quinta-feira, 17 de abril de 2014

Pensões: resistir ao afundamento


Está em curso uma lavagem ao cérebro dos portugueses para que interiorizem o discurso neoliberal sobre as pensões. O objectivo é quebrar a resistência ao afundamento, por etapas, do sistema de segurança social que construímos após o 25 de Abril, com o pretexto de que já não é sustentável. Na verdade, esse discurso é uma verdadeira fraude intelectual, que já perdeu todos os debates travados no plano académico (ver Peter Orzag e Joseph Stiglitz, "Rethinking Pension Reform: Ten Myths about Social Security Systems", 1999). Mas sobrevive porque serve os interesses do sistema financeiro e porque os fanáticos do neoliberalismo são imunes à argumentação e à evidência histórica.

Primeiro, importa lembrar que o sistema de repartição, de base salarial, instituído no pós-Guerra na Europa, é um contrato entre gerações garantido pelo Estado. Os pensionistas recebem transferências dos seus contemporâneos que fazem contribuições. A legitimidade deste direito social - não é um direito de propriedade sobre as contribuições do próprio - foi constituída através das pensões que o actual pensionista ajudou a pagar à geração anterior quando trabalhou. É este princípio de solidariedade entre gerações sucessivas que motiva a guerra neoliberal às pensões. Ele representa um modelo de sociedade que se opõe ao modelo das organizações internacionais: "Cada um por si, e uma pensão básica para os pobres."

Em segundo lugar, a legitimidade das pensões contributivas não se afere pelo seu impacto na redução da pobreza, embora também possam contribuir para esse objectivo. Para isso há outras políticas sociais. Quem insiste nessa ideia, esquecendo que o objectivo das pensões é manter o nível de vida, é porque já desistiu de prevenir a pobreza, bem como as desigualdades, no terreno adequado: política económica de pleno emprego, contratação colectiva forte, impostos fortemente progressivos, combate à evasão fiscal através do sistema financeiro.

Em terceiro lugar, é uma manipulação grosseira dizer que o nosso modelo de segurança social é insustentável. Aliás, se em 2012 ocorreu um défice no sistema da segurança social, ele foi induzido pela desastrada e desastrosa política de austeridade. Pelo contrário, o sistema tem acumulado excedentes num fundo de estabilização que nunca foi usado para o fim previsto. É portanto falso que a segurança social estava a caminhar para o abismo e que em 2011 não havia dinheiro para pagar as pensões. Como também é falso que o envelhecimento da população põe em causa a sustentabilidade do nosso sistema de segurança social. De facto, a pressão do envelhecimento leva tempo a fazer-se sentir e a sua intensidade não só pode vir a ser bem menor do que se pensa - depende das políticas económicas e sociais que forem adoptadas - como tem sido mais que contrabalançada pelo crescimento da produtividade na economia. A retórica do envelhecimento, estimulada por Bruxelas, lança uma cortina de fumo sobre as consequências nefastas da política económica imposta à periferia da UE, o desemprego em massa e a consequente degradação das contas da segurança social.

O governo actual não fará mais do que aprofundar e tornar mais consistente o caminho aberto pelo PS com a reforma de 2007. Desde então, abandonou o objectivo da manutenção do nível de vida do trabalhador (ligação da pensão aos últimos salários) e, em linha com a orientação neoliberal da UE, ligou as pensões à evolução da esperança de vida. Agora trata-se de ir mais longe e mais fundo: amarrar as pensões a uma economia em austeridade perpétua.

Para vencer esta guerra ideológica e política, a esquerda deve lembrar os avanços sociais do pós-25 de Abril e dizer, com a convicção de quem sabe do que fala, o que infelizmente nem sempre acontece, que os cortes nas pensões serão anulados porque o sistema é viável e central no processo de desenvolvimento do país. Mais, para ser consequente e credível, deve propor-se recuperar a soberania sobre a política económica que nos permitirá aproximar do pleno emprego, um pilar do Estado social frequentemente esquecido.

(O meu artigo no jornal i)

9 comentários:

Luís Lavoura disse...

a pressão do envelhecimento [...] tem sido mais que contrabalançada pelo crescimento da produtividade na economia

Isso é verdade.

Porém, o problema deriva da legitimidade de retirar cada vez maior percentagem do seu rendimento aos trabalhadores para a entregar aos reformados.

Deriva também da pouca vontade que os trabalhadores podem ter de lhes ver retirados tais rendimentos.

L. Rodrigues disse...

Os rendimentos têm sido retirados aos trabalhadores para dar aos patrões. De uma forma geral.

Dito de uma forma menos "luta de classe", os rendimentos dos assalariados não têm estado em linha com os ganhos de produtividade, mas sim bem abaixo. Isto no ocidente em geral.
Em Portugal pode ser um pouco diferente, apenas porque o ponto de partida também foi um pouco diferente.

Anónimo disse...

"Legitimidade de retirar cada vez maior percentagem do seu rendimento para a entregar aos reformados"
?
Ou outra forma de tornar clara a lavagem ideológica empreendida pelos neoliberais de turno...
enquanto são atiçados de forma um pouco camuflada os ódios inter geracionais
De

Anónimo disse...

Não compreendo como é possível dizer que o problema está a relação entre o nº de activos e nº de pensionistas e ao mesmo tempo se promovem políticas que aumentam o desemprego.
Se o problema fosse o envelhecimento da população não deveria haver falta de pessoas para trabalhar?
Se existissem neste momento 100 jovens para cada 100 reformados onde estariam esses jovens a trabalhar?

Jose disse...

O «contrato entre gerações» começou por uma qualquer geração heróica ou por uma geração que teve as reformas que capitalizou, com uma rentabilidade determinada pela economia em que participou? Qual o modelo que a figura do Roosevelt documenta?
Manter o último salário não cumpre o «objectivo das pensões é manter o nível de vida» pois são incomparáveis os parâmetros de avaliação do nível de vida entre quem trabalha e quem está ocioso, e essa relação nunca é estabelecida e valorizada.
Quanto à sustentabilidade, tudo é reduzido às «políticas económicas e sociais que forem adoptadas», atribuindo aos governos um poder de condicionamento do comportamento da economia que eles nunca tiveram, não têm, nem virão a ter.

Jaime Santos disse...

Como bem assinala Krugman, o crescimento da esperança adicional de vida no momento da reforma é um indicador muito mais fiável do crescimento das necessidades do sistema de pensões do que a pura esperança de vida, que cresce sobretudo devido à diminuição da mortalidade infantil. Isto porque um indivíduo que morre antes de entrar para o mercado de trabalho nunca contribuiu para o sistema de pensões, de qualquer maneira. Sucede que essa esperança adicional de vida já era, creio, de 13 anos quando Roosevelt introduziu o sistema de pensões no New Deal. Quanto à ligação das pensões ao último salário, seria um bom princípio, mas está ligado à hipótese implícita de um crescimento eterno da economia com taxas semelhantes às registadas durante os '30 gloriosos'. Bem sei que as políticas neoliberais tendem a estrangular esse crescimento, mas mesmo uma Política de Esquerda tem que levar em conta a finitude dos recursos e a catástrofe ambiental pendente...

Anónimo disse...

Os governos, esses eternos coitados, que umas vezes não têm responsabilidade nenhuma, outras vezes são os verdadeiros responsáveis, lol.
Mais um argumento de peso para destronar de vez o domínio do Capital...


De
Mas sejemos sérios:
"A ligação das pensões à economia e à demografia já existe, mas a politica do governo PSD/CDS e da "troika" está a destruir a Segurança Social"
Eugénio Rosa
Daqui:
http://resistir.info/e_rosa/pensoes_15abr14.html

Anónimo disse...

"Está neste momento em curso no nosso país uma campanha gigantesca de propaganda do governo – em que muitos media estão a colaborar pelo facto de não informarem de uma forma objetiva os portugueses – visando criar a ideia na opinião pública de que é necessário reduzir as pensões porque só assim é que o sistema seria sustentável. E para isso têm também procurado difundir a ideia que o peso das pensões elevadas é grande e que as pensões não estão ligadas nem à economia nem à demografia. Ora tudo isso é mentira.

PENSÕES CONGELADAS EM 2011 POR GOVERNO DE SÓCRATES, E A PARTIR DESSE ANO APENAS TÊM SIDO "ATUALIZADAS" AS PENSÕES ATÉ 246€, E OS AUMENTOS SÃO DE 9 CÊNTIMOS/DIA

Segundo dados oficiais (os últimos disponibilizados são de 2012), na Segurança Social, num total de 3 milhões de pensionistas, apenas 12.000 recebiam pensões superiores a 2.500€, e na CGA de um total de 594.000 apenas 53.500 recebiam pensões superiores também a 2500€.

Em 2011, o governo de Sócrates congelou todas as pensões incluindo as mínimas. Em relação a 2012, 2013 e 2014, o governo PSD/CDS diz, na sua propaganda para iludir a opinião pública, que descongelou as pensões mínimas, e que até as aumentou. A verdade é outra bem diferente. As pensões mínimas da Segurança Social têm quatro escalões cujos valores, em 2010, variavam entre 246,36€ e 379,04€. O governo PSD/CDS apenas tem aumentado o 1º escalão, ou seja, a de 246,36€, deixando os restantes escalões tanto da Segurança Social como da CGA congelados desde 2010. E o mesmo sucede com as pensões de sobrevivência. E os aumentos que tem feito nas pensões de 246,36€ têm sido irrisórios e mesmo chocantes. Em 2012, o aumento mensal nestas pensões foi de 7,64€, o que correspondeu a 25 cêntimos por dia; em 2013, o aumentou foi já de 2,79€ por mês, o que dá 9 cêntimos por dia; e, em 2014, a subida nestas pensões foi somente de 2,57€ por mês, o que corresponde a menos de 9 cêntimos por dia. São com estes aumentos que o governo alimenta a sua propaganda sobre a atualização das pensões mínimas procurando assim enganar a opinião pública. Se olharmos para as estatísticas da Segurança Social sobre a repartição de pensionistas por escalões de pensão (as últimas constam do Relatórios e Contas da Segurança Social de 2012), conclui-se que a esmagadora maioria dos pensionistas está no escalão entre 253,99€ e 419,21€ (1.177.965 reformados em 2012), e praticamente a totalidade destes reformados com pensões, a maioria deles, abaixo do limiar da pobreza não têm tido qualquer aumento nas suas pensões desde 2010, o que determinou que mesmos estes tenham sofrido com o governo PSD/CDS uma redução de 8% no seu poder de compra. E o FMI, entrando na campanha de propaganda e de engano do governo PSD/CDS, ainda tem a "lata" de vir dizer, num estudo que recentemente divulgou e que já referimos, que os mais atingidos pela política de "austeridade" têm sido os ricos."
Eugénio Rosa

De

Um judeusito disse...

Um longo, mas útil artigo para se perceber o problema das Pensões.

É importante que se perceba, que o problema das Pensões não são unicamente os Cortes.
Há mais projectos "no ar" para as Pensões, que se não percebermos quais são, não poderemos os defender, e assim manter o Sistema que durante anos (desde Roosevelt) sempre deu resultados.