domingo, 13 de outubro de 2024

Como se o blogue fosse um diário


Coimbra, 13 de outubro de 2024 

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de excepção’ em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como a nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de excepção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. 

Walter Benjamin, “Sobre o Conceito da História” [1940], in O Anjo da História, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017, p. 13. 

São onze horas de uma manhã luminosa de domingo e sento-me num banco, à sombra de uma magnólia, no Jardim Botânico, um dos mais bonitos jardins que conheço, talvez mesmo o mais bonito. Apesar do cuidado e de alguns melhoramentos, os efeitos do furacão Leslie, de 2019, ainda se veem aqui e ali, dada a austeridade perpétua. 

Estou à sombra, às onzes horas, de calções e t-shirt. Durante a hora e meia que aqui estou, passam por mim turistas norte-americanos - “look at the magnolias”, gritaram, com aquele entusiasmo uniformizado -, franceses, italianos e espanhóis. 

Não arrefeço, levanto-me simplesmente porque tenho fome. As alterações climáticas são reais, o capitaloceno é real. 

Parece que estamos num eterno Portugal dos Pequenitos, cada vez dependente de uma especialização turística insustentável e que nos menoriza produtivamente, reduzidos ao estatuto de semicolónia, com uma elite compradora, sem qualquer préstimo. 

Acabei de ler A Travessia de Benjamin, romance histórico, da autoria do norte-americano Jay Parini, sobre Walter Benjamin. Desde que li o ensaio “Sobre o conceito de história” que ando no rasto deste marxista, alemão e judeu. Li o ensaio com a ajuda de Michel Löwy e do seu método “talmúdico”. 

O romance, entretanto, transporta-nos para o tempo sombrio que foi o de Benjamin e para os contextos macro e micro históricos que culminam na sua trágica morte na fronteira franco-espanhola, em 1940. 

Infelizmente, o Benjamin de Parini parece ser, aqui e ali, inverosimilmente liberal ou estranhamente apolítico, como se estivesse nos EUA na década de 1990, em flagrante contraste com algumas das citações que marcam cada capítulo. Benjamim é aí visto na primeira pessoa e revisto por pessoas que com ele privaram, uma escolha que resulta para arquitetar imaginativamente alguém que, pelos vistos, era algo esquivo e muito indeciso. 

Benjamin assumiu uma leitura original do “materialismo histórico”, fórmula que este crítico radical da civilização capitalista e das suas barbáries usa. Ele sabia que “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer”. E o inimigo venceu, foi derrotado e venceu de novo, mas não de forma irremediável. Isso não existe, mesmo que os escombros se amontoem quando o anjo é arrastado e olha de frente, para trás, de costas voltadas para o futuro. 

À tarde anotarei estas e outras “ocorrências”, como aconselha Miguel Esteves Cardoso, algumas mais científicas, espero; jantarei e conversarei com o meu filho; e, mais à noite, começarei a ler as Teses ao Congresso do Partido com que simpatizo e com que empatizo. Haja esperança, apesar de tudo. E luta, certamente.

OE 2025: entre o simulacro e o logro, o teto de que não se fala

O Conselho das Finanças Públicas (CFP) publicou antes de ontem o seu parecer sobre as Previsões macroeconómicas subjacentes ao Plano Estrutural-Orçamental Nacional de Médio Prazo para 2025-2028 (POEN-MP), apresentado pelo XXIV Governo Constitucional na XVI Legislatura. 
 
A necessidade deste plano decorre do regulamento 2024/1263, uma das peças centrais do recentemente (mal) reformado quadro de governação económica da UE. 

Segundo este regulamento, os governos nacionais são obrigados a apresentar à Comissão Europeia um POEN-MP onde assumam aceitar despesas líquidas que respeitem um teto previamente imposto ao país, com total discricionariedade e opacidade, por aquela mesma Comissão Europeia, respaldada no Conselho Europeu. 


Trata-se, pois, essencialmente, de um cerimonial de efetiva subordinação política e certificação notarial, em que a Comissão exige aos governos nacionais um documento que contenha um compromisso da aceitação da sua imposição em matéria orçamental.

No parecer acima referido, o CFP vem agora afirmar que não conhece “os pressupostos necessários ao cálculo da trajetória das despesas líquidas, uma vez que não foram facultados ao CFP os pressupostos metodológicos utilizados no cálculo do compromisso da trajetória das despesas líquidas que constará no POEN-MP. O CFP também não teve acesso a essa trajetória, nem à trajetória de referência”. 

Estamos nisto. Esta discussão orçamental não passa de um simulacro mal orquestrado e a votação do OE 2025, decidido este no essencial pela Comissão e pelo Conselho, não será mais que um logro. 

Este novo quadro de governação económica da UE tem aqui sido contestado praticamente desde que viu a luz nascer e a denúncia da displicência e do secretismo antidemocrático da Comissão intensificou-se já no início de Agosto passado, momento em que escrevemos os dois parágrafos seguintes. 

Repare-se que a Comissão Europeia, guardiã mor desta distopia que transforma o país numa quase colónia, está na fase de fingir que negoceia com o governo e ainda nem sequer nos informou quanto do nosso dinheiro, afinal, nos autoriza a usar

De resto, se é certo que, quando a encenação acabar, saberemos, finalmente, que orçamento nos foi autorizado, não o é menos que nunca saberemos que pressupostos usou para chegar ao ditame. É segredo. Por design. De facto, por que razão havia de se permitir o escrutínio democrático das arbitrárias imposições de uma instituição supranacional com legitimidade indireta e viés neoliberal se podemos escudar-nos na ideia, obviamente enganosa, de que se trata de pressupostos técnicos para os quais não há alternativa?

Finalizando e sintetizando o texto de hoje, três considerações e duas perguntas. 

Os protagonistas do simulacro de discussão orçamental em curso desqualificam-se como atores políticos quando fingem que podem decidir o que já foi decido por Bruxelas; o parlamento, desprovido da capacidade para decidir em matéria orçamental, foi despromovido para um estatuto semelhante ao de uma assembleia municipal; e o CFF, impedido de fazer o seu trabalho por uma Comissão que, para evitar o escrutínio, se recusa a fornecer-lhe os pressupostos que usa para chegar às conclusões que nos impõe, torna-se redundante.

Seguramente que o povo que aqui vive e trabalha merece mais que isto. 

Assim se reforça, de uma penada legislativa, com mais um passo gigante, mas furtivo, em direção à integração federal, o estatuto de semicolónia do país, transformando a relação de Lisboa com Bruxelas/Frankfurt, no que à política orçamental diz respeito, numa relação semelhante à que anteriormente a Vidigueira tinha com Lisboa. 

Alguém imagina a direita alemã a permitir contribuições necessariamente muito avultadas para um orçamento federal? E alguém imagina um orçamento federal sem uma perda total da soberania democrática nacional?

Alguém se lembra de um debate público digno do nome acerca desta transferência de soberania do parlamento de Portugal para instituições supranacionais?

sábado, 12 de outubro de 2024

Troika neoliberal


1.
Com esta declaração retintamente antissocialista – o socialismo ou é o esforço para democratizar a economia ou não é nada –, Pedro Siza Vieira filia-se, sem surpresa, numa tradição de antigos ministros da Economia do PS que alinham pelo mais retinto diapasão neoliberal. A colonização dos partidos socialistas, social-democratas ou trabalhistas europeus é um processo já muito estudado, mas o papel da europeização é relativamente subestimado, como já defendi

2. Dizer banalidades neoliberais é o segredo para ter visibilidade mediática no PS. Álvaro Beleza, médico de direita que milita nesse partido como poderia militar no PSD, consistentemente peneirento, confirma esta hipótese. Veio dizer que o PS deve viabilizar a política de direita de Montenegro e que António José Seguro é um bom nome para as presidenciais: já se sente o entusiasmo popular com o regresso carismático das abstenções violentas. O espectro do PASOK-PSF paira por aí. 

3. Não podemos descer mais baixo na direita mediática do PS do que com Sérgio Sousa Pinto, tão arrogante quanto medíocre. Saiu em defesa de Maria João Avillez, claro, para lá do habitual relambório de que já só apanho ecos distantes: parece que está farto de convicções, o que não me espanta. A ética republicana, a básica igualdade perante a lei, é para os outros. Mais decadente é impossível.

Algo não bate certo


Procurando aparentemente dar um sinal de agrado aos proprietários, que não tardaram a aplaudir a intenção, o governo inscreveu, na proposta de OE, o propósito de adotar «as medidas necessárias para a conclusão dos processos de transição dos contratos de arrendamento habitacional anteriores a 1990». Para tal, e «de modo a repor a justiça no tratamento destas situações», comprometeu-se a assegurar, «aos arrendatários em situação de carência», o apoio necessário para «suportar a atualização das rendas».

Tudo leva a crer, portanto, que o governo se dispunha a descongelar as rendas antigas. Contudo, a secretária de Estado da pasta veio já esclarecer que o executivo não só não vai proceder ao descongelamento das rendas como não pretende alterar o regime em vigor. Do que se trata, segundo Patrícia Gonçalves Costa, é apenas «garantir um tratamento justo» a inquilinos e senhorios, assegurando a estes últimos «a eficácia do mecanismo de compensação» e «condições para que os imóveis se mantenham em bom estado e proporcionem melhor qualidade de vida aos inquilinos».

Dir-se-á, portanto, que estamos perante uma subsidiação das rendas antigas (visando compensar os senhorios) e não perante o seu descongelamento. Mas algo aqui não bate certo.

Por um lado, se apenas se trata de subsidiar as rendas antigas, então as mesmas não passam para o NRAU (Novo Regime de Arrendamento Urbano). Isto é, não são liberalizadas, não são descongeladas. Mas sendo assim, por que pretende o governo tomar «as medidas necessárias para a conclusão dos processos de transição dos contratos de arrendamento habitacional anteriores a 1990»? Transição para onde, transição para o quê?

Por outro lado, subsidiar as rendas antigas, em casos de carência, significa que o senhorio passa a receber pelas mesmas o respetivo valor de mercado (pagando o inquilino, como até aqui, apenas o valor congelado). Mas que sucede então nos restantes casos, de não carência? O inquilino passa a pagar por inteiro a renda atualizada? Isso não é descongelamento? Ou vai afinal o Estado, ao contrário do que é dito, subsidiar todas as rendas? Não se percebe.

O que se percebe, no meio deste arrazoado e do recuo do governo, é que a coisa parece ter sido feita em cima do joelho. A intenção de concluir a liberalização dos contratos anteriores a 1990 está lá. Mas por alguma razão - as reações entretanto surgidas, a memória dos despejos com a Lei Cristas, ou o não querer fazer nada que lembre a PAF (apesar da mesma visão) - o governo decide recuar, ficando atarantado no meio de uma ponte que parece não ter saída.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Quem ganha mesmo com a redução do IRC?

 

O IRC tem dominado o debate do Orçamento do Estado para 2025. A descida do IRC é frequentemente apresentada pela direita como a bala de prata para promover o crescimento em Portugal e foi elegida pelo governo como prioridade desta legislatura. Mas é preciso perceber quem ganha verdadeiramente com a medida. Quando olhamos para os dados da Autoridade Tributária sobre a distribuição do IRC liquidado por setor, o que vemos é que quase metade da receita é paga pelas empresas com volume de negócio superior a 25 milhões de euros, que representam... 0,4% do tecido empresarial.


Por outro lado, se olharmos para o IRC liquidado por setor, quase dois terços da receita são provenientes de cinco setores: o setor financeiro, o imobiliário, a construção, o alojamento e restauração e o comércio.


Estes dados dizem-nos essencialmente duas coisas:

1. Uma redução do IRC beneficia de forma manifestamente desproporcional as grandes empresas

2. Em termos setoriais, a maior parte dos ganhos concentra-se em setores com pouco potencial para a transformação estrutural da economia

No sistema financeiro, o pequeno conjunto de bancos que detêm a maioria da quota de mercado tem acumulado lucros extraordinários desde que as taxas de juro começaram a subir em 2022. Os grandes supermercados também obtiveram lucros extraordinários durante o surto inflacionista, além de terem sido recentemente condenados por fixação de preços entre si. É difícil argumentar que se tratam de empresas que precisam de incentivos.

Há ainda os setores associados à bolha imobiliária (construção/imobiliário) e ao turismo (alojamento/restauração). O peso do turismo na estrutura produtiva do país tem crescido de forma significativa nos últimos anos e o setor tem registado receitas recorde. Só que a especialização no turismo tem efeitos perversos para a economia portuguesa: além de assentar em baixos salários e trabalho precário, é um setor de baixo valor acrescentado, pouca incorporação de conhecimento e tecnologia e baixo potencial produtivo. Ou seja: a maior parte da descida do IRC iria para empresas e setores que não só não necessitam de incentivos, como têm muito pouco potencial para promover a transformação da economia portuguesa e o desenvolvimento tecnológico.

Os defensores da medida costumam argumentar que a redução do IRC permite atrair investimento estrangeiro. A ideia não é nova e tem contribuído para a corrida para o fundo na tributação das empresas um pouco por todo o mundo e, em especial, nos países europeus, sem que isso tenha impedido a estagnação do investimento no continente. 

Associada a esta ideia vem a de que Portugal tem "a taxa estatutária mais alta da UE". O problema é que é muito difícil (para não dizer impossível) encontrar uma empresa que a pague. A taxa média q as empresas pagam efetivamente, depois de benefícios e deduções, é muito inferior. As taxas de imposto que as empresas pagam efetivamente não só são bastante mais baixas do que a taxa máxima, como têm vindo a diminuir em praticamente todos os setores da economia nos últimos dez anos.


Mais: podemos dizer que uma redução do IRC promoveria o crescimento da economia? Um artigo publicado na European Economic Review, onde é feita uma revisão de dezenas de estudos empíricos, mostra que os resultados são... inconclusivos. Ou seja, os estudos existentes não nos permitem afirmar que baixar impostos às empresas estimularia necessariamente o crescimento. De resto, nas últimas três décadas, a taxa de IRC já baixou de forma significativa. A taxa de IRC era muito superior num dos últimos ciclos de crescimento robusto da economia portuguesa (décadas de 1980 e início da de 1990) e a diminuição coincide com a estagnação do país. É um erro olhar para a descida de impostos como a resposta para os problemas de fundo da economia portuguesa.

Mesmo os estudos mais otimistas, que assumem que as empresas aproveitariam a descida do IRC para reinvestir e aumentar salários (e não para aumentar a distribuição de dividendos), reconhecem que a medida gera uma perda significativa de receita do Estado. São centenas de milhões de euros que poderiam ser usados para promover o investimento público - sendo que os estudos empíricos sugerem que o impacto positivo do investimento costuma ser superior ao de cortes de impostos.

Há poucos motivos para crer que a redução do IRC é a bala de prata para promover o crescimento da economia portuguesa. Na verdade, no que diz respeito às estratégias para promover o desenvolvimento económico, o debate público em Portugal está desfasado do que está a ser tido no resto da Europa. O que sabemos é que as principais beneficiadas desta medida serão as grandes empresas que têm acumulado lucros generosos nos últimos anos. Tendo em conta o programa que os partidos do governo levaram a eleições no início do ano, não se pode dizer que seja surpreendente.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Repetir sempre, as vezes que for necessário


«Mais de metade do IRC em Portugal é pago pelo setor financeiro, pelo setor imobiliário e pelo setor do comércio. E eu pergunto se é com benesses fiscais a estas empresas, que têm estas atividades, com os lucros que devem ter, essa não é a questão… A questão é se é isto que nós achamos vai transformar a nossa economia.
Porque se nós queremos apostar numa transformação da economia baseada em investimento de alto valor acrescentado, tecnologicamente avançada e com grande capacidade de arrastamento do resto da economia nós já temos instrumentos fiscais para o fazer. Já existem e podem ser afinados. Nós temos um regime fiscal de apoio ao investimento que permite negociar – perante investimentos que sejam de interesse para o país – situações que são, praticamente, de isenção fiscal durante uma década. Portanto, o país tem investimentos para utilizar seletivamente a atração do investimento que transforma a economia.
Uma medida destas [descida transversal do IRC] vai fazer duas coisas. Vai apoiar um conjunto de setores que são mais do mesmo, que não transformam a economia. Mais do mesmo, é fazer o mesmo que andámos a fazer… São setores tendencialmente não transacionáveis, que levam a alguma acumulação de dívida externa, que não arrastam o resto da economia atrás de si… E como se não bastasse, são uma perda de receita fiscal de centenas de milhões de euros que nós podíamos estar a utilizar para outros fins, como a qualificação de pessoas. Fala-se por exemplo, no IRS, em manter as pessoas no país, no IRS Jovem. Bom, nós com um décimo da receita que vamos perder com o IRS Jovem conseguíamos universalizar boa parte das creches em Portugal. Há coisa mais importante para as famílias, para ficarem no país, do que terem a garantia de que conseguem ter educação básica para os seus filhos?
»

Ricardo Paes Mamede, Tudo é Economia (a partir do minuto 15)

Hoje de manhã, um ouvinte que participou no Fórum da TSF queixava-se do burburinho mediático em torno do Orçamento, afirmando que o necessário era fazer reformas estruturais. Curiosamente, e apesar de a ideia de «reformas estruturais» ter entrado no espaço público pela mão da direita neoliberal, para abrir caminho a privatizações e ao desmantelamento de serviços públicos, o referido ouvinte apenas dizia que o governo devia pensar em reformar, «à direita ou à esquerda». Talvez por isso me tenha lembrado deste excerto da intervenção de Ricardo Paes Mamede, em debate com Paulo Núncio, no último Tudo é Economia. Reformas estruturais há muitas, de facto.

Economia política do bloqueio


Não costuma acontecer, porque nós somos polidos. Reparei que fomos bloqueados no Twitter por uma distinta figura pública da direita. E agora? Como pensar? O que fazer? 

Será que foi por colocar algumas questões inconvenientes entre pessoas de um certo círculo: para quê e para quem, por exemplo? Ou será que foi por assinalar o escasso rigor no uso de categorias, uma ofensa inominável, realmente? Quiçá.

Bom, já restabelecido do choque e do pavor, tenho de perguntar: vós que ainda tendes o privilégio de ler a sua prosa breve, sabeis por acaso se o afoito economista político neoliberal já se pronunciou sobre os efeitos das decisões do Governo no grupo Impresa e no sítio da Internet de extrema-direita, vulgo Observador, com que colabora? 

Tenho uma previsão, partindo de hipóteses convencionais: é tudo uma questão de “incentivos”, afinal de contas.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Privar primeiro, privatizar depois

No Plano para a Comunicação Social ontem apresentado não se deteta qualquer incómodo com um dos mais graves problemas do jornalismo que temos: o défice de pluralismo no debate, enviesado à direita, sobretudo nas televisões. Pelo contrário, é com total despudor que o governo pretende agravar e instituir este entorse, ao privar a RTP de receitas de publicidade, essenciais para assegurar a sua qualidade e sustentabilidade. Para que, uma vez asfixiado, e sujeito a condições desleais de concorrência, o serviço público de televisão comece a dar prejuízo e seja privatizado.

Nada que surpreenda, claro. Basta lembrar o papel crucial do coro monolítico em defesa da vinda da troika e da austeridade salvífica, na chegada da direita ao poder, em 2011. Com as consequências nefastas que se conhecem. Agora, trata-se de desviar receitas publicitárias do canal público para os canais privados, sem compensar a RTP pelas respetivas perdas, gratificando assim o seu maior alinhamento com o governo e a difusão, quase sem contraditório, das suas narrativas.

Dado que a ERC não faz o que supostamente deveria fazer, socorro-me dos dados mais recentes do MediaLab (ISCTE), que demonstram que a RTP é o canal com maior equilíbrio no espectro político em termos de comentário, contrastando assim com qualquer um dos canais privados existentes, onde os comentadores de direita representam, no mínimo, 50% do total. Em termos globais, o comentariado de direita nos canais privados representa 54% do total, sendo de apenas 28% o peso relativo dos comentadores conotados com a esquerda.


Nada disto impede o governo de afirmar, com total desplante, que o plano apresentado visa assegurar «o pluralismo, a liberdade de informar e a liberdade de expressão», exigindo à RTP que se diferencie «da oferta já existente», mas privando a estação de recursos necessários a essa diferenciação. Alegando que «todos os órgãos de comunicação social prestam um serviço público», para justificar o financiamento a privados pelo Estado, o Primeiro-Ministro está deliberadamente a aprofundar e instituir o défice de pluralismo no debate, contribuindo assim, por interesse próprio do seu governo, para uma democracia mais pobre e politicamente ainda mais condicionada.

Economia política televisionada


Daniel Oliveira identifica um mecanismo potencial - “A proposta do governo para a RTP é um excelente retrato deste governo: preparar a privatização inevitável sem ter a coragem de o assumir, apenas tomando decisões que provocam o estrangulamento financeiro. É assim em várias áreas, do SNS à CP. É um governo radical-sonso.” 

Não sei se a RTP será privatizada. Se esta gente não for removida, poderá ser apenas sucateada, como dizem os brasileiros, com um canal encerrado, por exemplo. Não sei se os capitalistas televisivos existentes, o herdeiro quase falido e o pirata do Douro, por exemplo, querem necessariamente a privatização. 

Uma coisa sabemos de certeza sobre as atuais decisões governamentais, como assinalou Paulo Coimbra em resposta a Daniel Oliveira: são “decisões que provocam estrangulamentos financeiros a uns [RTP] e proporcionam folga no passivo de outros [Impresa].” 

E sabemos mais da economia política televisionada: não há campanhas mediáticas a favor da direita e da extrema-direita grátis, não há golpes televisionados grátis.

Mau tempo


Veio enfim um tempo em que tudo o que os homens tinham olhado como inalienável se tornou objecto de troca, de tráfico, e podia alienar-se. É o tempo em que as próprias coisas que até então eram comunicadas, mas nunca trocadas; dadas, mas nunca vendidas; adquiridas, mas nunca compradas - virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. - em que tudo enfim passou para o comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal. 

Karl Marx, Miséria da Filosofia, 1847, Edições Avante!

OE 2025: do simulacro ao logro

Como é público, o orçamento de Estado vai ser entregue no parlamento no próximo dia 10. A sua votação, contudo, só acontecerá no fim do mês.

Este calendário significa que, quando a Comissão Europeia, do alto da sua soberba generosidade, decide, como fez ontem, adiar para 13 de outubro e estender meia dúzia de dias o prazo que dá ao governo para este se comprometer com um valor máximo de despesa pública que necessariamente acate o limite que aquela instituição impôs, unilateral e previamente, ao país (e que continuamos sem saber qual é e como foi calculado), o que está de facto a fazer é, diria, a exigir que o simulacro de discussão orçamental a que temos assistido dê lugar ao logro em que consistirá votar no parlamento de Portugal um orçamento com o qual o país foi previamente comprometido perante entidades externas.

Partilhada a ideia acima com um amigo de cuja capacidade analítica disponho sempre que posso, partilhei também as minhas interrogações.

O que acontece se o parlamento aprovar, como é prerrogativa de um parlamento soberano, uma despesa superior ao limite decidido pela Comissão?

Os protagonistas deste simulacro estão a atuar de acordo com o seu dever de defender a legalidade constitucional, a integridade nacional, a transparência do processo político?

Àquelas questões, o meu amigo, usando da síntese de que é capaz, simplesmente, respondeu: “os atores deste simulacro não querem sair do euro”.

Dá-me ideia de que o meu amigo, como acontece muitas vezes nas nossas conversas, tem razão.

Fico, contudo, com algumas questões só para mim dado que, provavelmente, já lhas coloquei vezes demais.

Sendo, a meu ver, certo que os protagonistas deste simulacro de discussão e logro de decisão soberana detêm a legitimidade política que uma democracia pode conferir, pergunto-me se a esmagadora maioria do povo que aqui vive e trabalha tem consciência desta transferência de poderes para o exterior, desta federalização furtiva que deixa o país sem política orçamental e o vincula de forma subordinada a uma entidade externa que também não a possui.

No período 2011-2014 o país foi obrigado a viver uma reestruturação brutal, assente na feroz repressão da procura interna, que acentuou as vulnerabilidades da economia portuguesa, tornando-a dependente de um turismo em claro excesso que cria problemas ambientais e sociais, disneyfica as cidades e bloqueia o crescimento da produtividade.

Uma transformação externamente imposta que amputou a capacidade do Estado para desempenhar as funções constitucionais a que está a obrigado, da proteção social à administração interna.

Um ‘ajustamento’ que só muito parcialmente foi revertido pelos governos da geringonça e que, de modo regressivo e significativo, fez recuar a parcela de riqueza que cabe a quem trabalha.

Uma mudança conforme a um certo capitalismo, que nega o direito à habitação a quem tem de a disputar com turistas, afluentes reformados e transumantes ditos digitais com direito a benesses fiscais e se vê confrontado com escassez quase total de habitação pública.

Uma mercadorização desenfreada que nada poupou exceto banqueiros ociosos e dependentes de benesses públicas.

No país onde a despesa pública total em percentagem do PIB é 7,7 pontos percentuais inferior à média da zona euro, o SNS é deixado a vegetar entre a vida e morte.

No período que se segue é-nos imposto que continuemos assim e dizem-nos que agora só temos de ‘ajustar’ mais um bocadinho.

Recordam-se todos aqueles que, no extremo-centro, vendem, interessadamente, táticas de negociação orçamental não polarizadoras e anti-bulgarização que, entre o último ajustamento e o que se segue, entraram 50 deputados de extrema direita na parlamento nacional.


“[E]stas regras, com as quais os países europeus se vão comprometer nos próximos anos, impedem o investimento público necessário para relançar a economia europeia” diz-nos o mesmo influente think tank que também afiança que “as novas regras são muito melhores do que as anteriores”. Melhor ilustração de dissonância cognitiva não se obtém com facilidade.

“Prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros, combinando isso com uma política orçamental pró-cíclica [de austeridade], o que teve como efeito líquido enfraquecer a nossa procura interna e minar o nosso modelo social” admitia, em Abril passado, apesar das suas pesadas responsabilidades neste assunto, Mario Draghi.

“Draghi apela a um aumento do investimento, mas os governos da UE estão fixados na consolidação orçamental, que, se for implementada, agravará o défice de crescimento” diz-nos Tooze. É isto que nos ensinou o período anterior de austeridade. É isto que sustenta a teoria económica: “[e]m média, as consolidações orçamentais não reduzem os rácios da dívida em relação ao PIB”.

Encerro, pois, este texto com uma última pergunta que é, sobretudo, uma perplexidade.

Compreende-se bem que a direita se sinta confortável quando lhe é oferecida de bandeja a proscrição liminar de qualquer política económica de inclinação meramente keynesiana, mas como pode uma certa esquerda que ainda se reclama de alguma social-democracia rejubilar (e de forma tão despropositadamente narcisista) com a reforma do quadro de governação económica que nos trouxe aqui?

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Para lá do liberalismo


“Os vinte contributos reunidos no livro não esgotam o mapeamento do progressismo”, afiançam as coordenadoras. Tenho dificuldade em compreender o que leva pessoas que se dizem radicalmente de esquerda a dinamizar e participar num livro que junta, no meio de gente de facto progressista, liberais apoiantes da troika e do atual governo e/ou do genocídio perpetrado por Israel. Sistematizando, esta dificuldade assenta em quatro razões. 

Em primeiro lugar, o livro em causa reage diretamente a um outro livro coletivo, abertamente reacionário, deixando inadvertidamente que seja este último a fixar a linha de fronteira do debate, assim puxado para a direita, como se estivéssemos intelectualmente em plena França macronista. 

Em segundo lugar, um livro coletivo deste calibre é muito diferente do excelente, até porque consistente, manifesto de João Costa. Nada lhe acrescenta. 

Em terceiro lugar, o livro tem logicamente muito menos espaço do que o que seria recomendável neste contexto para os temas do feminismo socialista, os da reprodução social e sua repartição, os das relações laborais e suas formas de exploração, etc. Lembro, entretanto, que a troika foi a maior adversária recente das famílias da classe trabalhadora em toda a sua diversidade. E que as regras europeias austeritárias o continuam a ser. 

Em quarto lugar, o livro permite que figuras nada recomendáveis, objetiva e/ou subjetivamente de direita, estejam sempre em pé e possam passar por progressistas, em modo “neoliberalismo progressista” versus “neoliberalismo reacionário” (mais uma útil dicotomia da autoria de Nancy Fraser), como se o primeiro tivesse alguma coisa que ver com o progresso, um truque de colonizador em que algumas destas “personalidades” de resto se especializaram. A esquerda não sobrevive com esta complacência em relação a elas. 

Não, por uma vez não me apetece mencionar nomes, estão na capa, andam por aí, com todo o mediatismo, com todo o capital. Apetece-me antes lembrar Amílcar Cabral: “não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem”. 


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Grazie mille, Francesca Albanese


O amplo auditório da FEUC estava cheio e transbordou com a jurista internacional, a relatora rigorosa, a profunda conhecedora de teoria crítica e de história. 

Não se ouviu uma mosca durante a hora em que falou, e tão bem que falou, com os conceitos tão bem definidos – genocídio, por exemplo – e com tanta e desgraçada evidência sobre a “crise da humanidade, ao invés de uma mera crise humanitária”; falou como se deve falar, com a consciência, com o corpo todo, ancorada na melhor filosofia da ciência, onde factos e valores estão entrelaçados, embora possam ser, aqui e ali, distinguidos. 

Falou dos abismos morais do colonialismo e do racismo que lhe está associado, da desvalorização das vidas palestinianas, deixando entrever o imperialismo e o capitalismo que lhes subjaz; falou de “cobardias institucionalizadas” e de esperanças políticas libertadoras. Nunca se desiste: “não nos podemos dar ao luxo da desesperança”. 

Não me lembro de ter respirado durante uma hora. Voltei a lembrar-me de respirar quando lhe coloquei duas questões, creio. Há muito que não assistia a uma palestra assim. O povo palestiniano não podia ter melhor, mais carismática, aliada nas Nações Unidas. O mundo não colapsou ainda, porque existem rebeldes competentes assim, em muitos lados, idealmente agindo de forma concertada. 

Não, a história não começou há um ano; os crimes do colonialismo sionista começaram muito antes. 

Grazie mille, Francesca Albanese.

Adenda. Hoje ficámos a saber: “Navio com bandeira portuguesa com explosivos para Israel impedido de entrar em Malta. Decisão surge depois de Francesca Albanese, relatora da ONU, ter pedido acção ao Governo maltês.”

O atual governo está agravar a crise de habitação

A AD não vai resolver, nem sequer mitigar, a profunda crise habitacional que Portugal atravessa. Antes a vai agravar, tornando a habitação ainda menos acessível face aos rendimentos das famílias. Como assinalámos aqui, o aumento do preço das casas no 2º trimestre de 2024, face ao trimestre anterior, foi «apenas» o mais elevado desde que há dados disponíveis (2009). Com a agravante de esta subida inverter, de forma abrupta, a tendência de diminuição do ritmo de aumento de preços a que se estava a assistir desde o 2º trimestre de 2023.

O que se constata agora, com os recentes dados divulgados pelo Eurostat, é que Portugal teve a segunda maior subida (3,9%) de preços da União Europeia, sendo apenas antecedido pela Croácia (4,3%) e encontrando-se muito acima do valor registado à escala da UE (1,9%). Isto quando, sublinhe-se, a variação trimestral anterior foi a mesma no nosso país e na UE (0,6%), em resultado de uma aproximação progressiva de Portugal à média dos 27.


Com uma franqueza provavelmente inadvertida (que SIC tentou dissimular), a ministra da Juventude já tinha alertado para o facto de as medidas do governo, e sobretudo os incentivos à procura solvente, poderem vir a aumentar o preço das casas. De facto, como já assinalado por vários agentes do setor, a «mudança de uma política mais restritiva», como a que foi levada a cabo pelo governo anterior, para uma orientação liberalizante, assente em incentivos e na dinamização do mercado, «fez com que tanto compradores como promotores estivessem mais ativos». Bastaram os compromissos programáticos do governo, e o simples anúncio de medidas, para «mexer com o mercado».

Não se espere, portanto, que a situação melhore ou que não piore mais. Tal como no caso da saúde, onde a mudança de políticas começa igualmente a tornar-se evidente - sobretudo com o reforço da transferência de recursos públicos para o setor privado - também no caso da habitação as dificuldades que já existiam têm tudo para se agravar.

domingo, 6 de outubro de 2024

Um jornal que faz perguntas radicais


Perante mais uma desolação cinza e negra de muitos milhares de hectares, desta vez em Setembro, um refrão proprietário ecoou nas televisões, acompanhado de uma exigência: os donos dos terrenos não têm a obrigação de os limpar se estes não gerarem rendimento adequado, pelo que o Estado deve subsidiar os proprietários florestais. Afinal de contas, os proprietários gerariam benefícios para o conjunto da comunidade, o que os economistas convencionais chamam de «externalidades positivas». 

Na realidade, os donos de terrenos rústicos florestais têm a obrigação legal de os limpar regularmente. É, entre outras, a contrapartida pelos múltiplos custos em que a comunidade política incorre para lhes garantir a criação e protecção do direito de propriedade privada. É necessário reconhecer que as acções e as omissões proprietárias têm implicações, tantas vezes negativas, sobre o que é dos outros, sejam indivíduos ou colectivos. 

Na União Europeia, não há outro país onde a propriedade privada da floresta seja tão prevalecente. Por todo este país de propriedade privada esmagadora e tantas vezes pulverizada, multiplicam-se histórias de quem tem os terrenos limpos, lado a lado com o desmazelo e a irresponsabilidade proprietária. Tudo o que fazemos com o que é nosso tem implicações sobre o que é dos outros, sejam bens materiais ou imateriais, digamos: saúde, segurança, tranquilidade. 

A propriedade é sempre uma relação social, politicamente determinada. E, por exemplo, uma coisa é plantar e cuidar de floresta autóctone, outra coisa é plantar milhares e milhares de hectares de eucalipto no quadro de um capitalismo verde-negro, totalmente desadequado na época das alterações climáticas. Este capitalismo é demasiado tolerado por um Estado com capacidades e conhecimentos brutalmente enfraquecidos nesta área, graças à destruição de serviços florestais pelos processos de neoliberalização em livre curso desde o cavaquismo. 

 A Constituição da República Portuguesa prevê o direito de propriedade privada, mas subordina-o ao interesse geral e incrusta-o num feixe de direitos e deveres económicos e sociais que o transcendem e limitam, até pela existência de outros direitos de propriedade, pública ou cooperativa, no quadro de uma economia mista, condição material mínima para a subordinação do poder económico ao político. 

Apesar disso, quem se deixe intoxicar pela comunicação social dominante, ficará convencido de que ser proprietário é só ter direitos, cada vez mais direitos, com nulas obrigações, com nulo reconhecimento de qualquer função social; ou melhor, com todos os deveres a serem transferidos para o Estado e, assim, socializados. A ideologia proprietária televisionada afiança falsamente que o que é de todos não é de ninguém, o que significaria que poderíamos retorquir: será que os deveres que são de todos, sem os quais de resto não existiria propriedade privada, não são de ninguém? 

As televisões ditas privadas usam e abusam de um bem público licenciado pelo Estado — o espectro hertziano terrestre destinado à radiodifusão —, furtando-se aos seus deveres de formar e informar, sem que haja qualquer consequência: claramente, a ideologia dominante é a dos seus proprietários, num capitalismo televisivo sem freios e contrapesos, até pelo enfraquecimento do poder dos jornalistas. Sim, por todo o lado, as relações de propriedade são relações de poder.

Entre as várias funções sociais do Le Monde diplomatique — edição portuguesa, e da cooperativa cultural que o edita, está a de contestar a ideologia proprietária que gostaria de impedir perguntas radicais: quem se apropria do quê e porquê e, correlativamente, quem tem liberdade e quem a ela está vulneravelmente exposto? Um jornal pode colocar estas perguntas livremente também graças à forma de propriedade cooperativa que o organiza e responsabiliza. 

O resto do artigo sobre desordens proprietárias pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de outubro. Coube-me a responsabilidade de substituir Sandra Monteiro no editorial da edição portuguesa. Assinai, apoiai este projeto cooperativo.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

OE 2025: Encontrando o dinheiro para pagar o que podemos fazer

O documentário Finding the Money, uma viagem pela Teoria Monetária Moderna (MMT), está finalmente acessível ao grande público. Se decidirem usar o vosso tempo para assistir, julgo que, com forte probabilidade, o darão por bem empregue. O trailer pode ser visualizado aqui.

(Valiam o que o imperador dissesse que valiam)

A meu ver trata-se de uma peça muitíssima informativa, sobretudo num período em que o país está embrenhado num simulacro de debate orçamental (a Comissão Europeia continua sem nos dizer, afinal, quanto do nosso dinheiro podemos usar) que, respaldado no ordenamento europeu, errada e tragicamente, se conforma com a austeridade permanente que nos é imposta e não admite escrutínio.

Um debate orçamental dogmático e enviesado que exclui liminarmente a opção do défice (mesmo se este for compatível com a redução da dívida pública), num contexto histórico de lucros da banca, imorais e politicamente produzidos, a pedir para serem tributados, insuficiente procura agregada, despesa pública, em % do PIB, em Portugal muitíssimo inferior à média da EU, previsão de crescimento medíocre (1,9%) e fortíssima erosão da capacidade do Estado português para assegurar as funções que lhe estão constitucionalmente consagradas, o que mina a Democracia.

O documentário está repleto de ideias potencialmente surpreendentes como, por exemplo, aquela segundo a qual Estados monetariamente soberanos criam dinheiro do nada quando fazem despesas de consumo e/ou de investimento, ou aquela outra que descreve como, no uso de licença Estatal para o efeito, os bancos privados criam dinheiro do nada quando concedem crédito e, para finalizar esta seleção, aquela que, a partir da evidência que as receitas de uns são as despesas de outros, constata que superávites públicos significam, necessariamente, défices privados.

A quem interessar, alguns destes assuntos e conceitos foram também aqui tratados.

Ideias que, a meu ver, podem ser mesmo muito úteis para a compreensão dos constrangimentos reais, falsos e autoimpostos que as finanças públicas enfrentam. Ideias que, simultaneamente, ajudam a compreender que, de facto, não sendo um país soberano economicamente equiparável a uma família, tudo o que pode fazer pode pagar.

Temos Estado a mais na economia?

Mais factos (acessíveis no Eurostat): em Portugal, o Estado gasta menos que a média da Zona Euro na generalidade das áreas, da saúde à educação, passando pela proteção social, habitação ou proteção ambiental. A despesa pública total é inferior à média da Zona Euro em 6,1 pontos percentuais do PIB.

Vencerá


Anteontem, contra hábitos, usos e costumes arreigados, cheguei meia hora atrasado, devido a uma arguição de tese. Estava a partir, com o habitual atraso militante. Chovia. Partimos de uma rotunda na Fernão de Magalhães e desfilámos até à Praça 8 de Maio. 

Não eramos assim tantos, mas gosto de pensar que fomos bons. Gritámos a plenos pulmões: Paz Sim! Apartheid Não! 

Na praça, chovia ainda mais. Debaixo de um chapéu, um militante pela Palestina leu um breve discurso. A certa altura, a mudar de página, as folhas já estavam coladas, mas, com esforço, conseguiu descolar e acabar como a circunstância impunha. 

Qual é o impacto desta manifestação pela Palestina em Coimbra? Passámos por pessoas, que nos viram e ouviram, com interesse e simpatia, pareceu-me; só um “carrão” apitou, impaciente. Quem sabe qual é o impacto do que fazemos individual e coletivamente? Confiemos na obliquidade, em interpelar, em colocar pessoas a pensar, diz-me o instinto desenvolvido a ensinar e a aprender, como todos. 

Em Coimbra, deu-se o tiro de partida para uma jornada nacional de solidariedade com a Palestina, com manifestações por todo o retângulo, de Faro a Viana do Castelo, culminando em Lisboa, no dia 12 de outubro. 

O importante é fazer a coisa certa, no momento certo. E não arriscámos nada: não fomos presos, não nos bateram. Pelo contrário, a polícia garantiu o nosso direito constitucional. Encarnámos os melhores valores da Constituição (número 2 do Artigo 7.º, por exemplo): 

“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.” 

E outros, noutros lugares distantes, manifestam-se e arriscam muito. Na Palestina, arrisca-se tudo, simplesmente por, e para, existir. Outros, também por cá, manifestaram-se e arriscaram muito, alguns tudo, agindo em prol de si e dos outros, durante décadas a fio. 

Em prol de si, sim, age-se sempre por interesses próprios, o que varia, crucialmente, é aquilo que interessa a cada indivíduo e isso faz toda a diferença moral do mundo. Os outros têm de nos interessar, os compromissos coletivos têm de nos interessar. Sim, temos um dever de fidelidade a uma história, a várias, com h e H, na realidade, de fidelidade às suas verdades. 

Sabemos que não estamos sós, somos parte de um vasto movimento internacionalista de solidariedade com o povo palestiniano, alvo do Estado colonialista e da sua pulsão genocida. Sim, Estado, que isto está para lá do governo sionista de turno, diz-nos a História, diz-nos o combate contra amnésias tão convenientes, mesmo entre a elite que se julga progressista no Portugal dos pequenitos, numa UE pequenita. 

 E, não, não terminámos numa bela praça, molhados, num café bonito, a beber chá quente, numa conversa sem início e sem fim, convencidos de que a praça é nossa. 

Palestina vencerá.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pensar, existir

O que resta de uma universidade em Gaza

O CES tem, ao longo do tempo, promovido a reflexão sobre a situação na Palestina. Numa altura em que todas as universidades de Gaza foram destruídas ou severamente danificadas, e tendo em consideração os princípios e a missão deste centro de investigação, propomos contribuir para o esforço global de paz e justiça na região. A comunidade académica tem o dever particular de promover a justiça e a igualdade.

É neste contexto que decidimos suspender todas as formas de cooperação científica, enquanto forma necessária e não-violenta de encorajar a mudança política e social, exercendo influência e pressão sobre o Estado israelita. Esta suspensão, que se aplica a instituições e não a indivíduos, incide sobre colaborações no âmbito de projetos de investigação, conferências e eventos científicos, candidaturas a financiamento, publicações e projetos de intercâmbio, existentes e futuras, até ao fim da invasão e da ocupação militar em Gaza. 

O CES continuará a dinamizar um debate informado sobre esta matéria, reiterando o exercício da liberdade de expressão e o repúdio por quaisquer formas de antisemitismo e islamofobia, bem como qualquer outro comportamento de ódio.

Vale a pena ler o resto. Bem sei que esta consequente tomada de posição peca por ser algo tardia, mas depressa e bem não há quem. E fomos a primeira instituição universitária portuguesa a alinhar com boas e consequentes práticas internacionalistas, com muitas outras universidades e centros de investigação estrangeiros. Já basta de silêncios cobardes.

Sim, tenho orgulho no CES e nos seus valores. São os mesmos que as atuais direção e presidência do científico reafirmam todos os dias e por isso merecem o meu apoio e admiração, fazendo, por exemplo, do CES a instituição universitária nacional a lidar de forma mais séria e profunda com “indícios de ‘padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia’”. 

Haja coragem e fidelidade à verdade.

Luís Moita, Francesca Albanese

 

Esta conferência, proferida por Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para a situação dos Direitos Humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, é promovida pelo Núcleo de Relações Internacionais da FEUC, e é a atividade inaugural da recém-criada Cátedra Luís Moita em Paz e Relações Internacionais. Insere-se igualmente nas celebrações dos 20 anos do Programa de Doutoramento em Relações Internacionais – Política Internacional e Resolução de Conflitos (FEUC/CES).

Esta apresentação adquire uma relevância acrescida face à atual crise humanitária e de direitos humanos na região, desencadeada pela incursão militar israelita na Faixa de Gaza em resposta ao ataque terrorista realizado pelo Hamas em território israelita. O evento proporcionará uma reflexão crucial sobre a importância dos direitos humanos e do direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário, num momento em que estes princípios são abertamente questionados no cenário global.

Hoje, a intrépida Francesca Albanese, que encarna o serviço público internacional da ONU no seu melhor, estará em Lisboa, no CCB, numa sessão coorganizado pelo Le Monde diplomatique - edição portuguesa. Amanhã, estará em Coimbra, na minha faculdade. Aí, o saudoso Luís Moita vive nos estudos e lutas da paz.
  

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

OE 2025: nem a mentiras novas temos direito


Ao contrário do que afirma o patrão dos patrões, Armindo Monteiro, repetindo em coro uma falsidade propagandeada, entre outros, por Joaquim Sarmento e Luís Montenegro, o milagre consiste justamente em não distribuir o que se cria, afirmar despudorada e moralisticamente o inverso e não ser confrontado com a mentira.


“Prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros, combinando isso com uma política orçamental pró-cíclica [de austeridade], o que teve como efeito líquido enfraquecer a nossa procura interna e minar o nosso modelo social” admitia, em Abril passado, apesar das suas pesadas responsabilidades neste assunto, Mario Draghi

Atente-se, pois, na disparidade de avaliações e no discurso serôdio que acompanha a prática preguiçosa e gananciosa dos patrões portugueses e no desplante do governo que, com total desrespeito pelos factos, lhes dá respaldo.

Não esquecer a linha


O conceito de linha de cor (color line) foi popularizado por W. E. B. Du Bois na viragem do século XIX para o século XX, tendo por referência o racismo entranhado na economia política dos EUA e para lá dela: “o problema do século XX é o da linha de cor” em todo os continentes.

Existe, de facto, uma linha de cor nas relações internacionais, em geral, e na forma desumanizadora como a comunicação social dominante ainda hoje reporta as vítimas de conflitos, para lá da cada vez mais estreita “comunidade internacional” e da sua discricionária “ordem baseada em regras”, em particular. 

Sim, também é de racismo banalizado que se trata: uma vítima civil israelita vale muito mais do que uma vítima palestiniana ou libanesa na comunicação social dominante. 10, 20, 30, 40 vezes mais? Mais vale estar vagamente certo: muito mais. Há menos histórias e nomes, função da cor de pele e da classe. Era assim aquando do Apartheid, é assim no colonialismo sionista e na sua forma de Apartheid. 
 
Os movimentos de resistência e de libertação do lado errado da linha de cor são sempre apodados de terroristas e isto quando a esmagadora maioria do mundo, corretamente, nunca os tratou assim. 

Infelizmente, uma grande parte da esquerda europeia foi colonizada por esta visão distorcida do mundo, deixando de atentar nesta forma de racismo internacional ululante, com tantos e tão negativos impactos, incluindo no número de pessoas em fuga. 

Os custos de se ter esquecido o imperialismo e a sua economia política internacional são elevados, como descobri há mais de uma década, graças, entre outros, a dois economistas de apelido Patnaik, propagando-se, por exemplo, ilusões europeístas: “A invisibilidade do imperialismo hoje em dia não é sintoma do seu desaparecimento, mas sim do seu poder.” 

Hoje, o imperialismo está à vista de todos. Talvez o seu poder esteja já a diminuir. Haja esperança no aniversário de ontem.

E, sim, quem não quiser falar de imperialismo, de sistema imperialista, e da forma de capitalismo que lhe subjaz, deve calar-se sobre racismo.

A Constituição é antifascista, anti-imperialista e anticolonialista


“O Governo português condena liminarmente os ataques do Irão a Israel e à sua população civil. O Irão deve cessar imediatamente as hostilidades.” O dúplice e imoral Governo português não condenou liminarmente o genocídio em curso na Palestina e os ataques de Israel ao Líbano e à sua população civil. 

Tal como a UE, o Governo português continua alinhado com o colonialismo sionista e com o imperialismo, ao arrepio do que é indicado na Constituição da República Portuguesa (número 2 do Artigo 7.º, por exemplo) e que o Presidente não cumpre e não faz cumprir: 

“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares”.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Mentira e verdade


Comparai o Público com o El Pais: um mente, o outro diz a verdade. É de invasão que se trata, claro. Em Espanha estão mais avançados no que a esta questão diz respeito. Afinal de contas, reconhecem o Estado da Palestina, por exemplo.

O Público tem uma história tenebrosa no internacional, graças à prolongada influência de ideólogas como Teresa de Sousa. É como se estivesse no livro de estilo, junto à palavra liberal: quando a invasão é apoiada pelo imperialismo, quando se dá no quadro do sistema imperialista, não é invasão. E muito menos quando se trata do genocida colonialismo sionista, o que não existiria sem o apoio maciço dos EUA (e da UE, já agora; numa posição subalterna, é certo).  

Adenda. E, atenção, não é que o liberal El Pais seja exemplo para o que quer que seja também, mas pelo menos usa a palavra que se impõe neste contexto e que separa o jornalismo da propaganda.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Entre a esperança e o abismo


Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para a situação dos Direitos Humanos nos Territórios Palestinianos ocupados desde 1967, estará no dia 3 de Outubro, quinta-feira, às 18h30, no CCB, em Lisboa, para falar sobre o tema «Palestina e Direito Internacional: Entre a Esperança e o Abismo». Numa altura em que a violência genocida do governo de Benjamin Netanyahu alastra de Gaza e da Cisjordânia ao território libanês, ameaçando toda a região, há razões para temer que as repetidas violações do direito internacional e humanitário, em vez de conduzir a um cessar-fogo, estejam a adquirir proporções cada vez mais graves. O apartheid israelita é parte de um processo de substituição e expansão territorial, contado em mais de 40 000 mortos. Neste contexto internacional, e perante uma degradação das coberturas mediáticas, o posicionamento do governo de Portugal merece reflexão e o escrutínio dos cidadãos.