irmaolucia_works, Baltazar e as percepções
«Há um momento simbólico em que o ataque deste Governo ao Estado social e de direito é exposto ao sol em toda a sua crueza, esse momento que uma imagem inscreveu na nossa memória coletiva, o retrato das pessoas perfiladas pelo Estado contra a parede enquanto no Parlamento de Portugal se debatia e aprovava, com os votos da Aliança Democrática e do Chega, a primeira exceção à universalidade do direito fundamental à saúde. A imagem para a qual tantos olhámos, incrédulos (“o que é isto?”), interrogando-nos sobre a sua fidedignidade (“não é verdade, pois não?”), ao mesmo tempo em que na Assembleia da República, por proposta do Governo, se restringia o direito de acesso de imigrantes “sem documentos” ao Serviço Nacional de Saúde».
Da Carta aberta ao primeiro-ministro, a lembrar que Portugal é um Estado social e de direito (Público)
«No quotidiano, estes e estas utentes [imigrantes] encontram já várias barreiras no acesso e manutenção de cuidados de saúde. Receamos, como profissionais de saúde, que a nossa prestação de cuidados à população (...) possa vir a sofrer uma limitação adicional, agravando desigualdades e desfavorecendo uma população que se encontra frequentemente em situação de vulnerabilidade. A exclusão, prevista neste Projeto de Lei, é particularmente prejudicial para quem necessita de cuidados de saúde e vigilância específicos, nomeadamente crianças, adolescentes e pessoas grávidas. Finalmente, alertamos para que se possa vir a colocar em risco a saúde pública de toda a comunidade, uma vez que deixa de estar assegurado o acesso gratuito e regular à vacinação, bem como a adequada abordagem de doenças transmissíveis que representem ameaça para a saúde pública».
Da Carta aberta de profissionais de saúde contra a limitação do acesso ao SNS a imigrantes (ver aqui).
Duas cartas abertas muito importantes (ver na íntegra em «Ler Mais»), a denunciar dois retrocessos da maior gravidade, no mesmo dia, tornando indisfarçáveis as motivações do governo da AD, que assim abdica dos mais elementares princípios da social-democracia e da democracia cristã, para disputar eleitorado com o Chega.
Carta aberta ao primeiro-ministro, que não se pode esquecer de que Portugal é um Estado social e de direito
Público, 22 de dezembro de 2024
Exmo. senhor primeiro-ministro,
Senhor dr. Luís Montenegro,
Não lhe escreveríamos, na antecâmara deste Natal de 2024, se não achássemos urgente alertá-lo para a circunstância intolerável de, 50 anos depois do Abril que nos trouxe o Estado social e de direito, o Governo a que V. Exa. preside ter dado esta semana sinais inequívocos de não compreender o sentido profundo de “Estado social” nem de “Estado de direito”, atingindo no coração e no osso o projeto social do povo português inscrito na Constituição desde a conquista da democracia.
Há um momento simbólico em que o ataque deste Governo ao Estado social e de direito é exposto ao sol em toda a sua crueza, esse momento que uma imagem inscreveu na nossa memória coletiva, o retrato das pessoas perfiladas pelo Estado contra a parede enquanto no Parlamento de Portugal se debatia e aprovava, com os votos da Aliança Democrática e do Chega, a primeira exceção à universalidade do direito fundamental à saúde. A imagem para a qual tantos olhámos, incrédulos (“o que é isto?”), interrogando-nos sobre a sua fidedignidade (“não é verdade, pois não?”), ao mesmo tempo em que na Assembleia da República, por proposta do Governo, se restringia o direito de acesso de imigrantes “sem documentos” ao Serviço Nacional de Saúde. Em muitos casos, trata-se de imigrantes que trabalham em Portugal e que descontam para a nossa Segurança Social, mas a que o Governo decidiu dificultar a regularização, acabando com o mecanismo da “manifestação de interesse” sem o ter substituído por outra solução que combata a clandestinidade dos imigrantes e a sua assim mais provável exploração pelos vampiros da vulnerabilidade. Quando se dificulta a regularização a quem a merece, facilita-se a vida às máfias que vivem do medo sentido pelos cidadãos indocumentados. Decidir, de seguida, que sem essa regularização também se lhes fecha a porta do SNS é de uma desumanidade inaudita.
O senhor primeiro-ministro já achava que as polícias podiam ser utilizadas para “dar visibilidade” a opções de política criminal de law and order fracassadas em tantos outros lugares e não se coibiu de expor chefias das forças e serviços de segurança, até fardadas, numa comunicação ao país à hora da abertura dos telejornais mesmo sem ter nada de novo e relevante para anunciar. Mas agora também parece achar que pode “dar visibilidade” às pessoas expostas na rua, as pessoas perfiladas por dezenas de polícias contra a parede, numa ação que nos faz lembrar tempos que julgávamos enterrados, pessoas encostadas à parede em função de um critério que é o da sua origem, o da diversidade da sua cultura ou o da cor da sua pele (porque ninguém acredita que em outros locais do país não existam ocorrências criminais merecedoras da atenção do Estado e cuja prevenção e repressão ocorra com mais respeito pela privacidade). Sobre esta inaceitável exposição de pessoas, já teve necessidade o senhor Presidente da República de o vir recordar, senhor primeiro-ministro, de um certo dever de “recato”. Talvez preferíssemos outra formulação: a forma como aquelas pessoas foram tratadas consubstancia inequivocamente um tratamento degradante, proibido pela nossa Constituição no número 2 do seu artigo 25.º (“ninguém pode ser submetido a (…) tratos (…) degradantes ou desumanos”).
Apesar de ser novo no Portugal democrático, não é novo aquilo que o senhor primeiro-ministro está a começar a fazer. Em outros países, a desistência do Estado social (da universalidade do acesso à saúde ou à educação, só para dar alguns exemplos) foi sendo compensada pelo fortalecimento do Estado punitivo. Um Estado que aparenta ser robusto, que exibe o seu poder expondo nas ruas as fardas e as armas que simbolizam a autoridade de forma despropositada e que cria inimigos imaginários para convencer os seus cidadãos de que estão tão inseguros que precisam mesmo de um governo forte. Governos que criam perceções de insegurança para depois as usarem achando que é com elas que encherão de votos as urnas. Sem quererem saber de danos colaterais.
Senhor primeiro-ministro, queremos recordar-lhe que ações policiais desproporcionais violam a lei do nosso país. E que é difícil persuadir seja quem for da proporcionalidade de uma operação especial de prevenção criminal ao abrigo da Lei das Armas, envolvendo dezenas de agentes das forças de segurança, revistando de modo desnecessário e degradante dezenas de imigrantes a alguma distância de jornalistas convocados para “dar visibilidade” à operação quando os resultados se cingem a pouco mais do que a detenção de dois cidadãos portugueses e à apreensão de uma arma branca. O artigo 272.º, n.º 2 da Constituição é inequívoco na sua proibição do excesso: as "medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário".
Os subscritores desta carta respeitam o trabalho abnegado de todos os agentes das forças e serviços de segurança que norteiam a sua conduta pela legalidade e se expõem a riscos para proteger a paz da nossa vida coletiva e defender os nossos direitos individuais. É por os respeitarmos que nos repugna que sejam usados como alfinetes na lapela por titulares de cargos políticos em exibições de autoritarismo. E é também para a sua proteção que repudiamos a opção por um modelo político-criminal caduco que fomenta o racismo e que cria inimigos, porque divide a sociedade e exclui, através da revolta ou do desespero.
A larguíssima maioria dos crimes tem na base problemas sociais a que o Estado não deu resposta. É por isso que os países que desistiram do Estado social têm índices de criminalidade e de violência tão superiores. Todos temos de compreender o papel inestimável do acesso à saúde ou à educação na prevenção da violência e da criminalidade. A aposta que como povo neles fizemos tem sido um dos fatores preponderantes para nos termos tornado um dos países mais seguros do mundo.
Senhor primeiro-ministro, aquilo que o seu Governo está a fazer é uma verdadeira mudança de paradigma. Está gradualmente a deixar cair as conquistas do Estado social que nos vêm garantindo a segurança em sentido amplo de que nos orgulhamos como povo e como sociedade digna. Está a aproximar-nos de um outro modelo de funcionamento do Estado, testado em outras geografias e com resultados desastrosos de mais desigualdade, mais exclusão social, mais violência. Não o toleraremos e não nos calaremos. Apelamos-lhe a que não vá por aí. É preciso que se interiorize de uma vez por todas que policiamento de proximidade não significa proximidade com bastões nem rostos de imigrantes próximos da parede.
O senhor primeiro-ministro está vinculado pelo dever de cumprir o nosso projeto como povo que foi inscrito na Constituição. O projeto de um Estado social, de direito e democrático. Apelamos-lhe a que o faça.
Ana Catarina Mendes – Eurodeputada eleita pelo Partido Socialista
Cláudia Santos – Deputada e professora universitária
Alexandra Leitão – Presidente do grupo parlamentar do Partido Socialista e professora universitária
António Topa Gomes – Professor universitário e ex-deputado
Augusto Santos Silva – Professor universitário e ex-presidente da Assembleia da República
Catarina Martins – Eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda
Constança Urbano de Sousa – Professora universitária e ex-ministra da Administração Interna
Dino d’Santiago – Músico, compositor e ativista
Fabian Figueiredo – Presidente do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda
Inês Sousa Real – Deputada e porta-voz do PAN
Isabel Mendes Lopes – Presidente do grupo parlamentar do Livre
Isabel Oneto – Deputada e ex-secretária de Estado da Administração Interna
João Miranda – Professor universitário e advogado
Joaquim Sousa Ribeiro – Professor universitário e ex-presidente do Tribunal Constitucional
Jorge Reis Novais – Professor universitário
José Leitão – Advogado e ex-alto-comissário para as Migrações e Minorias Étnicas
Manuel Loff – Historiador e professor universitário
Maria João Antunes – Professora universitária e ex-juíza do Tribunal Constitucional
Maria de Lurdes Rodrigues – Professora universitária e ex-ministra da Educação
Rui Pena Pires – Professor universitário e coordenador científico do Observatório da Emigração
Rui Tavares – Deputado e dirigente do Livre
Carta Aberta de Profissionais de Saúde contra a limitação do acesso ao SNS a cidadãos não nacionais
Somos profissionais de saúde e rejeitamos a limitação do acesso ao SNS para cidadãos não nacionais prevista na alteração à Lei de Bases da Saúde aprovada no dia 19/12/2024. Esta medida viola a Constituição, a legislação europeia e o código deontológico médico. Agravará desigualdades, prejudicará populações vulneráveis e irá comprometer a saúde pública. Continuaremos a garantir cuidados a todas as pessoas, sem discriminação.
Exmo. Sr. Presidente da República Portuguesa, Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa,
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República, Dr. José Aguiar-Branco,
Exmo. Sr. Primeiro Ministro, Dr, Luís Montenegro,
Exma. Sra. Ministra da Saúde, Dra. Ana Paula Martins,
Exmo. Sr. Procurador Geral da República, Dr. Amadeu Guerra,
Como profissionais de saúde, foi com profunda preocupação e perplexidade que tomámos conhecimento da alteração da Lei de Bases da Saúde mediante a aprovação do Projeto de Lei nº384/XVI/1ª sobre o acesso de estrangeiros não residentes em Portugal ao SNS. Na sua nova redação, a Base 21 da Lei nº 95/2019, de 4 de setembro, considera que o “o acesso de cidadãos em situação de permanência irregular ou de cidadãos não residentes em território nacional (...), implica a apresentação de comprovativo de cobertura de cuidados de saúde, bem como a apresentação de documentação considerada necessária pelo Serviço Nacional de Saúde para adequada identificação e contacto do cidadão, exceto no acesso a prestação de cuidados de saúde urgentes e vitais, não dispensando a apresentação posterior de comprovativo e demais documentação necessária.”
Na prática, esta disposição legal, ao privar um segmento importante da população residente em território nacional do direito à proteção da saúde, viola a garantia de acesso de todos os cidadãos e cidadãs, consagrada no Artigo 64º da Constituição da República Portuguesa e no Artigo 35º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Serão privadas do acesso à saúde todas as pessoas que, mesmo tratando-se de trabalhadores e contribuintes regulares, aguardam há anos atribuição de título de residência devido às demoras processuais do SEF/AIMA.
No quotidiano, estes e estas utentes encontram já várias barreiras no acesso e manutenção de cuidados de saúde. Receamos, como profissionais de saúde, que a nossa prestação de cuidados à população, nomeadamente a estes e estas utentes, possa vir a sofrer uma limitação adicional, agravando desigualdades e desfavorecendo uma população que se encontra frequentemente em situação de vulnerabilidade. A exclusão, prevista neste Projeto de Lei, é particularmente prejudicial para quem necessita de cuidados de saúde e vigilância específicos, nomeadamente crianças, adolescentes e pessoas grávidas. Finalmente, alertamos para que se possa vir a colocar em risco a saúde pública de toda a comunidade, uma vez que deixa de estar assegurado o acesso gratuito e regular à vacinação, bem como a adequada abordagem de doenças transmissíveis que representem ameaça para a saúde pública.
Preocupa-nos ainda que a limitação no acesso a cuidados preventivos e atenção primária contribua para uma procura adicional pelos serviços de urgência (SU), que passarão a ser a única porta disponível de acesso ao SNS. Receamos também que esta medida contribua para o desenvolvimento, progressão e agravamento de situações patológicas graves e complexas, por ausência de abordagem e diagnóstico atempados. De acordo com a evidência gerada e publicada a partir do estudo de várias realidades europeias, este tipo de limitações representa um agravamento na despesa final em custos médicos e não-médicos. Por oposição, esta alteração legislativa não se baseia em números, ou evidência de que a sua aplicação possa de algum modo contribuir para resolver problemas estruturais ou de financiamento do SNS. De acordo com o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, menos de 1% dos episódios de urgência de 2023 foram atribuídos a estrangeiros não residentes, sem subsistema de saúde. E, nesta categoria, incluem-se os 26 milhões de turistas que visitaram Portugal nesse ano. Ou seja, o impacto dos migrantes com situação por regularizar é desprezível e não coloca em causa os serviços do SNS.
Finalmente, este Projeto de Lei colide com várias disposições previstas nos códigos deontológicos que regem as nossas profissões. No que diz respeito ao Código Deontológico Médico, o artigo 8º, relativo às Condições de Exercício, prevê que o médico não deverá aceitar “situações de interferência externa que lhe cerceiem a liberdade de fazer juízos clínicos e éticos” e o ponto 5 do Artigo 4º, relativo aos Deveres, prevê que o médico “deve prestar a sua atividade profissional sem qualquer forma de discriminação”. Neste âmbito, a serem regulamentadas e aplicadas as disposições do presente Projeto de Lei, a proteção da saúde da população visada, no âmbito da Ética e a Deontologia que regem as nossas profissões, poderá justificar ações de desobediência civil.
À semelhança da posição tomada por milhares de colegas nossos que, em França, assinaram um compromisso de honra em como iriam tratar sempre os cidadãos e as cidadãs visados/as por uma iniciativa legislativa similar, entretanto abandonada, dizemos: “Utentes daqui e de outros lados, a nossa porta está aberta para todos. E assim continuará.”
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