Um país com centenas de milhares de cidadãos sem médico de família e com incapacidade crescente de atrair professores para a escola pública, tem um ministro das finanças "socialista" a vangloriar-se de ter excedente orçamental e diminuir a dívida pública em 11%. É distópico.
Fá-lo com sacrifício dos mais elementares direitos constitucionais e orgulha-se disso. Ser cidadão na nossa democracia tem de significar ter acesso a escolas e cuidados de saúde decentes. Eles são hoje piores do que há 10 anos. E ele vangloria-se, deslumbrado.
Sobre o BCE nos conduzir a todos para o abismo, através de uma política selvagem de aumento de taxas de juro, muito criticada internacionalmente, não fala. Só no dia de hoje, Stiglitz e uma ex-diretora de investigação do BCE vieram criticar a política de terra queimada que constitui a atual orientação da política monetária (aqui), com efeitos injustos e mais do que duvidos no combate à inflação. Mas Medina nada diz. Mesmo que isso encareça o serviço da dívida e atire milhares para situações precárias com o pagamento de empréstimos. Tudo isto com a conivência da comunicação social, incapaz de fazer perguntas sobre o que de verdade importa.
Vamos sendo embalados na novela dos casos e casinhos, que, sendo relevante no plano ético, não explica nada de essencial sobre o colete de forças político e económico em que estamos enredados. Para gáudio pouco disfarçado da extrema-direita, a quem só a imagem de corrupção sistémica interessa, para ocultar que, no essencial (na integração europeia, nas leis laborais e fiscais), é a maior apoiante do sistema que nos trouxe a este modelo de desenvolvimento esgotado. A história da integração europeia no seu modelo neoliberal reforçado pós-Maastricht é a história da divergência dos estados sociais, da produtividade e dos salários entre o centro e a periferia. E nisso todos, da extrema-direita ao centro-esquerda, são cúmplices.
Nada disto é um acaso. Pôr-nos a discutir o acessório e afastar o essencial da esfera pública é a maior vitória do neoliberalismo. O que conta é externalizado para organizações independentes, outra forma de dizer não democráticas. A democracia nacional nada manda. Por isso, fica implícito, nem vale a pena discutir. Resta o pântano onde medra o fascismo.
Quanto mais perdurar a complacência dos eleitores à esquerda com o fosso entre os valores que o PS apregoa e os atos que pratica maior será a degradação. Bater com a mão no peito em favor do SNS e da escola pública não basta se depois nada se faz para preservar a sua qualidade. Farta de maus serviços públicos condenados a serem maus pelo subfinanciamento crónico, a população deixará de acreditar no potencial da gestão democrática dos serviços essenciais.
Milhares estarão recetivos ao canto de sereia dos que se aprestam na sombra para concretizarem um sonho negro com mais de cinquenta anos: colocar a saúde e a educação a serem também guiadas pela acumulação do lucro, afastadas de qualquer subordinação aos objetivos democráticos. Mercantilização plena de duas fatias muito lucrativas, porque essenciais à vida e ao desenvolvimento.
Nada disto é original. David Harvey, geógrafo marxista, chamou-lhe "accumulation by dispossession", o que, numa tradução livre, se pode designar por "acumulação por espoliação". Designa a forma como no modelo de acumulação neoliberal em economias maduras, o capital procura desesperadamente penetrar em setores com grande potencial de rendibilidade, na sua maioria sob administração democrática desde meados do século XX (depois do 25 de Abril, no caso português). Depois de criarem uma ambiência macroeconómica que obriga ao estrangulamento dos Estados Sociais (o que foi Maastricht e a integração num euro forte se não isso?), vão convencendo os governos a entregarem-lhes a fatia de leão desses setores, amiúde com contratos que garantem financiamento público que garantem taxas de juro acima de todos os outros setores da economia, se ajustado pelo risco, sempre muito baixo. Financiamento que teria salvo os sistemas públicos se usado atempadamente. O que Medina está a fazer é a poupar hoje, para arruinar sistemas públicos hoje, deitando o nome da gestão democrática na lama, para que a direita coligada com a extrema-direita os entregue aos privados no futuro, com contratos com elevada transferência de recursos públicos para o setor privado. Como bons habitantes de uma periferia, estamos apenas a ter as ondas de choque de processos que já foram estudados e identificados em economias como a britânica, onde a degradação do seu Serviço Nacional de Saúde e a sua privatização às parcelas é de tudo isto um exemplo gritante.
Isto não vai acabar bem. Para quem é de esquerda, para quem acredita no papel emancipador dos serviços públicos. Mas também para os democratas, em geral. Os tempos são perigosos. A irresponsabilidade da fachada socialista que nos governa é dolorosa de assistir.
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