses momentos) - o grande "arco da governação" tem reduzido a estilhaços qualquer resquício de efectiva ascensão do Povo ao poder, num esforço permanente, mas, diga-se, necessariamente condenado ao fracasso, para articular e conciliar Estado social e mercado, que é como quem diz, para manter viva a ideologia de suporte de um sistema que se evidencia esgotado, de forma mais intensa a cada dia que passa.
Travar a ascensão da extrema-direita em Portugal é uma tarefa que será levada a cabo por democratas e antifascistas de diversas tendências e oriundos de campos políticos diversificados. Contudo, não será nunca um exercício compatível com soluções de pouco mais ou menos ou de tacticismo contingente. Pelo contrário, será um exercício de ruptura e de clarificação, no qual não é possível caminhar com um pé no passeio e outro na estrada, nem estar de bem com Deus e com o Diabo. Se as forças que se afirmam, programaticamente e ideologicamente de esquerda, estão vinculadas à obrigação de liderar essa torrente, é no campo da social-democracia, que ainda se reclama democrática, que essa clarificação de rumo se tornará mais urgente e necessária. a ver vamos, se estarão à altura das suas responsabilidades e se ainda existe no seu interior massa crítica para purgar o que tem de ser purgado, antes que todo o corpo entre num processo de gangrena, porventura irreversível.
Os liberais e euro-fanáticos são os grandes responsáveis pelo ressurgimento do fascismo.
O desprezo dos liberais e euro-fanáticos pelas vidas dos que são tocados pela sua ideologia austeritária é clara.
Os liberais e euro-fanáticos têm sido os maiores demagogos de todos há décadas, com a ajuda da comunicação -manipulação- social amedrontaram, desmoralizaram e molestaram a população com as suas regras fiscais sem sustentação técnica, como é o caso do défice abaixo dos 3% só porque sim.
O Euro-liberalismo é a maior demagogia de todas, os euro-liberais sabem que não vão ter os Estados Unidos da Europa, mas mesmo assim não se coíbem de destruir as economias de países!
O euro-liberalismo é claramente um projecto anti-democrático que visa a fascisação do Estado e sociedade.
O "Chega" está muito bem para o Euro-liberalismo.
Os euro-liberais sabem que não é o "Chega" que ameaça o seu projecto anti-democrático...
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