Uma das muitas desvantagens de pertencer à UE está na forma
como um conjunto de temas e decisões políticas deixam a esfera de debate
político nacional para o espaço europeu onde quase não há discussão. As medidas
aparecem como sendo exógenas, digamos, contra as quais pouco ou nada há a
fazer. A Parceria Transâtlantica entre os EUA e a UE agora em negociação é um
desses casos. Como qualquer acordo comercial, as implicações para o nosso país
serão profundas, bastando lembrar as consequências da liberalização comercial
introduzida pela Organização Mundial de Comércio nos anos noventa na nossa
estrutura industrial.
Este novo acordo, disfarçado de mera harmonização
regulatória, terá duas grandes consequências. A primeira diz respeito às consequências necessariamente
assimétricas deste acordo no espaço europeu. Acordos internacionais de comércio
podem ser favoráveis a ambas as partes, sobretudo quando estamos perante países
com estruturas produtivas similares e não existe assimetria no poder de
negociação (o que raramente acontece). O comércio livre é o proteccionismo dos
mais fortes. Ora, sendo o espaço europeu tão diverso, custa a acreditar que o
acordo será benéfico para todos os países, ao mesmo tempo que sabemos que não
são os interesses dos pequenos países periféricos a comandar as posições
europeias. Vale a pena também notar a fragilidade dos ganhos estimados, segundo a UE, deste acordo : mais 0,5% do PIB europeu em... 2027. A segunda consequência é mais genérica e diz respeito aos novos
tribunais arbitrais que decidirão disputas entre empresas e Estados. Os Estados
terão sempre mais dificuldade em impor o interesse social ou ambiental numa
disputa com uma multinacional num tribunal internacional por comparação com os
tribunais que seguem a lei por si definida. O poder difuso das empresas
multinacionais será reforçado.
Este acordo pode ainda ser o pretexto para uma discussão
mais ampla sobre liberalização comercial em Portugal - um tema crucial para
entender a evolução da economia nos últimos 20 anos - e para a mobilização
popular contra o comércio dito livre e seus mitos à imagem do que aconteceu
no, entretanto abortado, Acordo Multilateral de Investimento de 1998.
Felizmente, há excepções ao silêncio nacional sobre o acordo: o Le Monde
Diplomatique tem dedicado muitos artigos ao tema - ver o editorial de SergeHalimi este mês; o dossiê da Attac-France também tem muita informação. Para quem tem
interesse no tema do comércio internacional e sua relação com o desenvolvimento
económico, deixo o capítulo, escrito por mim e pelo João Rodrigues, de
um livro, "A Globalização no Divã", que já não se encontra nas
livrarias. Que a leitura conduza à acção.
Adenda: Fui alertado que, ao contrário do que pensava, o livro "Globalização no Divã" ainda se encontra nas livrarias, nomeadamente na Almedina de Lisboa.
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12 comentários:
Como se pode fazer o download do artigo?
Já descobri. Fui ao código HTML do post e saquei a URL do documento Google. Peço desculpa pela pirataria ;-)
Caro João Costa, Não é preciso tal coisa. Carregue no canto superior direito (abrir em nova janela) e depois tem à sua disposição a opção de transferência...
Caro Teles,
obrigado pelo capítulo, que já li, do livro, que desconhecia.
Matéria demasiado vasta para expor neste comentário diferenças de opinião, discordâncias em questões, teóricas ou históricas, de maior ou menor amplitude e uma apreciação mais fundamentada à vossa crítica das doutrinas e das práticas do livre comércio, lapidarmente caraterizado como o protecionismo dos mais fortes.
Vejo-me, por isso e um pouco a contragosto, obrigado a cingir à essência da questão. Mas não gostaria de deixar inequivocamente claro, logo de começo, que, apesar do meu distanciamento de numerosas considerações e de substanciais divergências na análise, convergimos na necessidade de países atrasados, fragilizados, vulneráveis, periféricos, dependentes, submetidos e subordinados aos grandes centros do capitalismo mundial, como apesar dos seus níveis de desenvolvimento é o nosso, e por maioria de razão a generalidade dos do terceiro mundo, romperem com as armadilhas das conceções e das práticas neoliberais e adotarem, como necessidade e estratégia de desenvolvimento, um protecionismo seletivo, inteligente, soberanamente doseado, suficientemente comedido para proteger os nascituros, as reestruturações e as expansões industriais, mas sem prejudicar o incremento comercial, as aquisições e transferências de tecnologia, o investimento direto estrangeiro saudável e a cooperação internacional mutuamente vantajosa. Em resumo, um protecionismo seletivo para desenvolver o país e pô-lo a comerciar mais, não menos.
Restrinjo-me, como disse, à teoria ricardiana das vantagens comparativas, corretamente identificada como a peça central das fundamentações teóricas do livre comércio e incontornável base de partida, convenientemente despida do valor-trabalho, para as elaborações mais sofisticadas (como por exemplo o modelo de Hecksher-Ohlin e os desenvolvimentos de Samuelson), baseadas em pressupostos mais ou menos inverosímeis, exibindo frequentemente um desprezo soberano pela comprovação empírica (melhor dizendo, pelos fragorosos desmentidos empíricos), mas continuamente reproduzidas e matraqueadas nos meios ideológicos dominantes, com destaque para as universidades, pela sua justificação apologética das práticas comerciais do imperialismo e das suas agências (OMC, FMI, Banco Mundial, etc.).
Mas a questão é que, mesmo independentemente das suposições irrealistas dessas derivações, seja de orientação neo-clássica ou keynesiana, o ponto de partida, a doutrina de Ricardo, é insustentável nos seus próprios fundamentos.
Não está tanto em causa, e para aproveitar a exposição do capítulo (p. 269), a ideia, digamos prescritiva, de que se cada país se especializar no produto em que é relativamente mais eficiente, ganharão ambos na respetiva troca, mais do que ganhariam se continuassem a produzir independentemente aquilo em que são menos eficientes. Sendo o custo do têxtil relativo ao do vinho inferior num país, o preço do vinho relativo ao do têxtil é necessariamente inferior no outro; se ambos se concentrassem na produção da sua mercadoria relativamente mais barata e trocassem entre si partes desta produção, no caso dos termos da troca internacional, entre o têxtil e o vinho, se situarem entre as relações de preços anteriores dos dois produtos em cada país, ambos obteriam, com os mesmos recursos, mais produtos do que aqueles que conseguiam antes da especialização e da troca.
(continua)
(continuação)
Até aqui é pouco mais do que aritmética, necessariamente mais complicada quando se aumenta o número de países ou de produções. Mas o que está em causa é que o comércio internacional é fundamentalmente um comércio entre empresas individuais que perseguem o máximo de lucro e não propriamente o benefício para as nações, e que empresas menos eficientes, tecnologicamente atrasadas, de um país subdesenvolvido ficam inevitavelmente em dificuldades, para não dizer que são arrasadas, na competição sem entraves com as congéneres mais eficientes, tecnologicamente avançadas, dos países desenvolvidos (subsistem, provisoriamente, à custa dos baixíssimos salários ou da abundância de recursos naturais, como a fertilidade do solo e a existência de minérios).
A teoria de Ricardo só se safa desta dificuldade porque pressupunha a errónea teoria quantitativa da moeda, de uma relação direta da quantidade de dinheiro com o nível geral dos preços. Todos os desenvolvimentos modernos também precisam, de uma forma ou de outra, se bem que frequentemente não o declarem, deste ou de outro mecanismo automático similar que, por ajuste de preços ou das taxas de câmbio, traduza analogamente défices comerciais em barateamento das exportações.
Simplificadamente, qual era o raciocínio de Ricardo?
Ricardo considera que um país com custos elevados começa por sofrer um défice comercial. Que tem que ser coberto com pagamentos ao exterior, isto é, com a saída de dinheiro. Mas então (de acordo com a teoria quantitativa do dinheiro) os preços diminuem, barateiam as exportações e o país torna-se mais competitivo. Pelo outro lado, a entrada de dinheiro no país com o superavit comercial aumenta os preços, encarece as exportações e torna-o menos competitivo. Enquanto houver desequilíbrio comercial, o mecanismo prossegue, barateando as produções do país deficitário e encarecendo as exportações do país excedentário, até que o primeiro possa vender a menor preço que o segundo uma das suas produções, deixando ao outro a vantagem relativa na outra, e o equilíbrio se estabeleça. É por isso que o equilíbrio das balanças comerciais é o resultado (e não o pressuposto, como incorretamente é dito) da teoria do Ricardo, tão conveniente para a ideologia neoliberal dominante, visto que conclui, em flagrante contraste com a persistência e o agravamento dos desequilíbrios internacionais, que o livre-comércio é benéfico para todos, independentemente dos níveis de desenvolvimento.
Marx discorda de Ricardo e contrapõe que a falta de liquidez do país inicialmente deficitário faz contrair o crédito e aumentar as taxas de juro, que atraem capitais do exterior. Isto é, o país endivida-se para cobrir os seus défices comerciais. Na visão do Marx, países que não são competitivos no mercado mundial acabam com persistentes défices comerciais e cronicamente endividados, em muito maior conformidade com o que podemos observar no mundo (e no nosso país).
Para Marx não há diferença qualitativa entre o comércio interno e externo. A competição capitalista, num caso como noutro, faz os preços, em particular das importações e das exportações, regularem-se tendencialmente pelos custos absolutos (e não pelos custos comparativos) das mercadorias, que são fundamentalmente determinados pela produtividade e os salários reais das produções (internacionalmente) reguladoras, aquelas com “vantagens absolutas”, de menores custos, que atraem os novos investimentos e que são capazes de expandir rapidamente a oferta, definindo os preços.
(continua)
(fim)
Não posso, evidentemente, alongar-me muito mais.
Mas há duas implicações cruciais da visão e da teoria do Marx que importa aqui muito resumidamente realçar.
Primeira, que se os termos de troca são (tendencialmente) regulados pelos custos reais, absolutos e não relativos, das mercadorias, então não podem mover-se de modo a equilibrar o comércio entre nações, como concluía Ricardo e pressupõem os modelos, de inspiração neo-clássica ou keynesiana, fundados na teoria das vantagens comparativas. Como tem pertinentemente insistido o economista marxista Anwar Shaikh, a persistência de défices e excedentes comerciais entre as nações não se deve necessariamente a um desequilíbrio no comércio internacional; pelo contrário, o défice comercial é o resultado normal, mesmo que no equilíbrio, se um país não é competitivo.
Segunda, não se pode avaliar a desadequação das taxas de câmbio e dos excessos de valorização (ou de desvalorização) de uma moeda relativamente às outras, com base em modelos que pressupõem e definem o equilíbrio com base no balanceamento do comércio, na inexistência de défices ou excessos comerciais, como se faz no mainstream económico.
Muito importante, para averiguar corretamente a sobrevalorização do euro e a extensão da desvalorização de uma nova moeda nacional que o substitua. Com a perfeita consciência de que esta libertação das nossas amarras de dependência monetária ao pólo europeu da tríade capitalista é uma condição necessária, mas muito insuficiente, para criar as condições de um crescimento económico e de um desenvolvimento social sustentáveis.
Mas por aqui temos que começar. Esquerda que não o entenda, não amadureceu ou já traiu.
HM
Uma das muitas desvantagens de pertencer à UE está na forma como um conjunto de temas e decisões políticas deixam a esfera de debate político nacional para o espaço europeu onde quase não há discussão.
Eu diria que isso (o não haver discussão) não é culpa da UE. Já por milhentas vezes foi chamada a atenção, por parte de diversos atores, para a necessidade de se prestar atenção aos debates políticos em Bruxelas. Não é culpa da UE que as pessoas optem por permanecer focadas em problemas caseiros.
A Terceira Grande Guerra Mundial começou no início dos anos 80 do século passado, declarada por Thatcher e Reagan, e intensificou-se em 2007 com a crise financeira artificial que ainda hoje condiciona as nossas vidas. É uma guerra dos "mercados" contra as soberanias nacionais, e tratados como este, contendo todos a mesma cláusula de resolução de conflitos entre "investidores" e Estados, são tratados de capitulação.
Luís Lavoura, o debate existe na União Europeia, e é um facto que não lhe prestamos a devida atenção nem participamos nele o suficiente. A campanha eleitoral actualmente em curso é um exemplo disto.
Mas é um debate largamente inconsequente porque não se legitima na soberania popular (não existe um "demos" europeu) e não vincula nem o poder político, nem o económico.
O Parlamento Europeu não tem os poderes plenos dum parlamento democrático, A Comissão Europeia não pode ser destituída através duma moção de censura, o BCE não tem as atribuições habituais de um banco central e o Conselho Europeu, que poderia constituir o embrião de um Senado, é uma colecção de personalidades avulsas nomeadas arbitrariamente pelos governos.
Isto, para não falar do Eurogrupo, que ninguém sabe o que é nem com que base legal decide sobre as nossas vidas.
A culpa não será da UE, mas é certamente de quem lhe deu e dá forma.
Mais um exemplo da patifaria que reina nas cúpulas da UE e dos EUA.
Este é mais um instrumento para subjugar os povos e tirar-lhes a possibilidade de decidirem dos seus destinos.
A UE com entidade mítica e virginal a disfarçar a merectriz que é,com sotaque alemão pintalgado de outros matizes.
Como já muito bem disse José Luiz Sarmento: "quem lhe deu e dá forma?"
Como se a UE fosse a Virgem Maria e não tivesse progenitor identificado e ptogramado.
De
Sobre o tema, terá interesse esta curta mas incisiva intervenção de João Ferreira, eurodeputado e principal candidato da CDU às próximas eleições europeias, em Maio do ano passado:
http://www.pcp.pt/negocia%C3%A7%C3%B5es-do-acordo-sobre-trocas-comerciais-e-investimentos-da-ue-com-os-eua
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