quarta-feira, 31 de maio de 2023

Da tese da «falta de casas» às contas que a IL não faz (I)

Insistindo na ideia de que a atual crise de habitação se resume a um problema de falta de casas, Carlos Guimarães Pinto (Iniciativa Liberal), deu recentemente à estampa um artigo em que analisa a evolução do número de alojamentos nos últimos quarenta anos. Feitas as contas, constata que Portugal ficou com «mais 758 mil casas» entre 1981 e 1991; «mais 861 mil» entre 1991 e 2001; e «mais 823 mil» entre 2001 e 2011. Ou seja, foram neste período adicionadas «mais de 800 mil casas ao mercado em cada dez anos», ao contrário do que sucedeu entre 2011 e 2021, em que «este valor caiu abruptamente de 800 mil para cerca de 100 mil». Queda que, segundo o deputado da IL, «coincidiu com uma crise da habitação».

Guimarães Pinto parece estar tão obcecado com a tese de que a crise habitacional é uma questão de oferta (falta de casas), que nem lhe ocorre espreitar o lado da procura. Isto é, saber como evoluiu, no mesmo período, o número de famílias residentes. Se o fizesse, poderia ter acrescentado, no seu artigo, que Portugal ficou com mais 223 mil famílias entre 1981 e 1991; mais 504 mil entre 1991 e 2001; e mais 393 mil entre 2001 e 2011. Ou seja, foram neste período adicionadas à sociedade portuguesa, em média, mais de 370 mil famílias em cada dez anos (que comparam, já agora, com as 800 mil casas), ao contrário do que sucedeu entre 2011 e 2021, em que este valor cai para cerca de 105 mil. Isto é, registando um aumento ainda mais reduzido que o do número de alojamentos, no mesmo período.


Considerada em conjunto, e nestes termos, a evolução da oferta e da procura, faz pois pouco ou nenhum sentido atribuir à «falta de casas» a explicação para a atual crise de habitação e a subida vertiginosa dos preços, sobretudo a partir de 2013. Como demonstra o gráfico aqui em cima, o menor aumento de alojamentos na última década é consonante com a variação do número de famílias. De resto, basta constatar que o rácio de alojamentos por família quase não se altera entre 2011 e 2021, mantendo-se em torno de 1,4. Ou seja, próximo de uma casa e meia por família. É só fazer as contas. E desiluda-se quem pense que o problema da falta de casas é específico das grandes cidades e áreas metropolitanas. Como se mostrará num texto seguinte, também aí não está em causa um alegado desfasamento na evolução do número de famílias e de alojamentos.

A explicação para a crise habitacional que Portugal (tal como a Europa) está a atravessar, terá portanto que ser encontrada noutros fatores. Desde logo, nos efeitos da crise financeira de 2007-2008 na reorientação do investimento para o imobiliário, indissociável da sua crescente internacionalização, a par da intensificação da procura turística e da adoção de incentivos à especulação no setor. Isto é, em novas formas de procura de habitação, que em muitos casos encaram as casas como meros ativos financeiros, e não nos termos «clássicos» da sua função residencial, alimentando a vertiginosa subida dos preços a que se está a assistir.

Adenda: Nos cálculos da variação intercensitária dos alojamentos, Carlos Guimarães Pinto opta por considerar o total de alojamentos, que inclui alojamentos coletivos (hotéis e convivências) e alojamentos familiares não clássicos (barracas e construções precárias). Isto é, modalidades que não devem ser tidas em conta quando se pretende aferir a oferta existente (sendo nesse sentido mais adequado considerar apenas os alojamentos familiares clássicos).

terça-feira, 30 de maio de 2023

Talvez o BCE tenha começado a perceber


Há cerca de seis meses, no seu Relatório de Estabilidade Financeira, o BCE viu «sinais de que a expansão do mercado imobiliário dos últimos anos» poderia «estar a chegar ao fim», prevendo uma «inversão do ciclo», com os financiadores de crédito imobiliário «mais cautelosos» face ao risco de a correção significativa de preços poder gerar «perdas entre os investidores». Entre os fatores que estão na base dessa inversão, o BCE destaca a sua própria opção pelo aumento das taxas de juro, que retrai as famílias na «intenção de comprar ou construir casa».

Curiosamente, e pelo menos em relação ao caso português, o BCE vem agora anunciar que os preços das casas vão continuar a aumentar, mesmo que a um menor ritmo, afirmando ser «improvável» que os valores desçam de forma acentuada nos tempos mais próximos. A justificar esta previsão, o BCE assinala dois fatores: escassez de casas no mercado e «forte procura por parte de investidores estrangeiros». E, nem de propósito, a Confidencial Imobiliário assinalou entretanto que os preços no 1º trimestre de 2023 revelam «uma intensificação face ao 4º trimestre de 2022» em Lisboa, com a variação homóloga a «superar os 15% na esmagadora maioria dos concelhos» da AML.

Talvez o caso português, entre outros, ajude de facto o BCE a perceber que o efeito da subida das taxas de juro é apenas uma das variáveis na equação do aumento ou descida dos preços das casas. Isto é, que sendo inegável o seu impacto nas opções de muitas famílias, levando-as, para já, a suster o investimento na compra ou construção, tal não significa que essa medida tenha o mesmo efeito em todos os investidores, e nomeadamente nos que, nacionais ou estrangeiros, operam a partir de lógicas especulativas.

Ou seja, e como já referimos aqui, «a expectativa do BCE quanto a um "arrefecimento" do mercado imobiliário, a ponto de o mesmo se traduzir numa "viragem" relativamente à expansão registada nos últimos anos, estará muito dependente da saúde financeira de segmentos da procura que olham para as casas como ativos de investimento». Até porque, tudo o indica, a questão da alegada «falta de casas», tanto em Portugal como na Europa - num contexto em que os salários não acompanham o aumento do preço das habitações - resulta sobretudo dessas novas formas de procura (e da sua internacionalização), e não do aumento do número de famílias ou da redução do número de alojamentos, ao longo da última década.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Não há nada para celebrar


Na semana passada, na celebração dos vinte e cinco anos do Banco Central Europeu (BCE), Lagarde declarou, com o humor possível, “whatever it cakes”. Já se sabe que quem parte e reparte… E o bolo não cresceu e a repartição é cada vez mais desigual.

Não há nada para celebrar neste quarto de século: o BCE é a melhor expressão institucional do divórcio entre democracia e capitalismo nesta zona. Numa economia monetária de produção, há poucas coisas tão cruciais como a política monetária. A moeda antidemocrática é sempre uma má moeda.

Em Portugal, o euro esteve associado a duas décadas de dependência externa crescente, investimento decrescente e estagnação persistente. Serve de pouco a convicção de que a História será severa para os que, no início da década de 1990, mudaram os estatutos do Banco de Portugal, proibindo-o de financiar o Tesouro, passo para entregar um aspeto crucial da soberania a uma instituição como o BCE: de Cavaco a Guterres...

domingo, 28 de maio de 2023

Velhas receitas

Publicado no jornal Público, a 5/8/2012

"Durante a guerra [a 2ª Grande Guerra], chegou a dizer-se, expressamente, que os operários deviam ganhar pouco para permitirem às empresas uma acumulação de lucros que lhes facilitasse modernizar-se logo que viesse a paz.
Como se sabe, obtiveram-se grandes lucros. Que foi feito a esse dinheiro que não se distribuiu em salários? Foi uma orgia. Compraram-se quintas ao desafio, cada um a arrotar a sua superioridade. "Importaram-se" amantes espanholas, aproveitando-se a fome que ali havia em consequência da Guerra Civil. E, para "mostrar o gado", como diziam, levavam-nas às touradas vestidas de sevilhanas. Havia um industrial dos lados de Guimarães que, no fim dos lautos almoços oferecidos aos amigos, dizia à mulher: "Vai buscar a cavalaria". E ela vinha com uma saca cheia de "libras de cavalinho", de ouro, que ele espalhava em cima da mesa. Depois acrescentava: "Agora traz os paus de sabão". E ela ia buscar barras de ouro. Um outro, no concelho de Famalicão, afirmava publicamente que "dava uma imagem de ouro para a igreja da freguesia se a guerra durasse mais dois anos!!!"
Assistia-se a estas loucuras quando se sabia que o povo miúdo "rapava" fome, porque muitas vezes só se encontravam artigos de alimentação no mercado negro, a preços incompatíveis com os salários que eram pagos aos trabalhadores". 
José Ricardo, Romanceiro do Povo Miúdo - Memórias e Confissões, Edições Avante!, Lisboa, 1991, p. 188)  

Manifesto nº 7 em breve nas bancas

«Por constrangimentos e contratempos muito diversos, alguns dos quais inesperados, o número 7 da Manifesto chega às bancas com alguns meses de atraso. Concebido desde o início com o dossier temático dedicado à guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro do ano passado com a invasão deste país pela Rússia, o impasse da situação fez, contudo, com que essa opção editorial não perdesse, em ampla medida, atualidade.
É bem certo, igualmente, que a preocupação em reunir um conjunto de reflexões sobre a guerra que contribuísse sobretudo para a melhor compreender e enquadrar – a partir de distintos pontos de vista, opiniões, sensibilidades e ângulos de análise – também favoreceu a circunstância de os textos do dossier se manterem, apesar de tudo, atuais. E o próprio objetivo inicial na escolha do tema, de procurar romper com as empobrecedoras visões «a preto e branco», que desde a primeira hora se instalaram no debate público, mantém também por isso a sua validade.
»

Do editorial do nº 7 da revista Manifesto, que estará disponível em livrarias e quiosques no final deste mês. Boas leituras!

Lista de Artigos:

MANON AUBRY, Dinâmicas de convergência da esquerda francesa | LOREN BALHORN, A esquerda alemã precisa de falar para a maioria da classe trabalhadora | ISABEL DO CARMO, Questões estruturais da Saúde em Portugal | MIGUEL CABRAL, Balanço da resposta à pandemia da COVID-19: a perspetiva de um médico de saúde pública | VICENTE FERREIRA, Inflação: o que sabemos até agora? | VIRIATO SOROMENHO MARQUES (entrevista por Daniel Oliveira) | BERNARDO TELES FAZENDEIRO, O mundo pós-soviético: Alargamento e autodeterminação | LUÍS CARAPINHA, A tempestade perfeita que pode levar o mundo à catástrofe: Breves notas em torno da guerra na Ucrânia | KATHARINA PISTOR, Da Terapia de Choque à Guerra de Putin | JOSÉ MANUEL PUREZA, A política externa portuguesa e a guerra na Ucrânia: Alinhamentos Imperiais | DANIEL OLIVEIRA, Os dilemas da esquerda anti-imperialista | MANUELA BARRETO NUNES, «Império do Medo»: uma exposição sobre a escravatura e o tráfico negreiro em Portugal e no mundo | ANTÓNIO MELO, A Censura, essa “porca”, citando Bordallo Pinheiro | PILAR DEL RIO, 100 anos de José Saramago | JOSÉ REIS, O neoliberalismo às claras | HERNÂNI LOUREIRO, A Tirania do Mérito - o que aconteceu ao Bem Comum? | MANUEL SAN PAYO, Ilustrações

sábado, 27 de maio de 2023

Esquizofrenia de uma mente socialista enredada

 "Se é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos..."

Periodicamente, António Costa agita o risco - verdadeiro - da ascensão da extrema-direita. Mas para essa nova realidade, os dirigentes do PS revelam dificuldade em reconhecer a sua própria responsabilidade.

Desta vez, disse ele (ver aqui):

“Sempre, ao longo da história, que a classe média se sentiu insegura e abandonada, foi quando a extrema-direita e o radicalismo conseguiu crescer”. “A classe média é quem assegura a existência da democracia. É quando a classe média se sente abandonada, desamparada, insegura, que nós temos o terreno fértil para os radicalismos se desenvolverem, para o populismo crescer e para a extrema-direita se tornar uma ameaça”. Não se pode “olhar só para os mais frágeis, só para aqueles que estão numa situação de pobreza”, reiterando que é necessário “defender as classes médias” para “proteger a liberdade e democracia” europeia. “Se nós queremos defender a nossa democracia, a nossa liberdade, se nós queremos mesmo combater a extrema-direita, nós temos de dar oportunidades à classe média e garantir às novas gerações que vão ter uma vida melhor do que os seus pais”. Essa “é a esperança e o sentido de futuro” que é preciso garantir para as novas gerações. “Sim, não chegámos lá, sabemos que é uma grande caminhada, mas, há 200 anos, quando o movimentos socialista surgiu, estávamos muito mais longe do que estamos hoje”.  “Passaram muitos anos, mas o socialismo continua a ser uma ideia muito jovem e, por isso, temos uma longa vida à nossa frente”. Antes do discurso de António Costa, num painel intitulado “Os socialistas cumprem!”, o comissário europeu do Emprego e Direitos sociais e dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores do Luxemburgo, Nicolas Schmit, elogiou a governação do PS : “Caro António, acho que mostraste que há uma alternativa socialista que funciona, porque a austeridade não funcionou, o neoliberalismo não funcionou… O que eles produziram foi muitas pessoas no desemprego, na pobreza”.  Costa “mostrou que as políticas democráticas sociais, a solidariedade e a inovação social não são produtos de sonho, mas políticas concretas feitas por socialistas e sociais-democratas”. “As políticas sociais que estão a ser desenvolvidas, com sucesso, em Portugal e Espanha, mostram que se pode ter uma economia forte, inovadora, baseada na solidariedade e, ao mesmo tempo, políticas sociais que tentam não deixar ninguém para trás”.

Deixe-se passar o conceito difuso de classe média - que esbate da equação algo tão claro na teoria marxista do valor (ver aqui e, mais recentemente aqui) - e pense-se apenas nas razões dessa classe para se sentir "abandonada, desamparada, insegura". Agora, enumere as políticas seguidas ao longo de 40 anos pelo Partido Socialista - e omita da discussão o mau uso do conceito Socialista

Olhando para trás, discuta-se a clara responsabilidade do PS de Mário Soares no enraizamento das ideias do FMI em Portugal na década de 70 e 80 do século XX. A importação dessas ideias foi combinada com a CEE como forma de obstar ao receio de uma revolução em Portugal (um segundo Kerensky que se recusou a sê-lo) e acabou por colocar em terra os primeiros tijolos de um modelo de desindustrialização (de "desoperarialização" social) e de baixos salários, desenhado para este canto ocidental (calcanhar da NATO) pelas políticas de cariz neoliberal, de matriz internacional ou europeia.

O PS de Constâncio abriu, como o defendia Cavaco Silva, as portas da Constituição às privatizações neoliberais que deram cabo de um poderoso sector público, alavanca possível de um desenvolvimento planeado do país. Em vez disso, veio apenas a sua venda a capitais estrangeiros e a sua desarticulação. O PS de Guterres aderiu a tudo o que implica a criação neoliberal de uma moeda única europeia, seduzindo os ratinhos trabalhadores da classe média com o toque da aveludada flauta das baixas taxas de juro (com que pudessem comprar carros e casas), mas sem que percebessem que, a partir daí, os ajustamentos económicos se fariam através do desemprego e dos baixos salários. O PS de Sócrates aderiu ao desequilibrado modelo laboral - introduzido pelo Governo Durão Barroso e pelo seu raivosamente anticomunista ministro do Trabalho, Bagão Félix - ao criar um Código de Trabalho nascido no ventre dos escritórios de advogados e das confederações patronais, cujo corpo legal retirou aos trabalhadores da dita classe média o amparo do Estado numa relação desigual. Estes efeitos foram ainda ampliados pelo rolo compressor legislativo do Governo Passos/Portas com a sua legislação de Agosto de 2012. O PS de Costa, preso pela rédea europeia, pouco fez para reverter essas normas gravosas da legislação laboral de Passos Coelho - justificando essa atitude política com a "estabilidade legislativa", na verdade antes desestabilizada a favor do patronato. Tudo isso consolidou o embaterecimento do valor do trabalho, a desregulação dos tempos de trabalho (minando a histórica regra de 1919 de 8 horas de trabalho, 8 horas de ócio e 8 horas de sono - ver aqui Caderno nº13) e contribuindo para esvaziar a verdadeira barreira à extrema-direita - o movimento sindical. A frágil agenda do Trabalho Digno e a adesão à tese patronal de que os aumentos salariais aceleram a "espiral inflacionista" deixam muito a desejar nesse capítulo. 

A direita e o PS seguiram, pois, políticas que enredam a economia portuguesa numa teia de actividades de baixa produtividade e baixos salários e que o arrastam para o fundo, para a pobreza dos seus habitantes e para uma parte cada vez menor na rerpartição do rendimento criado.

Como se não bastasse, o Governo Costa aceitou as estúpidas metas orçamentais do Tratado Orçamental - ainda que dizendo discordar delas - e adoptou o slogan da direita de "contas certas", achando que é possível conciliar essa austeridade com a manutenção do Estado Social. Mas nunca reconhece que, regras neoliberais desenhadas precisamente para esvaziar o Estado Social, estão precisamente a pôr em causa os direitos à saúde e educação públicas que o PS diz defender com unhas e dentes.  

Para tornar o modelo viável e camuflar os elevados défices externos, o PS e a direita tiveram de promover o turismo como estratégia nacional. Deixou-se entrar - sem peias e até com apoios fiscais - os poderosos ricos estrangeiros no mercado  laboral e da Habitação, ao mesmo tempo que compensou a crescente emigração de nacionais qualificados com a barata e desprotegida imigração de pobres do mundo, expulsando os pobres da classe média - nacionais e estrangeiros - para os arrabaldes das grandes cidades e impedindo-os de ter uma habitação condigna. A dita classe média dos trabalhadores vive cada vez pior num mundo cada vez mais impossível.  

Se António Costa é sincero nos seus receios sobre a ascensão da extrema-direita (e o discurso assim lhe sai), terá porém que mudar muito na sua política. Teria de se virar do avesso. E o problema - mais grave! - é que este PS já não vai ser capaz de o fazer. 

Por isso, as palavras de António Costa surgem apenas da cegueira de quem foi enredado num mundo do qual já não consegue sair. E a quem já só sobram as boas palavras.  


sexta-feira, 26 de maio de 2023

Primavera das Ocupas, outono do capitalismo fóssil


Abril da Liberdade trouxe a “Primavera das Ocupas”, a segunda onda de ocupações de estabelecimentos do ensino secundário e superior (a primeira foi em novembro de 2022) no âmbito do movimento internacional “Fim ao Fóssil: Ocupa!”. As reivindicações são inequívocas e, sobretudo, urgentes: o fim do investimento em combustíveis fósseis em Portugal até 2030 e eletricidade de fontes 100% renováveis, acessível a todas as famílias, até 2025. Estas exigências revelam uma aguda consciência política: de facto, não existe justiça climática sem justiça social.

O resto da cónica pode ser lida no setenta e quatro.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

E depois de Crato?

Foram recentemente divulgados os resultados do PIRLS 2021, que avalia os níveis de literacia de leitura em mais de 50 países. Pela primeira vez, as provas foram realizadas em formato digital, tendo Portugal obtido uma classificação de 520 pontos, que lhe atribuiu o 22º lugar entre 43 países que realizaram a prova no final do 4º ano de escolaridade.

Sendo 2021 o ano de transição para o digital, a IEA, responsável pela aplicação do PIRLS, incluiu no exercício uma amostra de provas em papel, que sendo igualmente representativa permite a comparação, nos mesmos termos, com os resultados das edições anteriores. No caso de Portugal, que participou também no PIRLS de 2011 e de 2016, observa-se em 2021 uma ligeira melhoria nos resultados (de 528 pontos para 531), invertendo a quebra observada entre 2011 e 2016 (de 541 para 528 pontos).


Para quem, à direita, gosta de ver nestes exercícios uma tradução simplista e imediatista das políticas (como fez Nuno Crato em relação aos resultados do PISA 2015, cujo mérito se apressou a atribuir às medidas por si implementadas), as notícias não são boas. De facto, o pior resultado de Portugal nas três edições do PIRLS em que participou registou-se em 2016, com alunos que frequentaram o 1º ciclo do ensino básico entre 2012/13 e 2015/16, quando Crato era ministro da maioria PAF. Ou seja, alunos sujeitos à sua visão empobrecida do currículo e às metas e exames nacionais anacrónicos da «4ª classe», que o ex-ministro ressuscitou.

Curiosamente, são os alunos que frequentaram o 1º ciclo do ensino básico ainda na alegada «década perdida» da educação - como lhe chamou Crato - que tiveram, em 2011, o melhor resultado de Portugal no PIRLS. A que se segue, como já referido, o valor alcançado em 2021, cujos alunos iniciaram e completaram o 1º ciclo já num novo paradigma educativo, com o governo PS suportado por uma maioria de esquerda no parlamento.

Assim, não excluindo a influência das orientações de política de educação na análise deste tipo de resultados, o dado porventura mais relevante do PIRLS 2021 resulta do facto de a ligeira melhoria observada na literacia de leitura ter ocorrido apesar da pandemia e dos seus impactos nos alunos e nas escolas. O que admite considerar que, sem a crise pandémica, esses resultados poderiam ter sido ainda melhores, permitindo uma maior aproximação aos valores registados por Portugal no PIRLS de 2011.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Cavaquismo


Já perdi a conta ao número de pessoas que insultam Cavaco à boleia da sua provecta idade, uma prática verdadeiramente lamentável. Já perdi a conta ao número de pessoas que criticam Cavaco pela sua suposta incultura, uma prática verdadeiramente elitista e equivocada (publicou mais de uma dezena de livros...). Já perdi a conta ao número de pessoas que continuam a subestimar aquele que é, desgraçadamente, o mais bem-sucedido político da democracia portuguesa. Assim, não vamos lá. Precisamos de cabeça fria e de coração quente. 

É claro que são mais os que denunciam, e bem, as contradições de Cavaco, o seu azedume e ressabiamento, as formas de economia política que favoreceu, os padrões desiguais, plutocráticos e dependentes a que os seus governos e influência deram origem. Valha-nos isso. Em algumas páginas de O Neoliberalismo não é um Slogan, adotei o método de levar a sério o intelectual público consequente, economista resolutamente político, apesar dos disfarces ideológicos, com uma escrita clara e depurada. Dois parágrafos (com referências omitidas): 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Expectativa racional


Na semana passada, faleceu Robert Lucas (1937-2023), prémio “em memória” de Alfred Nobel, atribuído pelo Banco Central da Suécia, em 1995. A seguir a Milton Friedman, foi o mais influente economista de Chicago, pai de Chicago Boys mais dados à construção de modelos.  

Contribuiu para que a macroeconomia convencional fosse reduzida a uma microeconomia, marcada pela seguinte hipótese “comportamental”: “o” agente económico é um demiurgo, omnisciente e omnipotente; as “expetativas racionais”, no fundo. Os mercados sem fim, povoados por este agente representativo, são eficientes e autorreguláveis e a melhor política económica é a ausência de política e daí a sua proclamação da morte do keynesianismo em 1979, ano do choque de Volcker. Só na mais policiada das ciências sociais é que fantasias ideológicas, disfarçadas por símbolos matemáticos, passam por ciência. E a morte de Keynes foi manifestamente exagerada. Afinal de contas, a realidade tem um enviesamento que lhe é favorável.

Em 2003, num revelador discurso, enquanto Presidente da American Economic Association, saudava a estabilidade do capitalismo neoliberal, a capacidade dos economistas e das economias para superar em definitivo o problema da depressão, focando-se no que importa: políticas económicas a favor dos ricos, perdão pela imprecisão, “políticas da oferta orientadas para o longo prazo”, que “aumentem o incentivo para poupar e investir”, porque a sabedoria convencional diz que o investimento depende da poupança (é ao contrário, logicamente, numa economia monetária de produção centrada no crédito). 

A sua complacência, chamemos-lhe assim, foi a de uma comunidade inteira, com cada vez mais poder para atirar para a margem a tradição marxista e keynesiana, que insistia em estudar a realidade genuinamente macroeconómica, feita de conflito distributivo, incerteza radical, instabilidade financeira dos mercados liberalizados, moeda endógena, falácias da composição, racionalidade contextual, euforia e pânico, mecanismos causais reais, etc. 

Os factos brutos do capitalismo realmente existente, a prática da política económica ou a passagem irreversível do tempo histórico, numa época de “policrises”, também graças ao poder deste estado de espírito, tornam estas ideias de novo visivelmente irrelevantes, exceto para os académicos (e são muitos) que construíram carreiras e reputações em torno delas e dos seus “desenvolvimentos”. Haja, apesar do retrocesso das últimas décadas, confiança no progresso nas próximas, expectativa que creio racional em contexto de incerteza radical.

domingo, 21 de maio de 2023

Dêem-lhes comprimidos vermelhos

Fotogramas retirados do filme Matrix

As sessões da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP lembram aquela cena do filme Matrix em que Morpheus dá a escolher a Neo como é que ele quer que viver o resto da sua vida.

Para quem não é iniciado nesta filmografia, o comprimido azul faria Neo esquecer esta opção, continuando a viver num mundo artificial que apenas existe na sua cabeça, através da plataforma (Matrix), enquanto na realidade o seu corpo está em coma, a produzir energia para um universo de máquinas; se Neo tomar o comprimido vermelho, o seu corpo liberta-se desse mundo artificial e essa nova consciência obrigá-lo-á a lutar por outra vida, real e dura, mas autónoma, num mundo de escravos libertados.

Este limiar da consciência emancipadora é uma metáfora daqueles momentos em que a História parece evoluir por saltos: uns que contribuem para essa progressiva emancipação da vida dos explorados, mas que não evitam - antes justificam - movimentos subsequentes de recuo. No caso pequeno de Portugal, já aqui se lembrou um desses momentos.

A forma como a CPI se está a processar parece ser outra metáfora desses momentos. Primeiro, porque não se debruça sobre tudo o que correu mal no processo privatizador da TAP e no consequente processo nacionalizador. Bruno Dias, do PCP lembrou-o (ver aqui):
"Em 2000, a TAP também ia falir se não fosse privatizada. Afinal faliu a empresa que a ia comprar, a Swissair, e a Sabena que esta já havia adquirido! Em 2012, também era inevitável privatizar a TAP ou falia. A venda foi travada no último momento, e quem já faliu foi a Avianca, que ia comprar a TAP. E em 2015, era inevitável privatizar a TAP pois tinha capitais negativos de 500 milhões de euros. Esses capitais eram 200 milhões de euros mais negativos em 2019, depois de 4 anos de gestão privada. E quando chegou a pandemia, os privados meteram-se ao fresco, e nós tivemos de ir tapar os buracos que a gestão privada abrira, mais os buracos das várias tentativas de privatização." Ou seja, (...) a TAP sobreviveu exactamente porque não foi privatizada e, quando o foi, sobreviveu porque foi renacionalizada. (...) Há mais de 30 anos que a política de liberalização do sector aéreo tem como objectivo destruir as soberanias nacionais e concentrar o sector aéreo em 2 ou 3 empresas de escala europeia, apoiadas nos Estados centrais da UE, a Alemanha e a França (e o Reino Unido enquanto por cá andou). Não por acaso são três as companhias aéreas bandeira da UE autorizadas a conservar a sua dimensão nacional: a Lufthansa, a KLM/Air France e a British/Ibéria, que têm vindo a absorver outras companhias e que agora querem absorver a TAP, deixando-a subordinada à estratégia dessas companhias, colocando o hub de Lisboa como subsidiário do de Frankfurt, Londres, Paris ou Madrid, liquidando a soberania nacional em mais um sector estratégico.
Em segundo lugar, porque a CPI orienta-se, sim, para fragilizar - ainda mais! - um governo que perdeu o seu norte reformador (desde que pôs fim à aliança à esquerda) e que só se concentra no ilusório status quo de que, agora que o BCE retirou o açaime aos mercados financeiros, a contenção da intervenção pública oferece mais garantias de que os donos dos mercados não ataquem a dívida pública portuguesa.

Muito por responsabilidade do Governo, a extrema-direita cavalga, impante, os trabalhos da CPI , alargando - sem mandado - o âmbito da sua intervenção e impondo o carreamento de cada vez mais elementos que municiam um ataque político, orientado para o empolamento pela comunicação social (já a funcionar em manada), sem outra meta que não a queda sucessiva de membros do Governo até atingir o primeiro-ministro (está quase!). Os dois partidos de extrema-direita quase parecem putos de escola, à frente de uma silenciosa cãmara de televisão, a gritar: "Tenha coragem", "apareça se é homem", "não és homem nem és nada se não vieres à CPI" discutir quem deu mais murros no ministério.

Em 2010/2014, o discurso "temos de fazer o que os mercados quiserem" serviu para realizar uma agenda de desmantelamento do Estado Social e das relações laborais. Hoje, o mesmo discurso não terá um resultado diferente.

O Governo e o PS que tomem, pois, rapidamente um compromido vermelho porque, muito em breve - caso nada seja feito - quem está por detrás do financiamento da extrema-direita prepara-se para impor uma agenda bem mais radical de desmantelamento do que resta do Estado Social: menores receitas fiscais, apropriação da principal instituição financeira nacional (CGD) e e privatização da Protecção Social, a par da continuação da delapidação da Saúde e Educação públicas. Já nem falo do escândalo que se passa na Habitação...

sábado, 20 de maio de 2023

Privatizar é bom, mesmo que seja péssimo



A PT deixou de ser quem mais investia em tecnologia e investigação, a Cimpor quase desapareceu, os CTT passaram de marca prestigiada a exemplo de incompetência, a ANA multiplicou as taxas, a EDP e a REN estão nas mãos da China.

Daniel Oliveira, a quem roubei a bicicleta, neste caso o excelente título desta nota, resume bem os custos sociais da economia política das privatizações das últimas três décadas, no país que mais privatizou na UE até 2002, em percentagem do PIB (mais do que a Grande-Bretanha de Thatcher, por exemplo).

Se é verdade que foi Cavaco Silva quem iniciou as privatizações, com a revisão constitucional pactuada com Vítor Constâncio, das cervejas à banca, também é verdade que foram os governos PS os que mais privatizaram. Tal como Blair foi, assumidamente, o maior triunfo de Thatcher, Guterres e Sócrates foram os maiores triunfos de Cavaco e de Durão. A neoliberalização da social-democracia passou por aqui ou pela correlativa UEM (e quem se lembra do entusiasmo, na segunda metade de noventa, em relação a moeda única nessas bandas?). Haja memória, haja história recente da economia política.

E, sim, ainda têm o topete de dizer que as iniciativas liberais nunca existiram neste causticado país, também assim sem soberania.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Tínhamos professores a mais, não era?


«À boleia das reivindicações dos professores e do pessoal não docente, o ex-ministro Nuno Crato tem reaparecido na comunicação social. Entre outras omissões, parece ter-se esquecido da sua irresponsável posição, quando afirmou que Portugal tinha professores a mais (tutelava já a pasta da Educação), para defender que a diminuição do seu número era "inevitável nos próximos anos".
(...) Quando o problema da falta de professores se começa a tornar por demais evidente, Nuno Crato nem pestaneja, afirmando, em novembro de 2021, que se trata de "um drama anunciado há muito tempo". Não lhe ocorre, portanto, que foi no seu consulado (2011 a 2015), que se assistiu à maior redução de professores alguma vez registada, com uma decréscimo acima de 30 mil docentes (ou seja, -20%), e que afetou sobretudo o 2º e 3º ciclo do ensino básico e o ensino secundário
».

O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Tempo de antena até dizer chega


Para lá do tempo de antena até dizer chega, onde comunista não entra, não se esqueçam, entre muitos outros sinais de declínio editorial nas televisões, da poluição ideológica dominical, do internacional entregue aos guerreiros de sofá ou do programa todo: os economistas que não acertam uma. 

A coisa está de tal ordem que, num programa chamado É ou não É – É, É, É, É seria um nome melhor –, a jornalista Ana Lourenço usou a maldita palavra “colaborador” e teve de ser corrigida por um gestor de topo: “não há colaboradores, mas sim trabalhadores”. 

Num registo perigosamente radical e fora do plano, o tal gestor também garantiu que seria prudente aumentar os salários, no caso de faltarem trabalhadores, para lá de dar uma breve lição sobre quem é que cria tudo o que tem valor, algo que sabemos pelo menos desde Adam Smith...

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Haja limites


Ontem entrei na livraria Almedina do Estádio, em Coimbra, e lá estava, em grande destaque, o livro: Os Limites Sociais do Crescimento, da autoria do economista britânico Fred Hirsch (1931-1978), editado pela Actual, uma das chancelas da Almedina. 

Publicada um ano antes de 1977, o ano em que nasci, é, a par de A Grande Transformação (1944), de Karl Polanyi, a obra que mais me marcou. Li-a no início do milénio. E influenciou-me tanto que escrevi, em co-autoria com Luís Francisco Carvalho, um artigo académico a chamar a atenção para a sua relevância, aquando do trigésimo aniversário da sua publicação. 

Tal como Polanyi, Hirsch tinha atrás de si uma carreira de jornalista financeiro quando publicou, aos quarenta e cinco anos, o seu Magnum Opus. Foi editor financeiro da The Economist e economista no FMI, antes de alcançar uma posição académica na área de estudos internacionais, em Warwick, durante um período infelizmente muito breve. 

Tal como A Grande Transformação, este é um livro que cruza economia política e economia moral. No entanto, como é claro, tem por referência um contexto histórico radicalmente diferente, o dos anos 1970, marcado pelo relatório do Clube de Roma, pela turbulência económico-financeira e suas declinações civilizacionais, depois do período de capitalismo gerido dos trinta gloriosos anos, cujas contradições não deixa de assinalar de forma original e penetrante. 

O livro em causa ficou sobretudo conhecido por nos ter legado o conceito de “bem posicional”, um tipo de bem cuja importância cresceria com o desenvolvimento de uma sociedade capitalista. O conceito de bem posicional foi depois popularizado, com a devida referência, por Sheldon, na hilariante série A Teoria do Big Bang, como “um objeto que é valorizado na medida em que não é possuído por outros, substituindo o mais coloquial, mas mais impreciso, ‘na na na naaaa’”. O egoísmo estaria sendo institucionalizado pela proliferação destes bens, cuja gestão mercantil só aumentaria a frustração social.

Num exercício de grande elegância conceptual e histórica, Hirsch parte deste conceito para explorar muitas dinâmicas intencionais e não-intencionais do capitalismo do seu tempo, sublinhando como os mercados nos podem trancar numa “tirania de pequenas decisões” geradora de resultados perversos. Entre estes está a erosão de valores, da moralidade, que os próprios mercados, necessariamente limitados, requerem para o seu regular funcionamento, o argumento central num livro absolutamente marcante. Espero que a tradução esteja à altura da escrita clara e depurada de Hirsch, resultado de muito treino.

Adenda: Agora falta traduzir o melhor livro de Albert HirschmanExit, Voice and Loyalty – por razões que Alexandre Abreu elencou numa análise bem prática há uns anos. E, de preferência, com uma introdução contextualizadora, com meia dúzia de artigos complementares de Hirschman em suplemento. Ofereço graciosamente os meus serviços de análise de economistas mortos, liberais ou antiliberais...

terça-feira, 16 de maio de 2023

Ecoar


Uma vez mais, «os economistas»


Na edição online de sábado, numa peça sobre a subida do desemprego e a descida dos salários reais, o ECO quis saber «como os economistas olham para o futuro». Para concluir, logo de seguida, que «os economistas dividem-se entre os mais otimistas e os mais pessimistas sobre o futuro».

Com a referência a «os economistas», presumir-se-ia que o ECO cuidou devidamente de auscultar sensibilidades distintas, ouvindo os dos mais diversos quadrantes políticos e correntes do pensamento económico. Mas não, claro. Rapidamente se constata, sem surpresa, que estamos perante o velho e relho monolitismo de opinião, os monólogos com ligeiras nuances dos «Dupond e Dupont» do costume. Tudo isto, claro, sob uma capa de aparente pluralismo (ah, «os economistas»).

Ou seja, o ECO não só não ouviu «os» economistas, como os economistas que ouviu não são uns economistas quaisquer. Basta ter memória para constatar que o naipe auscultado esteve, em regra, «na primeira linha de defesa da troika e de uma política destrutiva de austeridade», que elevou o desemprego a níveis históricos, à perda de rendimentos, a cortes nos subsídios de desemprego e noutros apoios sociais, a par da desregulação da legislação laboral.

O ECO tem, evidentemente, todo o direito a estabelecer a sua linha editorial. Mas deveria então, em coerência, apresentar-se com «os seus economistas», em vez de dar a entender que ouviu «os economistas»

Adenda: Para quem for mais dado a preocupar-se apenas com o equilíbrio de género no debate político-económico, registe-se ainda o facto de o ECO ter apenas consultado, para preparar esta notícia, economistas homens.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Breaking News: Economistas apanhados em fora de jogo, outra vez

Decorre, neste momento, no twitter, um evento especialmente interessante para quem quiser perceber os problemas com a Economia dominante. Um dos líderes mundiais do campo da macroeconomia descobre, com enorme candura, que talvez o multiplicador monetário seja irrelevante.

Escreve Blanchard:
Ao rever o meu manual de macro, estou ansioso para obter informações sobre o seguinte: num ambiente de grandes reservas bancárias remuneradas e generosa provisão de liquidez pelos bancos centrais, como se deve pensar sobre o multiplicador monetário? Que se tornou irrelevante, ou não é bem assim?
Para quem não sabe, o multiplicador monetário é um conceito associado à criação de moeda, que assume que o Banco Central cria reservas - a chamada base monetária - que depois são multiplicadas pela banca comercial, completando a oferta total de massa monetária. Neste modelo, os Bancos Centrais seriam capazes de controlar a quantidade de moeda em circulação gerindo a quantidade de reservas já que o multiplicador corresponde a uma relação estável entre base monetária e moeda em circulação. 

O problema é que a criação de moeda não funciona assim. Pelo contrário, os bancos comerciais é que iniciam o processo de criação de moeda no ato de conceção de crédito à economia. As reservas são procuradas pelos bancos junto do Banco Central apenas posteriormente, para fazer face às suas necessidades, por exemplo, de pagamento junto de outros bancos. O que o Banco Central controla é a taxa de juro, para desta forma influenciar a estrutura de custos da banca e indiretamente, influenciar o investimento e o consumo no geral. Está tudo muito bem explicado no Boletim do Banco de Inglaterra dedicado ao tema da criação de moeda.

Isto está longe de ser um mero aspeto técnico, já que tem implicações fundamentais em questões como a inflação ou a despesa pública, mas, no entanto, o modelo do multiplicador monetário continua a povoar, virtualmente todos os manuais de introdução à economia e a influenciar os modelos mais complexos que informam as decisões de política económica com que somos confrontados.

Volta e meia surge lá um exemplo destes. Um leading economist descobre algo que os autores heterodoxos já dizem (sem exagero) há décadas. Autores como Paul Davidson, Charles Goodhart, Basil Moore, Thomas Palley, Randall Wray, Steve Keen e muitos muitos mais rejeitam o modelo do multiplicador monetário, nalguns casos, desde, pelo menos, os anos 70.

O já referido artigo do Banco de Inglaterra até cita três autores pós-keynesianos para mostrar a existência de uma vasta literatura que recusa o modelo do multiplicador monetário e defende a endogeneidade da oferta de moeda.

A Economia dominante lá avança, correndo e rindo, sem precisar de aderir à realidade e sem precisar de dialogar sequer com a heterodoxia que é mantida, à força, nas suas franjas. Basta ver o que aconteceu, por exemplo, a Paul Davidson.

É mais um caso para usar da imagem:


Prémio "E se subissem JÁ os salários fixos?"


António Rios Amorim no debate organizado pela Lusa/COTEC Portugal, em Lisboa, dedicado ao tema atrair e reter melhores talentos: 

«Queremos é que o talento criado e desenvolvido em Portugal fique em Portugal e que realmente consiga criar valor para a economia portuguesa» [Queremos todos]. Há um «conjunto muito grande de jovens licenciados a sair de Portugal para ter uma experiência profissional». «Poucos regressam, 61% daqueles que emigram não regressam». O país, as empresas portuguesas, têm de fazer mais para que este talento «que tanto custou a formar» fique em Portugal [Muito bem!] As empresas «têm por elas próprias de criar mecanismos de atracção e de retenção destas pessoas tão talentosas que temos [Parece bem!], e o Estado tem de dar um contributo absolutamente determinante [Absolutamente determinante?!] por uma política fiscal competitiva [Então não são as empresas que devem competir entre si? E o Estado não deve regular apenas o mercado?], que permita que estas pessoas, quando se compara a remuneração líquida que ficam a auferir em Portugal com aquela que vão auferir noutros países, prefiram ficar em Portugal» [Se o salário bruto aumentar, a remuneração líquida sobe também...]. «Isso faz-se uma parte pelos salários fixos [ora aí está!], mas no nosso ponto de vista, faz-se também muito pelas contribuições que se pagam naquilo que são as remunerações variáveis [Porque não apenas nos salários fixos?...], muitas vezes ligadas à própria meritocracia e ao valor que estas pessoas acrescentam às empresas para as quais trabalham». O OE para 2024 «tem de encarar já [""?! Isso parece muito PREC...] medidas claras de suporte fiscal à retenção de talento em Portugal», em sede de IRS. Para que «Portugal consiga competir com outros países que olham para o nosso talento de forma ávida (...) temos de fazer mais rapidamente». Se os salários «são tão importantes nesta decisão» dos jovens de emigrar, é preciso «ir directamente à raiz do problema» [Sim, aumentando os salários fixos...]. «Vamos ter dificuldade muitas vezes em fazer isto nos salários fixos [Mas porquê? A Corticeira não teve lucros de 98 milhões de euros em 2022 (Mais 32% do que em 2021, correspondente a 70% do que pagaram nesse ano em salários!), e que até já subiram 18% no 1º trimestre de 2023...? Ver aqui]. Nos salários dos jovens que entram nas empresas poderíamos fazer alguma coisa [Alguma coisa?!], mas sobretudo na parte incremental da remuneração variável, ligada a objectivos ou partilha de resultados das empresas», ou na parte das stock options nas startups ou nos unicórnios [Porquê sobretudo na parte variável? Para que a empresa a possa retirar rapidamente, fazendo com que os trabalhadores sintam vontade de fugir outra vez?]

Anexos

Poluição ideológica


Luís Marques Mendes é consultor da Abreu Advogados desde 2012, exercendo também o cargo de Presidente do Conselho Estratégico da sociedade e integrando o Grupo Angolan Desk. Antes de integrar a Abreu Advogados, exerceu advocacia durante os anos oitenta, atividade profissional que veio a interromper para exercer, durante duas décadas consecutivas, cargos de natureza política, parlamentar e governativa (...) Já depois de abandonar a vida política, e antes de integrar a Abreu Advogados, foi administrador em várias empresas ligadas ao setor da energia. Atualmente, fora da vida política ativa
[risos], é membro do Conselho de Estado designado pelo Presidente da República e comentador de política nacional e internacional num grande canal de televisão português. 

Apresentação na Abreu Advogados.

Paulo Portas é Vice-Presidente da Confederação de Comércio e Indústria de Portugal, para além de Presidente do Conselho Estratégico da Mota Engil para a América Latina. Desempenha também cargos de administração no board internacional de Petroleos de Mexico (Pemex) e faz ainda consultoria estratégica internacional de negócios, sendo para efeito founding partner da Vinciamo Consulting. Dá aulas de mestrado Geo Economics and International Relations na Universidade Nova e na Emirates Diplomatic Academy; dirige seminários sobre internacionalização e risco político para quadros de companhias multinacionais e é ainda presença frequente na televisão em comentários de política internacional e speaker da Thinking Heads em conferências. Foi ministro da Defesa, ministro dos Negócios Estrangeiros e Vice-Primeiro Ministro de Portugal. 

Apresentação na Llorente&Cuenca, “a consultora líder na Gestão de Reputação, Comunicação e Assuntos Públicos em Portugal, Espanha e na América Latina”.  

Ao domingo à noite são emitidas quantidades particularmente elevadas de poluição ideológica televisiva, em sinal aberto, uma concessão pública, o que implica deveres. 

A economia política marxista mais simples explica este monopólio de facilitadores dos grandes negócios das direitas: as ideias dominantes são as da classe dominante, sem contraditório. 

A economia política neoclássica, para lá do mau manual, também pode ser mobilizada por analogia: se assumirmos a hipótese de que as preferências têm de ser (in)formadas, podemos estar perante externalidades negativas, em que a poluição ideológica incontida prejudica precisamente o tal processo de (in)formação. 

As prescrições são claras: regular e taxar, diria a economia política neoclássica; alterar as relações de propriedade, diria a economia política marxista. Dado o estado de demissão da ERC e do Governo, que chegou a subsidiar estes grupos, qual é a saída para este estado de coisas? 


domingo, 14 de maio de 2023

Furar o cerco

Constatou-se ontem, com alegria, que o curso de formação sobre neoliberalismo, em Coimbra, teve muito mais gente do que o cerco do partido fascista à sede do PS, em Lisboa. Agradecendo aos liberais até dizer chega por toda a divulgação, reafirmamos dois pontos essenciais: não nos intimidam e a instrução ajuda sempre a bater a reação.

sábado, 13 de maio de 2023

13 de Maio


Pobreza extrema. Fome. Escassez de acesso a informação que não fosse o missal debitado em língua desconhecida para quem o ouvia (o latim). Crianças suscetíveis a uma crónica de eventos onde a aparição, o milagre, o pecado e a expiação são omnipresentes. Poderes conservadores assustados com o ateísmo republicano e sempre em busca do ensejo de contra ele virarem o povo que controlavam. Imprensa ultramontana e sensacionalista disposta a amplificar qualquer evento que se opusesse ao republicanismo. Total ausência de escrúpulos. Manipulação de massas pelo castigo e pela salvação divinas. 

Cada um crê no que quer. Mas, no caso de Fátima, o que se descreve acima está bem documentado em já extensa investigação histórica. Celebrar o 13 de Maio é glorificar o mais triste uso da religião por parte das elites. Primeiro nos anos finais da República e depois plenamente incorporado na doutrina oficial do Estado Novo com o advento do fascismo. 

Sempre usado para preservar o poder de minorias pela força, quando a democracia liberal se mostra incapaz de garantir uma ordem que não lhes ameace o poder, o fascismo precisa sempre de se socorrer de elementos que lhe permitam forjar a popularidade ou, pelo menos, a branda aceitação entre a maioria do povo cujos impulsos teme e  a cujos interesses se opõe. Como o fascismo doscobriu durante o século XX (e os neo-fascismos continuam a explorar no século XXI) a religião é talvez um dos mais poderosos entre esses elementos. 

Expurgado da religiosidade usada por alguns para limitar o seu escrutínio histórico,  Fátima é somente um legado do obscurantismo herdado pelo Portugal democrático. 

Celebrá-lo com o fervor e ausência de espírito crítico a que todos os anos se assiste é o retrato do falhanço da trajetória emancipatória de um povo.


Não sei o que é que fica | Urgentemente


Quando nem se identifica 
Com essa calçada refeita 
Com essa fachada que foi feita 
Para dar uma cara de outrora 
A um fascismo de agora
Que só quer saber da receita
Na sede excêntrica
(...)
é sempre bem vindo quem venha por bem
problema é haver uma casa pra cem
salários tão baixos amarga a batuta
que felicidade interna tão bruta



É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Cercos


O partido a quem só a palavra fascista pertence está a organizar um cerco à sede do PS no Largo do Rato, em Lisboa.

O clube capitalista internacional dito de Bilderberg reúne em Sintra para aprofundar as formas de economia política que têm dado tração a estes novos rosto do fascismo.

Do centro de Lisboa a Sintra é um saltinho. É a distância que vai de Ventura a Durão, de fascistas a avençados das Goldman Sachs.

Lisboa: novas procuras de habitação e recomposição social urbana

De acordo com os censos de 2021, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) aumentou em cerca de 1,7% a sua população residente (2,4% caso se exclua Lisboa) na última década, sendo que a capital perdeu aproximadamente 7 mil habitantes (-1,2%). Por nacionalidades, porém, regista-se em Lisboa uma perda de cerca de 27 mil residentes nacionais (-5,3%), que é parcialmente compensada por um aumento significativo de residentes estrangeiros (cerca de 21 mil, ou seja 60%), que representam, em 2021, cerca de 10% do total da população residente (eram 6% em 2011).

Indissociáveis do despertar de interesse internacional por Lisboa - não só em termos de procura turística, mas também ao nível das novas formas de procura de imobiliário residencial, a par do impulso na atração de mão-de-obra que a própria intensificação do turismo suscitou - estas transformações não assumem, contudo, uma expressão uniforme na cidade, antes evidenciando padrões específicos de recomposição socioespacial.


Em termos gerais, e excetuando as freguesias da Misericórdia e Santa Maria Maior, que assumem comparativamente as maiores perdas de população residente (entre -5 e -10%), as variações tendem a ser ligeiras, tanto na perspetiva da redução como do aumento (oscilando entre -5 e 5%). Mas quando consideramos apenas os residentes nacionais, o acréscimo de população circunscreve-se a seis freguesias (sendo sempre inferior a 5%), prevalecendo portanto as perdas, que chegam a ser superiores a 30%, como sucede nos casos da Misericórdia e Santa Maria Maior.

Já relativamente à população residente de nacionalidade estrangeira, constata-se desde logo que nenhuma das 24 freguesias de Lisboa revela perdas, registando-se os aumentos mais expressivos (acima de 50%) em freguesias do centro e próximas do rio, incluindo o Parque das Nações e Olivais que, juntamente com as freguesias da Estrela, Campo de Ourique, São Vicente e Avenidas Novas, registam aumentos de população estrangeira residente iguais ou superiores a 75%, no período considerado.

No conjunto, é portanto clara a tendência para maiores perdas de população residente nacional nas freguesias do centro, ao mesmo tempo que é nessas áreas, e nas freguesias próximas do rio, que se verificam os maiores acréscimos a população de nacionalidade estrangeira. Dinâmicas que, como é natural, se refletem na alteração dos padrões de acesso à habitação, e portanto à cidade, como se procurará demonstrar num texto seguinte.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

No próximo sábado, em Coimbra

«O neoliberalismo: o nome e a coisa, é um curso de formação que se vai realizar na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra no dia 13 de maio, durante todo o dia, das 10h às 18h. Nós pretendemos discutir aquilo que foi e que é o neoliberalismo enquanto processo político de transformação profunda das dinâmicas do capitalismo.
Convocámos um conjunto de cientistas sociais que se têm debruçado sobre este tema. E vamos partir da relação entre o neoliberalismo e o liberalismo clássico, mostrando aquilo que é novo e também os elementos de continuidade, com base na hipótese de que o neoliberalismo é um poderoso processo de desencantamento em relação à política democrática, através da construção de uma forma de economia. Uma forma de economia menos igualitária, uma forma de economia menos capaz de gerar outros objetivos sociais.
Através de uma leitura histórica, nacional e internacional, que faremos da parte da manhã, e, à tarde, com um tratamento específico de três grandes temas: a relação do neoliberalismo com o processo de financeirização , de expansão do poder da finança e as suas consequências; a questão da ligação entre o neoliberalismo e o aumento dos direitos patronais e a redução dos direitos laborais; e, também, a relação entre o neoliberalismo e o processo de integração em parte do continente europeu.
»

Da apresentação, por João Rodrigues, autor do livro «O Neoliberalismo não é um Slogan», do curso de formação que decorrerá no próximo sábado em Coimbra: «(Neo)liberalismo - o nome a e coisa». Atendendo ao elevado número de inscrições, as sessões decorrerão no Auditório da Faculdade de Economia (e não na Sala Keynes, como inicialmente previsto), havendo ainda vagas disponíveis (email para: abrilagora74@gmail.com).

Um jornal contra a corrosão da política


A generalidade das vozes que se exprimem na comunicação social e no mundo político, com tanta unanimidade que parecem falar a uma só voz, vão gritar que «a vida» (a deles) mostrou o contrário, que há que entregar a privados a linha violeta do metro, que há que subsidiar ainda mais a saúde privada com exames e internamentos encaminhados pelo público, que há que entregar aos privados a propriedade e da gestão pública («opaca», «abandalhada», «nepotista»). Vai ter de se lhes dizer que não, que não é assim. Que ao menos na esfera pública e democrática há mecanismos para exigir transparência, qualidade e ética de serviço público. Só não desistindo da defesa da política, e de uma exigente e plural construção diária de justiça social, poderemos derrotar a profecia auto-realizada da corrosão da democracia.

Sandra Monteiro, A corrosão da política, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Maio de 2023.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Infelizmente, ainda não conseguimos livrar-nos do BCE


As famílias portuguesas, espanholas ou finlandesas que se endividaram junto dos bancos e assinaram contratos de crédito indexado a taxas de juro variáveis (euribor) “estão a sofrer” diretamente o impacto das subidas de taxas decididas pelo Banco Central Europeu (BCE), mas “infelizmente, não as podemos aliviar”, disse a presidente do BCE, Christine Lagarde, lê-se no Dinheiro Vivo.

É uma infelicidade, de facto. Mas uma infelicidade evitável.

No final de 2021, a inflação começou a subir, tendência que se reforçou com o início da guerra na Ucrânia, em Fevereiro de 2022. Em resposta, os bancos centrais adotaram uma política monetária fortemente restritiva, aumentando as taxas de juro de perto de zero para cerca de 5% e retirando reservas de circulação através de operações de venda de ativos (obrigações públicas e privadas e ações de empresas privadas) que tinham no seus balanços.

Há muito que contestamos que uma política monetária restritiva possa controlar este surto inflacionário a um preço socialmente aceitável. Um pouco por todo o lado, os salários reais diminuíram. A instabilidade instalou-se no sistema financeiro. O aumento dos preços reflecte claramente o impacto de margens de lucro historicamente elevadas e óbvios estrangulamentos da oferta.

Como se diz aqui, nestas condições, deixar o controlo da inflação aos bancos centrais é como pedir-lhes que resolvam os problemas de oferta gerados por uma má colheita agrícola. Só políticas específicas dirigidas ao aumento da produção e ao controle das margens de lucro em sectores estratégicos, e não o elevar do preço do crédito, podem surtir efeito.

No relatório de 2022 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development, UNCTAD) já se avisava: “As campainhas estão a soar” (...) O mundo está a caminhar para uma recessão global e uma estagnação prolongada, a menos que alteremos rapidamente o actual rumo das políticas de aperto monetário e orçamental nas economias avançadas.”

Agora recentemente, em Abril último, a UNCTAD tornou público um novo relatório; nele pode ler-se:

“[A] incapacidade de distribuir vacinas eficazes a nível mundial prolongou a pandemia, permitindo que alguns dos fatores mais temporários se mantivessem, acabando estes por interagir com um aumento dos preços das matérias-primas, desencadeado em grande medida nos mercados de futuros. Com o início da guerra na Ucrânia, os preços de algumas matérias-primas subiram em flecha, aumentando ainda mais as taxas de inflação, especialmente na União Europeia (...) Em consequência desta miopia política, os preços em alguns sectores-chave com uma incidência direta no custo de vida, como o gás natural, os produtos alimentares e o sector da habitação para arrendamento, continuaram a aumentar, a par de um forte aumento das margens de lucro (...) Nos casos em que existem dados disponíveis, como na União Europeia, no Reino Unido e nos Estados Unidos, há indícios claros de uma contribuição significativa do aumento das margens de lucro para a inflação após a pandemia.”

Em conclusão, o referido relatório continua afirmando agora que “a inflação continua a ser impulsionada pelos preços internacionais dos produtos energéticos e alimentares (...)” e que “os países que passaram por uma rápida liberalização nestes sectores críticos e os que já apresentavam vulnerabilidades financeiras, continuam a ser os mais expostos (...) e que, assim sendo, “[n]estas circunstâncias, a opção dos principais bancos centrais de aumentar rapidamente as taxas de juro não conseguiu combater as principais causas da inflação (...) e que, “[p]or conseguinte, é necessário reconsiderar os instrumentos de política económica para a estabilidade dos preços, mesmo que os preços das matérias-primas comecem a descer”.

Ao contrário do que afirma o alargado, mas errado, consenso entre macroeconomistas neoclássicos e e banqueiros centrais, o tipo de inflação que vivemos não pode ser debelado com políticas monetárias e orçamentais restritivas sem incorrermos num custo social proibitivo. Sem acentuar a desigualdade, sem causar disrupções nos mercados de energia, sem acentuar a instabilidade do sistema financeiro, sem colocar em causa a solvabilidade das famílias, das empresas e dos Estados, sem impossibilitar o investimento necessário ao combate com sucesso das alterações climáticas.

Como afirma Ann Pettifor, a premissa de que não se pode confiar nos políticos democraticamente eleitos para gerir a economia, mas que se pode confiar em burocratas não eleitos e que não têm de prestar contas, não só não foi provada como é manifestamente errada.

Mobilizando Stefan Eich, Petiffor continua: “Muito do que se passa como "despolitização" seria mais correctamente descrito como a desdemocratização da política monetária, que deveria, ela própria, ser sujeita a um escrutínio democrático. (...) as tentativas de "despolitizar" o dinheiro assentam numa contradição performativa - um truque de magia - na medida em que negam que tais apelos sejam, eles próprios, movimentos políticos dentro da política do dinheiro.”

William Mitchell, por outro lado, diz-nos o seguinte: “O público mal sabe que há uma grande experiência global a ser conduzida pelos bancos centrais que nos permite reflectir sobre a veracidade das teorias e abordagens económicas concorrentes e alternativas. Actualmente, a maioria dos bancos centrais está a aumentar as taxas de juro, como reflexo do predomínio da prioridade dada pelos novos keynesianos [neoclássicos] à política monetária como instrumento de política contra-estabilizadora e anti-inflacionista, em detrimento da política orçamental. Mas um banco central não está a seguir o exemplo - o Banco do Japão (BoJ). O BoJ não alterou as taxas, mantém a sua política de controlo da curva de rendimentos e o governo está a expandir a política orçamental. O que está a fazer é diametralmente oposto à abordagem do chamado novo keynesianismo. Dispomos agora de dados suficientes para avaliar os méritos relativos das duas abordagens. O Japão regista uma inflação mais baixa, não há crise cambial e os seus cidadãos estão em melhor situação em resultado da sua política monetária e orçamental”.

O Japão. O incontornável Japão.

Somos assim, novamente, recordados da lição fundamental da economia política: “as leis naturais da economia, que parecem existir em virtude da sua própria eficiência, não são na realidade senão projeções de relações sociais de poder que se apresentam ideologicamente como necessidades técnicas.”

Dubailisboa


Alegrai-vos e ide viver e morrer longe: Lisboa já está mais cara do que o Dubai no segmento de luxo. A bolha do porno-riquismo incha, dadas as desigualdades pornográficas na era do investimento e do consumo conspícuos, promovidos por políticas públicas, incluindo fiscais, determinadas pelo nexo finança-imobiliário-turismo.

É o sonho dos liberais até dizer chega a realizar-se: se o trabalho se tornar ainda mais servil, se a intensificação do neoliberalismo se combinar com crescente autoritarismo ou se houver complexos imobiliários no meio do Tejo, então sim, seremos uma verdadeira distopia das arábias. As alterações climáticas farão o resto.

Os bancos não sabem o que são lucros excessivos?

 

Numa entrevista recente ao Expresso, Vítor Bento, líder da Associação Portuguesa de Bancos (APB), foi taxativo: “Não sei o que são lucros excessivos”. O economista recusou a ideia de que o setor financeiro esteja a ganhar com a crise, embora não tenha deixado de reconhecer que “o que é um facto da vida é que em todos os momentos toda a gente é potencial presa e é potencial predador. Toda a gente está a fazer contas para não ser presa, e, se tiver que ser, que seja predador.”

A banca portuguesa parece estar a seguir à risca esta máxima. No ano passado, os cinco maiores bancos do país – Santander, CGD, BCP, BPI e Novo Banco – viram os seus lucros aumentar em mais de 1000 milhões de euros. No total, somaram lucros de 2583 milhões de euros, o que corresponde a um aumento de 71% face ao ano anterior. Para isso, contribuiu o aumento da margem financeira: os juros que os bancos portugueses cobram pelo crédito dispararam de 0,87% em junho para 3,56% em fevereiro, mas os juros que pagam pelos depósitos continuam muito baixos (0,65%), de acordo com o Banco de Portugal.

Enquanto a subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu tem pressionado as famílias (pelo aumento das prestações dos empréstimos, sobretudo em países como Portugal, onde 93% das prestações estão indexadas a taxas variáveis) e a atividade económica (pelo aumento do custo do crédito necessário para muitos investimentos), os bancos europeus têm beneficiado desta política.

A banca portuguesa tem sido particularmente beneficiada: a margem financeira no país subiu 9,5 vezes mais do que a média europeia. É difícil não ligar esta tendência ao enorme poder de mercado que os bancos portugueses possuem, acentuado pelos processos de concentração dos últimos anos. Os cinco maiores bancos do país detêm quase 75% do mercado nacional. É o pior dos mundos: grandes bancos, sem um grande poder público na banca.

Face aos enormes ganhos que tiveram em 2022, os bancos vão entregar aos acionistas 1,15 mil milhões de euros em dividendos (e mais de 70% deste montante segue para Espanha, onde estão os acionistas do Santander Totta e do BPI). Os gestores e os presidentes executivos tiveram aumentos de 20%, bem acima da inflação, recebendo um total de 27,7 milhões de euros. Aos trabalhadores, foram propostos aumentos salariais de… 3% ou pouco mais, confirmando a tendência do ano passado: os únicos grupos que conseguiram aumentos acima da inflação foram os que já tinham rendimentos mais elevados à partida.


É muito difícil justificar os ganhos extraordinários dos bancos em plena crise do custo de vida e num contexto em que boa parte das famílias portuguesas está com dificuldades em pagar as prestações dos empréstimos que contraíram. E é sobretudo difícil justificar que o Estado português tenha gasto, desde 2008, mais de 22 mil milhões de euros no resgate dos bancos sem garantir mecanismos que permitissem ter uma palavra a dizer sobre a sua atividade, de forma a salvaguardar o interesse público. Sem uma intervenção pública significativa, num contexto em que nem a gestão da CGD se afasta muito da dos restantes bancos, ficamos dependentes de privados para quem os lucros nunca são excessivos.