terça-feira, 15 de abril de 2014

Nem «democratização da economia» nem «ética social na austeridade»

Na mensagem de Natal de 2011, Passos Coelho anunciou que o ano vindouro seria marcado por um processo de «democratização da economia», argumentando que as estruturas de organização económica e social existentes não permitiam aos portugueses «realizar todo o seu potencial», em virtude de reprimirem «as suas oportunidades» e de favorecerem «núcleos de privilégio injustificado», responsáveis pela perpetuação de «injustiças e iniquidades». Por isso, o primeiro ministro iria tratar de colocar «as pessoas comuns com as suas actividades, com os seus projectos, com os seus sonhos, no centro da transformação do país».

Esta prometida democratização no acesso à vida económica seria alcançada, já se sabe, pelo combate sem tréguas ao «peso asfixiante do Estado na economia», pela «remoção das suas imorais gorduras» e pela libertação fervilhante das «energias do empreendedorismo», esse veio milagroso e espontâneo que a omnipresença do «monstro» estatal, na economia e no social, estava a sufocar. Chegara pois, de acordo com o primeiro ministro, o tempo do reforço da participação, na economia, da aclamada «sociedade civil», das empresas e dos cidadãos, que assim passariam a ocupar o espaço entretanto varrido da presença do Estado e das suas malévolas políticas económicas e serviços sociais públicos.

Dois anos depois, a promessa de «democratização económica» redunda contudo num colossal logro, como demonstra, por um lado, a diminuição da população activa entre 2011 e 2013 (decorrente do recrudescimento da emigração para níveis observados na década de sessenta e pelo aumento do número de desempregados que desistiram de procurar trabalho) e, por outro lado, a destruição massiva de emprego, que extinguiu cerca de 330 mil postos de trabalho desde Junho de 2011, data em que o actual governo entra em funções. Ou seja, a exclusão de milhares de pessoas do mercado de trabalho revela afinal, ao contrário do que prometera Passos Coelho, o ímpeto trágico de um processo de «desdemocratização da economia» e não a sua «democratização».


Mas para lá da restrição do acesso ao mercado de trabalho, o mais importante mecanismo de inserção económica e de inclusão social, importa ainda assinalar o fracasso de uma segunda promessa do governo, enunciada desta vez pelo ministro Mota Soares em Outubro de 2011: a de que haveria «ética social na austeridade» durante o programa de «ajustamento». Isto é, a garantia de que «mesmo numa altura em que é preciso tomar medidas de austeridade», se iria «conseguir sempre ter um tratamento excepcional para aqueles que são os mais excluídos e carenciados», apostando «muito na inclusão e capacitação das pessoas».

O resultado de tão cristãs intenções está hoje à vista de todos: quando confrontado com o aumento do desemprego e da pobreza (exponenciados pelas doses reforçadas de austeridade e pela contracção deliberada dos serviços e das políticas sociais públicas), o governo responde restringindo o acesso às prestações de desemprego e a apoios subsequentes, com particular destaque para o RSI. O que leva a que o número de desempregados sem acesso a qualquer prestação de desemprego passe de cerca de 387 mil (no primeiro semestre de 2011) para cerca de 523 mil (no final de 2012), ao mesmo tempo que o RSI se torna cada vez mais insignificante para responder ao aumento de situações de pobreza: a medida, que abrangia cerca de 320 mil beneficiários em 2011 passa a responder a apenas 288 mil no último semestre de 2012 (com quebras muito significativas no valor das prestações), período em que a redução continuada do número de pessoas em risco de pobreza conhece o pico máximo da inversão que se começa a verificar a partir do final de 2009.


Ou seja, nem economia nem solidariedade: as promessas de «democratização económica» e de «ética social na austeridade» não passam de duas fraudes bem urdidas, que visam mascarar o processo de desmantelamento das funções económicas e sociais do Estado e aprofundar o crescente desnivelamento social e o empobrecimento deliberado do país.

10 comentários:

Anónimo disse...

E houve mais promessas:
http://www.youtube.com/watch?v=iJCSmwLeUZg

De

Manel Salcedo disse...

Alguém está a precisar de umas aulas de "iniciação aos gráficos", não acha? Esse primeiro gráfico tem erros de 4ª classe, a começar pela escala e a acabar nos pontos de referência (1?!).

Pedro Almeida disse...

Gráfico completamente falacioso: http://networkedblogs.com/VWlDf

R.B. NorTør disse...

E ainda há quem diga que isto não é uma reforma do Estado...

Nuno Serra disse...

1. Agradeço aos leitores Pedro Almeida, Carlos Guimarães Pinto e Manuel Salcedo o alerta relativo à evidente incorrecção da escala do primeiro gráfico (que foi entretanto rectificada).

2. Relativamente à observação feita pelo Carlos Guimarães Pinto (http://oinsurgente.org/2014/04/15/professor-nuno-serra-esta-chumbado/), convém sublinhar que a destruição de emprego foi bastante mais acelerada desde que o actual governo entrou em funções do que entre o início da crise (2008) e o primeiro semestre de 2011. De facto, anulando as diferenças temporais, verificamos que se no período de 2008 a 2011 se registou uma perda no emprego na ordem dos 47 mil, em média, por semestre, já entre 2011 e 2013 esse valor ascende a cerca de 66 mil postos de trabalho, em média, por semestre (sinalizando assim, com grande eloquência, os méritos da «austeridade expansionista» e a prometida «democratização da economia»).

3. Por último: a crítica de que a escala de dados se encontra cortada (com início no valor de 4,4 milhões) apenas faria sentido se essa informação tivesse sido ocultada do gráfico. Do que se trata é apenas, como facilmente se percebe, de ampliar as linhas de representação de dados, não alterando evidentemente a proporção entre eles.

ll disse...

Estes gráficos não servem absolutamente para nada se não forem acompanhados de uma explicação em termos económicos. Faz-me lembrar o sketch do gato fedorento, onde dois políticos, sentados frente a frente, esgrimiam os seus argumentos na forma de gráficos, pelo que um puxava de uma curva de Gauss, outro um queijinho, outro uns paralelos tridimensionais, outro uma dispersão de pontinhos! Dizer que a austeridade causou desemprego até um pastor sabe, agora dizer como a austeridade levou a esse efeito é que carece de justificação!

Carlos Faria disse...

Estou descontente com Passos Coelho e votei nele, mas vendo o seu artigo (passo por aqui diariamente) e o de Carlos Guimarães Pinto, a ideia que fico é que a haver honestidade intelectual no tratamento dos dados o gráfico não teria dado oportunidade a correções como a feita por CGP, nem a suspeita de que a modelação estava enviesada para reforçar o preconceito contra um modelo.
No comentário resposta altera o critério para insistir que tinha razão (e tem em muita coisa), mas mesmo nas últimas eleições já se tinha consciência que os dados de emprego se iriam degradar ainda mais aceleradamente sem vencedor definido, resta saber (penso que nunca terei a certeza) se a longo prazo Portugal teria tido uma recuperação mais saudável após o memorando se Sócrates tivesse continuado e se a luta dele teria frutos mais próximos da Irlanda ou do fiasco que a Grécia representou quando o PASOK caiu, mesmo sem ser o maior culpado pela ida da troika para Atenas.
Penso que em Portugal falta honestidade política no arco da governação para se conseguir aplicar as melhores soluções e tal não nasce de uma luta para proveitos eleitorais de campos ideológicos que até nem são tão distintos assim.

Jose disse...

Tudo vem ao caso de que os governos vêm demorando demasiado tempo a assumirem a sua total incapacidade de intervir na economia de forma significativa.
A única desculpa é haver tanta gente a reclamar do Estado que faça o que este não pode nem sabe fazer.
Os mais desesperados já reclamam o escudo de volta, que isso sim é algo que o Estado pode fazer em abundância: o papel das ilusões transitórias.

Anónimo disse...

Tudo vem ao caso (!) que alguns dos mantra do neoliberalismo são veiculados desta mesma forma ou seja como formulas místicas e rituais recitadas ou cantadas repetidamente pelos fiéis.
A questão da "incapacidade" do estado é um dos exemplos que é repetida mecanicamente,qual propaganda saída dum púlpito qualquer.

Mas ao menos exige-se alguma coerência interna na exposição para não ficarmos apenas na palavra-de-ordem um pouco "néscia".

Parece que o Estado e cito "o que o Estado pode fazer em abundância: o papel das ilusões transitórias. Deixando de lado esta escrita "pernóstica" acontece que a decisão de abandonar o euro não nasceu de geração espontânea. Nem consta que tal opção tenha feito verter na altura cânticos beatos pela incapacidade do "estado" não poder ou não saber fazer

De

R.B. NorTør disse...

Desculpe Carlos Faria, mas Portugal já recuperou alguma coisa para se poder falar de "recuperação"?