quarta-feira, 10 de maio de 2023

Infelizmente, ainda não conseguimos livrar-nos do BCE


As famílias portuguesas, espanholas ou finlandesas que se endividaram junto dos bancos e assinaram contratos de crédito indexado a taxas de juro variáveis (euribor) “estão a sofrer” diretamente o impacto das subidas de taxas decididas pelo Banco Central Europeu (BCE), mas “infelizmente, não as podemos aliviar”, disse a presidente do BCE, Christine Lagarde, lê-se no Dinheiro Vivo.

É uma infelicidade, de facto. Mas uma infelicidade evitável.

No final de 2021, a inflação começou a subir, tendência que se reforçou com o início da guerra na Ucrânia, em Fevereiro de 2022. Em resposta, os bancos centrais adotaram uma política monetária fortemente restritiva, aumentando as taxas de juro de perto de zero para cerca de 5% e retirando reservas de circulação através de operações de venda de ativos (obrigações públicas e privadas e ações de empresas privadas) que tinham no seus balanços.

Há muito que contestamos que uma política monetária restritiva possa controlar este surto inflacionário a um preço socialmente aceitável. Um pouco por todo o lado, os salários reais diminuíram. A instabilidade instalou-se no sistema financeiro. O aumento dos preços reflecte claramente o impacto de margens de lucro historicamente elevadas e óbvios estrangulamentos da oferta.

Como se diz aqui, nestas condições, deixar o controlo da inflação aos bancos centrais é como pedir-lhes que resolvam os problemas de oferta gerados por uma má colheita agrícola. Só políticas específicas dirigidas ao aumento da produção e ao controle das margens de lucro em sectores estratégicos, e não o elevar do preço do crédito, podem surtir efeito.

No relatório de 2022 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development, UNCTAD) já se avisava: “As campainhas estão a soar” (...) O mundo está a caminhar para uma recessão global e uma estagnação prolongada, a menos que alteremos rapidamente o actual rumo das políticas de aperto monetário e orçamental nas economias avançadas.”

Agora recentemente, em Abril último, a UNCTAD tornou público um novo relatório; nele pode ler-se:

“[A] incapacidade de distribuir vacinas eficazes a nível mundial prolongou a pandemia, permitindo que alguns dos fatores mais temporários se mantivessem, acabando estes por interagir com um aumento dos preços das matérias-primas, desencadeado em grande medida nos mercados de futuros. Com o início da guerra na Ucrânia, os preços de algumas matérias-primas subiram em flecha, aumentando ainda mais as taxas de inflação, especialmente na União Europeia (...) Em consequência desta miopia política, os preços em alguns sectores-chave com uma incidência direta no custo de vida, como o gás natural, os produtos alimentares e o sector da habitação para arrendamento, continuaram a aumentar, a par de um forte aumento das margens de lucro (...) Nos casos em que existem dados disponíveis, como na União Europeia, no Reino Unido e nos Estados Unidos, há indícios claros de uma contribuição significativa do aumento das margens de lucro para a inflação após a pandemia.”

Em conclusão, o referido relatório continua afirmando agora que “a inflação continua a ser impulsionada pelos preços internacionais dos produtos energéticos e alimentares (...)” e que “os países que passaram por uma rápida liberalização nestes sectores críticos e os que já apresentavam vulnerabilidades financeiras, continuam a ser os mais expostos (...) e que, assim sendo, “[n]estas circunstâncias, a opção dos principais bancos centrais de aumentar rapidamente as taxas de juro não conseguiu combater as principais causas da inflação (...) e que, “[p]or conseguinte, é necessário reconsiderar os instrumentos de política económica para a estabilidade dos preços, mesmo que os preços das matérias-primas comecem a descer”.

Ao contrário do que afirma o alargado, mas errado, consenso entre macroeconomistas neoclássicos e e banqueiros centrais, o tipo de inflação que vivemos não pode ser debelado com políticas monetárias e orçamentais restritivas sem incorrermos num custo social proibitivo. Sem acentuar a desigualdade, sem causar disrupções nos mercados de energia, sem acentuar a instabilidade do sistema financeiro, sem colocar em causa a solvabilidade das famílias, das empresas e dos Estados, sem impossibilitar o investimento necessário ao combate com sucesso das alterações climáticas.

Como afirma Ann Pettifor, a premissa de que não se pode confiar nos políticos democraticamente eleitos para gerir a economia, mas que se pode confiar em burocratas não eleitos e que não têm de prestar contas, não só não foi provada como é manifestamente errada.

Mobilizando Stefan Eich, Petiffor continua: “Muito do que se passa como "despolitização" seria mais correctamente descrito como a desdemocratização da política monetária, que deveria, ela própria, ser sujeita a um escrutínio democrático. (...) as tentativas de "despolitizar" o dinheiro assentam numa contradição performativa - um truque de magia - na medida em que negam que tais apelos sejam, eles próprios, movimentos políticos dentro da política do dinheiro.”

William Mitchell, por outro lado, diz-nos o seguinte: “O público mal sabe que há uma grande experiência global a ser conduzida pelos bancos centrais que nos permite reflectir sobre a veracidade das teorias e abordagens económicas concorrentes e alternativas. Actualmente, a maioria dos bancos centrais está a aumentar as taxas de juro, como reflexo do predomínio da prioridade dada pelos novos keynesianos [neoclássicos] à política monetária como instrumento de política contra-estabilizadora e anti-inflacionista, em detrimento da política orçamental. Mas um banco central não está a seguir o exemplo - o Banco do Japão (BoJ). O BoJ não alterou as taxas, mantém a sua política de controlo da curva de rendimentos e o governo está a expandir a política orçamental. O que está a fazer é diametralmente oposto à abordagem do chamado novo keynesianismo. Dispomos agora de dados suficientes para avaliar os méritos relativos das duas abordagens. O Japão regista uma inflação mais baixa, não há crise cambial e os seus cidadãos estão em melhor situação em resultado da sua política monetária e orçamental”.

O Japão. O incontornável Japão.

Somos assim, novamente, recordados da lição fundamental da economia política: “as leis naturais da economia, que parecem existir em virtude da sua própria eficiência, não são na realidade senão projeções de relações sociais de poder que se apresentam ideologicamente como necessidades técnicas.”

1 comentário:

António Alves Barros Lopes disse...

“infelizmente, não as podemos aliviar”, disse a presidente do BCE, Christine Lagarde, lê-se no Dinheiro Vivo.
Esta faz-me lembrar a celebre questão de saber qual era a alternativa a Alcácer-Quibir.
- Era lá não ir!
E a melhor resposta, à Lagarde, seria informá-la de que a alternativa à asneira é não a fazer!