segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Pela soberania


Face à continuada ambiguidade de Jean-Luc Mélenchon e o seu partido La France Insoumise relativamente à "questão europeia", alguns altos quadros abandonaram o partido. Entretanto, lançaram um manifesto e começaram a fazer reuniões tendo em vista a constituição de uma alternativa de esquerda soberanista. No sítio deste movimento na internet - La Sociale - foi publicada uma nota de esclarecimento sobre o conceito de soberania. Segue abaixo a minha tradução. Pode ser que isto ajude a esquerda portuguesa que tem andado desorientada a este respeito a evoluir na boa direcção. Ou, ficando tudo na mesma, motive quem já não tem paciência para esperar mais.

"Em primeiro lugar, recordemos que é soberano aquele acima do qual nada mais há. O bem soberano (summum bonum) é o bem acima do qual não há outro bem - normalmente, para os crentes, é Deus. Um poder soberano é um poder que não está subordinado a nenhum outro poder. Tipicamente, nas concepções modernas da política, o poder soberano é o poder que vem do "contrato social", deste pacto primeiro considerado o acto fundador de todo o poder político. Isto não significa que o titular de certas funções de soberania tenha todos os poderes, ou que todo o poder esteja concentrado numa única instituição. Os republicanos reivindicam a separação de poderes e recusam-se a dar todos os poderes à maioria apenas por ser a maioria, porque a maioria é apenas uma parte da nação. Mas, para os republicanos, como para todos os pensadores políticos modernos, não há liberdade imaginável para o cidadão se ele não for um cidadão de uma república livre, ou seja, uma república que não depende de outra instância estatal. Os que exigem o poder para o povo exigem que esse poder do povo seja um poder soberano. Pois se não é um poder soberano, então simplesmente não há poder do povo e, por conseguinte, não há poder dos cidadãos sem a liberdade de dizerem sim aos comandos do poder supremo.

A noção de soberania política é o resultado histórico de todo um processo ligado à constituição das grandes nações europeias na luta contra o papado e o império. A noção de soberania é anterior à democracia, mas é também o terreno fértil sobre o qual ela poderá desenvolver-se. É por esta razão que a declaração de 1789 afirma: “O princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum órgão, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dela.” Uma certa autoridade só pode ser exercida por um órgão (Parlamento) ou um indivíduo (Rei) porque esse órgão ou indivíduo está autorizado pela Nação a exercer essa autoridade. Isto significa muito precisamente que o poder supremo pertence à nação e que ninguém o pode assumir no todo ou em parte. A república nada mais é do que isso: o legislador soberano é a Nação, o povo instituído agindo directamente, ou concedendo um mandato aos eleitos para agirem. Recusar o princípio da soberania é simplesmente recusar a república e a democracia. A crítica à soberania (e aos soberanistas) é, portanto, ainda que de forma disfarçada, uma crítica à democracia e ao poder do povo. É aliás por esta razão que os adversários da soberania são frequentemente os grandes críticos do "populismo". Estes "demófobos" odeiam o povo e desprezam a nação.

Deste ponto de vista, a UE tem um significado preciso: organizar a supressão da soberania das nações, que, uma vez colocadas sob tutela, não terão outra alternativa senão aplicar a política decidida pelos representantes do capital, os dirigentes e funcionários da UE. Vimo-lo de forma brutal na Grécia. Foi repetido no conflito entre a UE e o Governo italiano de Conte. Trata-se sempre de mostrar que as nações não são soberanas, que a vontade dos povos não pode fazer jurisprudência e que só os tratados europeus, isto é, as regras estabelecidas pelos areópagos da tecnoburocracia europeísta, podem ser impostos.

A luta contra o capitalismo, a luta para pôr fim à insaciável ganância do capital, exige precisamente que as nações recuperem a sua soberania. Ninguém pode pretender satisfazer as exigências das classes trabalhadoras sem quebrar a disciplina férrea dos tratados europeus. Enquanto os famosos "critérios de Maastricht" (estabelecidos por Mitterrand!) tiverem força de lei, nenhuma política séria de justiça fiscal é possível. Como podemos evitar a evasão fiscal, a fuga de capitais e a procura do mais baixo nível social se não controlamos, antes de mais, as nossas próprias sociedades?

Tudo isto é tão óbvio que custa a compreender os discursos dos euroinómanos patenteados (de Moscovici a Macron) que dizem o que os seus patrocinadores pedem, mas sobretudo os discursos das pessoas de "esquerda", "realmente esquerda", "esquerda toda", etc., contra a soberania e o soberanismo, quando este se limita a reivindicar a soberania nacional. Esses terríveis revolucionários querem submeter sua revolução à boa vontade de uma autoridade superior à da nação soberana? Só é possível fazer a revolução aqui na França se obtivermos a autorização prévia das classes dominantes dos países vizinhos? Como sempre, esses terríveis revolucionários opõem-se à soberania nacional, e a este simples senso comum que ela pressupõe, em nome de princípios mal orientados que não têm outra função que não seja justificar seu alinhamento vergonhoso com a ordem existente."

7 comentários:

S.T. disse...

A soberania não é de esquerda nem de direita mas é uma pré-condição para a democracia.

Deveria portanto ser consensual entre as forças políticas de todo o espectro democrático.

Disso mesmo deriva que os que pretendem condicionar a soberania têm como agenda a degradação da democracia e do regime republicano.

Não é complicado, pois não?

S.T.

Gonçalo disse...

Emmanuel Todd há que o. A esquerda finalmente acordou mas acordou muito tarde e foi ultrapassa pela FN que por sua vez será ultrapassada devido seu ao anti-europeísmo soft, pela Union Populaire Républicaine de François Asselineau .

As "banalidades" que estão escritas no manifesto são evidentes para qualquer democrata mas num universo mediático dominado por "europeístas",estas banalidades transformaram-se em palavras sagradas para o democrata mais mediano. Emmanuel Todd há muito que diz isto, começou a ser ouvido.

Djordje Kuzmanovic terá alguma ligação à La Sociale?

Que Deus abençoe o povo francês e que Nossa Senhora de Lourdes os guarde!

Anónimo disse...

A Alemanha, com a França a reboque, colonizou a Alemanha de Leste.
Com a mesm fórmula (dívida financeira), colonizou seguidamente os restantes Paísesinhos da Europa que caíram no embuste do crédito a juro baixo, com a conivência de uma elite política "sui generis", diga-se.
A grau de interferência dos EUA no feliz evento depende do ponto de vista -atenção aos erros de paralaxe- de quem opina.

Anónimo disse...

Caro Jorge Bateira,
obrigado pelo seu texto tão bem sistematizado e que pode servir de alicerce para fazer avançar o debate.
Por exemplo, ao ler a sua definição de Soberania e Nação ("O princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum órgão, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dela") surgiu-me uma questão:
- Como analisar o Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas, o Tribunal Penal Internacional ou o Pacto Global das Nações Unidas para as Migrações à luz destes conceitos de Soberania e Nação?

S.T. disse...

O link seguinte mereceria ampla divulgação:

https://www.zerohedge.com/news/2019-01-14/decline-and-fall-european-union

"The Decline And Fall Of The European Union"

"O Declínio e Queda da União Europeia"

"This exhaustion of the neocolonial-neofeudal model was inevitable, and as a result, so too is the decline and fall of the European integration/exploitation project."

"Este esgotamento do modelo neocolonial-neofeudal era inevitável e, consequentemente, também o declínio e a queda do projeto de integração / exploração Europeia."

.../...

"Skepticism of the benefits of EU membership is rising, as citizens of the member nations are questioning the surrender of national sovereignty with renewed intensity."

"O cetpicismo quanto aos benefícios da adesão à UE está a aumentar à medida que os cidadãos dos países-membros estão a questionar a entrega da soberania nacional com intensidade renovada."

"The technocrat elite that holds power in the EU is attempting to marginalize critics as populists, nationalists or fascists, overlooking the untidy reality that the actual source of tyranny is arguably the unelected bureaucrats of the EU who have taken on extraordinary powers to strip the citizenry of member states of civil liberties (i.e. the right to dissent) and of meaningful political enfranchisement."

"A elite tecnocratica que detém o poder na UE está a tentar marginalizar os críticos como populistas, nacionalistas ou fascistas, ignorando a suja realidade de que a verdadeira fonte de tirania é possivelmente os burocratas não eleitos da UE que assumiram poderes extraordinários para despojar os cidadãos dos estados membros das liberdades civis (isto é, o direito de discordar) e de uma significativa emancipação participativa política."

"As I have patiently explained since 2012, the underlying structure of the EU is neocolonialism, specifically, neocolonial-financialization. Stripped of artifice, the financial institutions of the EU core have colonized the EU periphery via the euro and the EU and imposed a modernized system of extractive serfdom on the citizenry of the core and periphery alike."

"Como eu tenho vindo a explicar pacientemente desde 2012, a estrutura subjacente da UE é o neocolonialismo, especificamente a financeirização neocolonial. Despojadas de disfarces, as instituições financeiras do núcleo da UE colonizaram a periferia da UE através do euro e da UE e impuseram um sistema modernizado de servidão extrativa sobre os cidadãos, tanto do núcleo e da periferia da UE."

"To understand the neocolonial-financialization model, we must revisit the classic model of colonialism. In the old model of Colonialism, the colonizing power conquered or co-opted the Power Elites of the region, and proceeded to exploit the new colony's resources and labor to enrich the core or center, i.e. the Imperial nation and its ruling elites."

"Para entender o modelo neocolonial-financeirização, devemos revisitar o modelo clássico do Colonialismo. No antigo modelo de Colonialismo, a potência colonizadora conquistou ou cooptou as Elites de Poder da região, e passou a explorar os recursos e a mão-de-obra da nova colônia. para enriquecer o núcleo ou centro, ou seja, a nação imperial e suas elites dominantes."

S.T. disse...

Sem prejuízo mais uma vez de melhor resposta de Jorge Bateira ou de outros comentadores, aqui fica um link para um artigo de Jacques Sapir sobre a incidência de pactos e acordos internacionais sobre as questões da soberania:

http://www.afrique-asie.fr/norme-internationale-droit-national-souverainete-et-democratie-par-jacques-sapir/

Jacques Sapir é a meu ver o mais claro e límpido autor sobre questões de sociedade, soberania e laicidade. Trigo sem joio.
Mas em francês...

S.T.

S.T. disse...

Chamo especial atenção para esta parte:

"3.2. Supériorité de l’action décisionnelle sur les normes

Il faut ici affronter la circularité du raisonnement des tenants des grands accords internationaux. Ils disent, et ils ont raison sur ce point, que des normes sont nécessaires pour le commerce international, comme pour toute activité nécessitant une coordination étendue. Mais, ces mêmes normes ne sauraient contenir la totalité des futurs qui sont possibles. Si l’on pouvait d’avance prévoir les normes applicables à chaque situation, et mêmes aux situations exceptionnelles comme dans le cas des crises, c’est que nous serions en mesure de prédire précisément ces situations. Mais, si nous étions capables d’un tel exploit, alors il nous serait facile de prendre les mesures préventives pour éviter d’avoir à faire face à ces situations exceptionnelles. Au quel cas nous ne connaitrions jamais de telles situations… Reconnaître la nécessité de prévoir une action exceptionnelle est donc une implication logique de l’hypothèse de limitation cognitive et d’incertitude des individus."

3.2 Superioridade do processo decisório sobre normas

Aqui devemos confrontar a circularidade do raciocínio dos proponentes dos grandes acordos internacionais. Eles dizem, e estão certos neste ponto, que os padrões são necessários para o comércio internacional, como para qualquer atividade que exija uma vasta coordenação. Mas essas mesmas normas não podem conter todos os futuros possíveis. Se alguém pudesse prever antecipadamente para cada situação, e mesmo em circunstâncias excepcionais, como no caso de crises é porque nós seríamos capaz de prever com precisão essas situações. Mas, se fôssemos capazes de tal feito, seria fácil para nós tomarmos as medidas de precaução para evitar ter que enfrentar essas situações excepcionais. Caso em que nunca passaríamos por tais situações ... Reconhecer a necessidade de uma acção excepcional é uma implicação lógica da hipótese de limitação cognitiva e incerteza dos indivíduos."

Só se o futuro fosse inteiramente previsível é que os fanáticos das "normas europeias" poderiam ter razão. mas nesse caso não existiriam crises. E são precisamente as crises o campo de acção privilegiado da capacidade decisional.

S.T.