quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Cavaco Silva e as armadilhas do neoliberalismo

Cavaco Silva e Ronald Reagan (24 de fevereiro de 1988)

Cavaco Silva regressou ao debate público com um artigo de opinião em que visa a expressão das “contas certas”, que se tornou dominante no debate sobre a política orçamental em Portugal. Para o ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República, “é [...] normal que os cidadãos não especialistas na matéria tenham colhido a ideia de que 'contas certas' é um objetivo primordial da política orçamental”, mas esta é “uma armadilha do poder socialista para iludir os portugueses”, que obscurece o que deveriam ser os objetivos da política orçamental: “a satisfação das necessidades sociais, […] a equidade na distribuição do rendimento e da riqueza, o combate ao desemprego, a estabilidade de preços e o crescimento económico”.

O artigo foi divulgado por toda a imprensa e foi lido com alguma surpresa, sobretudo nas redes sociais, não tanto pela crítica à governação do PS, mas pelos termos em que esta é feita. Poucos estariam à espera de ver Cavaco a defender a ideia de que o equilíbrio orçamental não deve ser um fim em si mesmo. No entanto, há truques que não escapam a uma leitura atenta.


De onde veio a obsessão com as contas certas?

Há uma crítica imediata a fazer a este artigo que passa por recordar o papel que Cavaco desempenhou na eternização da obsessão com as chamadas “contas certas”. É difícil não encontrar contradições entre a crítica atual de Cavaco à estratégia de consolidação orçamental e a posição que a direita – e o seu partido – adotou durante o programa de ajustamento da Troika e o governo de Passos Coelho, para quem as contas certas eram um objetivo inquestionável e uma “questão de regime”.

O próprio Cavaco Silva, no discurso de tomada de posse do governo do PS, sublinhou que o “superior interesse nacional” passava por “preservar a credibilidade externa”, deixando claro que “exige-se ao Governo que agora toma posse que respeite as regras europeias de disciplina orçamental”. Além disso, citou um “aviso muito sério” do Conselho de Finanças Públicas que dizia que “uma política virada para o curto prazo e assente num grau minimalista de consolidação orçamental não só não cumpriria as atuais regras europeias como teria implicações negativas sobre o endividamento do País e a produtividade”. Em 2015, para Cavaco, as contas certas eram um imperativo que se impunha e o problema estava no risco de uma consolidação orçamental “minimalista”; uns anos depois, a consolidação orçamental que defendeu já é vista como uma “armadilha para iludir os portugueses”.


Quem paga as contas certas?

Uma parte dos problemas de Cavaco – e da direita portuguesa – prende-se com o facto de o PS ter abraçado a estratégia orçamental que a direita defendia, esvaziando o seu discurso. Desde que chegou ao poder, a prioridade de António Costa foi sempre a manutenção das chamadas “contas certas”: redução dos défices, numa primeira fase, e obtenção de excedentes, posteriormente. Para o conseguir, sacrificou o investimento público, que se manteve em níveis historicamente baixos ao longo de todo o período.

Houve sempre uma enorme diferença entre as promessas feitas pelo governo no início de cada ano e o valor realmente executado no fim. Entre 2017 e 2023, face aos valores orçamentados, ficaram por aplicar 5802 milhões de euros (isto se aceitarmos a previsão do próprio governo sobre a execução do investimento neste ano, que também pode não se concretizar). Não foi por falta de necessidades: no Serviço Nacional de Saúde, o desinvestimento degrada o serviço público e promove a contratação de serviços aos privados; nos transportes, a falta de investimento tem levado ao encerramento de várias linhas ferroviárias e à supressão sistemática de comboios ou autocarros; na habitação, o país continua a ter um dos mais reduzidos parques habitacionais públicos da União Europeia.

Essa estratégia tem custos para o país: além de se refletir cada vez mais na degradação dos serviços públicos, também tem impactos negativos para o conjunto da economia através da redução das despesas “amigas do crescimento”, que reforçam as infraestruturas do país e contribuem para o aumento da produtividade. Mas essa opção não se afasta substancialmente do que a direita tinha para oferecer ao país. Cavaco Silva, de resto, confirma-o quando aponta como um dos problemas fundamentais o “monstro da despesa pública”, num país em que esta era inferior à média da Zona Euro em quase todas as categorias antes da pandemia.


Os "especialistas" e as contas erradas

No entanto, o problema de fundo do artigo prende-se com a recomendação que deixa para a definição da política orçamental. Cavaco sugere que “o valor desejável para o saldo orçamental em cada ano, sendo uma restrição, deve ser determinado antes de o Governo elaborar a sua proposta de Orçamento, não por políticos, mas por um comité independente de especialistas”, que teria “em devida conta” os níveis de dívida pública e externa, a “evolução da situação económica e social do país”, as previsões económicas internacionais ou as regras orçamentais europeias.

No Twitter, a sugestão foi sublinhada por Miguel Poiares Maduro, ex-ministro do PSD, para quem estas “formas de disciplina da política” vão ser “tema fundamental da democracia nos próximos anos”. Poiares Maduro explica que a ideia é deixar “à técnica a delimitação desse espaço [orçamental] político” e que “é a lógica do BCE aplicada ao OE [Orçamento do Estado]”.

A comparação é ajustada: retirar ao Parlamento a possibilidade de definir o tipo de política orçamental que o país deve prosseguir, entregando-o a organismos não-eleitos, assemelha-se ao que já se verifica hoje no que diz respeito à política monetária. Na prática, seria mais um passo no sentido de restringir o espaço da deliberação democrática. Em vez de as decisões sobre a política orçamental do país serem tomadas pelos representantes democraticamente eleitos, passariam a ser entregues a um comité de “técnicos” que definiria o saldo orçamental e deixaria à democracia apenas a possibilidade de deliberar dentro desse limite.

A proposta de Cavaco tem raízes na tradição ordoliberal, que defendia a necessidade de criar uma ordem jurídica que impusesse limites à intervenção dos poderes públicos na economia para proteger a livre concorrência. É a visão na qual assentaram as regras orçamentais europeias, que restringiram o espaço da política orçamental dos países do Euro sob a promessa de assegurar convergência e crescimento sustentado. Mas as restrições ao investimento público necessário para a requalificação das economias periféricas acentuaram a sua vulnerabilidade face aos países mais ricos. Além disso, os pressupostos sobre os quais essas regras assentavam – o de que o peso do Estado é um entrave ao crescimento económico ou o de que o rácio da dívida pública não pode passar de um determinado nível – têm sido desmentidos pela evidência empírica.

Os problemas estendem-se à própria noção de domínio “técnico” e “apolítico”. Cavaco Silva defende a utilização do saldo estrutural como variável decisiva para definir a política orçamental. Isso já acontece atualmente no contexto europeu: as regras orçamentais da UE focam-se no saldo estrutural, isto é, o saldo das receitas e despesas de um governo quando se excluem medidas extraordinárias e efeitos do ciclo económico. Para calcular os efeitos cíclicos, a Comissão Europeia mede a diferença entre o PIB registado num país e o seu PIB potencial, que seria o produto obtido se a economia estivesse no seu equilíbrio de médio prazo, descontando as fases do ciclo. Por fim, para calcular este produto, a Comissão calcula a taxa de desemprego natural (a taxa que se registaria neste equilíbrio de médio prazo e que seria o reflexo de aspetos estruturais da economia, como a “rigidez” da proteção laboral, do subsídio de desemprego, etc.).

O problema é que todo o cálculo assenta em pressupostos frágeis e tem revelado enviesamentos sistemáticos. Alguns estudos recentes (aqui ou aqui) mostram que as estimativas da taxa de desemprego natural feitas pela Comissão Europeia são pró-cíclicas: dependem mais das fases de expansão e recessão económica do que de fatores estruturais do mercado de trabalho.

Se olharmos para o caso português, é isso que vemos: a estimativa da taxa "natural" de desemprego da Comissão Europeia para Portugal tem seguido uma tendência relativamente alinhada com a da taxa de desemprego real. 

Qual é o grande problema disto? Se se sobre-estimar sistematicamente a taxa de desemprego natural, como parece ser o caso, o PIB potencial será sistematicamente menor (uma vez que corresponde a um nível de produto atingido com menor nível de emprego dos recursos disponíveis). Logo, a diferença entre o PIB potencial e o real – o tal efeito do ciclo – é inferior ao que se esperaria, o que faz com que o défice estrutural calculado seja maior, indicando uma situação orçamental mais negativa e, por isso, um reforço das restrições impostas pela Comissão à despesa pública.

As estimativas da Comissão dizem que a economia se encontrava acima do potencial entre 2017 e 2019, o que seria sinal de um mercado de trabalho sobre-aquecido e de pressões inflacionistas. Só que a taxa de inflação em Portugal… diminuiu neste período. Todo o argumento é absurdo: não só não é credível que o suposto nível "natural" de desemprego na economia portuguesa tenha passado de 14% para 6% em poucos anos, como não há nenhuma justificação sólida para que consideremos os atuais 6% de desemprego demasiado baixos.

É preciso ter em conta que nenhuma destas variáveis é observável: todas são conceitos cuja medição envolve várias hipóteses, é alvo de enorme controvérsia e nem as principais instituições chegam a acordo sobre a melhor forma de as medir. Mas as suas consequências são bastante visíveis. Talvez não seja boa ideia deixar a política orçamental a estes “especialistas”.


A política económica não é da nossa conta?

Os objetivos da política económica deviam mesmo ser os que Cavaco Silva refere no seu artigo: satisfação de necessidades sociais, combate ao desemprego e às desigualdades e promoção do crescimento económico. Na verdade, esta foi a visão que vigorou após a 2ª Guerra Mundial e até à década de 1970, inspirada por Keynes, que tinha ideias claras sobre o assunto: “cuide-se do emprego e o orçamento cuidará de si próprio”.

O neoliberalismo substituiu-o pela defesa do Estado mínimo e pelo imperativo dos saldos orçamentais equilibrados, não apenas à direita mas também no centro-esquerda, que a seguiu um pouco por todo o mundo ocidental, de Tony Blair no Reino Unido a Bill Clinton nos EUA, passando por Portugal.

Foi este novo paradigma que sustentou a ideia de que os bancos centrais deveriam ser “independentes” – do poder democrático, entenda-se, e não de interesses privados do setor financeiro – e de que essa independência garantiria os melhores resultados. A pandemia desfez este mito: a articulação entre a política orçamental, dos Estados, e a política monetária dos bancos centrais para responder à crise mostrou que não há nada de técnico ou apolítico neste tipo de decisões. Mas existe uma direita que, não satisfeita com a perda de soberania monetária, quer também retirar à democracia a capacidade de influenciar a política orçamental. É difícil ignorar o aviso.


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