quinta-feira, 25 de junho de 2009

Economia do Conhecimento - Notas



Foi interessante assistir à entrevista que o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, Nuno Crato, deu esta semana a Mário Crespo no Jornal das 9 da SIC. Não tanto por causa dos exames nacionais (ah!... eis algo que ainda é "nacional", ao contrário do peixe, da carne das batatas, da fruta...), mas mais por causa de uma afirmação lateral. Disse ele, entre outras coisas, que as ciências sociais que são verdadeiramente científicas – como a sociologia, desde que esta queira conhecer os problemas "reais" das pessoas, com estatísticas… - distinguem-se das outras ciências sociais, por serem estas apenas ideologia.

A minha primeira inquietação decorre do facto de, aparentemente, não ter ocorrido a Nuno Crato que esta sua posição de princípio possa ser ela própria considerada pura ideologia e não ter qualquer fundamentação de natureza científica. Ou então ocorreu e não o preocupou. Mas não haverá nisso grande problema, pois a matemática é apenas a linguagem da ciência – está para esta como uma película de filme está para o Couraçado de Potemkin. A emergência do sentido, enquanto estrutura dissipativa, não é apenas uma “camada” que se sobrepõe a um qualquer hardware – seja humano, animal ou cibernético. É preciso explicar aos herdeiros da Santa Aliança neo-positivista que o holismo não é uma xaropada new age que necessita ser desmascarada, mas sim um princípio epistemológico devidamente calibrado teoricamente e utilizado com grande proveito nalgumas áreas das Ciências Sociais e das Humanidades. Estas produzem saberes tão importantes como o das outras ciências. É errado não o reconhecer.

A minha segunda inquietação decorre do princípio de que a ciência é sempre filha do seu tempo. No momento actual, com a genética, as biotecnologias e toda a panóplia de armamentos de nova geração, de medicamentos e produtos alimentares, vive-se uma autêntica mutação antropológica (Dufour) que resumiria numa expressão: tendemos a existir alienados da nossa própria humanidade – condenados ao circo do espectáculo com a omnipresente indústria de entretenimento e desinibição (Sloterdijk), a violência banalizada nos ecrãs que crepitam em cada lar, por toda a parte, nos transportes públicos, nos cafés, nos concertos, na indústria, nos serviços, no sector financeiro… consolas com números – oh sim, muitos, muitos números... Mas quando se tenta separar a ciência do mundo dos que a praticam, produzem, transmitem e consomem, então, temos uma vez mais pura ideologia, promovendo a separação do que é “pura abstracção formal”, “verdade”, “bem” – que é também a separação da elite, pela descontextualização (Polanyi, Giddens) dos saberes, pela destruição criativa reformadora e fermentadora de inovação, promotora de flexibilidade, de fluidez... Graças ao dogma da imaculada escassez, nada deverá obstar aos fluxos que suportam o sistema-mundo e alimentam a bolha da especulação, da ficção mercantil generalizada, com a chocante desigualdade, a guerra e a fome... E a tecnociência está aí, ao serviço de quem pague mais e estimule a competitividade. Os mesmos a quem convém uma concepção dogmática, positivista e fechada da ciência. Até o nuclear está de regresso, com novos argumentos, velhos defensores e recém-convertidos - que se pretendem sem tabus e sem ideologia.

Se tudo o que acabo de escrever nesta nota não for estatisticamente razoável, então, é melhor que outros se preocupem e passem a tomar mais atenção aos modos de que se reveste hoje o policiamento epistemológico ostensiva e arrogantemente exibido pelo positivismo dogmático neste início de século conturbado. Em plena crise global.

13 comentários:

PR disse...

Caro Francisco,

«A minha primeira inquietação decorre do facto de, aparentemente, não ter ocorrido a Nuno Crato que esta sua posição de princípio possa ser ela própria considerada pura ideologia e não ter qualquer fundamentação de natureza científica»

Significa isto que o seu post também é ideológico?

Se sim, será que lhe devo conceder o valor que atribuo a qualquer outra tese com pretensões de verdade mas que no fundo é apenas politiquice barata?

Tiago Santos disse...

Penso que a questão é quase essa PR...Até as ciências naturais tipo física e química e biologia não são tão exactas como o senso comum diz.

Existem sempre contextos que modelam qualquer descoberta científica e ninguém chega a verdades absolutas...

PR disse...

«Existem sempre contextos que modelam qualquer descoberta científica e ninguém chega a verdades absolutas...»

Espero que não aplique esse critério epistémico quando tiver de decidir entre optar pelas prescrições do médico e as recomendações do astrólogo.

Carlos Almeida disse...

Caro PR,

"..Espero que não aplique esse critério epistémico quando tiver de decidir entre optar pelas prescrições do médico e as recomendações do astrólogo.."

Da parte que me toca, usarei as prescrições do médico se me doer o pé e as recomendações do astrólogo se me doer a alma. Mas percebo que há quem prefira as prescrições de um neurocirurgião em caso de angustia.

Anónimo disse...

Mas você ainda não percebeu que o Crato é uma besta?

Anónimo disse...

Como pessoa com alguns conhecimentos de matemática (e muito interesse nas áreas sociais), não posso deixar de comentar.
Os matemáticos (em geral) sofrem de uma arrogância típica porque acham que a sua ciência é especial e a melhor. Depois há as engenharias, que é para os fracos que não "aguentam" a pureza da matemática. A seguir vêm as ciências puras:químicas, biologias, geologia, etc... E depois, lá bem no fundo, vêm as ciências sociais, que para um "bom" matemático nem são ciências.
O problema surgiu quando os matemáticos notaram que as ciências sociais usam ferramentas matemáticas: então os matemáticos decidiram dividir as ciências sociais em duas, aquela que é pura, boa e que usa a estatística e aquela que é quase charlatanice que não usa estatística. Mas este assunto fica resolvido facilmente, porque um bom matemático sabe que estatística não é bem matemática... é uma coisa lá perto...

A história da divisão das ciências por uma classificação parva de conversa de café, torna-se mais complicada quando vemos filósofos, sociólogos, engenheiros e matemáticos a trabalhar juntos (nas neurociencias, por exemplo, em robótica, outro exemplo), e agora temos matemáticos dos "bons" (aqueles que estudam funcoes, analise, geometria, logica, etc) a trabalhar com pessoas que nem ciência fazem!

Mas... não condenemos apenas o Prof. Nuno Crato, este é o pensamento da maior parte da comunidade matemática Portuguesa. No entanto, o Doutor Nuno Crato tem o especial gosto de ter o rei na barriga, o que, para alguém com a sua visibilidade, não lhe fica lá muito bem... Mas acreditem, há coisas piores por aí, bem piores...

Porfirio Silva disse...

A prometer conversas futuras: filosofia da ciência.
Abraço.

P disse...

Tresanda a pós-modernismo.
Gosto bastante deste blog, mas estas escorregadelas pós-modernas revelam um ressabiamentozinho...

Zé Miranda disse...

http://profundaignorancia.blogspot.com/2009/06/manifesto-anti-crato-ciencia-e.html

Francisco Oneto disse...

A todos agradeço os comentários.
Duas brevíssimas notas:

Se admitir que "ideologia" não se reduz à ideia de "falsa consciência", então sim, o meu post é clara e assumidamente ideológico - tal como, aliás, grande parte da ciência que se pratica por aí e que dificilmente pode ser entendida como um domínio irrepreensivelmente neutro a qualquer contaminação "exterior".

Se algo aqui tresanda a pós-modernismo isso deve-se a um erro de paralaxe. Os pós-modernos são uns chatos, mas não vejo grandes vantagens em olhar para eles como um exterminador olha para um insecto. Pessoalmente, sou apenas anti anti-posmodernismo - fundamentalmente, porque reconheço as virtualidades heurísticas do princípio segundo o qual todas as hermenêuticas podem ser consideradas simultaneamente necessárias e insuficientes.

Anónimo disse...

Ahah, o pessoal das ciências sociais fica todo picadinho com estas bocas, e levam logo sempre para o relativismo do costume que tudo é socialmente construido e subjectivo. Enfim, as tretas do costume...

... disse...

Boa noite. Bem, tudo o que li da parte do sr. francisco parece-me muito razoável e bem estruturado. Eu próprio sou um aluno do iscte, estando a terminar o curso de economia. Tive como professores algumas das pessoas que aqui escrevem. Estas ideologias defendidas por vários ramos tem sempre o seu q.b de aceitabilidade. Nada é totalmente conclusivo. Eu apesar de achar o prof Nuno Crato uma pessoa muito inteligente na sua area, devo frisar uma coisa que ele próprio se esquece, mas que também os seus criticos se esquecem. Os numeros transmitem sinceramente aquilo que desejamos.. portanto, nada será totalmente conclusivo para a generalidade, mas o é para cada um de nós enquanto seres individuais. Acho que como se costuma dizer, cada macaco no seu galho! A magia das ciencias sociais é tanto a sua metodologia como os auxilios que recebe das ciencias matematicas. Portanto, sinceramente, sao duas coisas que têm de andar juntos e nao a criticar-se mutuamente.

Cumprimentos
...

C. disse...

Mas alguém me explica porque é que, tantos anos depois, ainda estamos submersos no catecismo positivista, fiéis (e até apóstolos) de uma teologia da ciência?
O que tem isso da "Ciência" de tão extraordinário? Porque será que os grandes sacerdotes da teo-ciência demonstram nunca saberem pevide de filosofia e de epistemologia? (o que é tão essencial para compreender a ciÊncia como ter oxigénio para respirar).
Será que ainda se admite a suprema imbecilidade de se considerar que só a ciência é conhecimento e que o contrário de ciência é ignorÂncia?
Porque é que, tantos anos depois do legado do físico Kuhn e de tantos outros filósofos (desde Hume a Popper, et alii) ainda se oferece à palavra "ciência" apenas significados positivos e insofismáveis?
Eu não sou cientista (numeral, fisical ou social). Não passo de um apanhador de bonés, mas quando ouço dizer que as ciências sociais não são ciências só me apetece dizer "Ainda Bem". Seria desumano e triste viver num mundo desenhado pelos sacerdotes da ciência, onde até as emoções e os sentidos não passariam de números e toda a nossa existência se resumiria à tarefa irrealizável de arrumar os sonhos em caixas etiquetadas.
Afinal serão as humanidades que explicarão o ódio de estimação do dr. Crato pelos outros e não a sua ciência. E sem necessitarem de fazer contas!

(A propósito da observação da Daniela, diria que a Matemática também poderia ser para os fracos que se receiam perder na floresta dos sonhos. Felizmente, Leonardo da Vinci não se dedicou apenas à matemática.)