"Se é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos..."
Periodicamente, António Costa agita o risco - verdadeiro - da ascensão da extrema-direita. Mas para essa nova realidade, os dirigentes do PS revelam dificuldade em reconhecer a sua própria responsabilidade.
Desta vez, disse ele (ver aqui):
“Sempre, ao longo da história, que a classe média se sentiu insegura e abandonada, foi quando a extrema-direita e o radicalismo conseguiu crescer”. “A classe média é quem assegura a existência da democracia. É quando a classe média se sente abandonada, desamparada, insegura, que nós temos o terreno fértil para os radicalismos se desenvolverem, para o populismo crescer e para a extrema-direita se tornar uma ameaça”. Não se pode “olhar só para os mais frágeis, só para aqueles que estão numa situação de pobreza”, reiterando que é necessário “defender as classes médias” para “proteger a liberdade e democracia” europeia. “Se nós queremos defender a nossa democracia, a nossa liberdade, se nós queremos mesmo combater a extrema-direita, nós temos de dar oportunidades à classe média e garantir às novas gerações que vão ter uma vida melhor do que os seus pais”. Essa “é a esperança e o sentido de futuro” que é preciso garantir para as novas gerações. “Sim, não chegámos lá, sabemos que é uma grande caminhada, mas, há 200 anos, quando o movimentos socialista surgiu, estávamos muito mais longe do que estamos hoje”. “Passaram muitos anos, mas o socialismo continua a ser uma ideia muito jovem e, por isso, temos uma longa vida à nossa frente”. Antes do discurso de António Costa, num painel intitulado “Os socialistas cumprem!”, o comissário europeu do Emprego e Direitos sociais e dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores do Luxemburgo, Nicolas Schmit, elogiou a governação do PS : “Caro António, acho que mostraste que há uma alternativa socialista que funciona, porque a austeridade não funcionou, o neoliberalismo não funcionou… O que eles produziram foi muitas pessoas no desemprego, na pobreza”. Costa “mostrou que as políticas democráticas sociais, a solidariedade e a inovação social não são produtos de sonho, mas políticas concretas feitas por socialistas e sociais-democratas”. “As políticas sociais que estão a ser desenvolvidas, com sucesso, em Portugal e Espanha, mostram que se pode ter uma economia forte, inovadora, baseada na solidariedade e, ao mesmo tempo, políticas sociais que tentam não deixar ninguém para trás”.
Deixe-se passar o conceito difuso de classe média - que esbate da equação algo tão claro na teoria marxista do valor (ver aqui e, mais recentemente aqui) - e pense-se apenas nas razões dessa classe para se sentir "abandonada, desamparada, insegura". Agora, enumere as políticas seguidas ao longo de 40 anos pelo Partido Socialista - e omita da discussão o mau uso do conceito Socialista.
Olhando para trás, discuta-se a clara responsabilidade do PS de Mário Soares no enraizamento das ideias do FMI em Portugal na década de 70 e 80 do século XX. A importação dessas ideias foi combinada com a CEE como forma de obstar ao receio de uma revolução em Portugal (um segundo Kerensky que se recusou a sê-lo) e acabou por colocar em terra os primeiros tijolos de um modelo de desindustrialização (de "desoperarialização" social) e de baixos salários, desenhado para este canto ocidental (calcanhar da NATO) pelas políticas de cariz neoliberal, de matriz internacional ou europeia.
O PS de Constâncio abriu, como o defendia Cavaco Silva, as portas da Constituição às privatizações neoliberais que deram cabo de um poderoso sector público, alavanca possível de um desenvolvimento planeado do país. Em vez disso, veio apenas a sua venda a capitais estrangeiros e a sua desarticulação. O PS de Guterres aderiu a tudo o que implica a criação neoliberal de uma moeda única europeia, seduzindo os ratinhos trabalhadores da classe média com o toque da aveludada flauta das baixas taxas de juro (com que pudessem comprar carros e casas), mas sem que percebessem que, a partir daí, os ajustamentos económicos se fariam através do desemprego e dos baixos salários. O PS de Sócrates aderiu ao desequilibrado modelo laboral - introduzido pelo Governo Durão Barroso e pelo seu raivosamente anticomunista ministro do Trabalho, Bagão Félix - ao criar um Código de Trabalho nascido no ventre dos escritórios de advogados e das confederações patronais, cujo corpo legal retirou aos trabalhadores da dita classe média o amparo do Estado numa relação desigual. Estes efeitos foram ainda ampliados pelo rolo compressor legislativo do Governo Passos/Portas com a sua legislação de Agosto de 2012. O PS de Costa, preso pela rédea europeia, pouco fez para reverter essas normas gravosas da legislação laboral de Passos Coelho - justificando essa atitude política com a "estabilidade legislativa", na verdade antes desestabilizada a favor do patronato. Tudo isso consolidou o embaterecimento do valor do trabalho, a desregulação dos tempos de trabalho (minando a histórica regra de 1919 de 8 horas de trabalho, 8 horas de ócio e 8 horas de sono - ver aqui Caderno nº13) e contribuindo para esvaziar a verdadeira barreira à extrema-direita - o movimento sindical. A frágil agenda do Trabalho Digno e a adesão à tese patronal de que os aumentos salariais aceleram a "espiral inflacionista" deixam muito a desejar nesse capítulo.
A direita e o PS seguiram, pois, políticas que enredam a economia portuguesa numa teia de actividades de baixa produtividade e baixos salários e que o arrastam para o fundo, para a pobreza dos seus habitantes e para uma parte cada vez menor na rerpartição do rendimento criado.
Como se não bastasse, o Governo Costa aceitou as estúpidas metas orçamentais do Tratado Orçamental - ainda que dizendo discordar delas - e adoptou o slogan da direita de "contas certas", achando que é possível conciliar essa austeridade com a manutenção do Estado Social. Mas nunca reconhece que, regras neoliberais desenhadas precisamente para esvaziar o Estado Social, estão precisamente a pôr em causa os direitos à saúde e educação públicas que o PS diz defender com unhas e dentes.
Para tornar o modelo viável e camuflar os elevados défices externos, o PS e a direita tiveram de promover o turismo como estratégia nacional. Deixou-se entrar - sem peias e até com apoios fiscais - os poderosos ricos estrangeiros no mercado laboral e da Habitação, ao mesmo tempo que compensou a crescente emigração de nacionais qualificados com a barata e desprotegida imigração de pobres do mundo, expulsando os pobres da classe média - nacionais e estrangeiros - para os arrabaldes das grandes cidades e impedindo-os de ter uma habitação condigna. A dita classe média dos trabalhadores vive cada vez pior num mundo cada vez mais impossível.
Se António Costa é sincero nos seus receios sobre a ascensão da extrema-direita (e o discurso assim lhe sai), terá porém que mudar muito na sua política. Teria de se virar do avesso. E o problema - mais grave! - é que este PS já não vai ser capaz de o fazer.
Por isso, as palavras de António Costa surgem apenas da cegueira de quem foi enredado num mundo do qual já não consegue sair. E a quem já só sobram as boas palavras.
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