Esta semana, numa notícia do Público, discutem-se os motivos pelos quais a taxa de desemprego tem permanecido relativamente baixa na economia portuguesa após a pandemia. Embora já se tenha registado uma ligeira subida do desemprego, a verdade é que a taxa de desemprego se tem mantido à volta dos 6% nos últimos anos.
Os economistas ouvidos pelo Público - Pedro Martins, ex-secretário de Estado do governo de Passos Coelho, e João Cerejeira, que tem participado em eventos da Iniciativa Liberal - dizem que Portugal poderá estar próximo de uma situação de pleno-emprego, em que o desemprego atinge o seu nível mais baixo: a "taxa de desemprego natural", um conceito que é popular entre a maioria dos economistas. No entanto, apesar de ser sempre referido como algo autoevidente, o conceito tem muito pouca sustentação teórica e ainda menos empírica. E tem profundos impactos na nossa vida coletiva.
A teoria, originalmente desenvolvida por Milton Friedman, diz-nos que uma economia possui uma taxa de desemprego que depende das suas condições estruturais e da qual não é possível baixar sem provocar inflação. O motivo é o de que a taxa natural é o único ponto em que se compatibilizam as expetativas de trabalhadores e empresários sobre o seu rendimento real. Um desemprego mais baixo daria mais poder ao trabalho e levaria a maiores exigências salariais, levando as empresas a aumentar preços. Com a subida generalizada de preços, os trabalhadores exigiriam novos aumentos, obrigando as empresas a nova ronda de aumentos dos preços, e assim sucessivamente: o risco seria o de se gerar uma espiral inflacionista (de que temos ouvido falar bastante ultimamente).
A teoria diz-nos que, para baixar o desemprego evitando a inflação, os governos só podem remover "barreiras" no mercado de trabalho ou reduzir as expetativas salariais dos trabalhadores: ou seja, reduzir o seu poder negocial, a proteção no emprego, subsídio de desemprego, etc. É uma ideia que marcou o programa de ajustamento da Troika e que continua a estar presente nas recomendações do FMI a Portugal.
O principal problema deste raciocínio é o de olhar para os salários apenas como um custo para as empresas, sem ter em conta que estes representam, também, poder de compra e estímulo ao investimento. Como o investimento depende sobretudo da procura que as empresas esperam ter, um aumento da procura - por via de uma redução do desemprego e/ou de aumentos salariais - pode estimular o investimento e gerar ganhos de produtividade. Ou seja: a redução do desemprego e a subida dos salários não provocam necessariamente um surto inflacionista. Além disso, a teoria tem outros problemas, como o facto de assumir que as margens das empresas se mantêm naturalmente constantes, omitindo o conflito distributivo (uma crítica teórica mais exaustiva pode ser encontrada
aqui). Em resumo, a teoria é
tudo menos neutra.
A evidência empírica também é frágil. Alguns estudos recentes (
aqui ou
aqui) mostram que as estimativas da taxa natural feitas pela Comissão Europeia são pró-cíclicas: dependem mais das fases de expansão e recessão económica do que de características estruturais do mercado de trabalho. Ou seja, em vez de representar a taxa de desemprego que decorre de fatores estruturais da economia ("rigidez" da proteção laboral, do subsídio de desemprego, etc.) e que só pode ser afetada com reformas que atuem sobre esses fatores, há um enviesamento pró-cíclico.
O caso português sugere-o: a estimativa da taxa "natural" de desemprego da Comissão Europeia para Portugal tem seguido uma tendência relativamente alinhada com a da taxa de desemprego real. Ou seja, as estimativas refletem essencialmente as variações cíclicas da economia. Qual é o grande problema disto? É que, quando nos encontramos em contextos em que o desemprego real é maior, somos levados a crer que a taxa natural (da qual não podemos baixar sem inflação) é maior. Na prática, o enviesamento do cálculo funciona como forma de desencorajar medidas de combate ao desemprego.
Na Zona Euro, o problema agrava-se se tivermos em conta que a taxa de desemprego natural - e o PIB potencial, associado a esta - são as variáveis que a Comissão Europeia
utiliza para avaliar a margem de que os países dispõem à luz das regras orçamentais europeias.
Por partes: a estimativa da taxa de desemprego natural influencia a do PIB potencial - isto é, o produto que seria obtido se se registasse a taxa de desemprego natural, o que constitui a situação em que se considera que a economia está a operar em pleno de forma sustentável.
Se se sobre-estimar sistematicamente a taxa de desemprego natural, como parece ser o caso, o PIB potencial será sistematicamente menor (uma vez que corresponde a um nível de produto atingido com menor nível de emprego dos recursos disponíveis).
Isso faz com que a diferença entre o PIB real e o PIB potencial - aquilo a que os economistas chamam o "hiato do produto" - também seja menor.
O hiato do produto é, por sua vez, usado pela Comissão Europeia para calcular a sustentabilidade orçamental de um país. Como? As regras da UE focam-se no saldo estrutural: o saldo das receitas e despesas de um governo quando se excluem medidas extraordinárias e efeitos cíclicos. Para calcular os efeitos cíclicos, a CE usa a diferença entre o PIB real e o PIB potencial (o hiato, que indica a "fase do ciclo" em que estamos). Então: ao sobre-estimar a taxa de desemprego natural, subestima-se o PIB potencial e, em consequência, o hiato do produto. Os tais efeitos cíclicos calculados são, por isso, inferiores ao que se esperaria, o que faz com que o défice estrutural calculado seja maior.
De novo, olhemos para Portugal: as estimativas do hiato do produto da Comissão dizem que a economia se encontrava acima do potencial entre 2017 e 2019 e voltou a estar desde 2022. Faz algum sentido, tendo em conta os níveis de desemprego e subutilização do trabalho neste período? Todo o argumento é absurdo: não só não é credível que o suposto nível "natural" de desemprego na economia portuguesa tenha passado de 14% para 6% em poucos anos, como não há nenhuma justificação sólida para que consideremos os atuais 6% de desemprego demasiado baixos.
Em resumo: os
problemas associados ao cálculo destas variáveis levam a que o défice estrutural dos países seja sobre-estimado, indicando uma situação orçamental mais negativa e, por isso, um reforço das
restrições impostas pela Comissão à despesa pública. É preciso ter em conta que
nenhuma destas variáveis é observável: todas são conceitos cuja medição envolve várias hipóteses, é alvo de enorme controvérsia e nem as principais instituições chegam a acordo sobre a melhor forma de as medir. Mas as suas consequências são bastante visíveis.
O que é que podemos concluir? Essencialmente, que a taxa natural de desemprego é um péssimo guia para a política económica: o conceito tem fraca sustentação teórica e as tentativas de estimação empírica estão envoltas numa série de problemas.
A ideia de que existe uma taxa "natural" de desemprego serve para desencorajar políticas de promoção do pleno-emprego e favorecer a redução dos direitos laborais. Na Zona Euro, tem servido ainda para reforçar as restrições orçamentais dos países. Já é tempo de a abandonar.
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