Nem gosto de falar disto. Sinto uma revolta tão grande. Na fábrica vejo colegas a passar fome. Para almoçar, temos uma mesa e cada uma leva de casa. Lá mais para o final do mês, algumas saem da fábrica à hora de almoço para esconder que nem para a sopa tiveram. Aquelas, por exemplo, que os maridos ficaram desempregados e que começaram a ter discutimentos em casa. É que se a gente ao menos pudesse socorre-las… mas também não pode (…) Quem não trabalhar de graça ao sábado de manhã é logo encostado à parede. Começaram agora a ‘meter’ mais gente, mas continuam a exigir os sábados de manhã de graça, são quatro horas e meia. Se alguém reclama, respondem que quem não estiver bem é livre de ir para tribunal. E ninguém vai, claro. Sabe o que eu queria, menina? Outro 25 de Abril (…) Eles já assim nos fazem a vida negra. Humilham. A gente olha para a cara umas das outras e vê tudo desanimado, triste, e eles sempre na maior, sempre com um sorriso. Quem trabalha hoje, tornou-se lixo, gente que está ali para ‘dar’ a produção que eles pedem. Então, se for para tirar ainda mais, prefiro que não me aumentem o salário. Se não tiver bife, como sopa. Mas dêem-me paz.
Deolinda Araújo, operária têxtil
Há que lembrar que sob o regime fascista vigorava o Estatuto do Trabalho Nacional que expressamente declarava o predomínio dos interesses do capital sobre os trabalhadores. E acontecia, em consequência, o que acontece também hoje: na repartição funcional do rendimento, 60 e tal por cento ia para o capital e 40% para os trabalhadores. Portugal era, antes do 25 de Abril, um país onde os trabalhadores em particular viviam muito mal. Durante alguns largos anos aquela proporção inverteu-se. Mas hoje estamos de novo numa situação em que 60 e tal por cento do rendimento vai para o capital e uns 40 por cento para os trabalhadores (…) O salário mínimo nacional teve um grande impacto na economia. Durante muitos anos, se fosse ao acaso pelo país e perguntasse aos trabalhadores como é que tinham sentido o salário mínimo, uma larga percentagem diria: “Pela primeira vez, pude fazer muita coisa”. Era muito frequente, no Norte, por exemplo, as pessoas referirem que esse foi o tempo em que finalmente compraram a primeira mobília. Porque visitar uma casa de um operário têxtil, do calçado ou da construção civil, era visitar uma casa ou um abrigo quase completamente desguarnecido, não equipado. E era evidente que os casais tiveram pela primeira vez a oportunidade de melhorar a sua vida (…) [E]stou convencido, olhando agora para trás, que o salário mínimo nacional foi importante para evitar que os portugueses sofressem os efeitos de uma crise económica internacional que se registou entre 1973 e 1975 e que, cá, as pessoas praticamente não sentiram.
Avelino Gonçalves, Ministro do Trabalho no I Governo provisório
Excertos de dois notáveis trabalhos, uma reportagem e uma entrevista, de Natália Faria no Público de Domingo: dar voz aos que raramente têm voz. O salário mínimo foi uma conquista de Abril, parte de um processo mais vasto de dignificação do trabalho e de aumento do seu poder, e ainda hoje os que estão na base da relação salarial não conseguiram reconquistar o poder de compra alcançado na altura. A sua desvalorização foi uma conquista do capitalismo mais medíocre, o que quer viver numa economia cada vez mais desigual e geradora de pobreza, onde vigora o despotismo em demasiados locais de trabalho, sem freios e contrapesos, sem pressão salarial; uma economia que desrespeita acordos entre patrões e sindicatos, como o que foi assinado em 2006, e que previa que o salário mínimo atingisse os 500 euros em 2011, recuperando o terreno perdido; uma economia baseada na lógica do trabalho como batata, bem explorada, por exemplo, pelo Alexandre Abreu.
Os argumentos para a existência de um salário mínimo e para a actualização do seu poder de compra são mais do que muitos, e neste blogue temo-los mobilizado, e estão no lado da oferta - motivação dos trabalhadores, bloqueamento de estratégias empresariais assentes na transferência de custos para os trabalhadores -, no lado da procura - promoção do poder de compra dos grupos com maior propensão a consumir -, e entre a oferta e a procura - redução da pobreza laboral e das desigualdades, bloqueamento dos círculos viciosos da pobreza. É claro que para quem tem um entendimento da economia magistralmente resumido por John Kenneth Galbraith - “Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos.” - nada disto vale.
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