Os dados divulgados pelo INE confirmam o que se foi observando sobre a evolução dos salários em Portugal em 2022: no fim do ano, sem quaisquer sinais que indiquem o risco de uma espiral inflacionista, o salário médio caiu 5% face ao mesmo período do ano anterior, em termos reais (isto é, tendo em conta a evolução do nível geral de preços na economia).
Se se comparar a evolução nominal do salário médio com a dos preços dos principais produtos nos setores dos bens alimentares e da energia, percebe-se facilmente a dimensão da perda de poder de compra para a maioria das pessoas. O crescimento nominal do salário médio (3%) ficou bastante abaixo da subida dos preços do pão, cereais (14%), leite, ovos (14,1%) ou carne (15,5%), bem como do aumento dos preços registado nos combustíveis (20,7%), eletricidade (22,2%) e gás (32,9%).
O único grupo profissional que obteve aumentos salariais acima da inflação em 2022 foi o dos gestores executivos e diretores. Todas as outras categorias profissionais – trabalhadores da indústria e dos serviços, técnicos intermédios, pessoal administrativo, professores, enfermeiros, médicos, etc. – tiveram aumentos médios que ficam longe de compensar a subida dos preços. Ou seja, os únicos que não perderam poder de compra no ano passado foram precisamente aqueles que já possuíam rendimentos mais elevados.
É uma tendência que já vem de trás. Entre 2010 e 2017, os gestores de topo viram o seu rendimento aumentar 49,7%, ao mesmo tempo que o rendimento médio dos trabalhadores diminuiu 6,2%, o que fez aumentar o rácio médio entre o salário dos gestores e dos trabalhadores. A pandemia não alterou este cenário: em 2021, os presidentes executivos das principais empresas cotadas em bolsa receberam, em média, 32 vezes mais do que os trabalhadores. A Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, é a campeã da desigualdade: o seu CEO auferiu 3 milhões de euros nesse ano, um valor 262,6 vezes superior à média dos salários de quem trabalha na empresa.
A economia convencional diz-nos que a concorrência do mercado leva a que cada um receba a remuneração adequada ao seu contributo – por outras palavras, assume-se que os salários são o reflexo da produtividade. Mas é muito difícil justificar a enorme desigualdade com o "mérito" dos gestores, até porque ela também existe em empresas com resultados negativos, o que sugere que tem pouco a ver com a qualidade da gestão.
Além de não ter nenhuma relação convincente com a produtividade, há cada vez mais evidências de que a desigualdade é um obstáculo ao desenvolvimento económico dos países. O aumento da desigualdade comprime o consumo da maioria das pessoas ao mesmo tempo que promove a especulação financeira por parte dos mais ricos, com efeitos perversos para o conjunto da economia.
No atual contexto de subida dos preços, com a taxa de sindicalização em mínimos históricos, a maioria dos trabalhadores não consegue negociar aumentos salariais para manter o seu poder de compra. Só quem tem mais poder dentro das empresas é que o garante. Ao recusar aumentos salariais pelo menos em linha com a inflação e medidas de combate às desigualdades (como o reforço da progressividade fiscal ou a definição leques salariais máximos para as empresas), a política económica do governo está a acentuar esta tendência.
Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.
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