segunda-feira, 7 de julho de 2008

Mercado e Estado III


Sugeri anteriormente (I e II) que: (a) por detrás do conceito abstracto de «mercado» existem na realidade mercados que diferem em qualidade; (b) a existência de um mercado particular depende de um entendimento (de natureza moral) acerca do bem em causa.

Ilustrei (b) com o caso extremo de mercados repugnantes (seres humanos, órgão humanos) que o Estado interdita. Quero agora passar dos casos extremos a outros mais corriqueiros.

Tomemos o caso do trabalho. Na nossa sociedade, o trabalho, ou a capacidade de trabalho, é uma mercadoria. Toda a capacidade de trabalho? Supostamente a capacidade de trabalho das crianças não deve ser uma mercadoria. Trabalho em quantidade ilimitada? Supostamente apenas dentro de limites diários, semanais, anuais… A ausência de restrições nestes aspectos tornaria o mercado de trabalho, num mercado repugnante.

Mas vejamos em mais detalhe o que acontece quando compramos capacidade de trabalho? Adquirimos o poder de dirigir os actos de outrem em nosso benefício durante um período limitado de tempo. Quem vende trabalho cede parte da sua autonomia pessoal. A relação de trabalho difere portanto da relação de prestação de serviços com que muitas vezes se procura confundir. Mas será que com a aquisição do trabalho de outrem adquirimos um poder absoluto sobre a pessoa que o transporta? De modo nenhum, existem limites (sempre contestáveis). Se assim não fosse o mercado de trabalho seria um mercado repugnante.

Sabemos, por outro lado, que há animais que são objecto de compra e venda. Mas o direito de propriedade sobre animais não confere o direito irrestrito de poder dispor deles em total liberdade. Se assim fosse o direito de propriedade e o mercado de animais seria repugnante. E a terra? Se fosse possível para o seu proprietário dispor dela de forma irrestrita – deixa-la ao abandono ou urbaniza-la livremente, impedir a passagem a todos reduzindo a liberdade, inclusive de outros proprietários… – isso não retiraria legitimidade à propriedade privada e ao mercado de terra?

Há ainda outros casos tão vulgares como os anteriores que merecem consideração. Pensemos em bens cujo uso pode acarretar consequências (riscos) que não são rigorosamente conhecidas e antecipáveis. É evidentemente o caso de muitos medicamentos, mas também telemóveis, energia nuclear, organismos geneticamente modificados … Nestes casos a existência dos mercados (sempre contestável), a própria produção dos bens, está sujeita a um conjunto muito detalhado de normas legais que supostamente permitem controlar os riscos dentro de limiares aceitáveis. Na ausência destas regras (e quem sabe muitas vezes apesar delas) estes mercados seriam (moralmente) repugnantes.

Quero portanto acrescentar agora (c) que o entendimento moral acerca do bem, com base no qual o Estado permite ou impede as transacções mercantis, pode não depender só da natureza do bem, mas também das regras que enquadram a sua produção e utilização.

13 comentários:

NC disse...

Outro bom post. A última frase resume tudo muito bem.

Só me resta acrescentar que muitos dos exemplo que dá reflectem o problema dos conflitos que surgem entre agentes. Quando há conflito é porque a liberdade de uns choca com a de outros. O eterno problema das externalidades.

Filipe Melo Sousa disse...

Porque motivo não deverei ter o direito de vender um órgão? O que ganha a sociedade em haver mais pessoas a morrer nas listas de espera? É o orgulho em ter um estado carrasco? É que não existe nenhuma justificação para esta carnificina pseudo-moralista.

L. Rodrigues disse...

Excepcionalmente, o filipe melo sousa podia tentar vender o fígado. Não me faria grande confusão.

Mas o comprador teria que esperar que o filipe morresse?
Ou era tipo "O sentido da vida" dos monty pithon?
"Lamentamos muito, mas precisamos dele agora!"

Anónimo disse...

Grande artigo.

Julgo até que a questão de trabalho como mercadoria é um tema que poderia ainda ser mais aprofundado num outro artigo.

Melhores Cumprimentos,

Stran

Filipe Melo Sousa disse...

"Lamentamos muito, mas precisamos dele agora!"

todos os termos são negociáveis

L. Rodrigues disse...

Pois, mas sabe porque é que o mercado de dentes de elefante está proibido? Por causa dos caçadores furtivos...

de.puta.madre disse...

Dai os mercados paralelos, negros y os lobbbbbiiiiisssss.
Este último já ganhou projecção a tal ponto que já há o nicho dos lobbbbbiiiiiiiiiiiisssssssssss institucionais, oficiais, legais
reconhecida pela UE.

Rodrigues
E os caçadores furtivos querem extreminar elefantes, porque sim?
É a ganância que se está a controlar, é essa. A qual entre outros protagonistas tem os caçadores furtivos.

de.puta.madre disse...

Filipe

Acho que em caso de vida ou morte ninguém ficaria com alma de perder tempo consigo em negociatas... era um limpar do sebo à lai da legitima defesa. Y não há mas!!

L. Rodrigues disse...

De Puta Madre,
O exemplo dos caçadores furtivos era apenas uma sugestão do que seria inevitavelmente um mercado de órgãos humanos. Não faltaria (como de resto algumas histórias atrozes que se vão ouvindo aqui e ali contam) quem quisesse fazer uns dinheiros com os órgãos alheios.

F. Penim Redondo disse...

Há muita gente que apoia a construção de barragens mas alguns consideram que as albufeiras vão destruir ambientes naturais ou culturais que deviam ser preservados. Neste caso temos que ponderar muito bem qual é o mais relevante dos dois interesses públicos, se devemos travar a água ou deixá-la correr livremente.

Para as barragens valerem a pena temos que estudar inúmeros aspectos.

Por exemplo se não escolhermos um vale suficientemente profundo a água transborda e vai correr para outro vale e, em vez de uma barragem, teremos um transvase.

Outro exemplo, se não tivermos um sistema de escoamento da carga da barragem corremos o risco de ela ceder e provocar uma enxurrada desvastadora.

Em suma, todos concordamos com o controle das forças naturais, não podemos sequer sobreviver sem ele.

O que levanta divergências é o modo de fazer esse controle, se um determinado controle é ou não eficaz, se obtém os resultados pretendidos ou se obtém os resultados não desejados.

Filipe Melo Sousa disse...

Caçar uma pessoa para retirar orgaos continua a ser crime. Repare-se que o facto de se poder comercializar livremente os seus ate pode diminuir a sua ocorrencia. Obrigado por me ajudar no argumento.

Anónimo disse...

a simplicidade é, de facto, desarmante e, muitas vezes, o melhor veículo para a desmitificação de retóricas deliberadamente retorcidas e vagas. tenho, desde o ínicio, acompanhado o blog e vejo que na pré-época foram contratados reforços de peso. pequena vénia ao prof. castro caldas.

de.puta.madre disse...

L. Rodrigues.

( obrigada!)
Agora percebo ... Excelente ilustração.
Vale.

PS.: Um do meus primeiros critérios de avaliação de uma cidade/ país é a forma com tratam os animais ( lema do Victor Hugo), nada como visitar o Jardim Zoológico para ficarmos esclarecidos. Vale.