terça-feira, 23 de maio de 2023

Cavaquismo


Já perdi a conta ao número de pessoas que insultam Cavaco à boleia da sua provecta idade, uma prática verdadeiramente lamentável. Já perdi a conta ao número de pessoas que criticam Cavaco pela sua suposta incultura, uma prática verdadeiramente elitista e equivocada (publicou mais de uma dezena de livros...). Já perdi a conta ao número de pessoas que continuam a subestimar aquele que é, desgraçadamente, o mais bem-sucedido político da democracia portuguesa. Assim, não vamos lá. Precisamos de cabeça fria e de coração quente. 

É claro que são mais os que denunciam, e bem, as contradições de Cavaco, o seu azedume e ressabiamento, as formas de economia política que favoreceu, os padrões desiguais, plutocráticos e dependentes a que os seus governos e influência deram origem. Valha-nos isso. Em algumas páginas de O Neoliberalismo não é um Slogan, adotei o método de levar a sério o intelectual público consequente, economista resolutamente político, apesar dos disfarces ideológicos, com uma escrita clara e depurada. Dois parágrafos (com referências omitidas): 

Em 1997, um professor catedrático da FEUNL [Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa] e também da UCP [Universidade Católica Portuguesa], Aníbal Cavaco Silva, publicava um livro intitulado Portugal e a Moeda Única, com um prefácio de um entusiasmado Jacques Delors. Se Margaret Thatcher reconheceu no Reino Unido que Tony Blair tinha sido o seu maior triunfo, Cavaco Silva, a sua versão portuguesa, fez ali o mesmo, nos termos de uma cultura de economia política que ia para lá do keynesianismo da síntese que expôs nos seus manuais de política orçamental: «A mudança de Governo, em Novembro de 1995, não perturbou a paridade do Escudo, pois a preferência pela estabilidade nominal tinha sido já assumida pelo partido vencedor [PS] e a perspectiva de continuidade da política económica nas suas linhas fundamentais já tinha sido antecipada pelo mercado». A política económica era agora assumidamente antikeynesiana, dados os constrangimentos monetários supranacionais em construção. 

Para Cavaco Silva não havia alternativa às Reformas da Década, título de outro livro, publicado dois anos antes e relevante para a compreensão das «13 grandes reformas» realizadas pelos seus governos, em contraste com «os excessos e desvarios do período revolucionário». Vistas de forma explicitamente articulada «pela sua incidência sobre as relações de fundo da economia e da sociedade portuguesas», estas reformas «constituíram um projecto coerente e global de modernização». Este projeto neoliberal, embutido numa narrativa de modernização, tinha, como sempre, uma dimensão negativa — com as reformas, «o colectivismo e a estatização instalados em 1975 começaram a ser destruídos», da reforma agrária, desadequada face à realidade da Política Agrícola Comum, às privatizações na indústria e nos serviços — e outra positiva: criar um «clima de confiança» e de «racionalidade económica», alinhando a economia política portuguesa com «o quadro da economia aberta e concorrencial que caracteriza a Europa comunitária». Isto implicava, entre muitas outras dimensões, alterar os direitos e as obrigações na relação social de fundo da economia, a laboral, aumentando de forma explícita a liberdade patronal e correlativamente atenuando «o proteccionismo exacerbado em prol do trabalhador por conta de outrem». Não por acaso, e como confessaria nas suas memórias, esta foi a questão que mais dores de cabeça lhe deu. 

Faz realmente falta uma biografia intelectual e política de Cavaco e dos tempos neoliberais que são os seus. António Araújo, nas direitas, seria sem dúvida a melhor pessoa, pela sua proximidade e pelo que já nos deu a ver em alguns apontamentos ricos. Nas esquerdas, conheço várias, claro. 

Cavaco faz parte da história deste presente em que insiste intervir. É nosso dever compreendê-lo, até para melhor o combater (e aos seus discípulos).

5 comentários:

José Cristóvão disse...

E uma dessas 13 reformas, claro, foi a suicida abertura da televisão à iniciativa privada, por sinal a pior de todas as políticas do Cavaco e a que menos é criticada...

TINA's Nemesis disse...

Cavaco Silva é de facto um medíocre, não é porque ele escreveu mais de mais 10 livros que o torna menos medíocre, estou-me a referir à mediocridade do seu carácter.
A mediocridade do carácter de Cavaco custou, e ainda custa, muito caro à população portuguesa.
Pelo aquilo que eu noto já não há muita gente a defender Cavaco, o tempo quando se defendia muito uma claramente exagerada pureza do mesmo acabou, e isto é positivo, é um Portugal a evoluir, a identificar a pelintrice e a não tolerar mesmo daqueles pelintras que, com a ajuda da comunicação social, inventaram uma persona impoluta que não corresponde à personalidade verdadeiramente existente.

Anónimo disse...

Grande João Cristóvão, manter o monopólio público na TV, já agora com Manuel Maria Múrias em presidente.

Lembro-me bem desses tempos, publicavam o que queriam e o resto não existia.

Já agora, proibiam a internet?

António Alves Barros Lopes disse...

Essa é boa!
Cavaco Silva que desmantelou irreversivelmente o País. Cuja politica desequilibrou, ainda mais, Portugal, economicamente, socialmente e territorialmente. Cujas reformas mandaram ás malvas as pescas e agricultura tradicional e familiar que ocupava e cuidava do território. Desarticulou a ferrovia para depois dizer que gostava muito de andar de combóio. Cujas reformas conduziram ao despovoamento do interior e à litoralização do País, descalabro de que tarde ou nunca recuperaremos.
Ver
https://lopesdareosa.blogspot.com/2010/10/recandidaturas.html

José Cristóvão disse...

Não, Anónimo, o meu ideal seria João Soares Louro, o melhor presidente que a RTP alguma vez teve. Alguém que teve a visão de atualizar a RTP para a cor e que transformou a RTP2 num canal de cultura e ciência e boa informação.

Quero uma televisão assim, e não uma escravatura mental de crime, escândalos, reality, pimba e bola.

É demasiado pedir?

E, sim, sou a favor da CAV e considero que abolir a taxa de radiotelevisão (a original) foi um erro. (Um erro logicamente posto à prova quando a taxa de radiodifusão sonora - a que foi alargada para dar origem à CAV - foi um erro.)

(Já agora, sou José e não "João".)