terça-feira, 14 de agosto de 2018

O Passado Não Fica Lá Atrás: Desemprego, Salários e Segurança Social


Vários autores deste blog têm procurado mostrar que as crises económicas não são episódios isolados cujos efeitos negativos se circunscrevem ao estrito tempo da sua duração. Reflexos das crises económicas como o desemprego, a emigração, a degradação dos serviços públicos ou o investimento não realizado persistem ao longo do tempo por canais nem sempre óbvios ou identificáveis em leituras breves de dados de conjuntura macroeconómica.

Um dos possíveis canais de transmissão das crises para o futuro é o impacto do desemprego no sistema de pensões.

O sistema de pensões português é um sistema de repartição, em que os descontos efetuados pelos trabalhadores são utilizados para financiar a proteção social e as pensões presentes. É, com efeito, um sistema assente num forte pilar de solidariedade intergeracional, que robustece o sentimento de pertença do trabalhador à sociedade onde se insere. Ao efetuar o desconto salarial (11% de TSU, no caso português), o trabalhador não está a reservar essa porção do seu salário para seu usufruto individual futuro: está a custear as pensões das gerações que construíram a sociedade que hoje o acolhe e o rendimento dos cidadãos que foram atirados para situações de exclusão ou fragilidade, como o desemprego e a doença. É, pois, um exemplo maior de como as políticas públicas podem favorecer o sentimento de solidariedade e pertença, devendo ser olhado com particular atenção por todos os que o pretendem preservar.

O desemprego presente pode comprometer, no imediato, o sistema de pensões por dois canais, um direto e outro indireto. O canal direto deve-se ao reflexo que o desemprego tem no número de contribuições: maior desemprego está associado a menor número de pessoas a fazer contributos para o sistema, o que se traduz numa perda imediata de receita, e por um maior número de indivíduos a receber subsídio de desemprego, o que se traduz num aumento imediato de despesa. O canal indireto advém da relação inversa que, habitualmente, se verifica entre salários reais e desemprego. Com efeito, o maior volume de desemprego também se reflete na queda das contribuições para a Segurança Social, por meio da diminuição dos salários daqueles que continuam a trabalhar ou que, tendo mudado de emprego, se encontram agora numa situação salarial menos favorável.

O efeito combinado destes canais pode ter efeitos significativos, em especial em momentos em que a subida do desemprego é abrupta. O exemplo português durante os anos de crise económica é disso uma ilustração lapidar.


A partir do OE de Estado de 2012, com a subida acentuada do desemprego, o governo foi forçado a realizar transferências extraordinárias do OE para cobrir o défice do sistema previdencial. No pico dos números do desemprego, em 2013, essa transferência ascendeu a 1430 milhões de euros, representando cerca de 2,92% da despesa pública desse ano e cerca de 0,83% do PIB. Sublinhe-se que esta avultada despesa adicional foi uma consequência direta da estratégia política e económica seguida por um governo que havia sido eleito com o principal objetivo de diminuir a despesa do Estado, evidenciando o quanto as políticas de austeridade podem gerar consequências contraproducentes. Essas transferências prosseguiram até ao ano de 2017. Apenas em 2018, com a descida no desemprego entretanto verificada, foi possível pôr fim a essas transferências.

É, no entanto, errado pensar que o retorno do sistema a uma posição superavitária significa que a crise económica não terá reflexos no futuro. Os rendimentos dos pensionistas serão intensamente afetados por esse período. Por um lado, porque muitos trabalhadores atravessaram longos períodos de desemprego, que diminuem a extensão do seu período contributivo. Por outro lado – e é importante não subestimar este efeito – porque o impacto negativo que o desemprego exerceu nos salários será refletido aquando do momento do cálculo da pensão. Assim, mesmo os trabalhadores que não perderam o seu emprego sentirão os ecos da recessão.

Não conheço estudos aplicados a Portugal. No entanto, dois economistas da Universidade do País Basco publicaram em 2017, na International Review of Applied Economics, um artigo que se dedica ao estudo desses efeitos para o caso espanhol. Como explicam no o início do seu artigo, as limitações impostas pela base de dados que utilizam impedem-nos de estudar o efeito que os períodos de desemprego têm no valor das pensões de cada pensionista. Assim, os autores espanhóis focam-se no segundo efeito que vimos acima, procurando avaliar em que medida as taxas de desemprego das diferentes regiões espanholas se refletem no cálculo da pensão por via do impacto negativo nos salários reais.


Após controlarem um conjunto de outros indicadores relevantes para o valor da pensão – entre os quais o setor de atividade económica, a experiência e o nível de educação – os autores concluem que o aumento de 1% no desemprego regional diminui, em média, a pensão auferida em 0,135%. Sustentando-se neste coeficiente e nas taxas de desemprego assumidas pela Comissão Europeia no seu último relatório sobre os sistemas de pensões, os autores estimam que a diminuição do valor das pensões causado pelo desemprego nos anos de crise pode ascender 4,2% para os trabalhadores que se aposentarem em 2020 e a 6% para os trabalhadores que se aposentarem em 2025.

É provável que os valores estimados para Portugal fossem menos expressivos. Em parte, porque a taxa de desemprego portuguesa nunca atingiu os valores da taxa de desemprego espanhola, em parte porque o sistema português contabiliza toda a carreira contributiva, ao contrário do método de cálculo de Espanha, que considera apenas os últimos 25 anos de carreira contributiva.

Estes resultados mantêm-se, contudo, muito relevantes para perceber os potenciais efeitos de persistência que o desemprego causado pela crise económica e pela austeridade pode ter no cálculo das pensões futuras em Portugal. Ainda mais tendo em conta que estas estimativas estão apenas a calcular o efeito por via do impacto nos salários reais, não considerando o expressivo impacto – provavelmente, até mais relevante - que os períodos de desemprego causam no cálculo das pensões individuais.

O sistema público de pensões é uma das grandes conquistas da nossa sociedade. Como vimos, o seu desenho favorece a participação dos cidadãos de uma forma democrática e solidária, favorecendo um espírito de pertença e de perseguição do bem comum. Aqueles que o defendem devem estar empenhados nas propostas de enquadramento macroeconómico e monetário que, ao contrário da crise anterior, afastem cenários de crises desnecessárias, cujas respostas ampliam problemas cujos reflexos se fazem sentir por muitos anos. Uma política económica que eleja como eixo central o pleno emprego é o maior garante da sustentabilidade do sistema, como demonstrado pela recente experiência orçamental portuguesa e pelos resultados do estudo referido.

Poderá não ser suficiente? Sim, é verdade. As últimas projeções apontam para que o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social se deve esgotar algures em 2040. Estas previsões não devem, no entanto, servir para lançar um alarme que favoreça o aparecimento de propostas de privatização parcial, ou total, da Segurança Social. Essas pretensas soluções já mostraram não ser solução e têm os seus próprios problemas, cuja identificação, infelizmente, vai além do objetivo deste post.

Então, tudo deve ser mantido como está? Não. Devem, por certo, ser equacionadas novas formas de financiamento, tal como as receitas recentemente consignadas à Segurança Social do adicional sobre o IMI ou parte da receita de IRC. Num cenário idílico, poderíamos até considerar fontes de financiamento só possíveis à escala europeia, como uma taxa sobre as transações financeiras. Deve-se também procurar atrair novos fluxos de imigração capazes de contrariar a tendência demográfica.

Acima de tudo, temos de reconhecer que nas próximas décadas caminharemos para uma sociedade estruturalmente mais envelhecida. E essa característica poderá implicar que, em determinados anos, parte dos recursos a afetar terão que ser dirigidos aos pensionistas. É um cenário não ideal, que comprometerá certamente outras opções de política económica, mas poderá suceder e não o devemos encarar como um drama. Assim como sociedades em zonas de conflito afetam partes substanciais do seu orçamento à defesa, ou sociedades mais jovens afetam mais recursos à educação, também as sociedades envelhecidas poderão ter de afetar parte do seu orçamento anual ao pagamento de pensões.

A discussão, por conseguinte, não é sobre qual o melhor modelo de Segurança Social. A discussão relevante é a que se centra no modelo macroeconómico que favorece o pleno emprego e política de imigração que favorece a vinda de novos cidadãos para o nosso país. O modelo certo, no essencial, já o temos: um sistema de repartição solidário que cimenta as fundações do Estado Social português.

5 comentários:

Jose disse...

A causa primeira é a crise económica.
A causa segunda são as políticas que a causa primeira impôs.

A dívida pública e privada, que nunca é nomeada, está ausente das causas.
Nas crises a dívida cresce por transferências para as gerações anteriores.
Na falta de crises os impostos ou a dívida crescerão para suportar transferências para as gerações anteriores.
«Como vimos, o seu desenho favorece a participação dos cidadãos de uma forma democrática e solidária, favorecendo um espírito de pertença e de perseguição do bem comum.»

Cabe naturalmente aos últimos fechar a porta.

Pedro disse...

Com certeza que se repercute.

As políticas recessivas da direita são um investimento para o futuro do patronato.


Mesmo que no momento sejam prejudicados pela recessão, a longo prazo o patronato fica a ganhar pela baixa salarial que se projeta no futuro, pelas alterações legislativas que partidos como o PS se "esquecem" de rever no momentos económicos positivos, e. last but not least, a destruição de toda a segurança social, educação e assistência pública, que se vai conseguindo aos poucos, como horizonte paradisíaco para todo o direitista.

As crises são o momento ideal para isso, porque o povo aceita mais facilmente políticas brutalmente agressivas com a desculpa da crise.

Daí a direita querer ir sempre mais além do que as troikas…

Está-lhes a saber bem.

Jose disse...

Segundo um guru aí acima o patronato (atrevo-me a dizer que detêm meios de produção, isto é, levam ao mercado algum produto ou serviço) ambicionam os mercados em crise.
Não que a crise não os afecte, mas porque ambicionam que daí possam derivar a miséria, a ignorância e as doenças, esse ideal maior da direita.

São assim militantes de um ideal político que define o paraíso como um lugar de sofrimento e carência geral.

Impressionante idiotia!

Anónimo disse...

Bom artigo.

Paulo Marques disse...

As políticas recessivas são um desastre para a direita não rentista, o fim da bolha da dívida privada que advém das crises financeiras arruma com o consumo e fragiliza a viabilidade do pequeno capitalista. Nisto, o Jose tem razão, a Alemanha já nem sequer o esconde.
Agora, a dívida pública só é um problema e só se transforma em privada por escolha política.